Homem de ferro 3 (2013)

Por André Dick

Homem de ferro 3.Filme 4

Em 2008, Robert Downey Jr., como o Homem de Ferro, enfrentou um grande vilão, Obadiah Stane (Jeff Bridges). Em 2010, novamente sob a direção de Jon Favreau, ele regressou ao papel de herói, tendo como rivais dois vilões interessantes, Ivan Vanko (Mickey Rourke) e Justin Hammer (Sam Rockwell). Ainda assim, o que se destacava, ainda mais do que o primeiro, era o bom humor de Downey Jr., além da aparição de Samuel L. Jackson e da cena de boxe com a personagem de Scarlett Johansson.
Se este segundo filme subestimado já começava no tribunal, com o Homem de Ferro sendo pressionado a dividir os segredos de sua invenção com o Estado, aqui o herói, já estabelecido e fazendo novos experimentos com sua armadura, começa se lembrando de um episódio ocorrido em 1999 (daqui em diante, spoilers) quando dormiu com uma bióloga, Maya Hansen (Rebecca Hall), na virada do ano em Berna, depois de ser abordado por um homem estranho, Aldrich Killian (Guy Pearce), a fim de tratar de negócios.
Com coadjuvantes de luxo, Favreau se saiu bem nos dois filmes que dirigiu, aliando técnica nos efeitos visuais e uma montagem eficiente, enquanto neste terceiro Shane Black tem uma dificuldade especial de dosar o ritmo. Com essa questão episódica demais – o passado que retorna com todos os seus problemas –, ele parece não conseguir, como Favreau, inserir os personagens em conjunto, apesar de a primeira meia hora ser agradável, e afasta alguns deles da trama durante muito tempo. A relação entre o Homem de Ferro e Pepper Potts (Gwyneth Paltrow, eficiente como nos outros filmes) parece ter congelado no final do segundo filme. Ela está à frente, nas empresas, enquanto ele está em sua mansão, trabalhando no porão, escondido. Ele também não conversa pessoalmente uma vez sequer com aquele que, em determinado momento, de modo irônico, vai provocar nele um espírito de revanche (nem conversará no fim, o que parece indicar problemas no roteiro).

Homem de ferro 3

Homem de ferro 3.Filme 3

Desta vez, ele guarda pesadelos da batalha de Nova York de Os vingadores, mas o afastamento continua o mesmo, e não há exatamente um aprofundamento em sua psicologia, o que havia antes do clímax do segundo. Ou seja, se antes Stark e Pepper estavam quase sempre juntos, aqui parece que eles não têm vínculo estabelecido, apenas uma necessidade de dividir diversas piadas na sala de estar e no quarto. Nesse sentido, o filme não deixa a desejar.
A vida do Homem de Ferro começa a ser ameaçada quando surge um terrorista, Mandarim (Ben Kingsley, que parece saído diretamente do set de O ditador), que remete sobretudo a Bin Laden, e ele consegue invadir, com seus vídeos, todas as redes de televisão, depois de atentados em que não se consegue descobrir a origem das bombas. Embora aqui não estejamos tratando de A hora mais escura, e sua polêmica com as cenas de tortura, há cenas de humor um tanto estranhas (sobretudo aquelas que acontecem no Paquistão), pois trata-se de um filme de diversão que evoca diretamente um contexto muito mais sério. O aspecto cômico do filme acaba abalado por sua tentativa de estabelecer um contato com acontecimentos reais, que não são divertidos. Em algumas dessas sequências, entra em cena aquele que se denomina Patriota de Ferro, que na verdade é Jim Rhodes (Don Cheadle, menos efetivo do que no segundo filme).
Depois de uma catarse sonora e de efeitos especiais, é preciso, para Black, dar vazão ao filme e cultivar seus elementos externos, colocando o Homem de Ferro como amigo de um menino, Harley (Ty Simpkins, bom ator), o que, apesar de soar simpático e render momentos divertidos (sobretudo um diálogo que deve ter sido feito de forma improvisada por Downey Jr.), acaba extraindo boa parte do núcleo do filme e parece querer agradar, de forma apressada, o público infantil. O herói precisa recuperar-se para enfrentar o vilão: porém, o que ele faz é decorar uma garagem como laboratório. Claro que não se deseja achar que filmes que almejam o divertimento têm necessariamente uma faceta dramática, mas pode haver uma pausa para recuperar as ações. Quando acontece a catarse com sua mansão – e ela aparece no trailer –, tratando-se de uma sequência impressionante, com a ótima fotografia de John Toll (Cloud Atlas), onde ele, afinal, abrigava seus projetos, parece não haver a justa medida de sofrimento.

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Homem de ferro 3.Filme 2

Num filme de ação, é preciso temer os vilões e se torcer para o herói superar suas dificuldades. Quando o herói parece não sentir dificuldades nem tem desejo de reparar a realidade em que vivia, a tensão, em boa parte, se perde (evidente no fato de que muitas vezes ele não está diretamente envolvido na ação e na conversa final, depois dos créditos). E quando o vilão, Mandarim, revela sua verdadeira faceta, vemos um lado de Kingsley constrangido (o extraordinário ator não escapa ileso da brincadeira).
Black, que fez o roteiro de todos os filmes da série Máquina mortífera (os dois primeiros são especialmente bons), mas também dos fracos O último boy scout e O último grande herói, e antes fez apenas um filme, justamente com Downey Jr., Beijos e tiros, que brincava com o cinema noir e tinha um estilo interessante, demonstra mais competência do que o esperado para cenas de ação grandiosas (e há pelo menos três no filme que parecem superar qualquer outra da série), mas acaba destoando justamente onde se esperava mais: no roteiro bem delineado e com diálogos eficientes. O que se vê é uma sucessão de gags, de todos os estilos, algumas delas divertidas, sobretudo pela atuação de Downey Jr. E, vendo de forma distanciada, um diretor que fez apenas um filme e não dirigia há oito anos não seria a melhor alternativa para imprimir ritmo.
O Homem de Ferro de Downey Jr. não pode ser levado totalmente a sério, mas tampouco soa sem elementos dramáticos ou sem uma relação paterna que o acompanha na criação da própria empresa. Aqui, a porção dramática diminui consideravelmente em passagens com maior tendência à autossátira, quase como o que fez Richard Lester em Superman III, e a crise de ansiedade inventada para Stark parece aleatória. Existe, inclusive, uma sequência que lembra a do personagem de Tom Cruise em Encontro explosivo, satirizando ele próprio em Missão impossível. Pelos trailers, parecia, inclusive, que haveria uma espécie de influência do terceiro Batman pela escuridão das imagens. Não é o que acontece (nem deveria), mas trailers certamente ajudam a estabelecer uma concepção visual prévia para o que irá se assistir. Não se espere, portanto, nenhum traço sombrio. Mas, particularmente, o que tira a energia que deveria haver no duelo entre Homem de Ferro e o empresário Killian é justamente Guy Pearce, ator que tem dificuldade de estebelecer uma ligação com a plateia e parece soar em muitos momentos exagerado. Sua atuação é, particularmente, equivocada, ainda mais por causa do roteiro e quando comparada às de Jeff Bridges, no primeiro, e de Rourke e Rockwell no segundo.
Existe emoção em Homem de ferro 3 quando Downey Jr. consegue mesclar o elemento do bom humor com o drama, quando ele está numa situação delicada e percebe que Pepper pode correr um perigo indesejado. É justamente quando estabelece ligações humanas que Homem de ferro 3 cresce. Quando ele soa com elementos de sátira a outros filmes, inclusive aos da série, ele acaba por não conseguir fazer o que mais quer: divertir.

Iron man 3, EUA, 2013 Diretor: Shane Black Elenco: Robert Downey Jr., Gwyneth Paltrow, Guy Pearce, Ben Kingsley, Paul Bettany, Rebecca Hall, Jon Favreau, Don Cheadle, James Badge Dale, Ashley Hamilton, Yvonne Zima, William Sadler, Ty Simpkins, Miguel Ferrer Produção: Kevin Feige Roteiro: Shane Black, Drew Pearce Fotografia: John Toll Trilha Sonora: Brian Tyler Duração: 130 min. Distribuidora: Disney Estúdio: DMG Entertainment / Marvel Studios / Paramount Pictures

Cotação 2 estrelas e meia

Oblivion (2013)

Por André Dick

Oblivion.Filme 7

Tom Cruise é um dos melhores atores de sua geração, como provam suas atuações em Nascido em 4 de julho, Rain man e Magnólia. No gênero de ficção científica, havia feito dois filmes marcantes com Spielberg, Minority Report e Guerra dos Mundos, mesmo com sua irregularidade. Por isso, com Oblivion, havia a expectativa de um filme pelo menos original. Desta vez, ele faz uma parceria com Joseph Kosinski, que coescreveu os quadrinhos em que o filme se baseia, diretor de Tron – O legado, habituado aos efeitos especiais, mas cuja sensibilidade tem dificuldade de ir além daquele universo que até agora retratou: o eletrônico e o robótico. Uma qualidade sua é que costuma se cercar de técnicos talentosos, e não é diferente aqui. A fotografia é de Claudio Miranda (que  ganhou o Oscar deste ano com As aventuras de Pi), o designer de produção de Darren Gilford (o mesmo do seu filme de estreia) tem algumas boas alternativas, embora, na maior parte do tempo, lembre outros filmes de futuro desolador, como o recente Prometheus, e a trilha da banda francesa M83 consegue manter certo ritmo com sintetizadores, fazendo o que o Daft Punk fez em Tron – O legado. E, na produção, temos até mesmo o nome de David Fincher (diretor de Seven e Millennium).

Oblivion.Filme 6

Oblivion.Filme 9

Jack Harper (Cruise) se encontra em 2077 naquilo que sobrou da Terra, com Vika (Andrea Riseborough, transmitindo certa emoção, apesar de sua aparência glacial), tendo de cuidar de robôs de combate, os drones, que ajudam a proteger estações de água, produtoras de energia, e a controlar os alienígenas saqueadores, os quais destruíram a Lua e tentaram exterminar os humanos. Eles precisam cumprir essa missão de vigiar antes de irem para uma das luas de Saturno, para onde foram os humanos que restaram. Supervisionados diariamente por Sally (Melissa Leo), eles vivem numa espécie de purgatório em meio a nuvens, sobre a terra devastada por terremotos e tsunamis (um bom momento é quando Kosinski focaliza as ruínas de uma arquibancada de estádio em em meio às lembranças de Harper) e a única ligação estabelecida é aquela que envolve o conceito de equipe e, se há algum jogador prestes a desistir do time, pode ser sumariamente cobrado.
No entanto, Harper tem lembranças recorrentes do período pré-apocalíptico, todas com uma mulher (Olga Kurylenko) no alto do Empire State, que imagina se irá encontrar em determinado momento, e é obcecado por livros e pelo poema “The Lays of Ancient Rome”, de Thomas Macaulay. Esta primeira parte tem os momentos mais interessantes de Oblivion, e ele consegue se sustentar com razoável progressão até em torno de 50 minutos, mesmo sendo basicamente centrado na relação entre Jack e Vika. Quando ingressa o personagem de Morgan Freeman, um ator marcante quando tem um papel à altura, o filme, de forma surpreendente, cai de qualidade, e os diálogos, até então presentes mais em conversas de averiguação de área, mantendo certo suspense, tornam-se mais deslocados, sem estabelecer conexão entre as partes. Os novos personagens se estabelecem com dificuldade, devido à pouca sutileza do diretor, e começa a existir um salto de cena para cena, como se a cada momento iniciasse um novo filme, e, se o anterior já não satisfazia, o incômodo passa a ser presente. Nem mesmo o tom esperançoso e ecológico em algumas partes anima a trama.
Há uma compilação estranha de referências, e sabe-se que é difícil obter originalidade no cinema contemporâneo. Mas um filme como Oblivion, que mistura um excesso de filmes, partindo, inclusive, de imagens oferecidas por eles, desde O vingador do futuro e O exterminador do futuro, passando por Matrix e Eu sou a lenda, até Independence day e 2001 (procurando colocar robôs com luzes idênticas ao HAL 9000 e um gráfico final cuja pretensão equivale à do roteiro), parece indicar uma dificuldade ostensiva em dizer algo minimamente novo. Com poucas cenas de ação, a limitação fica mais evidente. Tom Cruise também anda de moto, evocando Top Gun, finge estar num estádio de beisebol com um boné, menção a Questão de honra, e procura resquícios de plantas (como uma espécie de Wall-E). Você vai encontrar muitos outros filmes aqui, e os spoilers irão proliferar dentro do próprio filme, antes da próxima sequência. É interessante, nesse sentido, que o roteiro tenha a colaboração de Michael Arndt (autor do divertido Pequena miss Sunshine), a quem coube a corajosa versão final.

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Oblivion.Filme 2

Em Encontro explosivo, sabíamos que Tom Cruise satirizava a si mesmo como Ethan Hunt; em Oblivion, a sátira não é evidente e a pretensão parece sintetizar a ficção científica dos últimos 40 anos, com uma homenagem ininterrupta durante suas duas horas, a última especialmente cansativa. Na parte final, quando o roteiro poderia apontar questões inusitadas e mesmo metafísicas para explicar as longas exposições do filme, parece se perder. É aí que apontam as principais falhas de Kosinski: ele não chega a ser um cineasta formado. É como se ele tentasse ainda esboçar ideias, mas elas só conseguissem alguma sustentação com orçamentos milionários, dedicado mais a compor histórias em que a humanidade é, particularmente, um detalhe, ou um acidente de percurso. A questão é que Oblivion persegue o sucesso e a aceitação a qualquer custo, sem sair por um segundo sequer do programa. Como filme, pode ser assistível; como cinema, é difícil saber o que acrescenta.

Oblivion, EUA, 2013 Diretor: Joseph Kosinski Elenco: Tom Cruise, Morgan Freeman, Nikolaj Coster-Waldau, Olga Kurylenko, Nikolaj Coster-Waldau, Zoe Bell, Melissa Leo, Andrea Riseborough, James Rawlings Produção: Joseph Kosinski, David Fincher, Peter Chernin, Ryan Kavanaugh, Dylan Clark, Barry Levine Roteiro: Joseph Kosinski, William Monahan, Michael Arndt, Karl Gajdusek Fotografia: Claudio Miranda Trilha Sonora: M83 Duração: 124 min. Distribuidora: Paramount Pictures Brasil Estúdio: Chernin Entertainment / Universal Pictures / Radical Pictures / Ironhead Studios

2  estrelas

Superman I (1978) e Superman II (1980)

Por André Dick

Superman.O filme 9

O cineasta Richard Donner foi, por algum tempo, um artesão capaz de fazer filmes divertidos e com viés comercial, mas sem menosprezar a inteligência do espectador. O primeiro Superman é  superior às sequências (em séries e na versão de 2006), capaz de, ao mesmo tempo, mostrar a origem do herói e sua transformação em algo maior sem perder parte da ingenuidade saudável que necessitamos numa história do gênero, baseada nos quadrinhos de Joe Schuster e Jerry Siegel. Para o papel principal, foi escolhido Cristopher Reeve (que faria ainda, em seguida, o belo Em algum lugar do passado), e para seu pai, Jor-El, Marlon Brando (em bela interpretação, apesar de curta).
(Daqui em diante, spoilers.) O filme mostra o herói ainda bebê sendo mandado por Jor-El e sua mulher Lara (Susannah York)  para a Terra porque seu planeta de origem, Krypton, está sendo destruído. Ele embarca numa espécie de cápsula que lembra o cesto de Moisés, e depois de anos chega à Terra. A cápsula cai à beira de uma estrada no interior do Kansas, como se fosse um meteoro, e abre um buraco enorme, e o Superman já criança é encontrado por aqueles que se transformam em seus pais adotivos, Jonathan e Martha Kent (Glenn Ford e Phyllis Thaxter), da pequena cidade de Smalville. A relação do Superman com seu pai terráqueo, assim como com sua mãe, é memorável, e as paisagens tristes do interior se projetam na própria vida daquele que esconde no celeiro parte da solução do mistério. “Sempre soubemos que ia partir”, diz sua mãe, e Donner consegue realmente desenhar uma relação humana sem recorrer à pieguice, o que rende a sequência mais melancólica da série, com a despedida dele ao universo que também lhe trouxe uma admiração especial por Lana Lang (de volta em Superman III). Clark segue para o Ártico, onde irá fundar uma espécie de extensão de Krypton, tentando descobrir as origens de sua genética e o rosto familiar que até então não conhecia, e o ator que faz o herói nesta etapa, Jeff East, empresta um sentido de afastamento de tudo e de todos, oferecendo um sentido de solidão.

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Clark Kent cresce (Reeve) e se transforma num jornalista do Daily Planet, sob a chefia de Perry White (Jackie Cooper) e com a companhia do fotógrafo Jimmy Olsen (Mark McClure) e da jornalista Lois Lane (Margot Kidder), por quem é apaixonado (interessante o clima do escritório, em diálogo direto com Todos os homens do presidente). Ainda indefinido entre a persona humana e a de herói, logo ele precisa tomar como rumo o enfrentamento com uma série de criminosos. À frente deles, está Lex Luthor (Gene Hackman, superior a Kevin Spacey), acompanhado de Otis (Ned Beatty) e Eva Teschmacher (Valerie Perrine), que ameaça a terra com uma ogiva nuclear. É Luthor que consegue desenhar, nos subterrâneos de Metrópolis, um vilão perverso (sobretudo quando o herói se depara com uma kryptonita), e, para isso, Hackman tem uma grande contribuição.
Se os efeitos especiais estão um tanto ultrapassados (mas em nenhum momento decepcionantes, e receberam o Oscar), a direção de arte (de Krypton, sobretudo) é fascinante  e a trilha de John Williams continua memorável, a melhor dos filmes de super-heróis. Além disso, Metrópolis é uma espécie de Nova York, captada de forma nostálgica pela ótima fotografia de Geoffrey Unsworth (2001), com grandes letreiros de jornal (evocando os anos 40 ou 50) e muitos bandidos sem tanto tato para o crime, além de abrigar várias cenas de ação do herói, que inspirariam, sobretudo, as adaptações de Homem-Aranha (na franquia de Sam Raimi). As transformações do Superman (em cabines giratórias) guardam um resquício do humor bem dosado por Donner, sem cair numa espécie de pastelão cômico efetuado por Lester depois, sobretudo no terceiro.

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Especialmente porque Donner é uma diretor especialista em cenas de ação que misturam drama e comédia, o que pode ser constatado em filmes como Os Goonies, Máquina mortífera, Ladyhwake e no faroeste dos anos 90 Maverick e não desaponta nunca em Superman; pelo contrário, ele estabelece um padrão para o que viria na década seguinte, com o Batman, de Tim Burton, e com o bom humor recente e vertiginoso tanto de Homem de ferro quanto de Thor e Os vingadores, de Joss Whedon. O Superman de Reeve, e isso se deve sobretudo à visão de Donner, é, sobretudo, alguém indefinido entre tempos diferentes: ao mesmo tempo em que conserva um ar dos anos 40, ele consegue efetuar uma transição para os momentos em que precisa enfrentar Luthor de maneira plausível.
Em Superman II, Donner deixou a direção depois de ter rodado praticamente todo o filme, dando espaço a Richard Lester, que regravou várias vezes para poder assiná-lo (há uma versão do corte de Donner em DVD, sem o estilo de Lester, que abusaria da comicidade também no terceiro filme), para continuar, basicamente, a mesma história. Kent está cada vez mais próximo de Lois Lane e ambos, inclusive, vão viajar juntos para as cataratas do Niágara. Ele está cansado de ser herói, deseja ser humano, e, para isso, volta às suas origens, à Fortaleza da Solidão, em que está a explicação do seu passado, para tentar ser igual. No entanto, chegam três criminosos à Terra, coronel Zod (Terence Stamp), Non (Jack O’Halloran) e Ursa (Sarah Douglas), mandados embora de Krypton no início do primeiro filme, condenados por Jor-El, e eles vão querer perturbar a população, sobretudo o filho de quem os mandou embora, tendo como aliado Lex Luthor (que já inicia o filme numa situação complicada). Luthor tenta chegar às origens do herói, a fim de tentar encobri-lo com sua tentativa de romper o mundo. Mas sua relação com Superman é estranha: ao mesmo tempo em que proporciona doses de violência, sobretudo moral, ele não consegue se posicionar como um vilão todo o tempo, e tenta disfarçar com uma ironia seca seu objetivo (chama a atenção como Hackman estava mais à vontade no primeiro filme, pois ele não quis continuar a filmagem com Lester).

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Superman.O filme 3

A questão é como o herói voltará a ser como era antes. Como observa Pauline Kael, “as transições de Clark Kent para Super-Homem e vice-versa agora são números cômicos bem acabados”. Nesse sentido, como o primeiro filme, Donner e Lester – cada qual em sua versão; a de Donner mais séria, com a presença de Marlon Brando e sequências mais impressionantes (como a inicial), a de Lester mais descontraída – conseguem dosar a humanidade de Clark sem torná-la superficial ou maniqueísta (na interpretação talentosa de Reeve). É interessante como os vilões também conseguem ficar no limite do bom humor aceitável, principalmente em sequências com duelos militares e na famosa invasão da Casa Branca. Há muitas cenas de ação de destaque, efeitos especiais melhores do que o primeiro, e no todo trata-se de uma continuação divertida, apoiado novamente num roteiro de Mario Puzo (criador de O poderoso chefão). Mas não existe, na versão de Lester, a melancolia impregnada por Donner nas bordas de suas versões: o seu Superman é, ao mesmo tempo, um herói e alguém realmente trágico, não com rompantes para o humor exagerado. Não que Lester não perceba a essência dele, mas é certo que Donner consegue desenhá-la de maneira mais adequada, assim como sua relação conflituosa com o pai que não conheceu e com a dualidade entre alguém de outro planeta e o humano. É exatamente isto que falta na versão de 2006, feita por Bryan Singer. Por isso e outros detalhes, mesmo depois de vários anos, são esses dois Superman aqueles filmes que ainda servem de referência.

Superman, ING/EUA, 1978 Diretor: Richard Donner Elenco: Marlon Brando, Gene Hackman, Christopher Reeve, Ned Beatty, Jackie Cooper, Glenn Ford, Trevor Howard, Margot Kidder, Susannah York, Jack O’Halloran, Terence Stamp, Sarah Douglas Produção: Pierre Spengler, Michael Thau Roteiro: Mario Puzo, Robert Benton, David Newman, Leslie Newman Fotografia: Geoffrey Unsworth Trilha Sonora: John Williams Duração: 144 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Alexander Salkind / Dovermead Film / Film Export A.G. / International Film Production

Cotação 5 estrelas

Superman II, ING/EUA, 1980 Diretor: Richard Lester Elenco: Cristopher Reeve, Gene Hackman, Ned Beatty, Jackie Cooper, Sarah Douglas, Margot Kidder, Valerie Perrine, Susannah York, Terence Stamp, Jack O’Halloran, Marlon Brando (na versão de Richard Donner) Produção: Ilya Salkind Roteiro: Mario Puzo Fotografia: Robert Paynter, Geoffrey Unsworth Trilha Sonora: Ken Thorne Duração: 127 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Warner Bros.

Cotação 4 estrelas

O segredo da cabana (2012)

Por André Dick

O segredo da cabana

Depois de tantas séries de terror, como Sexta-feira 13, Halloween e Pânico, não se pode dizer que o gênero não tem representantes. Com tantos caminhos já aproveitados, chega um momento em que a desculpa para situar personagens sendo colocados em situação delicada numa cabana de bosque (como em outra série, de Sam Raimi, Evil Dead), passa a ser baseada na metalinguagem e nas referências a todo o gênero, mais ainda do que vemos em Pânico. É o que acontece em O segredo da cabana, que, de certo modo, conseguiu o que poucos filmes do gênero conseguem: transformar-se numa espécie de cult, uma referência pop, desde o seu lançamento. Não faltam elementos para isso: o filme aproveita, por exemplo, a popularidade de Chris Hemsworth (que de Thor e Os vingadores, passando por Star Trek, a Branca de Neve e o caçador, passou a ser um ator onipresente em blockbusters) e o roteiro, em parceria com o diretor, de Joss Whedon, que se transformou numa referência de adaptações dos quadrinhos para as telas com Os vingadores, mas já havia mostrado seu trabalho de roteirista antes em alguns filmes, como Toy Story.
Whedon conhece cultura pop e seu Os vingadores consegue ser divertido na medida certa. Já no roteiro de O segredo da cabana, ele explora seu lado cinéfilo, compondo uma trama propositadamente repleta de clichês. Já começa em ritmo de saída para as férias de um grupo de jovens universitários – em clima de ida para a Califórnia –, Curt (Chris Hamsworth), Dana (Kristen Connolly, que está em um filme muito mais assustador, do ano passado, The bay), Marty (Fran Kranz), Jules (Anna Hutchison), e Holden (Jesse Williams), cada um visto como estereótipo. Depois de passarem por um posto de gasolina quase deserto, obviamente com um dono misterioso, eles chegam à cabana. Ela está no alto de uma montanha, afastada de tudo e todos.

O segredo da cabana.Imagem 2

O segredo da cabana.Imagem 3

O que não se sabe é que ela está sendo vigiada por uma equipe, como se fosse o cenário para uma espécie de reality show, coordenado por uma dupla (Bradley Whitford e Richard Jenkins), que fazem apostas, por exemplo, para saber como será a ação de cada um. Claro que esses jovens vão ter um certo envolvimento, usar drogas e descer ao porão da cabana, e mesmo uma das jovens vai dialogar e fazer outras coisas com a cabeça de um lobo na parede como se ele fosse real. E, claro, o casal do filme vai se dirigir ao bosque para ter um momento de isolamento. No entanto, não se trata de colocar os personagens apenas em momentos previsíveis e constrangedores, e sim para ameaçá-los com zumbis e criaturas que não se sabe ao certo de onde vêm – a não ser pelo fato de que o chão pode guardar várias entradas e saídas.
Este Evil Dead que se transforma, a partir de tudo, em metalinguagem em ritmo de pavor nunca guarda, como outros filmes referenciais, uma claustrofobia simétrica. O que se vê em O segredo da cabana é mais uma brincadeira com repetições. Se estamos acostumados ao fato de que os personagens podem se sair de uma determinada situação porque, afinal, eles estão ainda dentro de um ambiente em que têm liberdade para tomarem decisão, em O segredo da cabana eles atuam apenas como fantoches de uma vontade tanto do diretor quanto do roteirista em brincar com seus destinos. Não se trata, nem um pouco, de algo diferente, apenas curioso. E a dupla de coordenadores da cabana, que ficam torcendo pelo topless de uma das jovens, parece atuar como produtores numa sessão-teste, para saber se aquilo trará contentamento a uma plateia, mesmo que aqui ainda invisível. Os personagens, ao contrário de filmes como Sexta-feira 13, nunca têm o mesmo tempo de espera para que possam tentar escapar do inevitável. É tudo excessivamente rápido e sem grandes detalhes ou desenvolvimento.

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Não que se esperasse exatamente isso. Não existe, entre as habilidades do diretor Drew Goddard, uma sutileza capaz de emular os pavores de um Poltergeist, por exemplo, no entanto ele se esmera em tornar o seu lado cinéfilo numa colcha de retalhos capaz de agradar, mesmo que com um impacto maléfico e desproposital em relação ao filme. É quando O segredo da cabana se torna uma espécie de Os caça-fantasmas misturado com O nevoeiro que as artimanhas do roteiro de Whedon saltam aos olhos e, sobretudo, ao nervosismo proporcionado pelas cenas.
Há muitos elementos desagradáveis, mas talvez sejam eles que escondam uma das poucas originalidades do filme, e percebe-se que, ao lado de seu lado apaixonado pelo cinema de gênero, temos, na verdade, uma espécie de comédia trash escondida. Na verdade, apresenta-se aqui de forma cômica o que víamos em outro roteiro, este lamentável, de Whedon, para Alien – A ressurreição (que encerrou a série antes da retomada em Prometheus). Há tantos exageros e tanta desproporção nas imagens que o espectador, inevitavelmente, tende a olhar tudo não apenas com desconfiança, mas com certo afastamento. Os minutos finais do filme são de um impacto um tanto assustador – assim como o desfecho para um dos personagens que tenta uma travessia desastrada – e é quando o diretor consegue, de fato, entrelaçar a ideia exibida no início, um tanto previsível, com uma espécie de mitologia – superficial, mas divertida –, trazendo, inclusive, à cena uma atriz em participação surpreendente. Mesmo assim, isso, diante do restante, parece apenas um verniz para esconder de fato o que O segredo da cabana mostra: que não é exatamente ao brincar com clichês do gênero que sua própria história deixará de ser um clichê e o filme se tornará, como desejavam diretor e roteirista, pelo menos numa referência.

The cabin in the woods, EUA, 2012 Diretor: Drew Goddard Elenco: Kristen Connolly, Chris Hemsworth, Anna Hutchison, Fran Kranz, Jesse Williams, Richard Jenkins, Bradley Whitford, Brian White, Amy Acker, Tim De Zarn, Tom Lenk, Dan Payne, Jodelle Ferland Produção: Joss Whedon Roteiro: Joss Whedon, Drew Goddard Fotografia: Peter Deming Trilha Sonora: David Julyan Duração: 95 min. Distribuidora: Paramount Pictures Brasil Estúdio: AFX Studios / Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) / Mutant Enemy / United Artists

2  estrelas

O som ao redor (2012)

Por André Dick

O som ao redor 3

Ao assistir filmes como Holy Motors, Killer Joe e Indomável sonhadora, nos últimos meses, pôde-se ter uma ideia mais clara da palavra superestimado. Nenhum deles consegue trazer uma resposta ao que se espera, nem o que é comentado a partir de suas histórias corresponde às expectativas. Por isso, podia-se desconfiar também deste filme brasileiro, que começou a ganhar repercussão principalmente no fim do ano passado, quando fez parte de algumas listas dos melhores filmes (fala-se muito daquela do The New York Times, mas ele também está na lista da Slant). Fala-se também em sua participação de sucesso em festivais e em como o cineasta Kleber Mendonça Filho desenvolve, esteticamente, as propostas de alguns de seus curtas-metragens, como Eledrodoméstica e Recife frio por meio de uma nova narrativa. O próprio título, O som ao redor, se arrisca num terreno de estranheza – embora se saiba que o som ao redor, de certo modo, pode abranger tudo, mais ou menos como A árvore da vida, de Malick. Se para Mendonça somos reprodução também desses sons ao redor, é verdade que seu filme caminha num território das classes sociais.
E aí reside uma das surpresas de O som ao redor (daqui em diante, possíveis spoilers): Kleber Mendonça não faz um retrato específico de uma determinada classe média brasileira; ele sintetiza a sociedade brasileira (que tem pontos em comum com muitas outras). Desde o início, com as imagens em preto e branco de antigos engenhos de Pernambuco, para, então, chegar a um bairro de Recife, Kleber Mendonça traça um panorama complexo – apesar de sua aparente simplicidade – de como a vingança e a violência permanece em condições diferentes daquelas em que estamos acostumados a ouvir em histórias antigas ou de como era quando o país não havia entrado plenamente no século XXI, com seus computadores e pessoas escondidas atrás de grades e muros de condomínios. Kleber está interessado, antes de tudo, em traçar como a gênese da dominação e da violência do Engenho chega à cidade grande, no caso Recife, e de como ela é incontrolável e se alastra. Trata-se de um contexto bastante particular e, ao mesmo tempo, universal, sendo que O som ao redor lembra um pouco Short Cuts, de Altman, dentro de um perímetro urbano, dividido em capítulos como um bom filme de Tarantino (em determinado momento, vê-se o cartaz de Jackie Brown).

O som ao redor 8

O som ao redor

Com seus zooms de câmera para dar um ar semidocumental ao que se mostra, o diretor consegue equilibrar várias ações, com diferentes personagens, num curto espaço de tempo e território, mostrando personagens saindo de lugares onde outros chegam.
O personagem central, João (Gustavo Jahn), é um corretor imobiliário cansado, com um novo caso, Sofia (Irma Brown). No início, eles têm de se esconder da empregada, Mariá (Mauricéia Conceição), que chega em casa com suas crianças – passando desnudos da sala para o quarto –, e logo em seguida surge o mote da ameaça: o carro de Sofia teve seu vidro arrancado e o carro de som roubado. Como todos são conhecidos no bairro, João desconfia de que seu primo, Dinho (Yuri Holanda), está envolvido, já que cometeu diversos assaltos, comentando o caso com outro primo, Anco (Lula Terra). Chegam, nesse dia, à vizinhança seguranças oferecendo serviço, Clodoaldo (Irandhir Santos), e Fernando (Nivaldo Nascimento). Ambos são convidados a encontrar aquele que é uma espécie de dono da rua, Francisco Villa (WJ Solha, assustador na medida exata), que justamente veio do engenho – de uma fazenda que remete àquela que vemos em Tabu, avô de João, Dinho e Anco. É Francisco quem ordena aos seguranças que seu neto não seja importunado. A esses seguranças, junta-se Ronaldo (Albert Tenório). Ao mesmo tempo, vemos uma dona de casa, Bia (Maeve Jinkings), que tem problemas com o cão do vizinho, que não para de latir e uivar o dia inteiro, prejudicando, inclusive, as aulas de língua estrangeira dos filhos. Também vemos uma reunião em que se decide a demissão ou não por justa causa de um porteiro – na cena mais cômica do filme.
O som ao redor acaba ganhando um sentido maior exatamente quando a violência que antes parecia muito mais exposta agora acaba ficando reservada a situações do dia a dia e mesmo a tensão sexual se mostra opressiva – seja no beijo entre adolescentes no canto de um prédio, seja na relação entre uma mulher e um eletrodoméstico. Qualquer situação ganha uma aspereza, como a da mulher que avalia desconfiada o apartamento, ou o homem que discorda de João em relação ao porteiro, como se quisesse enfrentar a família de quem coordena a rua. O sentido do enfrentamento surge em momentos comuns, como aquele em que Francisco Villa adentra o mar, mesmo com a placa de que há perigo, pois pode haver um tubarão, ou quando um segurança liga do orelhão. Também na cena em que duas vizinhas precisam disputar por um determinado atendimento. Simples visualizações de celular ou por câmeras de vídeo de apartamento ganham um elemento de tensão. Esta nunca se reproduz por gritos, discussões quentes, mas por ameaças e olhares de desconfiança. Pode haver tensão mesmo em um casal descansando na rede de um engenho de interior. Ou no barulho de crianças cantando na varanda de uma escola. A disputa por território é anunciado por ameaças veladas, sem revelar o rosto. E a rua e os condomínios abrigam, ao mesmo tempo, segurança e insegurança – em determinado momento, a bola de um dos meninos cai no outro condomínio e, quando a jogam de volta, ele não está mais lá para recebê-la (lembrando a bolinha de tênis de O iluminado). Em outro, num apartamento que parece vazio, passa o vulto de um menino. Os sons também se reproduzem em todos os lugares, desde o cão latindo, a colisão de dois veículos até alguém riscando um carro, ou um construtor trabalhando numa obra ao lado de uma quadra de recreação.

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É como se Kleber Mendonça mostrasse que há, nesse isolamento com inúmeras pessoas, uma ameaça fantasmagórica, uma ameaça daquele mesmo ambiente em que o dono do engenho se cercava de empregados e perseguia aqueles que colocavam em dúvida sua autoridade – ou seja, em O som ao redor, uma chamada não respondida pode ser converter num duelo mais adiante. A ascensão desse movimento nunca é interrompida; não surge nenhuma classe social nova, ela apenas se movimenta e se dilui em meio a novas tecnologias e promessas de novos eletrodomésticos não para cultivar um pretenso vazio consumista – afinal, a questão financeira é universal, não pertence exclusivamente à classe média brasileira -, mas para tentar encobrir justamente a falta da presença humana, como acontece em qualquer sociedade e país; em outros casos, ela é apenas prolongada com o registro de novas vítimas. O medo de se conviver com uma vingança no campo é o mesmo de ter de dividir o seu espaço com sons estranhos e com as favelas. As classes, no Brasil, de qualquer modo, tendem a se misturar, sejam quais forem seus objetivos e mesmo que não desejem ou temam umas às outras, afinal, como disse Sérgio Buarque de Holanda, há sempre uma cordialidade no ar e nunca se sabe onde o desejo de uma termina e o de outro começa, mesmo porque são aspirações gerais – e é isso o que acontece em O som ao redor. O próprio personagem central, João, é uma espécie de síntese disso: já devidamente filtrado pelo ambiente da cidade, ele não se nega, no entanto, a conservar uma preocupação indiferente com as vidas alheias (como na reunião de condomínio).
Chegando a noite, a ronda começa – e o dia não acaba. Kleber Mendonça mostra como a tranquilidade aparente do horário em que todos se recolhem está sempre à beira de uma sombra ameaçadora, seja num sonho, seja nos vultos de alguém correndo por telhados ou apartamentos. O apartamento é um espaço físico e interno, representando o medo dos personagens. Para essas cenas de tensão atmosférica, por mais que tenha visto elementos de John Carpenter (homenageado em determinado momento), vemos muito mais David Lynch e seu A estrada perdida. Todos os momentos em que são mostrados ambientes vazios e uma ameaça que paira no ar, estamos no apartamento em que vive o casal do filme de Lynch – ou seja, sob uma influência de Hitchock, mas já devidamente filtrada. Do mesmo modo, quando os personagens caminham por um corredor e pela rua (com as luzes acendendo e apagando), estamos num território de Lynch e sua eletricidade estranha e irregular. Ou seja, o medo proporcionado por lâmpadas é um elemento lynchiano, que Kleber Mendonça consegue costurar à narrativa sem diluí-la, mas incorporando elementos. Há ainda outra presença de Lynch, que é aquela em que personagens surgem de lugares onde não estavam – a primeira entrada de Francisco para conversar com os seguranças (há um corte exatamente quando surge sua sombra). Já as cenas do bairro e das ruas lembram, a meu ver, bastante Caché (de Michael Haneke). A atmosfera não seria a mesma sem os atores e, a despeito das muitas críticas, nesse sentido, todos fazem um trabalho competente, com destaque para as excepcionais participações de Solha, Jinkings, Irandhir, Holanda, Nascimento e, ao final, Sebastião Formiga. O estilo de interpretação é mais natural, e as falas soam próximas daquelas do cotidiano; embora isso prejudique em alguns momentos, pelo som um pouco confuso, dentro do contexto trata-se de um elemento narrativo interessante.

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Não há apenas a influência de um gênero, pois O som ao redor é um híbrido. Temos, numa de suas partes, quase de cinema mudo (não fossem os sons ao redor), uma clara influência de Malick, quando João e Sofia e  viajam para o engenho de Francisco, e começam a abrir janelas, indo depois caminhar perto de uma escola – com um longo travelling – e nas ruínas de um cinema abandonado (ocasionando uma brincadeira com a ausência de som do lugar, mas também com os sons de filmes de terror que passaram ali, como eles fossem igualmente fantasmas). Finalmente, nesta parte, além da tranquilidade apenas aparente do engenho, escondida nos sorrisos de Sofia e João, temos a belíssima sequência de uma queda-d’água, fazendo os corpos deles e de Francisco brilharem contra a luz, o que cria uma analogia com a sequência em que João e Sofia voltam à casa de infância dela, que está para ser demolida e guarda uma piscina vazia. É nesta parte que se desenha a separação (e ao mesmo tempo a aproximação) entre a Recife de altos prédios, cobrindo as ruas de condomínios, e o verde arejado do interior com suas fontes-d’água – e o caminho para ele só poderia passar por um lodaçal.
Impressiona o senso de estética de Kleber Mendonça e do fotógrafo Pedro Sotero com auxílio de Fabrício Tadeu (os movimentos de câmera são sempre sutis), focalizando também objetos coloridos em meio a um cenário cinza, ou combinando cores de camisetas com cores de grades e vasos (no que lembra A separação), ou mesmo colocando fosforescentes numa barraca de rua. Este senso de Kleber Mendonça faz a trama ganhar em progressão, mesmo que repita algumas situações – como a da vizinha observando o cão pela janela ou angustiada pelo fato de que ele não faz silêncio. Nesse sentido, como Central do Brasil no final dos anos 90 e Cidade de Deus no início deste século, O som ao redor é uma obra universal e não restrita a um cenário específico (mesmo que também se alimente dele), que define uma espécie de divisão de águas na cinematografia brasileira. É de se pensar o que Kleber Mendonça Filho ainda fará.

O som ao redor, BRA, 2012 Diretor: Kleber Mendonça Filho Elenco: Gustavo Jahn, Irma Brown, WJ Solha, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Lula Terra, Yuri Holanda, Clébia Souza, Sebastião Formiga, Nivaldo Nascimento, Maria Luiza Tavares Produção: Emilie Lesclaux Roteiro: Kleber Mendonça Filho Fotografia: Pedro Sotero Trilha Sonora: DJ Dolores Duração: 131 min. Distribuidora: Vitrine Filmes Estúdio: Cinemascópio

Cotação 5 estrelas

Os Goonies (1985)

Por André Dick

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Durante a década de 1980 – mais especificamente entre 1984 e 1985 –, Steven Spielberg, além de ter realizado filmes antológicos, produziu peças únicas. São filmes que remetem aos recentes Super 8 e Cowboys e aliens, mas com um fôlego mais remanescente. Apesar de ter produzido outros sucessos naquela década, como Poltergeist (1982), Fievel (1986), Uma cilada para Roger Rabbit (1988) e Querida, encolhi as crianças (1989), foi nesses anos que Spielberg compôs, e que faria acréscimo a E.T., uma espécie de imaginário da infância e da adolescência, referenciado em cidadezinhas dos Estados Unidos ou em microcosmos de um detetive antológico.
Em 1984, ele produziu Gremlins, por exemplo, em que se mostra uma cidadezinha do interior sendo invadida por monstrinhos. Em 1985, por sua vez, em O enigma da pirâmide, o diretor Barry Levinson (Rain man), juntou-se com Spielberg para fazer uma adaptação juvenil das histórias de Sherlock Holmes e seu fiel companheiros das histórias de Conan Doyle, Watson, na qual se revela como eles se conheceram num colégio de Londres e como se deu seu primeiro caso, envolvendo casos estranhos, relacionados com um dardo venenoso que leva as vítimas a terem alucinações, e reunidos numa diversão que, à época, não teve grande público, mas acabou se tornando cultuada, também em razão de sua qualidade visual e de trama bem construída.
Entre a cidadezinha escondida de Gremlins (mas não devemos esquecer aquela em que mora Marty McFly em De volta para o futuro) e o lado detetivesco de Sherlock Holmes (mas também das histórias de capa e espada de Errol Flynn), tivemos finalmente Os Goonies, com roteiro do mesmo Chris Columbus de Gremlins e O enigma da pirâmide, pode ser vista a marca do produtor Steven Spielberg: elenco, roteiro e fotografia. Ainda tem como diretor Richard Dooner, capaz de fazer quase sempre diversões inteligentes (como Superman, Ladyhawke e a série Máquina mortífera). Com muita ação, elenco de crianças, canção marcante dos anos 80 (a cargo de Cindy Lauper) e uma história de mapa do tesouro, remetendo à infância, Os Goonies pode ser facilmente confundido como uma espécie de montanha russa, que hoje poderia vender muitos bonecos. No entanto, a nostalgia dele é mais intrínseca.

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Depois de uma abertura dinâmica, em que os personagens são apresentados ao mesmo tempo em que acontece a perseguição da polícia a um mafioso que está fugindo da cadeia com a ajuda da mãe e do irmão, chegamos à casa de Mikey (Sean Astin), um garoto asmático, irmão de Brandon (Josh Brolin), que não conseguiu tirar sua carteira de motorista. No sótão de sua casa, Mikey encontra um mapa de tesouro, com inscrições em espanhol, do pirata Willy Caolho, junto com sua turma: há um minigênio, Dado (Quan), um gordinho, Bolão (Cohen), e um mentiroso compulsivo, Bocão (Feldman). Eles vivem nas Docas Goon, de Astoria, e, como suas famílias serão em breve despejadas de casa por não pagarem os impostos, eles resolvem procurar o tesouro. Em sua jornada, eles encontram duas meninas, Andy (Kerri Green) e Stef (Martha Plimpton), que entram sem querer na busca e enfrentam uma família de criminosos, justamente aquela que estava sendo perseguida nos primeiros minutos, os Fratelli (tendo a excelente Anne Ramsey como mãe e líder e os filhos interpretados por Robert Davi e Joe Pantoliano). Eles escondem, no porão de uma restaurante abandonado à beira da praia, além de uma máquina para falsificação de dinheiro, um irmão que tentam ignorar, Sloth (John Matuszak), alimentado com pratos de comida indesejáveis. Para essa casa, o grupo de jovens se dirige, sem saber, claro, que ela esconde também uma passagem para o tesouro que procuram, com catacumbas cheias de morcegos e passagens imprevisíveis. Os Fratelli acabam aprisionando Bolão e, depois de um interrogatório, conseguem obter a informação de que é procurado um tesouro.
No entanto, essa jornada também reúne outros componentes: um é, claramente, a despedida da infância, no interesse de Mike por Andy, pretendida pelo irmão, e de Bocão por Stef (este mais subentendido), e as confusões entre os personagens no que dizem respeito a abandonar o local de origem e à despedida da bomba de ar. Não há dúvida de que Donner sucumbe, em muitos momentos, a uma espécie de Indiana Jones e o templo da perdição mais infantojuvenil (mesmo pela presença de Dado, o Short Round) e com picos de 007, pela bugiganga de invenções que carrega. Ainda assim, onde inicia o exagero, ele consegue logo encadear uma diversão, como naquele momento em que eles passam por baixo de um banheiro do clube pertencente às famílias ricas da cidade – as quais também querem despejá-los –, representadas por Troy (Steve Antin), e seu pai, Elgin Perkins (Curtin Hanson), ou embaixo de uma fonte dos desejos, em que as moedas são vistas como moeda de troca para que as casas dos pais não sejam vendidas e, irremediavelmente, ninguém se mude e a infância possa ganhar mais um tempo adiante. Os Fratelli, em determinado momento, passam a se encarregar da parte ao mesmo tempo assustadora. É evidente que em muitos momentos a vilania deles é exagerada, parecendo uma condescendência com o universo infantojuvenil, e que alguns personagens soam um tanto esquemáticos em algumas situações.

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De qualquer modo, Os Goonies consegue estabelecer um padrão de qualidade principalmente porque nenhum dos personagens chega a ser estereótipo. Donner sabe delinear cada um com determinada personalidade e sempre estamos diante de crianças, e não de miniadultos repetitivos, mesmo que cercados de pais um tanto desligados, e a peregrinação de Bocão com a mãe de Mikey (Mary Ellen Trainor) no início do filme, com a empregada que fala apenas espanhol (Lupe Ontiveros), é um exemplo, como caberia bem igualmente num filme de John Hughes.
Também por causa do elenco. Destaque-se que, além de atores conhecidos nos anos 80, como Feldman e Ke Quan, Os Goonies apresentou nomes que acabaram se mantendo, como os de Sean Astin (que faria Sam, em O senhor dos anéis), Brolin (de inúmeros filmes, a exemplo de Onde os fracos não têm vez e Wall Street – O dinheiro nunca dorme) e Plimpton (que estrela a série de TV Raising Hope).
Nesse sentido, como poucos filmes, Os Goonies tem o intuito de retratar uma determinada geração, como Spielberg tinha a sua. Lá estão as nostalgias dos filmes de piratas, monstros e a ação como em uma parque assustador, com catacumbas se abrindo e as crianças fugindo para um lugar onde os pais não representam a referência imediata, e sim a fantasia. É difícil negar o interesse que Os Goonies desperta sobretudo a partir dessas nostalgias, com sua vista para o mar num dia de inverno, árvores se agitando, bicicletas em curvas sinuosas de uma estrada à beira de uma baía, o acolhimento num esconderijo que pode causar também outros direcionamentos para a jornada, os sustos e os enfrentamentos com quem deseja, de algum modo, interromper a infância em curso. Há algo nele que é substancialmente ingênuo e essencial para a compreensão das próprias histórias, reais ou inventadas.
Daí, para Spielberg, e esses filmes esclarecem bem, as aventuras maiores estão concentradas em personagens que moram em cidades distantes ou para as quais ainda não há espaço – como as descobertas detetivescas de Sherlock Holmes. Depois delas, é certo que se abriu um nicho para novas produções, mas dificilmente com a mesma autencidade.

The Goonies, EUA, 1985 Diretor: Richard Donner Elenco: Sean Astin, Josh Brolin, Jeff Cohen, Corey Feldman, Kerri Green, Martha Plimpton, Jonathan Ke Quan, John Matuszak, Robert Davi, Joe Pantoliano, Anne Ramsey, Mary Ellen Trainor, Lupe Ontiveros Produção: Harvey Bernhard, Richard Donner Roteiro: Chris Columbus Fotografia: Nick McLean Trilha Sonora: Dave Grusin Duração: 115 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Warner Bros. / Amblin Entertainment

Cotação 5 estrelas


2001 – Uma odisseia no espaço (1968)

Por André Dick

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Este é um dos maiores clássicos da ficção científica com efeitos impressionantes para sua época (e ainda hoje) de Douglas Trumbull, um roteiro, baseado no conto “A sentinela”, de Arthur C. Clarke, que lançaria o livro homônimo quase simultaneamente ao lançamento do filme, e uma direção impecáveis. Kubrick está interessado em mostrar o isolamento do homem não apenas em sua aurora, mas no espaço sideral, assim como fez com o jovem Alex, que servia de cobaia para experimentos químicos em Laranja mecânica, e o Jack Torrance, de Nicholson, em O iluminado. E mostra que, por meio da experiência da solidão, o homem pode mudar e avançar contra o passado e contra o futuro, ao mesmo tempo.
2001 (spoilers a partir daqui) inicia com homens-macacos em algum lugar remoto do passado, descobrindo a defesa – atacados por leopardos ou ameaçados por outras tribos – e a violência – ao esfacelar o crânio de um animal – e entrando em contato com um monólito, perto de rochas onde eles dormem. Essas imagens revitalizam qualquer gênero, e o filme de Kubrick contradiz a ficção científica como um gênero apenas baseado no fantástico e não no histórico, mesmo como narrativa, ao mesmo tempo em que é um cinema praticamente sem diálogos, o que é apontado como um motivo de tédio, isso se 2001 não fosse também uma revitalização da forma de narrar.
Depois de lançado um osso ao espaço – numa transição antológica –, este se transforma em espaçonave, transportando o espectador para 2001, que carrega o Dr. Heywood Floyd  (William Sylvester), depois de uma conversa com Elena (Margaret Tyzack), cientista russa, e seu colega Dr. Smyslov (Leonard Rossiter), em direção à lua, em que foi desencavado um monólito negro misterioso, igual àquele que os homens-macacos cercavam.

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Esta mudança de lugar e tempo é típica do talento de Kubrick, que move sempre a narrativa para espaços diferentes daqueles que naturalmente se esperava – aqui, vai até a Pré-História, numa reconstituição que impressiona a cada vez que assistimos, para, a partir daí, se deslocar rumo ao infinito e ao vazio do espaço inexplorado pela Discovery (em Nascido para matar, o espaço do Vietnã é também o da loucura e de um regresso às origens, assim como o Overlook, de O iluminado, é um traçado do labirinto da mente humana e De olhos bem fechados, uma saga noturna em busca da autossatisfação), em missão até Júpiter, através de novos sinais do monólito – e talvez de presença alienígena. Em nenhum momento, é suscitada uma presença divina, ou algum vínculo exatamente religioso, mas 2001 também traz – como A árvore da vida, de Malick, em que há sequências que lembram o filme de Kubrick – este aspecto de discussão. Também traz o embate não mais entre os homens-macacos e os animais, mas entre os homens e os computadores.
O computador da nave, o HAL 9000 (com voz marcante de Douglas Rain), em plena expansão da IBM – letras seguintes de HAL –, o único a realmente saber sobre a missão, começará a se rebelar contra os tripulantes, deixando os astronautas David Bowman (Keir Dullea) e Frank Poole (Gary Lockwood) perplexos. Ele acredita, pois, antes de tudo, tem uma concepção humana, que a missão deve ser abortada. É inevitável perceber que HAL tem traços mais humanos do que os tripulantes da Discovery, sobretudo David, que recebe um cumprimento de aniversário sem mostrar o menor ânimo ou sentimento, e, quando se aproxima de seu desligamento, acaba demonstrando o mesmo medo humano. Ao mesmo tempo, os astronautas parecem mais um experimento e correm e se alimentam sem tratarem de nenhum aspecto da missão.
Mas o mistério maior está no monólito negro, uma peça que se desloca entre tempos distintos (estava na Pré-História, cercado por macacos, e agora flutua pelo espaço). É ele que mostra a atemporalidade da vida, o que Kubrick quer constantemente ressaltar. Não sabemos se é o monólito aquele que confunde HAL 9000, ou o conduz à tentativa de encerrar a missão. Quando David se vê numa situação extremamente difícil, resta a ele continuar sua trajetória. E Kubrick continua, em cada frame, notável. O final é enigmático e, ao mesmo tempo, precursor de imagens relacionados ao futuro, mostrando os limites do espaço, em busca de Deus. O quarto nos moldes vitorianos em que o astronauta vai parar, com seu piso iluminado (uma espécie de ambiente precursor dos ambientes de Barry Lindon e do salão de festas de O iluminado, além do piso de Os embalos de sábado à noite, cuja discoteca se chama exatamente 2001), é, do mesmo modo, a contemplação da história e da juventude nos olhos de um ser que passou por todos os momentos de sua vida num piscar de segundos.

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Kubrick realiza tudo com exatidão e detalhamento, pontuados pela direção de arte, tendo à frente Anthony Masters, que havia feito a de Lawrence da Arábia e faria a de Duna, e pela fotografia de Geoffrey Unsworth, que trabalhou na série Superman, Cabaret, entre outros filmes. É a junção entre direção de arte e fotografia – com a trilha sonora clássica de fundo, pontuando as cenas de transição da Pré-História para o futuro, como o “Danúbio azul” – que torna o filme um objeto tão brilhante, a ser examinado sempre, uma espécie de ficção científica baseada num conceito de inovação e ruptura.
Nada a ver, portanto, com sua sequência, 2010, que, mesmo com excelentes efeitos especiais de Richard Endlund (de Indiana Jones e Guerra nas estrelas) e uma direção de arte irretocável (de Syd Mead, de Blade Runner) e cuja narrativa trata de americanos, comandados pelo doutor Floyd (Roy Scheider), e russos numa missão – encontrar a nave Discovery, desaparecida no final do primeiro filme, que foi localizada pela última vez perto da lua de Saturno –, não apresenta novidades. É claro que os americanos comandam os soviéticos e há patriotismo na trama, mas a mensagem do filme, embora com ar de Guerra Fria, é interessante. Sua meta é explicar, o que não aconteceu em 2001, vagamente por que o computador HAL 9000 enlouqueceu no primeiro e parte do mistério do monólito negro.
Por sua vez, Kubrick deseja uma espécie de mistério inexplicável sobre a origem do universo e para onde somos conduzidos, seja pela mão de uma força superior, seja por nossas próprias forças. Sua visão sobre nossa origem e como a evolução traz detalhes semelhantes (os homens-macacos ao redor do monólito, assim como os astronautas na Lua) revela uma extrema sensibilidade, sobretudo porque apresenta uma síntese para nossos receios e desejos. Como diz Kubrick: “Tentei criar uma experiência visual, que contorne o entendimento para penetrar diretamente o inconsciente com seu conteúdo emocional” (em Claude Beylie, As obras-primas do cinema).

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Por isso, ao mesmo tempo, o brilho do sol em Kubrick tenta revelar uma espécie de verdade. Se muitas tomadas de A árvore da vida embaixo das árvores – vendo sempre o ponto de vista da criança – procuram sempre um resquício de sol (que num determinado momento lembra exatamente o de 2001, na cena em que ele aparece vagarosamente na linha do horizonte), nem por isso ele se deixa carregar por um sentimento de ver a linguagem se esvair em imagens de apenas encantamento, em 2001 a luminosidade é uma tentativa de alinhar os planetas e as naves. Difícil entrar em contato com imagens tão profundamente enigmáticas como aquelas que cercam a aurora do homem – com seu horizonte alaranjado –, passando pela missão na Lua, em que a sombra, antes dos ossos animais no amanhecer, agora é das espaçonaves passando por elevações, até a sequência final, que conduz a um labirinto de cores fortes eclodindo nos olhos e a leveza da imagem do feto, do bebê, dentro da forma de um planeta, na qual Kubrick eleva a imagem a um símbolo, a uma metáfora, de tudo que havia sido observado antes. É exatamente o “conteúdo emocional” das imagens que conduz 2001 ao patamar de obra-prima.

2001 – A space odyssey, EUA/ING, 1968 Diretor: Stanley Kubrick Elenco: Keir Dullea, Gary Lockwood, William Sylvester, Dan Richter, Douglas Rain, Leonard Rossiter, Margaret Tyzack, Robert Beatty, Sean Sullivan, Frank Miller, Penny Brahms. Produção: Stanley Kubrick  Roteiro: Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke Fotografia: Geoffrey Unsworth Trilha Sonora: Alex North, Gyorgy Ligeti Duração: 139 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) / Stanley Kubrick Productions

Cotação 5 estrelas