Vingadores – Guerra infinita (2018)

Por André Dick

Se  há uma qualidade que já havia ficado clara nos dois Os vingadores anteriores é que Joss Whedon tinha uma disposição de desenvolver esses super-heróis em dois planos: o da mitologia e o da humanidade. No segundo, havia imagens estranhas do passado ou possível futuro de cada um, o que remetia a Linha mortal, em que jovens faziam experiências com a morte e eram atormentados por visões estranhas e que poderiam, inclusive, defini-los. Embora este recurso se fundamente em desvios da trama, esses serviam como impulso para uma das melhores sequências, ligada a um ambiente campestre e no qual podíamos ter uma divisão da trama antes de uma grande contribuição de Whedon para o cinema de ação.

Nesse sentido, Vingadores – Era de Ultron não ficava a dever para seu antecessor: enquanto seu primeiro ato preparava a história para algo maior, como o primeiro, as duas partes finais eram tão boas ou ainda melhores do que as do original, não apenas pelo fluxo oferecido por Whedon – em alternar explosões e perseguições com um verdadeiro sentimento de perigo e humanidade empregada nas situações –, como em igual intensidade pelo visual magnífico, com o auxílio da fotografia de Ben Davis (o mesmo de Guardiões da galáxia), e pela atuação do elenco.
Em Vingadores – Guerra infinita, os irmãos Anthony e Joe Russo, responsáveis por Capitão América – O soldado invernal e Capitão América – Guerra Civil, assumiram o lugar de Whedon. A história começa com Thor (Chris Hemsworth) e Loki (Tom Hiddleston) enfrentando o temível Thanos (Josh Brolin), desde sempre atrás das Joias do Infinito. Localizados no espaço, não por acaso logo teremos a presença dos guardiões da galáxia: Peter Quill/Starlord (Chris Pratt), Gamora (Zoe Saldana), Drax (Dave Bautista), Rocket (Bradley Cooper) e Baby Groot (Vin Diesel), acompanhados de Mantis (Pom Klementieff).

Em meio a tudo, aparecem Tony Stark/Homem de Ferro (Robert Downey Jr.), Stephen Strange/Dr. Estranho (Benedict Cumberbatch) e Peter Parker/Homem-Aranha (Tom Holland), com a companhia de T’Challa/Pantera Negra (Chadwick Boseman). Muitos outros personagens adentram em cena: Wanda Maximoff/Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen) e Visão (Paul Bettany) estão de volta, assim como Bruce Banner/Hulk (Mark Ruffalo) e Natasha Romanoff, a “Viúva Negra” (Scarlett Johansson), além de James Rhodes (Don Cheadle), Sam Wilson/Falcão (Anthony Mackie) e Pepper Potts (Gwyneth Paltrow).
Em seus Vingadores, Whedon os desenvolve como seres mitológicos e trabalhava com emoções básicas, sobretudo o medo da morte e de realmente transformar o mundo. É interessante como todos ganham em seus filmes linhas de roteiro apontando esse sentimento, sobretudo Romanoff, Banner, Rogers e Stark, sempre, de certo modo, ligados ao passado. Se Banner e Stark parecem sempre estar com o pensamento no que podem criar de novo no laboratório, Rogers se encontra encapsulado nos anos 40, dos quais é obrigado a se distanciar, assim como os gêmeos não conseguem esquecer a imagem gravada na infância do nome Stark, e Romanoff tem receio do que as visões podem lhe mostrar sobre ser uma assassina letal. No caso dela, acalmar Banner não é apenas uma ironia do destino quando ela, de fato, não atinge nenhuma tranquilidade.

Não há nenhuma discussão no plano conceitual em Vingadores – Guerra infinita. Trata-se apenas do embate de um vilão literalmente sem traços próprios – com a colaboração de um CGI perturbador – contra os vingadores, que parecem unidos apenas na campanha de marketing. Há pelo menos dois anos o universo MCU vem tendo dificuldades de unir seus traços de humor e drama em filmes irregulares como Doutor Estranho, Thor: Ragnarok, Capitão América – Guerra Civil e Pantera Negra. Todos parecem parte de uma linha de produção sem nenhuma tentativa de inovar, sob a liderança de Kevin Feige, o produtor que planifica histórias para encaixar sua visão de cinema.
Desde a saída de Whedon, o MCU só contou com três momentos muito bons: Homem-Formiga, Guardiões da galáxia 2 e Homem-Aranha – De volta ao lar. Até certo ponto, como Guerra Civil não era um filme do Capitão América, este novo Vingadores parece um Guardiões da galáxia 3. Os irmãos Russo, no entanto, não têm o olho para o visual dinâmico de James Gunn e desde Arrested development, a série de humor que ajudaram a solidificar com êxito, não sabem identificar interação entre personagens. Todos em Guerra infinita aparecem e desaparecem sem criar o devido impacto. Há lacunas consideráveis entre as aparições de uns e outros, nunca formando uma unidade, e mesmo durante as batalhas os encontros se dão sem nenhuma sensação de vínculo ou proximidade. Não há uma ligação clara entre os diferentes grupos enfocados, embora um dos méritos desse universo compartilhado seja exatamente sabermos em que ponto da história desses personagens nos encontramos, o que, por outro lado, não acrescenta qualidade especial. Filmes devem se manter por si só e construir relações entre os personagens, mesmo que já hajam outros a apresentá-los, mesmo porque a reunião deles é inédita.

O mais afetado pela história apressada, mesmo com os 149 minutos de duração, é Banner, numa participação não apenas distinta daquela de Thor: Ragnarok, basicamente humorística, cuja relação com a Viúva Negra não se estabelece sequer com uma conversa, apenas um olhar distanciado (isso desde o afastamento da obra de Whedon há três anos). Talvez Quill se destaque, junto com Thor e o Rocket; de resto, nem o carisma de Downey Jr. consegue dar sentido ao fato de o Homem de Ferro estar aqui, e Holland, que demonstrou ser um bom Homem-Aranha, é subutilizado de maneira inegavelmente injusta. Os diretores não têm tempo a perder: Guerra infinita é uma sucessão de sequências de ação vazias, sem nenhum senso de perigo ou realização, pouco se importando com personagens ou as consequências do que fazem.
Os Russo acreditam oferecer um ar dramático ao vilão Thanos, mas se trata de uma figura tão carregada digitalmente (e que nem as expressões de Brolin conseguem realçar, ao contrário de Serkis ao interpretar Cesar em Planeta dos macacos) que soa, a cada instante em que aparece, artificial como a história que o cerca. Existem os conflitos físicos, no entanto os embates de ideias existentes nos melhores filmes do MCU desaparecem, em virtude do roteiro limitado de Christopher Markus e Stephen McFeely, que tenta passar do trágico para o cômico de forma tragicômica.

Uma caminhada no parque de Stark e Pepper, lembrando a comicidade saudável dos dois primeiros Homem de Ferro, é interrompida por um inesperadamente denso Doutor Estranho, sem mais tempo para piadas com os livros da biblioteca. Os Russo não possuem a menor ideia de constituir um ambiente fantasioso, apegando-se a interiores escuros de naves e um CGI de qualidade discutível, que extrai qualquer atrativo pela fotografia. Excluindo a parte final e algumas cenas numa metrópole, tudo parece ter sido filmado em estúdios e à frente de um chroma key. Mesmo nos seus filmes com o Capitão América, a dupla de diretores, usando um estilo de thriller, enveredavam por um caminho que tentava interligar seus personagens. Neste filme, eles parecem interessados exclusivamente em focar o caos. Acabam por fazer a obra menos interessante de todo o universo MCU, uma falha de ignição notável, que nenhuma bilheteria conseguirá sobrepujar. Talvez a quarta parte, já em realização, com um pré-aviso: os Russo são novamente os diretores.

Avengers – Infinity war, EUA, 2018 Diretor: Anthony Russo e Joe Russo Elenco: Robert Downey Jr., Chris Hemsworth, Mark Ruffalo, Chris Evans, Scarlett Johansson, Benedict Cumberbatch, Don Cheadle, Tom Holland, Chadwick Boseman, Paul Bettany, Elizabeth Olsen, Anthony Mackie, Sebastian Stan, Danai Gurira, Letitia Wright, Dave Bautista, Gwyneth Palthrow, Zoe Saldana, Idris Elba, Josh Brolin, Chris Pratt, Vin Diesel, Bradley Cooper Roteiro: Christopher Markus e Stephen McFeely Fotografia: Trent Opaloch Trilha Sonora: Alan Silvestri Produção: Kevin Feige Duração: 149 min. Estúdio: Marvel Studios Distribuidora: Walt Disney Studios

 

Sonhos (1990)

Por André Dick

Este é o projeto mais pessoal do cineasta japonês Akira Kurosawa, diretor de filmes antológicos como Kagemusha e Ran. Não apenas por tratar de oito sonhos que teve ao longo da vida, mas também porque apresenta uma narrativa leve e densa, sem permitir uma superficialidade. Ele havia feito Ran cinco anos antes, tendo sido indicado ao Oscar de melhor diretor, sua adaptação para o Rei Lear, de Shakespeare. Pela primeira vez, utiliza efeitos especiais da Industrial Light & Magic, de George Lucas, também porque o filme conta com a produção executiva de Steven Spielberg (possíveis spoilers a partir daqui).
O primeiro dos oito sonhos é “A chuva em meio ao sol”, em que um garoto (Mitsunori Isaki) presencia um casamento de raposas, proibido para todo mundo, sendo levado pela mãe (Mitsuko Baisho) a ter de optar por um caminho tortuoso. A atitude dela é surpreendente, e ecoa um desprendimento familiar em nome de uma tradição, ainda que seja assustadora. Belamente fotografado, com um figurino extraordinário, é talvez o melhor episódio, com fundo ecológico. O final do sonho – o garoto observando um arco-íris no horizonte – é uma das sequências mais bem feitas do cinema, trazendo a sensação de onirismo que o diretor pretende empregar em cada uma de suas peças.

O segundo sonho se chama “O jardim de pessegueiros”, novamente criticando a humanidade, que destrói árvores, no caso pessegueiros. Atraído por uma bela moça, o menino Kurosawa atravessa para outra realidade, em que árvores são interpretadas por seres humanos, em meio a diálogos sobre a finitude e o respeito pela natureza, porém sem abdicar de um ritmo orquestrado, em que figurantes com vestuários de cores diferenciadas compõem os espíritos vários pessegueiros e parecem prestar uma homenagem ao menino que chora pela perda. Tudo remete à poesia de origem japonesa: prevalecem as imagens sobre a narrativa, porém esta se infiltra nos mais ínfimos movimentos feitos por Kurosawa.
Quando termina o segundo sonho e começa o terceiro, “A nevasca”, parece que há uma queda na narrativa. Pesada e distante, essa história não chega a engrenar como as anteriores, nem mesmo quando uma equipe de alpinistas enfrenta a morte no frio. Necessitava de um pequeno corte inicial, já que se perde tempo demasiado com a angústia da situação, sendo, porém, por outro lado, essa uma de suas virtudes sob outro olhar. Aqui, há um enfrentamento com os limites do corpo, lembrando um dos melhores momentos da filmografia de Kurosawa, Dersu Uzala, e possuindo um desfecho altamente bem filmado, com uma integração entre visão, sonho e sensação de luto na imagem de uma figura que representa a forte nevasca (Mieko Harada).

No quarto sonho, “O túnel”, temos um sonho bastante original: o tenente de uma tropa (Akira Terao, a partir daqui em todos os sonhos, como Kurosawa) depara-se com soldados mortos (com os rostos pintados de azul celeste), enfrentando um cão raivoso, talvez sua consciência culposa. Interessante como se traça um diálogo com o sonho anterior no sentido da morte que parece inevitável, mas se abre numa nota otimista de regeneração do ser humano. Kurosawa dirige com brilhantismo este sonho, assim como em “Corvos”, o quinto sonho, seu alter ego revisita pinturas de Van Gogh num museu e imagina caminhar dentro delas – aqui, a fotografia inicial, mais poética, é retomada e os efeitos especiais, muito bem feitos, marcam presença – e se encontra com o pintor (interpretado por Martin Scorsese, fortemente maquiado). Este talvez seja o momento mais autobiográfico da trajetória de Kurosawa, que, antes de ser cineasta, gostaria de ter sido pintor e eclode numa quase homenagem a Os pássaros, de Hitchcock, contrastando um campo amarelado de trigo com a cor dos corvos, que dão título à passagem. É o sonho que também, ao contrário daquele da nevasca e da montanha, abre o mundo para múltiplos caminhos, também em contato com a natureza e a arte, lembrando mais os dois primeiros localizados na infância.

O sexto e sétimo sonhos,  “Monte Fuji em vermelho” e “O demônio que chora”, talvez sejam os mais fracos, apoiados num roteiro menos inspirado e aqueles mais ligados a um possível apocalipse na Terra. No sexto, usinas nucleares explodem, e os habitantes perto do Monte Fuji precisam fugir da radioatividade. Os efeitos especiais são propositadamente limitados, remetendo a obras japonesas dos anos 60, mas com um trabalho de cores interessante. No sétimo, um rapaz encontra uma espécie de demônio (Mieko Harada), num sonho estranho, inclusive com flores gigantes, resultantes da radioatividade, mas uma direção de arte não tão feliz como os demais, acentuando em demasia o fundo acizentado, embora o final, com várias criaturas sendo projetadas em vermelho na água, ofereça uma angústia interessante. São também esses episódios que parecem finalizar a ideia apresentada pelos sonhos do túnel e da nevasca: o personagem aceitando sua fragilidade diante das escolhas humanas.

Felizmente, o último sonho, “Povoado dos moinhos”, é excelente o bastante para dar a Sonhos um status de obra-prima. Nele, o jovem Kurosawa conversa com um velho carpinteiro (Chishu Ryu) de um local cheio de moinhos e crianças. Com uma espécie de cerimônia ritualística, parece que se fecha a obra, percorrendo da infância à velhice e o contato com a natureza, primeiramente no bosque, agora numa cidade composta por moinhos-d’água. Mestre em fazer imagens impressionantes, Kurosawa encerra aqui afirmando a concretude de cada um dos sonhos. Sem dar especial atenção aos diálogos, como em Ran, por exemplo, ele se concentra no traço pictórico para atingir a sensibilidade do espectador. Uma caminhada representa todo um percurso de vida e não deixa de estabelecer vínculo com o primeiro sonho, no qual o menino se depara com um arco-íris depois de ser levado pela mãe a ter de optar pela decisão das raposas. O homem já adulto não está escondido por trás das árvores: ele está consciente do seu percurso. É um canto para a natureza, dentro ou fora das pinturas que exibe. Desse modo, os múltiplos caminhos do sonho sobre as pinturas de Van Gogh se mostram cada vez mais presentes e notáveis.

夢 /Akira Kurosawa’s Dreams, EUA/JAP, 1990 Diretor: Akira Kurosawa Elenco: Akira Terao, Martin Scorsese, Chishū Ryū, Mieko Harada, Mitsuko Baisho, Mitsunori Isaki Roteiro: Akira Kurosawa Fotografia: Takao Saito e Shôji Ueda Trilha Sonora: Shinichirô Ikebe Produção: Hisao Kurosawa e Mike Y. Inoue Duração: 119 min. Estúdio: Akira Kurosawa USA Distribuidora: Warner Bros. (Estados Unidos), Toho (Japão)

 

Submersão (2017)

Por André Dick

O diretor alemão Wim Wenders vem se afastando bastante de seu estilo empregado nos anos 70 e 80, e mesmo nos anos 90, só reiterado ainda no ótimo Estrela solitária, uma homenagem às pinturas de Edward Hopper, e seus documentários, a exemplo do magistral Pina. Pode-se lembrar de O amigo americano ou Alice nas cidades, dos anos 70, e O estado das coisas, Hammett, Paris, Texas e Asas do desejo, dos anos 80, para saber como Wenders conseguiu elaborar um cinema de arte e, ao mesmo tempo, com forte sentido de visual moderno. Nos últimos projetos, ele tem se concentrado em apresentar tramas sem muita complexidade. É o caso de Submersão. Na costa leste da África, o escocês e, a princípio, engenheiro de água James Moore (James McAvoy) é aprisionado por integrantes jihadistas. Ele lembra de quando conheceu, numa praia francesa, Danielle Flinders (Alicia Vikander), uma biomatemática que trabalha com experimentos ligados a mergulhos no oceano, prestes a experimentar as profundezas da Groenlândia a bordo de um minissubmarino.

Wenders se mostra sem muito sentimento nesta visão sobre um casal aproximado pelas lembranças e afastado pelas circunstâncias. É visível que ele possui algumas influências, e é inescapável a de Terrence Malick. Tem como base belas atuações de McAvoy e Vikander, no entanto demora a explorar os meandros de um roteiro baseado em romance de JM Ledgard. O casal inspira essa paixão, porém ela se encontra dispersa ou não se encontra simplesmente na tela: Vikander rende mais quando tem um roteiro como os de A garota dinamarquesa e O agente da U.N.C.L.E. no qual demonstra elementos como o bom humor, do que quando faz alguém mais introspectivo, como em Ex Machina. É curioso como McAvoy lembra aqui o estilo de atuação de Fassbender, com quem Vikander é casada e atuou em A luz entre oceanos. Basicamente, a trama paralela, localizada na Somália, é de James com Yusef (Hakeemshady Mohamed), um líder jihadista, e um médico (Alexander Siddig), além de um soldado, Saif (Reda Kateb), e a personagem de Vikander fica em segundo plano de modo estranho, com pouca participação dramática, apesar da tentativa de se inserir sua amizade com Thumbs (Celyn Jones), o que soa desajeitado.

A maneira como Wenders apresenta o personagem de James como um espião remete a alguns experimentos de Kathryn Bigelow, a exemplo de A hora mais escura, no qual também aparece o ator Kateb, contudo o diretor alemão não tem a mesma consistência dramática para revelar seu sofrimento. A relação do casal a distância poderia conviver com Até o fim do mundo, um de seus melhores filmes dos anos 90, não fosse a montagem um tanto previsível e linear demais, tentando compor sentimentos por meio de enquadramentos estáticos.
O navio onde está Danielle remete, por um lado, ao filme A vida marinha com Steve Zissou, de Wes Anderson, assim como ao Filme socialismo, de Godard, mesmo que não haja a mesma profusão visual, assim como o final tenta capturar uma espécie de mergulho de uma estrangeira no continente europeu, sempre aberto à mudança, e pode-se dizer que em certos momentos lembra de Mediterrâneo, dos anos 60, quando Wenders filma o vento nas árvores do hotel em que o casal se hospeda.

A fotografia de Benoît Debie, o mesmo do belíssimo Enter the void, de Gaspar Noé, é notável, porém, de modo surpreendente, Submersão não tem um design de produção criativo, uma especialidade de Wenders. Quando ele é mais elaborado, sente-se um pouco deslocado, como o próprio lugar onde James fica preso, com uma série de jogos de luz que tira a realidade da situação, ao mesmo tempo que tenta soar mais literal. Isso faz com que os personagens, como é comum em seus melhores filmes, também se traduzam pelos cenários, mesmo que aqui a água represente o vínculo entre ambos. Também se visualiza a correspondência entre o vento nas árvores e nos rochedos do mar, como se os personagens fossem extensões da natureza – e o final deixa claro que uma reação humana pode ser a reprodução de outra, seja em qual parte do mundo estiver. Nesses pontos, Wenders reproduz o que fez seu cinema tão conhecido e respeitado principalmente nos anos 70 e 80 e se lamenta que ele não consiga elaborar melhor seus diálogos, ficando preso demais a termos técnicos. Por instantes, é possível perceber que tudo foi rodado meio que às pressas. Em meio a isso, Submersão vale a pena ser assistido, mas sem muita expectativa.

Submergence, EUA/FRA/ESP, 2017 Diretor: Wim Wenders Elenco: Alicia Vikander, James McAvoy, Hakeemshady Mohamed, Alexander Siddig, Alex Hafner, Celyn Jones, Reda Kateb Roteiro: Erin Dignam Fotografia: Benoît Debie Trilha Sonora: Fernando Velazquez Produção: Cameron Lamb Duração: 112 min. Estúdio: Backup Films, Lila 9th Productions, Morena Films, Waterstone Entertainment Distribuidora: Mars Distribution, Antena 3, Samuel Goldwyn Films

A lenda (1985)

Por André Dick

A Segunda História da Criação da Bíblia inicia-se no versículo 5 do Cap. II do Gênese. Em III, 22, expressa-se a razão pela qual Deus pune o ser humano no paraíso. É que estariam, homem e mulher, a um passo de elevar-se à condição de “deuses” (III, 5). Bastaria que eles, já possuidores do “conhecimento”, lançassem a mão ao fruto da “árvore da vida” e, comendo-o, ganhassem a imortalidade, passando a viver para sempre.
Em A lenda, de Ridley Scott, este início da Bíblia se reproduz na história da Princesa Lily (Mia Sara), que é chamada por Jack (Tom Cruise) a ver dois unicórnios que não podem ser tocados no rio em meio a uma espécie de floresta encantada. Não há uma explicação clara, no roteiro, de como eles se conheceram, nem onde seria exatamente seu palácio, mas Jack surge como o seu amor – como se eles fizessem parte de um mundo à parte, em que Lily sai pela floresta apenas para encontrar uma camponesa amiga, Nell (Tina Martin).
Ela acaba por tocar num dos unicórnios e permite com que duendes, tendo à frente Blix (Alice Playten), enviados pela escuridão, cortem o chifre de um deles e levem a unicórnio fêmea para o sacrifício. A escuridão é almejada pelo senhor das Trevas (Tim Curry), e os unicórnios representam a claridade do universo.

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Depois de cair nas águas de um lago, a fim de encontrar o anel da princesa Lily, Jack acaba por ficar embaixo do gelo; quando ele consegue quebrá-lo, o mundo já está transformado e ele, sem saber ao certo o que aconteceu, passa a ir atrás de Lily, que volta à casa de Nell, tentando escapar dos duendes.
A lenda, de Ridley Scott, é um produto acabado dos anos 80 e encontra diálogo com outros filmes de fantasia, como Labirinto, Flash Gordon e Krull. Mas é interessante mesmo como o filme de Scott, com seu visual extraordinário (em que havia pouco CGI e os cenários, de Assheton Gordon e Leslie Dilley, este de Star Wars, pareciam realmente reais), composto nos estúdios Pinewood, da Inglaterra, além de influenciado por outros filmes de Scott, como Alien – e interessante como, hoje, se vê traços do filme também em Prometheus –, com a belíssima fotografia de Alex Thomson, tem esse curioso subtexto religioso. E, como outros filmes de Scott, sua qualidade fica ainda mais perceptível na versão estendida (109 minutos, vinte a mais que o original).

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Jack serve como uma espécie de Adão. Na Bíblia, este foi colocado para nomear as coisas do mundo. E para Lily ele nomeia os unicórnios. Assim como o unicórnio em A lenda, a maçã, na Bíblia, traz a queda do paraíso, e Adão, como um romântico, leva consigo a noção de Deus, como seu grande criador, mas também como o gênio solitário, que é abandonado, como o Werther de Goethe. O castigo imposto a Adão e Eva por Deus é um castigo exatamente por se ceder à maçã proibida.
A presença de Deus, levando as personagens (no caso, Adão e Eva) a tentar reconhecer o que desconhecem (e não tem nome, pois guarda o segredo do sexo e do corpo humano), revela uma autodescoberta da violência que existe quando não há nomeação para aquilo que se faz. Adão não consegue nomear o que fez, porém Deus sim: seria o pecado. Em A lenda, de Scott, esse pecado surge no momento em que Jack resolve mostrar a Lily os unicórnios. Ele não sabe ao certo por que o cenário se torna invernoso e encoberto, no entanto sabe que algo foi cometido, e não poderia. Seu amor também não se encontra definido, mas ele sabe que está ligado a ela.

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O homem, feito à sua imagem e semelhança, continua sendo o espelho de Deus, contudo este espelho, no silêncio do pecado, se quebra. E ele, expulso do paraíso, precisa enfrentar a escuridão. Em A lenda, esse enfrentamento começa na travessia de um pântano e nos corredores da grande torre onde se esconde a besta, com a ajuda de Honeythorn Gump (David Bennent e dublado por Alice Playten), a fada Oona (Annabelle Lanyon), que se apaixona por Jack – uma espécie de Sininho de Peter Pan –, e uma dupla de duendes (Billy Barty e Cork Hubbert).
É interessante como Lily e sua inocência também tem parentesco com a menina Sarah (Connely, ainda adolescente), de Labirinto, uma garota triste, que vive no mundo da fantasia e pede para que o rei dos duendes, Jareth (David Bowie), leve embora seu irmão por parte de pai. Ela se arrepende de ter feito isso; no entanto, ela terá de atravessar um labirinto para trazê-lo de volta. No labirinto, arranja inúmeros amigos, como Hogglle, que a ajuda a chegar ao castelo, e outros: Ludo, um gigante peludo, e Sir Didymus, que parece um Fox terrier. Há, aqui, outro parentesco com A lenda: os duendes ajudam Jack e Lily a buscarem o unicórnio fêmea.

Trata-se, como A lenda, de uma referência em direção de arte e efeitos especiais, e da tentativa de possuir responsabilidade de uma garota saindo entre a adolescência e a vida adulta. Connelly é uma boa atriz para representar essa passagem, e algo de sua inocência se perde nessa jornada: o ingresso no quarto depois de passar pelo ferro-velho é um primor de concepção. Mia Sara, em A lenda, desempenha um papel em que o atrito entre a fantasia e a realidade, e, assim como Connelly em Labirinto, deseja recuperar o universo que perdeu. A Lily de Sara precisa enfrentar o que o senhor das Trevas lhe oferece: todas as riquezas materiais e uma sensação de poder, de controle sobre todo o universo. Enquanto isso, Jack precisa enfrentar a ilusão do espelho causado pela fada Oona, que pode enganá-lo. Na sequência final, os claros-escuros de A lenda proporcionam algumas cenas assustadoras, o que explica por que a Disney, a quem o filme foi oferecido inicialmente, não o aceitou.
Interessante, ao mesmo tempo, como, afastado dos anos 80, A lenda é uma espécie de prenúncio visual para séries como O senhor dos anéis – sendo que seu roteiro se inspira claramente nos livros de Tolkien – e merece uma reavaliação à altura de seus conceitos e referências mitológicas e religiosas.

Legend, EUA/Reino Unido, 1985 Diretor: Ridley Scott Elenco: Tom Cruise, Mia Sara, Tim Curry, David Bennent, Alice Playten, Billy Barty, Cork Hubbert, Peter O’Farrell, Kiran Shah, Annabelle Lanyon, Robert Picardo, Tina Martin, Ian Longmur, Mike Crane, Liz Gilbert, Eddie Powell Roteiro: William Hjortsberg Fotografia: Alex Thomson Trilha Sonora: Jerry Goldsmith (Versão estendida), Tangerine Dream (Versão original) Produção: Arnon Milchan Duração: 89 min. (Versão original), 109 min. (Versão estendida) Distribuidora: Universal Pictures, 20th Century Fox  

50 melhores filmes dos anos 80

 Por André Dick

Abaixo, uma lista dos 50 melhores filmes dos anos 1980 segundo o Cinematographe. As listas completas dos melhores filmes de cada ano dessa década estão nesta página. E os cartazes dos 50 escolhidos nesta. Importante assinalar que o visual das imagens é baseado naquele utilizado pelo MUBI.

Meu amigo Totoro.Melhores filmes dos anos 80

Não amarás.Melhores filmes dos anos 80O urso.Melhores filmes dos anos 80

De volta para o futuro.Melhores filmes dos anos 80

Furyo.Melhores filmes dos anos 80

Betty Blue.Melhores filmes dos anos 80

Nascido para matar.Melhores filmes dos anos 80

Era uma vez na América.Melhores filmes dos anos 80

Nostalgia.Melhores filmes dos anos 80

Aliens.Melhores filmes dos anos 80

Os Goonies.Melhores filmes dos anos 80

Scarface.Melhores filmes dos anos 80

Duna.Melhores filmes dos anos 80

Gremlins.Melhores filmes dos anos 80

Ran.Melhores filmes dos anos 80

Império do sol.Melhores filmes dos anos 80

Sociedade dos poetas mortos.Melhores filmes dos anos 80

O retorno de Jedi.Melhores filmes dos anos 80

O segredo do abismo.Melhores filmes dos anos 80

O homem elefante.Melhores filmes dos anos 80

Blade Runner.Melhores filmes dos anos 80

A cor púrpura.Melhores filmes dos anos 80 2

Tootsie.Melhores filmes dos anos 80

A missão.Melhores filmes dos anos 80 2

Pecados de guerra.Melhores filmes dos anos 80

Cinema Paradiso.Melhores filmes dos anos 80

Batman.Melhores filmes dos anos 80

Os eleitos.Melhores filmes dos anos 80

Paris, Texas.Melhores filmes dos anos 80

Os caçadores da arca perdida.Melhores filmes dos anos 80

Sangue ruim.Melhores filmes dos anos 80

Minha vida de cachorro.Melhores filmes dos anos 80

O fundo do coração.Melhores filmes dos anos 80

A história sem fim.Melhores filmes dos anos 80

O barco.Melhores filmes dos anos 80

O rei da comédia.Melhores filmes dos anos 80

A mulher do aviador.Melhores filmes dos anos 80 3

O iluminado.Melhores filmes dos anos 80

Amadeus.Melhores filmes dos anos 80

Pelle.Melhores filmes dos anos 80

Os intocáveis.Melhores filmes dos anos 80

Fanny e Alexander.Melhores filmes dos anos 80 2

Veludo azul.Melhores filmes dos anos 80 2

Vá e veja.Melhores filmes dos anos 80

O portal do paraíso.Melhores filmes dos anos 80

E.T. Melhores filmes dos anos 80 2

Um lugar silencioso (2018)

Por André Dick

Todos os anos há um filme de suspense ou terror que acaba chamando a atenção do público e da crítica em especial. Em 2016, foi A bruxa; em 2017, Corra!Ao cair da noite. Em 2018, parece ser o caso de Um lugar silencioso, estreia na direção do ator John Krasinki, que também aparece no filme. Passada em 2020, a história mostra que a humanidade foi quase extinta por criaturas alienígenas com audição hiper-desenvolvida, por meio da qual alcançam as pessoas para matá-las. Krasinki interpreta o pai da família Abbott, Lee, casado com Evelyn (Emily Blunt) e que tem como filhos Regan (Millicent Simmonds), Marcus (Noah Jupe) e Beau (Cade Woodward).
O início da obra já mostra uma espécie de cenário que remete a Ensaio sobre a cegueira, a adaptação de Fernando Meirelles para José Saramago e, se Lee é uma extensão em situação delicada do personagem que fazia Krasinki em Sob o mesmo céu, também parece o pai de Guerra Mundial Z, preocupado com a família e fazendo cálculos para a sobrevivência. Eles vivem numa fazenda, que remete a American fable e Sinais, ao mesmo tempo que não podem ficar tranquilos: qualquer ruído pode atrair as criaturas.

Neste universo de silêncio ao qual o título do filme já remete, Krasinki constrói um suspense a princípio interessado e mesmo antimainstream, baseando-se nas reações físicas dos personagens, nos gestos contidos pela situação desesperadora. É onde o ator-diretor se sai melhor. As atuações que extrai de Blunt (sua esposa na realidade), Millicent Simmonds e Noah Jupe são ótimas. Blunt já mostrou seu potencial muitas vezes, mas Simmonds e Jupe são revelações recentes. Surda na vida real, ela esteve no ótimo e subestimado Sem fôlego, enquanto Jupe esteve no subvalorizado Suburbicon, de George Clooney, e interpretou um dos amigos do garoto menosprezado pela aparência de Extraordinário.
Krasinki tem competência e sorte em contar com esses talentos para contar uma história que, de outro modo, poderia passar despercebida. Os símbolos utilizados por ele na narrativa são excessivamente previsíveis e quase toda cena remete a outras obras, como Jurassic Park, Guerra dos mundos e Aliens – O resgate.  Não ajuda que ele situe os personagens de maneira rápida demais, tentando empregar, ao mesmo tempo, referências religiosas, como já havia conseguido o diretor de Ao cair da noite, parecido com este Um lugar silencioso e substancialmente melhor. Deve-se dizer, por outro lado, que não haver quase falas no roteiro (os personagens se comunicam praticamente pela linguagem de sinais) não tira dele uma narrativa esclarecida, talvez até demais. Além disso, a trilha sonora do habitualmente discreto Marco Beltrami tenta inflar as cenas destituídas de outros sons humanos.

A ideia de Krasinki é interessante, assim como a maneira com que enxerga o mundo numa situação irremediavelmente inusitada. Porém, se ele mostra até certa competência no tratamento das imagens, com a bela fotografia de Charlotte Bruus Christensen, vista em trabalhos recentes de destaque, como A grande jogada, A garota do trem e Longe deste insensato mundo, ele não consegue afastar suas criaturas do palco que remete imediatamente a Cloverfield e Stranger Things, dos experimentos mais recentes. Chega a ser cansativa a maneira como ele joga a todo instante com obras que o inspiraram. Tudo acaba sendo uma espécie de extensão de algo já visto, embora tente inovar na maneira como as situações são tratadas. Aos poucos, o espectador vai percebendo que há artifícios insustentáveis mesmo para um filme que joga no limite entre o suspense, lances de terror e fantasia, embora os alienígenas sejam plausíveis para uma obra de orçamento até certo ponto limitado.

A dinâmica familiar, de qualquer modo, é muito boa, não apenas pelo elenco, como pela humanidade de Krasinki, um ator que vem de 13 horas – Os soldados secretos de Benghazi, de Michael Bay, um dos produtores de Um lugar silencioso. Ele tem uma maneira de atuar um tanto desajeitada, mas é justamente ela que lhe concede um estilo diferenciado. Mais conhecido pela participação na série de TV The Office, seu melhor momento no cinema, além desse filme de guerra de Bay, é Distante nós vamos, em que ele compõe, com Maya Rudolph, um casal querendo criar raízes em algum lugar para criar seus filhos. De certo modo, é a essência da narrativa de Um lugar silencioso e seria retribuída do melhor modo não fosse por certa previsibilidade de condução e exageros no ato final para justificar tudo. No momento derradeiro, Krasinski está apenas fazendo o que os diretores fazem em Hollywood: tentar estabelecer uma franquia, o que diminui bastante sua tentativa de fazer um trabalho até certo ponto autoral e limita a atuação de seu elenco de alta qualidade.

A quiet place, EUA, 2018 Diretor: John Krasinski Elenco: Emily Blunt, John Krasinski, Millicent Simmonds, Noah Jupe, Cade Woodward Roteiro: Bryan Woods, Scott Beck, John Krasinski Fotografia: Charlotte Bruus Christensen Trilha Sonora: Marco Beltrami Produção: Michael Bay, Andrew Form, Brad Fuller Duração: 90 min. Estúdio: Platinum Dunes, Sunday Night Distribuidora: Paramount Pictures

 

Jogador Nº 1 (2018)

Por André Dick

Há sete anos, Steven Spielberg realizou seu primeiro desenho animado, As aventuras de Tintim, baseado no personagem de Hergé, e obteve sucesso com um realismo atípico para o gênero, mesmo com sua revolução contínua. Depois de uma série de filmes baseados na história, a exemplo de Cavalo de guerraLincoln e Ponte dos espiões, ele regressou com uma animação mesclada com humanos intitulada O bom gigante amigo, com base num livro de Roald Dahl, o mesmo de O fantástico Sr. Raposo e A fantástica fábrica de chocolate. No ano passado, Spielberg fez o “Oscar bait” The Post – A guerra secreta, chegando, talvez, a seu limite como realizador de obras guiadas por fatos, através de um veículo com o objetivo de buscar nomeações a prêmios e sem a devida autenticidade.

Menos de meio ano depois, ele regressa ao universo pop com Jogador Nº 1, baseado em romance de Ernest Cline. A história mostra o jovem Wade Watts (Tye Sheridan), que vive a maior parte do tempo em seu avatar, Parzival, dentro da realidade virtual intitulada Oasis, criada por James Haliday/Anorak (Mark Rylance), com a ajuda de Ogden Morrow (Simon Pegg). Morando em Columbus, Ohio, ele está interessado por uma garota participante do jogo, chamada Art3mis, ou melhor, Samantha Cook (Olivia Cooke), que o ajuda numa missão determinada com amigos Aech (Lena Waithe), Sho (Philip Zhao) e Daito (Win Morisaki), em busca de um “easter egg”, e pretende descobrir o que pretende Nolan Sarrento (Ben Mendelsohn). Sarrento quer ter o domínio sobre Oasis, com a colaboração direta do monstro i-R0k (TJ Miller). A história se passa em 2045, quando toda a terra parece ter sido erguido sobre favelas – embora os primeiros momentos lembrem mais Speed Racer, das irmãs Wachowski, e uma estranha movimentação de edifícios lembre A origem, de Nolan.

Se O bom gigante amigo trazia imagens que mesclavam as árvores de Guerra dos mundos com as de Inteligência artificial, além de evocar a majestosa nave de Contatos imediatos do terceiro grau, Jogador nº 1 é uma coleção de referências cinematográficas diversas. O início remete a De volta para o futuro (com Watts num DeLorean) e King Kong, além de i-R0K ter um peito em forma de caveira, aquela da caverna de Indiana Jones e o templo da perdição, e há uma passagem fantástica (spoiler a seguir) que insere o espectador nos corredores e quartos do Overlook de O iluminado. Trata-se de um alívio, pois finalmente se sabe onde Spielberg estava nas filmagens de The Post: filmando na verdade Jogador Nº 1.
À medida que a fotografia de Janusz Kaminski começa a se destacar de maneira brilhante, Spielberg desenha um universo atrativo. Jogador Nº 1, ao contrário dos cenários pálidos dos últimos filmes do cineasta, é um primor de concepção visual e remete ao melhor da configuração em video game já mostrada no cinema, a de Tron. A ambientação da casa de Wade Watts – que diz ter sido assim batizado como um Peter Parker ou Bruce Banner – lembra as de Minority Report e A.I., misturando cores soturnas e uma conjunção de imagens computadorizadas. Para um cineasta, no entanto, sempre interessado no universo infantil, ele localiza aqui a de solidão não da infância, como em Império do sol, e sim da adolescência. Em seu roteiro, os jovens não têm praticamente uma “vida real”: eles sobrevivem por meio do jogo. Nisso, os anos 80 povoam o imaginário do filme, também musicalmente, com “Jump”, do Van Halen, por exemplo, assim como numa festa temos New Order.

Misturando imagens de video game e atores reais – que lembra em alguns instantes o subestimado Warcraft –, no entanto com uma estranha indeterminação, nesse sentido, Jogador Nº 1 não se destina nem especialmente a crianças, e talvez sua história não seja a mais adequada para um público adulto interessado por uma trama mais desenvolvida. A sua autenticidade se localiza num meio-termo entre o talento de Spielberg para compor imagens e sua habilidade em mostrar seres deslocados no espaço. Graças às atuações de Sheridan e Cooke, o cineasta consegue entregar certa dramaticidade a partir dessa ideia, embora não extraia notas diferenciadas de Mendelsohn (praticamente o vilão do cinema atual) ou Pegg (um pouco subaproveitado). Talvez se lamente que os atores não apareçam tanto como suas peças virtuais, pois todos exercem uma química em conjunto. Ao contrário do que demonstra no quase desastroso The Post, Spielberg se sente à vontade de regresso à cultura pop que ele ajudou a organizar, desta vez com a colaboração na trilha de Alan Silvestri no lugar de John Williams, que já concede um ritmo diferente – e faz várias referências a seu trabalho em De volta para o futuro. As cenas de ação se sentem vívidas, como aquelas de As aventuras de Tintim, com um senso de realismo mesmo na irrealidade representada.

Talvez ele tenha sido aqui o que menos se revela ultimamente: um autor até discreto. Em poucos momentos, ele homenageia a si mesmo. Ele prefere fazer reverência aos filmes oitentistas de John Hughes, Robert Zemeckis (um de seus “alunos”) e coloca O gigante de ferro, da animação dos anos 90 de Brad Bird, como uma espécie de exterminador do futuro de James Cameron. Em termos conceituais, o roteiro de Zak Penn não traz nada de especialmente relevante, com uma mensagem até previsível, porém Spielberg não se mostra aberto ao excesso de sentimentalismo que por vezes desconcerta sua obra, principalmente ao final. Ele prefere se basear na ideia de um universo múltiplo, uma espécie de Avatar adolescente, para retomar elementos que foi esquecendo ao longo dos últimos anos, praticamente desde o contestado Indiana Jones e o reino da caveira de cristal. Há uma certa despretensão bem-vinda, com uma intensidade notável até a primeira parte, que conduz tudo a um desfecho direto e sem contorcionismos para enfeitar esse universo.

Ready player one, EUA, 2018 Diretor: Steven Spielberg Elenco: Tye Sheridan, Olivia Cooke, Ben Mendelsohn, T.J. Miller Simon Pegg, Mark Rylance Roteiro: Zak Penn Fotografia: Janusz Kamiński Trilha Sonora: Alan Silvestri Produção: Steven Spielberg, Donald De Line, Dan Farah, Kristie Macosko Krieger Duração: 140 min. Estúdio: Warner Bros. Pictures, Amblin Partners, Amblin Entertainment, Village Roadshow Picture, De Line Pictures, Farah Films & Management Distribuidora: Warner Bros. Pictures