Thor: Ragnarok (2017)

Por André Dick

O terceiro filme da Marvel/Disney este ano, depois de Guardiões da galáxia Vol. 2 e Homem-Aranha – De volta ao lar, traz de volta o personagem Thor, o Deus do Trovão, tendo atrás das câmeras Taika Waititi. Se o humor e a ação funcionavam realmente nesses dois filmes, a expectativa era que funcionasse ainda mais no principal (pelo menos em termos de chamariz) deles. O diretor se tornou mais conhecido com O que fazemos nas sombras, um filme divertido sobre um grupo de vampiros que se unia numa cidadezinha para suportar junto a eternidade. Em seguida, ele fez Hunt for the wilderpeople, conhecido no Brasil como A incrível aventura de Rick Baker ou Fuga para a liberdade. Se O que fazemos nas sombras tinha uma produção modesta, o segundo possuía uma fotografia extraordinária, com uma sucessão de gags interessante em meio a um drama familiar, influenciado por Wes Anderson, a mesma referência em Loucos por nada, filme de Waititi de uma década atrás.

Thor: Ragnarok, pelos prognósticos, se tornaria aquilo que impediram Homem-Formiga de ser: um filme autoral, por causa justamente de Waititi. Ele mostra Thor (Chris Hemsworth) precisando salvar Asgard de uma nova e terrível ameaça, Hela (Cate Blanchett). Ao lado do irmão, Loki (Tom Hiddleston), ele tem um breve encontro com outro personagem conhecido da Marvel, antes de se depararem com o pai, Odin (Anthony Hopkins). Thor vai parar no planeta de Sakaar, onde vira prisioneiro de Valquíria (Tessa Thompson), sempre uma dose etílica acima do esperado, que o entrega ao Grão-Mestre (Jeff Goldblum). Esta parte do filme é a que melhor funciona, com Taika Waititi apresentando diálogos ágeis e situações cômicas no ponto exato, brincando com a cultura nórdica e a mitologia de Asgard (além da participação especialíssima, e engraçada, de um ator conhecido na reprodução de uma peça teatral), e tanto Hemsworth quanto Goldblum se destacam, além de Thompson valer cada cena em que aparece.
Em 2011, Thor teve uma transposição assinada por Kenneth Branagh, mais conhecido por suas adaptações para o cinema de obras de Shakespeare. Era este justamente o diferencial dessa produção: o herói dos quadrinhos tem, em grande parte, uma profusão de diálogos que lembram uma peça de teatro, mas sem cair no forçado ou pretensioso. Branagh mesclava a comédia com drama nos pontos certos, principalmente quando o herói cai numa cidade do deserto do Novo México, encontrando um grupo de cientistas, liderado por Jane Foster (Natalie Portman), ajudada por Darcy Lewis (Kat Dennings) e pelo Dr. Erik Selvig (Stellan Skarsgård), ausentes dessa continuação.

Havia sequências bastante divertidas, como a de Thor experimentando comida numa lanchonete ou as pessoas desconfiadas de seu figurino. A direção de arte de Bob Ringwood (o mesmo que fez os cenários de Batman – O retorno e Edward, mãos de tesoura, para Tim Burton) misturava o tom do deserto com a profusão de cores de Asgard, lembrando um pouco os anos 80, sobretudo na ponte multicolorida, com as galáxias ao fundo. Estranhamente, este filme de Branagh foi rechaçado em geral pelo público e recebido com certa indiferença pela crítica. Mais ainda: entende-se que ele não teria o bom humor agora utilizado.
Talvez porque Waititi esteja com mais nome do que Branagh se tenha criado o fato de que Thor: Ragnarok em algum momento está à altura de uma sátira à space opera como sua principal influência, Flash Gordon, dos anos 80, e que seu visual traga algo de espetacular. “Immigrant Song”, do Led Zeppelin, um diálogo com a trilha do Queen para a obra de Mike Hodges, funciona, assim como as cores são fiéis aos quadrinhos, com o auxílio da fotografia de Javier Aguirresarobe. Porém, não há comparação no resultado. Mesmo o segundo filme, Thor – O mundo sombrio, possuía um design de produção mais interessante, assim como um humor bem explorado no seu ato final. Aqui, Waititi se concentra muito em objetos com superfície real e amontoados de coisas que lembram restos de sucata, por causa do planeta que serve de locação principal. Para quem fez filmes com direção de arte irretocável como Hunt for the wilderpeole e Loucos por nada, poderia ser melhor. O figurino se sente criativo, mas leve demais e com pouca diversidade, assim como as batalhas de naves se assemelham em demasia às do segundo filme para ter uma real distinção e todo o arsenal de raios de luz se sente um pouco exagerado, mesmo sendo esta a finalidade, quando, na verdade, o roteiro funciona melhor em sua simplicidade: um dos personagens se comparar a Tony Stark é uma boa referência ao restante do universo e não se sente ultrajante, e uma torcida desfilando pelas ruas de Sakaar com cartazes de um determinado super-herói é suficientemente criativo.

Além disso, Waititi interrompe dois atos de comédia leve e calibrada, sua especialidade, e repassa suas cargas para um filme previsível de ação (com montagem confusa), tentando dar dramaticidade para a qual não havia despertado anteriormente. É difícil, mesmo que seja esta a pretensão, adentrar no drama depois de dois atos dedicados, de forma promissora, a uma sucessão de sequências divertidas e diálogos com duplo sentido (e a verve de Hemsworth já foi provada nas refilmagens de Férias frustradas e Caça-fantasmas). A graça da narrativa era justamente desconsiderar a pompa shakesperiana oferecida por Branagh, mesmo com bom humor em determinados trechos, e fazer uma sátira espacial. O roteiro de Eric Pearson, Craig Kyle e Cristopher Yost insere o personagem de Bruce Banner (Mark Ruffalo) e, consequentemente, de Hulk de forma desajeitada. Funciona num primeiro momento, mas no final se sente vazio, como se fosse apenas um espaço para um personagem que não aparecia desde Os vingadores – Era de Ultron. Cate Blanchett tem um ótimo início e seu papel dá a entender que teremos uma vilã inesquecível, junto com o comandado Skurge (Karl Urban). No entanto, algo se perde, e as cenas de ambos se tornam muito distantes do restante da história. Thor: Ragnarok sofre um conflito inevitável, que leva a um impasse capaz de transformá-lo no que não era em seus dois primeiros atos, pela tentativa de Waititi em explorar novas nuances desse universo: uma obra até determinado ponto comum.

Thor: Ragnarok, EUA, 2017 Diretor: Taika Waititi Elenco: Chris Hemsworth, Tom Hiddleston, Cate Blanchett, Idris Elba, Jeff Goldblum, Tessa Thompson, Karl Urban, Mark Ruffalo, Anthony Hopkins Roteiro: Eric Pearson, Craig Kyle, Cristopher Yost Fotografia: Javier Aguirresarobe Trilha Sonora: Mark Mothersbaugh Produção: Kevin Feige Duração: 130 min. Estúdio: Marvel Studios Distribuidora: Walt Disney Studios Motion Pictures

O filme da minha vida (2017)

Por André Dick

Terceiro filme dirigido por Selton Mello, O filme da minha vida é baseado no romance Um pai de cinema, do chileno Antonio Skármeta. Mello adapta o cenário original para a Serra Gaúcha dos anos 60, seguindo sua experiência cinematográfica iniciada em Feliz Natal e continuada em O palhaço, de 2011. Se apenas atuando Mello já fez ótimas comédias (O auto da Compadecida, Lisbela e o prisioneiro) e bons dramas (Lavoura arcaica, Jean Charles), atrás das câmeras ele vem procurando adotar um estilo próprio, mas dialogando com vários diretores. Por isso, há vários filmes dentro desse filme. Na narrativa, Tony Terranova (Johnny Massaro) tem lembranças constantes do seu pai, Nicolas (Vincent Cassel), que o deixou quando criança e nunca mais reapareceu. O jovem vive com a sua mãe, Sofia (Ondina Clais Castilho), enquanto dá aulas de francês numa escola do município onde vive. A cidade é cortada pelos trilhos de uma linha férrea que vai dar em algum lugar ainda desconhecido do espectador.

Com interesse especial por livros e pelo cinema, um tema que já ecoava em outra obra de Skármeta, o conhecido O carteiro e o poeta, Tony é apaixonado por Luna Madeira (Bruna Linzmeyer), irmã de Petra (Bia Arantes). O seu amigo principal, Paco (Selton Mello), tem como filosofia comparar humanos com um determinado animal de sua fazenda. É com ele que Tony tem conversas sobre o pai, e as lembranças se dão principalmente nos seus passeios de motocicleta, destacando-se que a bicicleta que ele leva ao celeiro traz novamente o personagem a um passado próximo.
Mello, de modo geral, mostra a história do personagem inicialmente em fragmentos, que se assemelham a visões, e se sustenta na belíssima fotografia de Walter Carvalho. Pode-se apontar como a melhor aquela em que imagina as irmãs ensaiando um número de dança no pátio da escola direcionadas a seu olhar. Em outro momento, ele observa as duas na rua da cidade com outros motociclistas, como se estivesse assistindo a um filme dos anos 1960, parecendo um diálogo com Loucuras de verão e A doce vida. Na escola onde dá aula, os seus alunos parecem saídos exatamente de alguma fotografia dessa época, o que é destacada pela coloração da imagem. Aos poucos, a narrativa um pouco dispersa vai ganhando mais unidade e, junto com as imagens que despertam uma espécie de lembrança longínqua, quase simétricas, com um design de produção muito elaborado, O filme da minha vida se torna uma espécie de ponte entre vida e arte de modo inegável.

A maneira como se costura a ligação desse personagem com o filme Rio vermelho, de Howard Hawks, é especialmente lúcida e concentra boa parte das memórias dele, assim como a conversa do maquinista Giuseppe (Rolando Boldrin, com breve e eficiente participação) com Paco, sintetizada na sequência final de maneira discreta e extremamente funcional pelo roteiro do diretor em parceria com Marcelo Vindicato. Neste sentido, há um diálogo com o adorável Cinema Paradiso, dos anos 80, com o encantamento de um menino pelo cinema e sua amizade com um projecionista, sem exatamente diluir a ideia. No entanto, não se trata apenas disso: o filme é composto por ligações de um ponto a ponto e não por acaso Sofia trabalha numa central telefônica. É uma espécie de representação do esforço de Tony em se conectar com as pessoas do seu círculo.
O mais interessante talvez seja como Mello vai costurando memórias e narrações internas com o cenário ao redor: as viagens de motocicleta por estradas desertas evocam uma solidão estendida aos personagens. Se o diálogo com o cinema de Fellini é evidente por meio da metalinguagem e da maneira como se desperta a paixão pelo cinema, os arredores da casa de campo onde Tony e sua mãe vivem, com seus varais de roupa e uma longa fileira de árvores distante remete ao melhor Andrei Tarkosky de O espelho e Nostalgia, com sua sensação de isolamento de tudo, o que se sente igualmente na ficção científica do cineasta russo Solaris. Conhecendo algumas dessas paisagens, arrisco dizer que Selton Mello as mostra como talvez nenhum cineasta brasileiro antes dele (lembrei algumas vezes do subestimado e semiesquecido O quatrilho, mas aqui uma dinâmica narrativa maior está em jogo). Isso não é pouco, visto a qualidade de algumas obras.

Se O filme da minha vida tem um pouco de dificuldade na parte sonora (algumas narrações em tom baixo são difíceis de se entender), não se pode dizer o mesmo da sua qualidade em termos de direção, elenco e fotografia. A intensidade do personagem central é acentuada pela atuação de Johnny Massaro, parecido com Louis Garrel e muito expressivo, que encontra em Bruna Linzmeyer um efetivo complemento para sua interpretação e empatia imediata. E, conhecido por Cisne negro, entre outras obras, Cassel tem uma rápida, mas boa presença. Sob o ponto de vista do design de produção elaborado, há uma passagem por um bordel da cidade vizinha àquela em que vive Tony que é iluminada quase como se por Zhang Yimou, tornando cada quadro histórico. Mais ainda quando vemos o bordel de dia, com o céu azul contrastando com a cena anterior, à noite, parecendo uma extensão de Santa Sangre, de Jodorowsky. Há uma estranha circularidade nesta história: se o início pode ir de encontro ao final por um palmo de película, suas imagens estão ligadas sempre à memória desses personagens. Este é um dos melhores filmes brasileiros já feitos, no qual a narrativa muitas vezes é explicada por seu aspecto visual. Não se trata de estilo sobre a substância e sim um triunfo na trajetória de Selton Mello.

O filme da minha vida, BRA, 2017 Diretor: Selton Mello Elenco: Johnny Massaro, Bruna Linzmeyer, Vincent Cassel, Selton Mello, Bia Arantes, Ondina Clais Castilho, Rolando Boldrin Roteiro: Marcelo Vindicato, Selton Mello Fotografia: Walter Carvalho Produção: Vania Catani Duração: 113 min. Estúdio: Bananeira Filmes, Globo Filmes Distribuidora: Vitrine Filmes

Doentes de amor (2017)

Por André Dick

Há alguns filmes que costumam ser caracterizados pela fusão de gênero; quando os assistimos, não conseguimos definir a que gênero exatamente pertencem, e isso torna suas qualidades mais ou menos intensas, dependendo de como a proposta é desenvolvida. Mistura entre comédia, drama e romance assinada por Michael Showalter, Doentes de amor mostra o namoro entre um descendente de paquistaneses, Kumail (Kumail Nanjiani), que trabalha como motorista de Uber enquanto tenta se lançar como comediante de stand-up, e a recém-separada Emily (Zoe Kazan), estudante de psicologia. Os dois moram em Chicago. Se a família dele não sabe que ele está querendo namorar uma moça alheia à sua cultura, tudo se complica quando ela fica doente e ele precisa passar por uma experiência hospitalar junto aos pais dela, Beth (Holly Hunter) e Terry (Ray Romano). Se a primeira parte anuncia apenas um romance leve, com a aproximação de um casal tentando investir numa nova paixão, a partir do segundo ato os detalhes se concentram numa espécie de congregação de culturas diferentes.

O roteiro assinado por Nanjiani, mais conhecido pela série de TV Silicon Valley, e Emily V. Gordon, a partir de sua própria experiência, reserva momentos leves e de afeto, principalmente quando Beth se desentende com Kumail por saber de informações repassadas pela filha, e ele se torna amigo de Terry. Que a atuação de Nanjiani é muito boa, é claro desde o início, assim como de Kazan, sempre despertando empatia com o espectador (a exemplo de Ruby Sparks), mas são Hunter e Romano que de certo modo aplicam a humanidade nessa história. Os dois estão excelentes, roubando a cena: enquanto Hunter (vista este ano rapidamente em De canção em canção) é uma mãe dedicada à filha, o pai feito por Romano (conhecido por sua série de TV exitosa) fica num meio-termo entre a aversão da esposa a Kumail, por ele ter tido um determinado comportamento, e a tentativa de conciliar todos. Pelo cenário do hospital, pode-se imaginar que se evitam os conflitos abertos, no entanto esses se mostram mais amplos de maneira interna.

Os pais de Kumail, Azmat (Anupam Kher) e Sharmeen (Zenobia Shroff) não sabem o que está acontecendo com o filho, nem entendem por que ele não se interessa por Naveed (Adeel Akhtar), pretendente de um casamento arranjado, que tenta fingir um interesse por Arquivo X, a série favorita dele. A reuniões da família durante o almoço ou o jantar configuram exatamente essa troca de ideias sobre a cultura paquistanesa e o quanto elas interagem para que os personagens se sintam individualmente interessantes. Em Doentes de amor, tudo transcorre em ritmo cotidiano, sem grandes mudanças de rumo, apenas visualizando o comportamento de pessoas em meio a uma situação de dificuldade. Compõe-se uma mescla entre o entendimento da vida, dos relacionamentos e a adaptação a determinados ambientes culturais. Há os bastidores da amizade do personagem central com outros comediantes, CJ (Bo Durnham), Mary (Aidy Bryant) e Chris (Kurt Braunohler). Doentes de amor capta bem esse ambiente, de forma muito próxima aos subestimados The comedian, com Robert De Niro em excelente performance, e Sandy Wexler, em sua visão sobre a arte. E está sendo tão bem recepcionado (depois de uma bilheteria que representa 10 vezes o seu custo) que é cogitado, inclusive, para os Oscars principais.

Temos a pressão da plateia para que o comediante seja engraçado e um certo rompimento entre o privado e o público, com histórias pessoais em meio ao tumulto. Em certos momentos, no entanto, falta mais pretensão por parte do diretor, fazendo com que tudo se mostre encaixado em excesso, para que o espectador se satisfaça. Não há, por exemplo, um desenvolvimento tão interessante no ato final que poderia conciliar todas as possibilidades no mesmo rumo. Se há algumas gags um pouco forçadas, como as que se referem ao fatídico 11 de setembro, e fazem lembrar a do previsível O ditador, ainda assim os personagens são tão simpáticos e bem delineados que o espectador acaba tendo vontade de voltar à narrativa mais uma vez. Tendo como produtor Judd Apatow, o filme lembra as narrativas desse diretor, a exemplo de Bem-vindo aos 40, retratando a tentativa de um casal de amadurecer por meio de dificuldades, embora este enfocado aqui seja mais novo do que o daquele filme. A preocupação aqui relacionada à saúde, no entanto, adquire um contorno mais dramático e ressonante, tornando Doentes de amor numa história realmente atrativa.

The big sick, EUA, 2017 Diretor: Michael Showalter Elenco: Kumail Nanjiani, Zoe Kazan, Holly Hunter, Ray Romano, Adeel Akhtar, Anupam Kher Roteiro: Emily V. Gordon, Kumail Nanjiani Fotografia: Brian Burgoyne Trilha Sonora: Michael Andrews Produção: Judd Apatow, Barry Mendel Estúdio: FilmNation Entertainment, Apatow Productions Duração: 117 min. Distribuidora: Amazon Studios, Lionsgate

10 possíveis candidatos ao Oscar de melhor filme em 2018

Por André Dick

A alguns meses das indicações ao Oscar, as apostas começam. No ano passado, ao tentar prever os indicados, acertei apenas três, o que não me torna nenhuma referência. Mas lanço minhas possíveis indicações, já que a um dia de elas saírem, com todos os prêmios prévios já entregues, fica mais fácil apontar quem estará na lista. Lembro que a aposta é em 10 candidatos, mas em 2015 e 2016 foram oito indicados e em 2012, 2013, 2014 e 2017, nove. Ou seja, foram indicados 10 filmes apenas em 2010 e 2011, quando a nova regra passou a valer. Nesse sentido, tudo indica que serão 8 ou 9, deixando normalmente grandes filmes de fora da lista final.

No ano passado, A chegada foi indicado. E neste ano tudo indica que Blade Runner 2049, do mesmo Denis Villeneuve, tem grandes chances, não apenas nas categorias principais, como nas técnicas. Além de ser um triunfo em vários campos (fotografia, design de produção, trilha sonora, efeitos visuais e sonoros), tem uma grande direção de Villeuneuve. Se eu fosse apostar num novo Mad Max seria este. Apenas acredito que seu elenco (com exceção de Ryan Gosling) não tenha grandes chances, embora Sylvia Hoeks se destaque como a vilã.

O diretor Alexander Payne já foi indicado algumas vezes ao Oscar: por roteiro original (Eleição) e direção (Sideways, Os descendentes, Nebraska), e recebeu dois de roteiro adaptado (Sideways e Os descendentes). Pequena grande vida talvez seja mais um a integrar a lista, assim como Matt Damon e Kristen Wiig tem possibilidades de serem indicados nas categorias de ator e atriz. Na história, cientistas da Noruega descobrem como reduzir seres humanos a 5 centímetros de altura. Ingressam na ideia Paul Safranek (Matt Damon) e esposa Audrey (Kristen Wiig), de Omaha, nesta espécie de Querida, encolhi as crianças mais intelectual. Os filmes de Payne sempre tratam de uma dor familiar e esta história a princípio bem-humorada pode ser mais uma nessa linha.

Depois de ser premiado com o Leão de Ouro em Veneza, A forma da água, de Guillermo del Toro, pode apontar que um novo diretor mexicano estará na disputa este ano, colocando-se ao lado de Alfonso Cuarón e Alejandro Iñárritu. Sally Hawkins interpreta Elisa, zeladora de laboratório secreto e com experimentos do governo dos Estados Unidos, que se apaixona por um ser fantástico preso ali. No elenco, ainda estão Richard Jenkins e Octavia Spencer. Há imagens que remetem a Splice, produzido por Del Toro, no entanto o visual fantástico e com influência dos filmes de Terry Gilliam dialoga mais com A colina escarlate. Já Hawkins está sendo vista como uma das possíveis candidatas a atriz – em outro filme dela este ano, Maudie, ao lado de Ethan Hawke, ela está espetacular.

Depois do elogiado Tangerine, Sean Baker regressa em Projeto Flórida. Passado durante o verão, mostra uma menina de 6 anos, Moonee (Brooklynn Kimberly) que mora com sua mãe Halley (Bria Vinaite) num motel chamado The Magic Castle Motel, administrado por Bobby (Willem Dafoe). Com visual de cores vivas, remetendo a Wes Anderson e seu universo fabular, sua história e temática podem lembrar Indomável sonhadora. A belíssima fotografia é assinada por Alexis Zabe, que trabalhou com Carlos Reygadas em Luz silenciosa e Luz depois das trevas, que influenciaram muito Emmanuel Lubezki. Tem o aspecto de filme indie que costuma agradar a alguns acadêmicos.

Embora os excepcionais O mestre e Vício inerente tenham recebido algumas indicações ao Oscar, Paul Thomas Anderson não repetiu mais seu êxito de Sangue negro, indicado aos Oscars de filme e direção, que deu passagem ao favorito Onde os fracos não têm vez. Phantom thread traz Daniel Day-Lewis em seu dito último papel no cinema, como um costureiro da família real, Charles James, na Londres dos anos 1950. Vencedor do Oscar por Meu pé esquerdo, Sangue negro e Lincoln, Day-Lewis tem tudo para ter um desfecho de carreira irreparável. Dependendo da recepção, podemos ter aqui o Oscar de melhor filme.

Recebido sem o mesmo entusiasmo de A hora mais escura, Detroit em rebelião tem potencial ao Oscar por causa de Kathryn Bigelow na direção e Mark Boal no roteiro. Passado num momento conturbado da cidade de Detroit em 1967, envolvendo policiais e muitos protestos, o filme de Bigelow não deve ser menosprezado, à medida que conta com o astro em ascensão John Boyega e o jovem Will Pouter.

Em Três anúncios para um crime, de Martin McDonagh (Na mira do chefe), Frances McDormand interpreta Mildred Hayes, que espalha outdoors em busca de quem estuprou e matou sua filha. Woody Harrelson, por sua vez, é o xerife Bill Willoughby e Sam Rockwell, o oficial Jason Dixon. Premiado como melhor filme no Festival de Toronto, tem sua indicação quase certa.

A adaptação de O estranho que nós amamos, de Sofia Coppola, vencedora do Oscar de roteiro original por Encontros e desencontros, tem feito grande carreira desde a premiação da diretora em Cannes. O elenco feminino pode render indicações: Nicole Kidman e Kirsten Dunst, sobretudo, embora não se menospreze Colin Farrell, já ignorado por O lagosta, no ano passado. A parte técnica também é belíssima (principalmente design de produção, fotografia e figurino). Maria Antonieta ganhou o Oscar de figurino.

Após ser indicado pelo roteiro de Amnésia e ter várias indicações técnicas com Batman – O cavaleiro das trevas e principais com A origem, Cristopher Nolan pode voltar ao Oscar com seu filme de guerra Dunkirk. Não o aprecio como a maioria, mas tem grandes chances, principalmente pela parte técnica irrepreensível (não tanto nas atuações, a não ser Mark Rylance como coadjuvante). O problema é que dificilmente a Academia vai indicar dois filmes com o mesmo tema: Dunkirk ou O destino de uma nação deve ficar de fora. Contra Dunkirk, ainda conta o fato de ser da Warner, o mesmo estúdio de Blade Runner 2049, mais favorito. E o fato de a Academia apreciar filmes com atuações mais definidas.

Em O destino de uma nação, Joe Wright, dos recentemente subestimados Anna Karenina e Peter Pan, traz Gary Oldman numa transformação fabulosa como Winston Churchill, nos eventos da Segunda Guerra Mundial que aparecem também em Dunkirk. Outro muito elogiado é Ben Mendelsohn e o elenco ainda conta com Kristin Scott Thomas. Wright parece voltar ao campo mais clássico e pendente à Academia de Orgulho & preconceito e Desejo e reparação, este indicado ao Oscar de melhor filme em 2008.

Repescagem:

mãe!, o novo experimento de Darren Aronofksy, traz Jennifer Lawrence e Javier Bardem. Apesar da recepção dividida, não duvido de indicações principais a ele, principalmente para Lawrence como melhor atriz e Michelle Pfeiffer como atriz coadjuvante. A parte técnica (fotografia e design de produção) também é destacável.

Dirigido por Dee Rees, Mudbound vai ajudar a definir se a Academia de Hollywood adotará o discurso contra a Netflix parecido com o de Pedro Almodóvar no Festival de Cannes. O filme mostra uma família afro-americana que se mudou para o Mississipi durante a Segunda Guerra Mundial e precisa enfrentar o racismo. O filme tem um grande elenco: Carey Mulligan, Garrett Hedlund, Jason Clarke, Jason Mitchell, Mary J. Blige, Jonathan Banks, Rob Morgan e Kelvin Harrison Jr.

The post, de Steven Spielberg, traz Meryl Streep em seu elenco: isso é tentativa de receber pelo menos uma indicação. Mesmo com Tom Hanks em baixa na Academia desde… Náufrago?, este filme parece se encaminhar para a temporada de premiações. Ele mostra a primeira editora feminina do país, do jornal The Washington Post, Kay Graham (Meryl Streep), que lida com seu editor Ben Bradlee (Hanks), em artigos envolvendo o Pentágono. Acima, foto com Meryl Streep, Spielberg e Hanks, pois não há ainda imagens do filme.

Em seus trabalhos mais recentes, a exemplo de Frances HaEnquanto somos jovens e Mistress America, Baumbach tende a tentar desenhar um painel da juventude norte-americana em conflito com ideais de uma geração anterior, no entanto em certos momentos soa descompassado. Essa característica não se sente em Os Meyerowitz – Família não se escolhe (Histórias novas e selecionadas), que, mesmo com seus cortes às vezes abruptos, se sente orgânico do início ao fim e verdadeiramente sentimental em suas escolhas. Baumbach entrega um dos melhores filmes do ano, com roteiro e elenco verdadeiramente referenciais para o que, independente de onde se veja, ainda se chama cinema. Como esconder os desempenhos de Adam Sandler, Dustin Hoffman e Ben Stiller e o roteiro e a direção de Noah Baumbach? Cabe à Academia de Hollywood decidir.

Outros possíveis candidatos: A ghost story (David Lowery), Radegund (Terrence Malick), Corra! (Jordan Peele), Primeiro, mataram o meu pai (Angelina Jolie), Terra selvagem (Taylor Sheridan), Maudie (Aisling Walsh), Nossas noites (Ritesh Batra), Columbus (Kogonada), O rei do show (Michael Gracey), Doentes de amor (Michael Showalter), Bom comportamento (Benny Safdie e Josh Safdie), All the money in the world (Ridley Scott), Sem fôlego (Todd Haynes), Me chame pelo seu nome (Luca Guadagnino), Assassinato no expresso Oriente (Kenneth Branagh), Extraordinário (Stephen Chobsky), The current war (Alfonso Gomez-Rejon), A guerra dos sexos (Jonathan Dayton, Valerie Faris), Only the brave (Joseph Kosinski), Marshall (Reginald Hudlin), Molly’s game (Aaron Sorkin), Last flag flying (Richard Linklater), Lady Bird (Greta Gerwig), Roda gigante (Woody Allen), O que te faz mais forte (David Gordon Green), Depois daquela montanha (Hany Abu-Assad)

Os Meyerowitz – Família não se escolhe (Histórias novas e selecionadas) (2017)

Por André Dick

Lançado no Festival de Cannes, Os Meyerowitz – Família não se escolhe (Histórias novas e selecionadas) teve sua exibição precedida por um discurso deselegante do presidente do júri da edição deste ano, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Ele resolveu investir contra os filmes da Netflix (como é o caso de Os Meyerowitz) selecionados pelo Festival porque eles não passariam nos cinemas, sendo disponibilizados diretamente na plataforma digital. Segundo ele, isso prejudicaria o cinema e não se poderia premiar filmes em festivais que não fossem exibidos como é de costume. Claro que se trata de um discurso que remete àquele de que um filme só pode ser visto como tal na tela grande. Isso valia na Hollywood dos anos 50 ou 60, quando se considerava que um filme morria quando passava na TV. Hoje, o cinema costuma sobreviver por causa de outras plataformas, inclusive, ainda, da TV. A qualidade de uma obra não aumenta nem diminui por causa do tamanho da tela (no máximo, em caso de filmes com efeitos visuais e uma fotografia especialmente primorosa, a exemplo do recente Blade Runner 2049, realça esses elementos). Nunca assisti a Cavaleiro de copas, de Terrence Malick, na tela grande – e é meu preferido de 2016 (levando em conta a data de lançamento internacional). Os únicos filmes lançados em Cannes este ano que podem, até o momento, ser vistos pelo público no Brasil são exatamente os dois da Netflix (o outro é Okja) e O estranho que nós amamos, de Sofia Coppola. Os filmes ficam; o discurso de Almodóvar vai, aos poucos, desaparecer.

Os Meyerowitz é uma obra de Noah Baumbach, responsável pelos excelentes A lula e a baleia e Greenberg e os muito interessantes Frances Ha, Margot e o casamento e Enquanto somos jovens, entre outros. Ele também contribuiu no roteiro de A vida marinha com Steve Zissou e O fantástico Sr. Raposo, junto a Wes Anderson, e se tornou, nos últimos anos, uma mescla entre ele (mais séria) e Woody Allen. Por sua história, Os Meyerowitz dialoga claramente com Os excêntricos Tenenbaums. Mas Baumbach, como em outros filmes, costuma situar seus personagens numa narrativa que dialoga menos com enquadramentos e cores que Anderson.
Se em A lula e a baleia, acompanhávamos um escritor, Bernard Berkman (Jeff Daniels), que havia feito sucesso e continuava dando aulas, pai de dois filhos com uma escritora, Joan (Laura Linney), fazendo o sucesso que ele tinha, em Os Meyerowitz vemos um pai escultor, Harold (Dustin Hoffman, excelente), casado com Maureen (Emma Thompson), aparentemente recém-saída de Woodstock. Ele tem um casal de filhos do primeiro casamento, Danny (Adam Sandler) e Jean (Elizabeth Marvel), e um filho do segundo, Matthew (Ben Stiller), cuja mãe é  Julia (Candice Bergen). O filme inicia com o antigo escultor, que nunca fez grande sucesso, querendo vender a sua casa. Danny deseja conservar suas obras, mas ele não pensa o mesmo. Numa ida à exposição de um antigo amigo, L.J. Shapiro (Judd Hirsch), conflitos vêm à tona para Harold, em relação a ter deixado uma obra para a posteridade.

Dividido em partes, na segunda o pai da família se encontra com Matthew, um corretor, a quem é mais devotado, mas nervoso por não ser bem atendido no restaurante previsto para um diálogo. Baumbach vai encaminhar pequenos conflitos para uma situação ainda mais delicada, na qual os irmãos precisarão se encontrar e chegar a um entendimento. Danny é pai de Eliza (a revelação Grace Van Patten, do interessante Tramps, também da Netflix), que cursa cinema, e é com eles que Baumbach abre sua bela história sobre uma família comum, mas em permanente conflito. Matthew se tornou o mais bem-sucedido, o que torna Danny um pouco receoso de sua aproximação, no entanto é este o mais próximo do pai, em diálogos sobre filmes, uma característica do cinema de Baumbach, como já víamos especialmente em Enquanto somos jovens.
O que mais chama atenção em Os Meyerowitz é a delicadeza com que ele trata a relação entre um pai e seus filhos. Não apenas pela atuação de Hoffman, mas principalmente pelo encontro exitoso entre Stiller e Sandler, este é um filme cujo humor acentua o drama e vice-versa. Depois de fazer o injustamente menosprezado Sandy Wexler este ano, Sandler apresenta aquela que é talvez sua atuação mais calibrada ao lado de Embriagado de amor. Ele consegue entregar ao papel de músico fracassado e divorciado uma sutileza necessária e, ajudado pelo belo roteiro, trava uma interação agradável com Van Patten, numa sequência ao piano logo ao início, e, sobretudo, com Stiller, que tem, num determinado momento-chave, a sequência de sua carreira (não entrarei em detalhes). Stiller já havia trabalhado com Baumbach em Greenberg e Enquanto somos jovens, em dois de seus melhores papéis, fugindo às comédias padronizadas em que costuma estar envolvido.

Baumbach consegue conciliar o ambiente urbano de Nova York, pano de fundo para muitos de seus filmes – e Adam Driver, ator que ajudou a revelar, aparece numa participação especial –, com um ambiente mais bucólico, de interior, como se a intimidade dos personagens sempre estivesse conciliada com os cenários. Algumas passagens podem parecer desnecessariamente explicativas, no entanto conservam sempre um tom familiar capaz de tornar o material de Baumbach próximo do espectador. Os personagens, mesmo adultos, adotam algumas vezes um comportamento infantil, mas o roteiro não torna isso superficial, tentando minimizar a dimensão deles, e sim os torna mais complexos. Na tentativa de não reprisarem o passado, eles olham para a geração futura com a preocupação de fazerem o certo: não há também um sentido de competição novamente em cena. Há um relato comovente de Jean, que torna a aparição de Marvel, até então um pouco deslocada, numa peça essencial para entender também o passado dessa família. Em seus trabalhos mais recentes, a exemplo de Frances Ha, Enquanto somos jovens e Mistress America, Baumbach tende a tentar desenhar um painel da juventude norte-americana em conflito com ideais de uma geração anterior, no entanto em certos momentos soa descompassado. Essa característica não se sente em Os Meyerowitz, que, mesmo com seus cortes às vezes abruptos, se sente orgânico do início ao fim e verdadeiramente sentimental em suas escolhas. Baumbach entrega um dos melhores filmes do ano, com roteiro e elenco referenciais para o que, independente de onde se veja, ainda se chama cinema.

The Meyerowitz stories (New and selected), EUA, 2017 Diretor: Noah Baumbach Elenco: Adam Sandler, Ben Stiller, Dustin Hoffman, Emma Thompson, Elizabeth Marvel, Grace Van Patten, Candice Bergen, Adam Driver, Judd Hirsch, Rebecca Miller, Matthew Shear Roteiro: Noah Baumbach Fotografia: Robbie Ryan Trilha Sonora: Randy Newman Produção: Scott Rudin, Noah Baumbach, Lila Yacoub, Eli Bush Duração: 112 min. Estúdio: IAC Films Distribuidora: Netflix

 

Blade Runner 2049 (2017)

Por André Dick

Lançado em 1982, Blade Runner – O caçador de androides, de Ridley Scott, teve uma recepção tímida por parte da crítica e do público, mas acabou se transformando num grande cult, uma obra-prima da ficção científica. Visto como um filme intocável, foi estranho à primeira vista imaginar uma continuação, e sem a direção de Scott. Foi ele, como produtor executivo, quem convidou Denis Villeuneuve para estar à frente da sequência. O diretor canadense se notabilizou nos últimos anos por transitar entre gêneros diferentes, em filmes como Polytechnique, Incêndios, Os suspeitos, O homem duplicado e Sicario – Terra de ninguém. No ano passado, ele fez a elogiada ficção científica A chegada, sobre a tentativa de contato humano com extraterrestres.
Por toda a carga de expectativa, ele parecia cada vez o melhor nome para dirigir Blade Runner 2049. Tendo como base o roteiro de Hampton Fancher (que colaborou no primeiro) e Michael Green, baseado nos personagens de Philip K. Dick, o filme mostra um novo caçador, K (Ryan Gosling), um replicante, que trabalha para a tenente Joshi (Robin Wright), da LAPD, e, quando vai atrás de um replicante mais datado, Sapper Morton (Dave Bautista), numa sequência que lembra a de Leon (Brion James) no original, descobre uma árvore com uma ossada escondida embaixo dela.

Levando os dados para sua equipe em Los Angeles, tão chuvosa quanto no clássico de Scott (spoiler até o fim deste parágrafo), descobre-se que seria da replicante Rachael (Sean Young), desaparecida com Rick Deckard (Harrison Ford) muitos anos antes. K, certamente uma homenagem ao segundo nome do autor que criou esse universo (Kindred), vai atrás de dados dela na corporação comandada por Niander Wallace (Jared Leto), assessorado por Luv (Sylvia Hoeks), que segue a linha da Tyrell original. Nisso, um pequeno cavalo de madeira é a pista para lembranças decisivas, em paralelo com o unicórnio da obra de Scott. Há uma analogia desse símbolo com a árvore sustentada por cordas e uma pequena flor que K recolhe perto dela como se precisasse dela para uma pesquisa científica, tamanha a raridade.
Além disso, K tem uma relação cibernética com Joi (Ana de Armas), um programa de computador que reproduz uma imagem feminina, nos moldes de Ela, mas, como os replicantes do primeiro filme, que então só podiam viver em colônias da Terra, deseja, de forma angustiada, ser humano. Para quem gosta do estilo de atuação de Ryan Gosling (o meu caso), Blade Runner 2049 certamente funcionará melhor. Gosling, como nos filmes de Refn (Drive e Apenas Deus perdoa), usa o mínimo de expressões, mas de maneira relevante e sua busca pelo lado humano que pode existir nele é o mote do roteiro e da direção sensível de Villeuneuve. Suas memórias, mesmo implantadas, são o guia desta viagem. A todo instante, a história pergunta se as sensações são reais ou imaginárias.

O diretor canadense nunca apresentou personagens extremamente simpáticos, e sim conflituosos, e aqui não é diferente. K é um Deckard ainda mais frio, mais concentrado na investigação de por que Rachael morreu e quem seria seu elo de ligação – e sua busca por si mesmo dialoga com a do personagem de Scarlett Johansson em Ghost in the shell este ano. Do lado contrário, Luv faz as vezes de Roy Batty, personagem de Rutger Hauer, com um sentido implacável de abreviar a vida de quem pretende descobrir um determinado mistério decisivo para a trama. Eles são opostos que se complementam. K não deixa de ser um Batty às avessas, com sua paixão real não pela própria existência, mas para compartilhar com os outros sua experiência de vida. O afeto que tem por Joi é real, mesmo romântico (numa cena embaixo da chuva, muito bem filmada por Villeneuve), não o que tem Niander por suas criações – o beijo nelas, depois de deslizarem por uma espécie de placenta plastificada, é um sinal de abandono. O corpo é sempre o símbolo de um prazer proibido (spoiler: K vai ver sua musa desnuda apenas num holograma ao final do filme e sua relação com ela, por meio de Mariette (Mackenzie Davis), é quase impessoal).
Seria talvez desnecessário elogiar a parte técnica, que certamente reproduziria a competência mostrada em Blade Runner. No entanto, é obrigatório: o trabalho de Roger Deakins na fotografia e Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch na trilha sonora (captando as sensações daquela clássica de Vangelis) são exemplos notáveis de como ajudar a contar uma história e tornar este um blockbuster sem elementos de blockbuster (talvez por isso como o primeiro tenha estreado mal nas bilheterias). Além disso, os efeitos visuais trazem um realismo poucas vezes visto em tempos de CGI exagerado: as naves espaciais têm uma movimentação verossímil e Villeneuve, como em Sicario, aproveita para fazer tomadas áreas sobre o deserto de maneira particular. E, na parte de efeitos sonoros, há ecos de A chegada, principalmente, embora aqui sejam mais impactantes.

O filme anterior era mais uma perseguição incessante e atmosférica; este é mais uma investigação, e com todas as minúcias do gênero. Menos noir que o anterior, ele sai de Los Angeles e vai para outros lugares, mostrando mais a amplidão de 2049 do que a opressão da metrópole na vida desses personagens. Isso fica claro desde o início, quando K está atrás de Morton numa espécie de fazenda na Califórnia. Como em Sicario, Villeuneuve está interessado em mostrar cenários imensos, em que o horizonte se perde, e nunca deixa de inserir o espectador num universo futurista incontestável. Se no primeiro Los Angeles parecia Tóquio, com uma profusão infinita de neons, em seu retrato cyberpunk, este lembra mais o deserto… de Las Vegas. No apartamento de K, as luzes do lado de fora remetem mais ao filme de 1982, mas Villeneuve não tenta copiar o estilo de Scott, preferindo os ambientes mais assépticos e menos coloridos, sem também as luzes entrando pelas janelas, uma característica das narrativas noir e dos anos 80. A corporação de Niander lembra muito a do original, mas, ainda assim, parece mais labiríntica, como se a identidade das pessoas se perdesse em corredores e salas frias. Villeneuve sempre foi cuidadoso com o design, mas ele se supera em Blade Runner 2049, levando o espectador realmente para outro universo, com certa influência ainda de Inteligência artificial, na maneira como torna os ambientes desolados e, sobretudo, na sequência passada em Las Vegas, quando há também referências musicais por meio de hologramas e aos duelos de faroeste, que, se resolvidos, só poderiam terminar na mesa de um bar. Em determinado momento, também há uma referência pertinente à exploração do trabalho infantil, porém sem nenhum traço facilitador ou piegas, numa ilha de sucata remetendo a Eraserhead, de Lynch, contrastando com uma reunião de crianças imaginária ao redor de um bolo de aniversário.

Embora Leto e Hoeks tenham participações breves, ambos estão muito bem, assim como Ana de Armas e Robin Wright. Já Harrison Ford, voltando como Deckard, é particularmente emocionante, mais do que sua retomada como Han Solo em Star Wars. Este elenco conserva uma particularidade pessoal, tornando Blade Runner 2049 numa obra bastante independente da primeira, apesar dos óbvios diálogos visuais e temáticos. Se o de Scott tinha uma atmosfera mais pessimista, o novo é mais esperançoso, mas não no sentido do lugar-comum e sim na maneira como visualiza principalmente o trajetória de K. Este é um personagem que amplia a solidão anunciada no clássico de 1982 e, mais ainda, sinaliza para um futuro real. A longa duração (quase 50 minutos a mais que o original) não prejudica; pelo contrário, torna as sequências mais definidas e compostas com um cuidado extremo, fazendo com que cada uma ressoe junto ao espectador. São belas principalmente as que trazem simbologias, como o fogo (nas lembranças de K) e a água (representando a morte e a vida), encontrando na neve (imaginária ou não) o meio-termo para as lágrimas na chuva, da mensagem de Batty, que tanto comovia minha mãe, admiradora do primeiro filme e que, imagino, apreciaria muito também esta nova obra-prima. É um filme que, à medida que é assistido, cresce na imaginação: nunca um replicante do primeiro, mas uma obra grandiosa.

Blade Runner 2049, EUA, 2017 Diretor: Denis Villeneuve Elenco: Ryan Gosling, Harrison Ford, Robin Wright, Ana de Armas, Sylvia Hoeks, Jared Leto, Dave Bautista, Edward James Olmos, Wood Harris, Mackenzie Davis, Hiam Abbass, David Dastmalchian, Tómas Lemarquis Roteiro: Hampton Fancher e Michael Green Fotografia: Roger Deakins Trilha Sonora: Benjamin Wallfisch, Hans Zimmer Produção: Andrew A. Kosove, Broderick Johnson, Bud Yorkin, Cynthia Yorkin Duração: 163 min. Estúdio: Warner Bros. Distribuidora: Sony Pictures

Jogo perigoso (2017)

Por André Dick

Adaptado de um livro de Stephen King, Jogo perigoso é um lançamento recente da Netflix, dirigido por Mike Flanagan, o mesmo do terror Hush. Se há alguns anos os livros de King não eram tão adaptados com tanta frequência, como nos anos 80 e 90, parece que em 2017 houve uma retomada das transposições para o cinema de obras do autor, a começar por It – A coisa, um dos grandes sucessos do ano. King tem uma variedade de histórias que vão desde a descoberta da juventude (Conta comigo), passando por homens lutando para escapar ao ambiente da cadeia (Um sonho de liberdade) até peças com o terror mais denso (O iluminado, para citar apenas um dentre vários).
Com uma premissa muito simples, Jogo perigoso mostra um casal, Jessie Burlingame (Carla Gugino) e Gerald (Bruce Greenwood), um advogado, indo para sua casa de férias no Maine. Eles querem revitalizar o casamento e, para isso, Gerald tem a ideia de algemar as mãos de sua esposa à cama. O marido já não sente a mesma atração pela mulher e fingir que ela é uma desconhecida parece despertar nele um desejo mal explicado. O que poderia ser uma espécie de Instinto selvagem em forma de diálogo teatral logo se transforma num pesadelo, não apenas para Gerald como para Jessie.

Se o espectador está interessado em boas atuações, encontrará com certeza em Gugino e Greenwood presenças de qualidade em cena. Ambos conseguem desenvolver, principalmente no início, uma boa química, pela maneira como a história é contada, de maneira ágil. No entanto, isso não é o suficiente para sustentar o roteiro. Se a ida deles para a casa afastada é precedida pelo encontro com um cachorro abandonado à beira da estrada (ao qual Gerald, em determinado momento, vai se referir como “cujo”, que é o nome de outra obra de King adaptada para o cinema, num filme assustador de 1983) e lembre um pouco o clima de Violência gratuita, de Michael Haneke, parece que tudo que cerca essa cena misturando sexo e recordações desagradáveis não é tão bem dosada quanto poderia ou o diretor Flanagan imagina. Há uma base para discussão sobre o matrimônio e sobre a intimidade bastante interessante e mesmo inusual no cinema norte-americano, no qual a fantasia se mistura com a agressão física, contudo a expectativa logo vai se desaparecendo com o tratamento irregular e os diálogos distribuídos de maneira mais plana.

Excessivamente calcado em flashbacks (nos quais Flanagan traz Henry Thomas, atuando de forma estranha, talvez pela dificuldade do papel, também para o espectador, para quem se acostumou a assisti-lo em filmes como E.T.), o filme desliza por temas arriscados e seu tom nunca se sente sólido. Ele parte de um início em que o foco é o “jogo” de Gerald para escolher no passado a forma de explicar o presente e guiar a personagem central, com resultados duvidosos. Isso porque parece que o passado de Jessie, por pior que seja, pode sugerir em algum momento o jogo do marido (será ele até o momento antes em que o conhecemos alguém diferente?) e sua superação, sob um novo castigo. Por um lado, trata-se de uma ideia até interessante e podemos ver nesse aspecto uma circularidade da personagem, uma espécie de confronto dela com seus incômodos psicológicos mais graves, contudo a maneira com que se revela acaba sendo um pouco tortuosa para o espectador. Flanagan não consegue oferece o devido crescendo no sentido de desvendar e desmontar cada personagem, embora a atriz Chiara Aurelia se mostre excepcional numa participação de grande relevância para a trama.

Flanagan não tem uma direção criativa, preferindo utilizar a simbologia de uma eclipse para definir a personagem central. É excessivamente expositivo por meio dessa imagem, não deixando para o espectador qualquer tentativa de desvendar algo. Essa opção tomada é lamentável porque principalmente Gugino (um destaque em Watchmen e Sucker Punch, duas obras de Snyder) oferece uma atuação que, com um roteiro melhor e numa obra com melhor narrativa, seria propícia a indicações a prêmios. Nesse ponto, é talvez o filme mais comum em termos de produção da Netflix, não apenas porque utiliza poucos cenários, de acordo com o livro, como também pelo acabamento do eclipse em desacordo visualmente com o restante do design de produção, parecendo sempre algo à parte da trama. Jogo perigoso é também mais assustador do que dramático em algumas cenas, mas termina com um epílogo terrível, um dos piores do cinema recente. Quando Flanagan pretende acentuar o mistério ao redor de uma trama em parte bastante realista, chegando a um momento em que o espectador precisa enfrentar uma determinada imagem, acaba se perdendo, e de certo modo o espectador percebe que antes a trama já não se mostrava com a força devida. É esse final, de qualquer modo, que define a decepção: tão calculado quanto expositivo, mesmo Gugino vê sua atuação até então irretocável ser prejudicada pela direção de Flanagan.

Gerald’s game, EUA, 2017 Diretor: Mike Flanagan Elenco: Carla Gugino, Bruce Greenwood, Henry Thomas, Carel Struycken, Kate Siegel, Chiara Aurelia Roteiro: Jeff Howard e Mike Flanagan Fotografia: Michael Fimognari Trilha Sonora: The Newton Brothers Produção: Trevor Macy Duração: 103 min. Estúdio: Intrepid Pictures Distribuidora: Netflix

Homem-Aranha – De volta ao lar (2017)

Por André Dick

Depois de o Homem-Aranha ser vivido por Tobey Maguire entre 2002 e 2007, na trilogia de Sam Raimi, ainda referencial, e por Andrew Garfield em dois filmes, um de 2012 e outro de 2014, a partir de Capitão América – Guerra Civil temos seu novo intérprete, Tom Holland. Revelado em O impossível, no qual fazia o filho de Naomi Watts num desastre da natureza, e integrante do elenco do ótimo Z – A cidade perdida, Holland reprisa o papel no seu primeiro filme solo, Homem Aranha – De volta ao lar.
A história tem início logo após a Batalha dos Vingadores contra Loki em Nova York, quando a empresa de Adrian Toomes (Michael Keaton), que ajuda a limpar a cidade, é barrada pelo Department of Damage Control (DODC), que constitui uma parceria entre o governo norte-americano e Tony Stark (Robert Downey Jr.). Toomes decide roubar algumas peças de tecnologia das naves alienígenas para fazer seus próprios artefatos. Esse início é um boa retomada da cena de combate da obra de Joss Whedon, quase esquecida em filmes posteriores da Marvel, com exceção de Homem de Ferro 3.

Oito anos depois, Parker é chamado por Stark para participar da luta contra o Capitão América –  e vemos algumas cenas de Guerra Civil filmadas com um celular, parecendo um making of. Pode-se dizer que, a partir daí, o diretor Jon Watts já esclarece seu caminho: este Homem-Aranha é muito mais bem-humorado do que os anteriores. O de Maguire era um tanto melancólico, e funcionava bem, com momentos pontuais de diversão, enquanto o de Garfield se fazia mais próximo deste, com uma certa adolescência em jogo e interesse por esporte (ele andava de skate, por exemplo). Peter Parker estuda na Midtown School of Science and Technology, à espera de um novo chamado para outra missão.
Ele é muito amigo de Ned (Jacob Batalon) e apaixonado por Liz (Laura Harrier), com quem participa do Decathlon acadêmico do Sr. Harrington (Martin Starr, conhecido por suas participações em Freaks and geeks e Adventureland), apesar de incomodado por um colega, Flash (Tony Revolori, de O grande hotel Budapeste). Sua tia, May (Marisa Tomei), nem desconfia que ele usa um uniforme secreto para combater o crime. Nas suas peregrinações atrás de criminosos, o Homem-Aranha se depara com alguns homens de Toomes, usando máscaras dos Vingadores, numa sátira a Caçadores de emoções, de Kathryn Bigelow. Como se trata do sexto filme do super-herói em 15 anos, Watts resolveu não contar novamente sua origem, ou seja, não temos a figura do tio do personagem, mesmo porque esta versão já aparecia na peça dos irmãos Russo.

O diretor encadeia as ligações de maneira muito ágil e descompromissada, tornando o humor orgânico, sem exageros, assemelhando-se, em proposta, a Homem-Formiga, um dos mais bem resolvidos do universo, por misturar naturalmente ação, drama e humor. Há uma influência visível no timing cômico e de ação dos filmes de Edgar Wright, e a impaciência adolescente de Parker é bem dosada por Holland. Sua participação em Guerra Civil se estendia como uma espécie de trailer antecipado para este filme, e havia um certo nervosismo do ator: aqui o nervosismo se converte, em determinado momento, em apelo dramático, e o ator funciona bem, principalmente no embate com um ótimo – embora subaproveitado – Michael Keaton, brincando com Birdman. Perto do semidesastre que foi o segundo filme com Garfield, com seu excesso de vilões e camadas irresolvidas, este se sente uma realização ainda que sem novidades na estrutura bastante eficiente. Ele se encaixa com o restante do universo sem parecer forçado e a participação de Stark não se sente intrusiva, como poderia antecipar o trailer (Downey Jr., aliás, está bem, assim como Jon Favreau, na pele de seu assessor Happy Hogan).

Os quarenta primeiros minutos têm um diálogo com filmes de adolescente recentes, a exemplo de Cidades de papel, com uma participação exitosa de Batalon, como o amigo de Parker, As vantagens de ser invisível e uma brincadeira com O clube dos cinco, de John Hughes – com o Capitão América servindo como uma espécie de guia dos bons valores escolares. Há uma boa solução de romantismo em relação a Liz, embora a atriz, Harrier, não tenha a mesma participação permitida a Kirsten Dunst e Emma Stone, das versões anteriores. Quando o Homem-Aranha procura criminosos, há um misto entre humor e ação bem dosados que faz lembrar o primeiro filme da franquia de Raimi, principalmente na conversa entre habitantes de um bairro (entre eles, Stan Lee). Watts também sabe criar uma boa ambientação, principalmente nas cenas noturnas, com um belo visual destacado pela fotografia de Salvatore Totino. Talvez Homem-Aranha – De volta ao lar comece a parecer repetitivo justamente quando ingresse nas cenas de ação inevitáveis (por vezes exageradas), o que é um problema. Não chega a haver tanta mudança de tom neste Homem-Aranha, mesmo com seis roteiristas, mas principalmente a sequência de embate conclusiva se sente um tanto apressada e sem vibração. Como praticamente o filme se sustenta num diálogo, bem feito, com o humor, a exemplo de Homem-Formiga, ele nunca se sente pesado o suficiente para entendermos que o super-herói está passando por ameaças vigorosas. Isso não prejudica o resultado, certamente um dos mais exitosos do gênero nos últimos anos.

Spider-man – Homecoming, EUA, 2017 Diretor: Jon Watts Elenco: Tom Holland, Michael Keaton, Robert Downey Jr., Marisa Tomei, Jon Favreau, Gwyneth Paltrow, Zendaya, Donald Glover, Jacob Batalon, Laura Harrier, Tony Revolori, Bokeem Woodbine, Tyne Daly, Abraham Attah, Hannibal Buress, Kenneth Choi, Martin Starr, Selenis Leyva Roteiro: Jonathan Goldstein, John Francis Daley, Jon Watts, Christopher Ford, Chris McKenna, Erik Sommers Fotografia: Salvatore Totino Trilha Sonora: Michael Giacchino Produção: Amy Pascal, Kevin Feige Duração: 133 min. Estúdio: Columbia Pictures, Marvel Studios, Pascal Pictures Distribuidora: Sony Pictures

mãe! (2017)

Por André Dick

Este texto apresenta spoilers

O diretor Darren Aronofsky nunca foi conhecido exatamente pela discrição à frente de seus projetos. Desde Réquiem para um sonho, com Jared Leto e Ellen Burstyn, ele flertava com imagens de alucinação, que se intensificariam não em O lutador, com uma das melhores atuações de Mickey Rourke, mas em Fonte da vida, uma tentativa de compreensão do universo, e Cisne negro, com a personagem central inserida num ambiente de dança. Noé, sua maior produção até o momento, com gastos milionários, tem esse efeito quase surreal das imagens do cineasta, que iniciou a carreira com Pi, mesmo que se possa entender que é seu filme menos autoral.
Quando se fala em autoria, certamente lembra-se do fato de que Aronofsky é um diretor e roteirista que tem alguns temas prediletos. A religião estava subentendida em cada momento de Pi Fonte da vida, mas nunca chegou a ser preponderante – e talvez não o seja também em Noé, que, pela escala de movimentação, pode lembrar mais um filme fantástico baseado num relato bíblico a que todos temos acesso. Pertencente ao Gênesis, a história da Arca de Noé sintetiza a ideia de como o mundo pode ter passado por um acontecimento divisor. Desta vez, em mãe!, considera-se que ele faz uma releitura bíblica novamente, mas seu diálogo parece ser mais com o processo de criação de um artista, como em Cisne negro.

Neste filme, o diretor da adaptação da peça musical de Tchaikovsky deseja extrair o que não vê em Nina: exatamente o cisne negro. Seu poder de sedução é obscuro e Aronofsky procura essa amplitude por meio de reflexos de espelhos, e na imaginação dela luzes são desligadas antes de se terminar o ensaio para prejudicar seu ensaio. Esses reflexos podem estar presentes em frente ao espelho de uma festa, ou no metrô, ou mesmo na passagem, por uma passarela, ao lado de alguém que parece uma réplica. Ao mesmo tempo, a fotografia de Matthew Libatique mostra uma Nova York tenebrosa, sempre acompanhando os passos de Nina, seja à sua frente, seja pelas costas, revelando a opressão do mundo no qual ela se insere (difícil imaginar outro desconforto maior do que a escolha de Thomas de suas bailarinas, como se elas precisassem ser tocadas para ganhar o reconhecimento da existência). Nina não conhece sua sexualidade e por isso não consegue desenvolver seu lado mais obscuro. É uma jovem entrando na vida adulta, o que, para alguns, significa a morte – e o sexo, o prazer, está sempre associado a algo mórbido ou que pode afastar da visão idílica que se tenta ter das coisas. Não se trata exatamente de uma abordagem sutil, e Aronofsky não a tem como objetivo. Sua meta é, por meio da figura da bailarina, suscitar uma coleção de metáforas. Há quem não goste, certamente. Aronofksy não parece muito preocupado com isso.

Em mãe! não é diferente (e a interpretação daqui em diante é tão livre como para outros filmes também ousados em sua temática, a exemplo de O homem duplicado, de Villeneuve). Por meio da figura de uma mulher, referida como mãe (Jennifer Lawrence), que vive com um poeta, referido como ele (Javier Bardem), numa casa de campo, isolados de tudo, Aronofsky desenha novamente uma mulher que tem problemas com o companheiro. Ela não consegue convencê-lo a ter filhos com ela, enquanto ele, como poeta, só pensa em escrever a grande obra. A casa passou por um incêndio e está sendo reconstruída. Enquanto isso, ele começa a receber pessoas em sua casa, sem a autorização da esposa: o casal feito por Ed Harris e Michelle Pfeiffer, um mais assustador do que o outro sem fazer força para isso. Esse casal representa exatamente o que ele não deseja: repartir sua vida com os filhos. Por isso, pode-se entender, o homem feito por Harris é doente, e seus filhos buscam a mútua destruição. Muito se fala que haveria um fundo religioso nessa cena construída por Aronofsky, e compreende-se isso apenas sob o ponto de vista de que, se o poeta for Deus, ele justamente não quis o pecado no Éden, representado por esse casal. Porém, não há a queda nem o castigo, nesse sentido: o poeta aceita muito bem a escolha do casal (o que me leva a acreditar que, se há um deus por trás de tudo, não é ele). Como em Cisne negro, mais literal do que se imagina, Aronofksy deseja esconder a leitura mais discreta. A mulher é a musa do poeta, e quando ela pode criar algo que rivalize com a obra dele – ou seja, a maior criação, dando vida a um ser –, a reação dele é necessariamente colocá-la em segundo plano. O fato de se comportar como um deus faz parte da atitude desse poeta, considerando-se acima de tudo. Sem interesse não é no jantar preparado pela esposa, mas nos seguidores e em sua editora (Kristen Wiig). Para ele, o objetivo é ter um séquito, composto pelas pessoas que invadem a casa e a tornam seu lar, para tirar fotografias e lhe pedir autógrafos.

O poeta, para Platão, a partir de Sócrates, no qual Aronofsky se baseia, lidava com mentiras e deveria ser expulso da cidade, pois nunca seria de fato um criador: um poeta não constrói uma mesa, por exemplo, e sim busca metáforas para descrevê-la. É exatamente o que acontece ao personagem de Bardem aqui. Ele vive isolado e mente para a mulher o tempo todo, buscando artifícios para não assumir sua relação e colocando as pessoas de fora como a verdadeira vida. Seu intuito é estar nos braços do povo – da cidade que o expulsou. Por sua vez, ela toma um água misturada com pó dourado que pode ser, independente de leituras externas (a cargo de cada espectador), uma espécie de remédio para suas crises de alucinação ou para se manter em meio a todas as dificuldades. Quando ela lida com a casa, ainda em construção, parece senti-la em sua pulsação (em momentos capazes de lembrar Videodrome, de Cronenberg, principalmente quando uma fenda na madeira do chão lembra o ato sexual, sendo o porão o símbolo do inconsciente, e a personagem de Pfeiffer encena uma espécie de luxúria que falta à de Lawrence). A mulher tenta manter essa casa; o poeta só quer lidar com ela de maneira metafórica – é uma caixa de Pandora, como a caixa do final de Cidade dos sonhos. Nesse sentido, a casa é a criação do artista, como sua musa, mas ele não precisa tê-la para sempre: o que importa é a sua obra, não a que a musa lhe oferece por meio do filho, no terceiro ato. Ele se compara a Deus – como Sócrates acusava os poetas –, mas não é Deus. O ciclo, para o poeta, se repete: de criação em criação, o importante é sua obra. Como pode ela ousar uma criação que chegue à altura dele?

Com uma fotografia do parceiro Libatique apoiada em close-ups e movimentação constante, o que dá instabilidade ao cenário único da casa, Aronofksy constrói um sistema de inter-relações em seu filme que deixaria Buñuel satisfeito, não aquele de O anjo exterminador, e sim o de O discreto charme da burguesia e O fantasma da liberdade, além de dialogar com o assustador O inquilino, de Polanski, e autores como Julio Cortázar (ver o conto “Casa tomada”) e Carlos Fuentes (ver especialmente a obra Aura), ligados ao realismo mágico: as cenas surreais no ato final, misturando tudo o que comporia a obra de um poeta – a guerra, a destruição de seu lugar, o porão como uma extensão dos círculos de Dante, a casa sendo invadida por festas depois do reconhecimento do poema escrito, e aqui surge uma assustadora Kristen Wiig –, em nome da grande criação, que é a Dele, o poeta, não dela, a Mãe. “Eu sou a mãe!”, diz ela, para indiferença do escritor, depois de dar à luz, quando o barulho até então cessa e ouvimos o choro do bebê, numa representação extraordinária da solidão humana e do verdadeiro recomeço, da verdadeira obra. Aronofosky filma de maneira brilhante o nascimento do ser humano em contraponto ao tumulto da humanidade. O diretor destrói o conceito literário de autor e de si mesmo – à medida que escreve o roteiro. A metáfora de mãe! é uma sátira ao próprio Aronofsky: importa, para ele, não a personagem, e sim Jennifer Lawrence, que está, por sinal, excelente, no melhor momento de sua carreira depois de Joy, lembrando muito a performance de Laura Dern em Império dos sonhos. Sem a musa não há obra, não há vida. Mas, no final, pode-se trocá-la: é preciso um novo escrito. Sim, o terceiro ato é difícil de ser visto, especialmente uma cena desagradável, contudo é ele que sintetiza a estranheza.
Diante disso, estamos também lançados num filme sem gênero demarcado. O que mãe!, além de uma adaptação de ideias de A república de Platão, poderia ser? Um drama? Um suspense? Um terror? Certamente, um híbrido de todos esses gêneros. E mãe!, mesmo com seu psicologismo por vezes nada discreto, mas ainda interessante, ainda consegue ser um filme pop, ou seja, acessível, exercendo um magnetismo próprio e fascinante de um acabado cult movie. Poucos diretores conseguiriam isso, e Aronofsky é um deles.

mother!, EUA, 2017 Diretor: Darren Aronofsky Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris, Michelle Pfeiffer, Brian Gleeson, Domhnall Gleeson Roteiro: Darren Aronofsky Fotografia: Matthew Libatique Produção: Ari Handel, Darren Aronofsky, Scott Franklin Duração: 121 min. Estúdio: Protozoa Pictures Distribuidora: Paramount Pictures Brasil