As coisas simples da vida (2000)

Por André Dick

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Em As coisas simples da vida, o cineasta de Taiwan Edward Yang apresenta um cinema que parece simples na maneira como os personagens se revelam em suas ações, mas complexo quando vemos se formar uma cadeia simbólica de situações. Este é um filme de art house feito num momento em que não havia um circuito apropriado para sua apreciação – e o próprio Yang acabou tendo sua grande obra de 1991, Um dia quente de verão, quase esquecida das telas e de relançamentos em vídeo, por causa, também, de sua longa duração de 4 horas. As coisas simples da vida, recuperado pela Criterion Collection, simboliza o seu ápice como cineasta, e por ele recebeu a Palma de direção em Cannes em 2000.
O filme tem início no casamento do cunhado de Nien-Jen Wu/NJ ((Nien-Jen Wu), A-Di (Chen Hsi-Sheng), com Xiao Yan (Xiao Shushen) que leva sua festa a uma confusão particular, em razão de uma suposta traição com Yun-Yun (Zeng Xinyi). Não apenas essa confusão familiar se anuncia, como também as brincadeiras e gracejos durante a festa sintetizam, de início, o objetivo de Yang: ao filmar esses personagens conversando ou gritando sem exatamente procurar suas características, o diretor compõe um cinema capaz de sustentar sua indefinição entre ser um retrato familiar ou uma visão distante dos costumes de uma comunidade. O peso de Yang é evidentemente cultural: acompanhamos como essa família se comporta e o modo de agir dessa sociedade enfocada. Tudo se torna mais denso quando a mãe (Tang Ruyun) da esposa de NJ, Min Min (Elaine Jin), é levada ao hospital em razão de um acidente vascular.

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Seja o pai, NJ, que pretende fechar um negócio na área de video games, mas se torna antes amigo de Ota (Issei Ogata), com quem precisa conversar a respeito de ganhos futuros, seja o seu filho, Yang-Yang (Jonathan Chang), que fotografa a nuca de pessoas, ou a filha, Ting-Ting (Kelly Lee), que está descobrindo seu primeiro amor, todos estão na mesma condição de entender a ligação entre a vida e a morte (a mãe de Min Min ficará numa cama do apartamento da família). O menino não entende certamente o que ocorre, enquanto sua irmã, entre um experimento e outro com o violancelo, se sente culpada pela situação da avó. E NJ acaba reencontrando Sherry (Ke Suyun), um amor de juventude casada com um norte-americano, e que vive em Chicago, da qual se afastou sem nunca ter oferecido explicações suficientes. Todas as figuras de As coisas simples da vida tentam encontrar ou retomar seu rumo por meio de silêncios.
Yang costura esses personagens de maneira a princípio dispersa, desde o início (a primeira meia hora requer bastante atenção para que não se perca cada um de vista), no entanto aos poucos vai colocando-os em situações capazes de dialogar entre si. A sequência em que o menino, por exemplo, parece descobrir seu primeiro amor, numa sala em que se exibe um vídeo na escola, é marcante, assim como quando Nien-Jen Wu reencontra um antigo amor e vai à praia observar as ondas, transpondo uma nova melancolia – e as ondas do mar se contrapõem às da piscina, onde Yang-Yang se encontra em determinado momento. Ao mesmo tempo, Ting-Ting descobre uma paixão por Fatty (Chang Yupang), que estava tendo um relacionamento com Lili (Adrian Lin), uma de suas amigas. Já A-Di é colocado para fora de casa por Xian Yan e vai ao encontro da ex-amante Yun-Yun, e quem ele ainda se sente mais próximo.

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Por isso, esta é uma obra de lentas transições, pequenos achados onde nada parece existir, com um brilho de imagens absolutamente cotidianas, que se fortalecem quando vistas a distância, em que os personagens travam poucos diálogos, mas todos são essenciais para a descoberta de cada um deles. É notável como Yang influenciou uma leva de cineastas, como Hirokazu Koreeda e Tsai Ming-liang, embora este leve ao extremo do silêncio a observação sobre o cotidiano, acertando por vezes, como em Adeus, Dragon-Inn, e não tanto, como em Hora de partida.
Quando Yang desenha a procura pelo outro do pai, do filho e da filha vemos como cada instante que parece descompromissado na verdade fundamenta toda essa existência sobre a qual Yang-Yang se debruça quando vai tirar fotografias e tenta mostrar o que a outra pessoa não consegue enxergar. Embora comparado a Short Cuts, de Robert Altman, e tenha certamente tratamentos em comum, Yang é mais intimista e reservado, menos nervoso do que Altman, principalmente quando utiliza elementos do cenário – como semáforos em determinada sequência, a água da piscina e a flor que deve ser cuidada num vaso para um trabalho escolar – para tratar do próprio sentimento dos personagens. Ou seja, se Altman é muitas vezes direto, Yang dificilmente vai ao ponto principal sem uma série de elaborações antes. Do mesmo modo, não há proximidade com que outros diretores quiseram fazer a partir de Altman, como Paul Thomas Anderson; Yang sugere um cinema mais silencioso. Os poucos lugares enfocados (o apartamento, a escola, o clube, o bar noturno, por exemplo) conseguem, ao mesmo tempo, sintetizar a procura desses personagens pelo entendimento consciente de suas vidas, mesmo que Yang nunca deseje restringir o seu filme a momentos esparsos. Os encontros desses personagens e a tentativa de desaparecer de cada um estão relacionados diretamente com Fanny & Alexander, sobretudo quando há o espectro da morte, e não por acaso a narrativa delineia os extremos da vida.

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Apesar de ter algumas cenas em Tóquio, o filme, de modo geral, se passa em Taipé, e impressiona como o diretor consegue captar a solidão da cidade grande, mostrando os personagens do lado de fora onde se encontram ou simplesmente filmando-os a distância, numa festa ou no corredor de um edifício. Nisso, além de tudo, As coisas simples da vida guarda algumas das conversas mais reflexivas sobre a presença do cinema, sem nenhuma metalinguagem forçosa, próxima de entediar; são diálogos verdadeiramente introspectivos, sobre como o cinema pode se misturar com a vida e infuenciá-la de modo decisivo. Isso fica claro não apenas nos movimentos do menino Yang-Yang por sua escola, e sim, sobretudo, como se dá o desenlace do relacionamento de Ting-Ting com Fatty. Os momentos de reflexão não raramente coincidem com momentos mais descompromissados e mesmo divertidos, em meio à melancolia, sobretudo em ambientes que mostram casais ou quando NJ e Ota se reúnem num clube noturno, levando o espectador a um universo claramente reconhecível, de qualquer modo ainda imprevisível em sua simplicidade comovente.

Yi Yi, Taiwan/JAP, 2000 Diretor: Edward Yang Elenco: Nianzhen Wu, Elaine Jin, Issey Ogata, Kelly Lee, Jonathan Chang, Xisheng Chen, Suyen Ke Roteiro: Edward Yang Trilha Sonora: Kai-Li Peng Fotografia: Wei-han Yang Duração: 173 min. Produção: Shinya Kawai Distribuidora: Kuzui Enterprises

Cotação 5 estrelas

Chamada.Filmes dos anos 2000

 

 

 

Abaixo de zero (1987)

Por André Dick

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Alguns admiradores de livros adaptados para o cinema muitas vezes não querem seus personagens sendo utilizados por um roteirista e um diretor com visão própria. O escritor Bret Easton Ellis, autor dos livros que deram origem a Psicopata americano (a sátira ao universo executivo com Christian Bale) e Regras da atração, é um daqueles que possui mais leitores com têm resistência às adaptações de sua obra. Nada que se compare com a recepção de Abaixo de zero, filme dos anos 80, com Andrew McCarthy, então um ator de produções como A garota de rosa shocking, Jami Gertz – na mesma época, namorada do vampiro de Os garotos perdidos – e Robert Downey Jr. Dirigido por Marek Kanievska, que anos antes havia feito Memórias de um espião (estreia de Colin Firth), Abaixo de zero foi recebido, com raras exceções – justamente de dois dos maiores críticos, Roger Ebert, que o colocou em 11º na sua lista de melhores de 1987, e Janet Maslin – como problemática.
Imagine-se que numa época em que o cinema sobre adolescentes de John Hughes estava em alta e, apesar de sua qualidade, pouco lidava com uma concepção mais perturbada da fase que enfocava, principalmente em Gatinhas e gatões, Clube dos cinco e Curtindo a vida adoidado, a adaptação de Abaixo de zero tenha causado calafrios pela visão menos luminosa da juventude. A história mostra Clay Easton (McCarthy), que se formou com a namorada, Blair (Jami Gertz), e o amigo Julian Wells (Downey Jr.), e foi o único deles a seguir para a universidade. Por causa de uma descoberta transformadora, ele se afastou da namorada. No entanto, nas férias da universidade, está de volta ao lugar de onde veio, Beverly Hills, em Los Angeles, e reencontra os dois amigos numa festa cuja entrada é preenchida por inúmeros televisores, com imagens de videoclipes. Ele está para descobrir, por meio de Blair, que Julian se tornou um usuário frequente de drogas e deve 50 mil dólares ao traficante Rip (James Spader).

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Abaixo de zero é o filme que, sem o humor de John Hughes, traz uma visão muito impactante de sua época, uma mescla do poder levado pela MTV aos jovens com a questão de adentrar ou não no universo de constituir uma família ou trajetória acadêmica. Não apenas Downey Jr. surgia à época em filmes como Mulher nota mil (o filme mais fraco de Hughes) e De volta às aulas (como um excêntrico), como Spader se mostrava o principal vilão de sua geração, depois de A garota de rosa shocking (quase três décadas antes de emprestar a voz a Ultron). O diretor Kanievska, apesar do frequente uso de canções pop, uma característica dos anos 80, aposta mais numa trilha muito bela e atmosférica de Thomas Newman, com toques de melancolia, capaz de dialogar com esses personagens. Essa atmosfera é ampliada ainda mais pela excelente fotografia de Edward Lachman, cuja maior qualidade é captar um determinado momento, em Beverly Hillls, quando todos parecem querer ser astros e se comportam como tal – inclusive Clay em seu carro vermelho, viajando à noite com os amigos. Imagine-se algo que Sofia Coppola tentou em Bling Ring e não conseguiu justamente pelo desinterese que demonstrava pelos personagens.
Kanievska utiliza uma dramaticidade muito interessante não apenas nas cenas entre McCarthy e Downey Jr., que se complementam – o primeiro pela discrição, o segundo pelas brincadeiras –, mas no toque dado à resolução delas. Num momento em que Clay e Julian se encontram num parque, onde um menino brinca numa cadeira de balanço, eles voltam a um período em que se conheceram, idílico, antes desse universo conturbado com o qual se envolveram, como se voltassem no tempo. A cena é realizada de maneira talentosa por Kanievska, sobrepondo dois tempos diferentes.

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Para acentuar essa tentativa de voltar a um período inesquecível, o reencontro dos amigos acontece no período do Natal em que as famílias habitualmente se reúnem – porém, na obra de Kanievska, isso não acontece do modo mais previsível, e ele vai acumulando luzes da noite e os de lâmpadas, como Kubrick faria no excepcional De olhos bem fechados, embora este de forma ainda mais estilizada. Há uma sensação, na atmosfera de Abaixo de zero, que remete à outra adaptação de uma obra de Ellis, Regras da atração, também bastante criticado e excepcional. Tudo remete a algum sentimento de perda de um período ou a falta de vitalidade para enfrentar questões que se acumulam com o peso da idade.
Do mesmo modo, é angustiante uma conversa de Julian com seu pai, Benjamin (Nicholas Pryor, excepcional), numa cancha de tênis, e se pergunta como Downey Jr. não recebeu uma indicação ao Oscar de ator coadjuvante por sua atuação, a mais talentosa de sua trajetória ao lado daquela memorável de Chaplin. É notável o modo como o diretor acompanha o drama de Julian, ao mesmo tempo que coloca o casal, em determinado momento, numa espécie de universo paralelo (em que a música pop se contrapõe a uma familiar tocando piano), e depois andando às margens de uma piscina ou atrás dos vidros de uma mansão com arquitetura moderna: o diretor mostra que esses personagens parecem transparentes quando, na verdade, estão escondendo um drama particular que nem mesmo o limite da casa pode evitar. Blair é a peça-chave desta concepção: querendo se transformar numa modelo de respeito, ela não consegue transferir para si nenhum modelo de equilíbrio diante da própria situação e, quando pede por ajuda a Julian, está pedindo por ajuda a si mesma.

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Embora o filme não acentue a parte dramática, funcionam de maneira adequada as cenas em que Blair, Julian e Clay estão reunidos, pois, mesmo sem muitas informações a respeito desses personagens, há um elo de ligação plausível para o andamento da história. E, quando Rip aparece, Spader joga com seu estilo ameaçador, o elemento que pode afetar a amizade e trazer o problema central. Finalmente, Kanievska entende que o foco é o drama desses jovens, de suas responsabilidades e da rebeldia até certo ponto programada de antemão.
Em Abaixo de zero, existe, igualmente, um constante contraste entre a noite e o dia; as cenas noturnas parecem não apenas de um filme mais melancólico, como as cenas de sol e claridade (especificamente na cena em que Julian está deitado em um rochedo à beira-mar) parecem despertar também os personagens. A iluminação das casas noturnas ou dos restaurantes possui uma elegância incomum nos filmes do período, um cuidado estético que corresponde à caracterização de cada peça narrativa. As trocas ágeis de diálogos, embora não muitos, se deve claramente à presença de Harley Peyton no roteiro – que, anos depois, seria um dos responsáveis pela parte criativa de Twin Peaks, que elabora nos anos 90 o que Abaixo de zero subentende nos anos 80, por baixo de uma atmosfera ingênua e maravilhosa de uma Hollywood sonhada. Depois de uma condução muito forte, no embalo das atuações de McCarthy, Gertz e, principalmente, Downey Jr., não se importa que o filme termina com uma nota destoante. Basta que Abaixo de zero encontre o seu público quase três décadas depois, pelo impacto e qualidade.

Less than zero, EUA, 1987 Diretor: Marek Kanievska Elenco: Andrew McCarthy, Jami Gertz, Robert Downey Jr, James Spader, Michael Bowen, Nicholas Pryor, Tony Bill Roteiro: Harley Peyton Fotografia: Edward Lachman Trilha Sonora: Thomas Newman Produção: Jon Avnet Duração: 100 min. Distribuidora: Fox

Cotação 5 estrelas

Sicario – Terra de ninguém (2015)

Por André Dick

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Foi a partir de Os suspeitos, em 2013, que o diretor Denis Villeneuve, nascido no Canadá, se firmou, pelo menos junto ao público, como um dos cineastas a serem acompanhados no cinema moderno. Particularmente, O homem duplicado, baseado no romance de José Saramago, seu filme seguinte, parece uma obra ainda melhor realizada tecnicamente, com uma temática de busca pela personalidade, ou antipersonalidade. Mas é em Polytecnique, já filmado com uma excelência técnica apesar do baixo orçamento, qualidade que se repetia em Incêndios, mas neste sem o mesmo impacto, que Villeneuve vai buscar um diálogo para a personagem central de Sicario – Terra de ninguém, a agente do FBI Kate Macer, que trabalha no combate às drogas.
Depois de uma operação no Arizona em que ela é exposta a uma realidade mais chocante do que imaginava, ela é recomendada por seu chefe, Dave Jennings (Victor Garber), a se apresentar a Matt Graver (Josh Brolin), de uma divisão especial da CIA sob comando do governo, a fim de fazer parte de um grupo que irá combater o cartel de drogas no México, junto com o amigo Reggie Wayne (Daniel Kaluuya), com a ajuda também de Alejandro Gillick (Benicio Del Toro). Como a personagem central de Polytecnique, Kate não consegue se encaixar com tranquilidade num universo predominantemente masculino e ameaçador.

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Ela é convocada para a missão de encontrar traficantes, sem ao certo nunca saber o que de fato está realizando, mesmo que a pressuposta figura a ser combatida seja a do chefe de cartel Manuel Díaz (Bernardo P. Saracino). Seu ingresso na missão se deve a uma crença de que indo à origem do tráfico de drogas para os Estados Unidos pode estar modificando não apenas o direcionamento das vítimas que ele causa, como também pode estabilizar a vida como agente.
Auxiliado por uma fotografia habitualmente notável de Roger Deakins, seu habitual colaborador, Villeneuve tenta fazer uma mistura de Heli, Traffic, Onde os fracos não têm vezes e A hora mais escura. Principalmente o menosprezado (e ótimo) Heli serve de inspiração para muitos momentos de Sicario, inclusive na fotografia febril de Deakins, como se escolhesse sempre a luz natural do sol, sem intermediações, simbolizando o mormaço. Quando Villeneuve mostra a chegada em caminhonetes da equipe de Matt, Alejandro e Kate ao México, mais especificamente na cidade de Juárez, essa influência é perceptível, não apenas pelas imagens que lembram um documentário, como também por uma exposição assustadora de vítimas do tráfico de drogas. Se Escalante, no entanto, foi criticado em Heli pela violência mais crua, Villeneuve prefere atenuar as imagens com uma espécie de estilo que evoca um thriller. Ou seja, é como se Kate estivesse chegando a uma base militar de A hora mais escura – e há uma profusão de imagens que recorrem ao filme de Bigelow, principalmente aquelas que mostram prisioneiros por trás das grades. Não que já não houvesse elementos que poderiam dialogar com Bigelow em Incêndios, mas a pressão de Villeneuve tem forte influência do cinema daquela diretora.

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Em igual escala, a personagem Kate tem um diálogo com a detetive interpretada por Jessica Chastain no sentido de que não é possível saber da sua vida pessoal; ela é uma personagem que tem como limite a própria situação em que está inserida. Mesmo que os personagens sejam misteriosos, ainda melhores são as atuações de Blunt, Brolin e Del Toro, todos igualmente muito bem, assim comol Kaluuya, na persona de Reggie, amigo de Kate. Del Toro, de todos, é o mais atento ao que se pode chamar de configuração real de um personagem, com uma presença hipnótica em cena – como em 21 gramas e O lobisomem, ele atua muitas vezes apenas com o olhar –, embora Blunt consiga extrair muito de um papel bastante reduzido em termos de diálogo, entregando a melhor atuação desde Meu amor de verão, há mais de uma década atrás, quando ainda filmava mais na Europa. Brolin, por sua vez, mostra mais uma vez que se trata de um dos coadjuvantes mais centrais dos últimos anos, principalmente neste e em Vício inerente.
Impressiona como Villenuve tem uma variação no estilo, pois Sicario se sente completamente diferente de seus outros filmes no tom visual e em seu roteiro, além do uso de uma música atmosférica de Johan Jóhannsson, dialogando com o peso das imagens, principalmente aquelas em que as locações são vistas do alto (num diálogo com Amor sem escalas). Villeneuve tenta sempre contrapor os personagens isolados a cenários semi-habitados ou que parecem (apenas parecem) abandonados, a exemplo de uma rodoviária noturna, quando também dialoga com Traffic, de Soderbergh.
O roteirista Taylor Sheridan tem certa dificuldade de explorar os caracteres dos personagens, por outro lado o que seu roteiro não entrega Villeneuve e Deakins transformam em sugestão visual – e muito forte, a começar por uma passagem pela fronteira dos Estados Unidos com o México, cercada por uma tensão desenfreada. E mantém-se a essência: este é um dos melhores filmes sobre o tema de combate às drogas.

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Há uma dualidade nunca resolvida por Villeneuve e os personagens não sabem exatamente se são bons, ou se apenas sua finalidade – a eliminação do tráfico – é boa, com métodos falhos. Sicario se fixa sempre nos procedimentos a serem adotados, e eles podem reservar uma indefinição quanto à finalidade, o que fica subentendido pelo próprio título, que pode tanto remeter ao uso de armas escondidas quanto, etimologicamente, ao estado em que os personagens estão mergulhados desde o início e à finalidade com que alguns deles podem atuar neste cenário desolador. Habitualmente, os personagens principais dos filmes de Villeneuve são solitários, e Kate é um exemplo bastante propício para estender esse argumento – como também a mãe de Incêndios.
Para ela, qualquer fuga às tarefas de agente podem representar um perigo, como se ela não estivesse preparada para a realidade. O relacionamento de amizade que estabelece com Alejandro parece mais ligado a uma insegurança familiar e Villeneuve é muito efetivo ao despertá-la na narrativa de Sheridan. Ainda assim, é notável como o cineasta consegue criar uma cena de tensão num determinado local capaz de evocar a transição e a pulsação nervosa de James Cameron com a câmera em Aliens. Villeneuve utiliza o cenário para mostrar como a personagem não pode se libertar da verdadeira natureza própria. Ora, o filme não trata de uma mulher oprimida ou não – trata-se de alguém que quer seguir as leis num universo onde não há leis. Na visão de Villeneuve, a guerra a ser mostrada e combatida em Sicario está mais próximo do que se imagina, evidentemente mais ainda para a diplomacia dos Estados Unidos que parece despreocupada com o que acontece a seu lado. Sicario se concentra em determinadas ações e, ao mesmo tempo que mostra uma possível realidade, lança o espectador numa tentativa de refletir longe do cenário apresentado sem, no entanto, oferecer qualquer alívio completo. Mesmo com percalços no roteiro, é cinema de alta qualidade.

Sicario, EUA, 2015 Diretor: Denis Villeneuve Elenco: Emily Blunt, Benicio Del Toro, Josh Brolin, Jon Bernthal, Jeffrey Donovan, Victor Garber, Raoul Trujillo, Maximiliano Hernández, Daniel Kaluuya Roteiro: Taylor Sheridan Fotografia: Roger Deakins Trilha Sonora: Jóhann Jóhannsson Produção: Basil Iwanyk, Edward McDonnell, Molly Smith, Thad Luckinbill, Trent Luckinbill Duração: 121 min. Distribuidora: Paris Filmes Estúdio: Black Label Media / Thunder Road Pictures

Cotação 4 estrelas

 

A colina escarlate (2015)

Por André Dick

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O diretor mexicano Guillermo del Toro tem como uma de suas características a imaginação ligada a diferentes gêneros associados ao fantástico. Depois de O labirinto do fauno, na verdade uma fantasia com elementos reais, enfocando a Guerra Civil Espanhola, com uma violência incomum nesse gênero, ele parece, no entanto, ter sido associado ao gênero do terror e do suspense. Se há um filme dele com elementos fortes desses gêneros é Cronos, ainda dos anos 90, e um pouco de Mutação, primeira obra que filmou em Hollywood. Esta decepção original nos Estados Unidos o levou de volta para o México, para filmar sua maior realização, A espinha do diabo. Neste filme, certamente o elemento mais assustador está em seu título, pois, na verdade, trata-se de um drama com elementos de suspense focando um orfanato também durante a Guerra Civil Espanhola. Em seguida, com seu díptico Hellboy, ele conseguiu associar seu clima fantasioso a uma história de super-herói incomum, e ainda ajudou no roteiro da trilogia O hobbit (que inicialmente também dirigiria). E mesmo em Círculo de fogo, quando ele teria fugido, segundo parte da crítica, às suas origens, ele sempre esteve de acordo com elas.
Por isso, quando se analisa que Del Toro novamente foge a muitos de seus elementos em A colina escarlate, talvez possa se colocar em desconfiança o fato de que ele quer ser um artista do terror quando, na verdade, quando se aproveitou desse gênero, sempre o mesclou com outros. A colina escarlate, portanto, vem da imaginação de um dos cineastas mais originais já vindos do México.

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O interessante é como Del Toro consegue utilizar determinados cenários assustadores para, na verdade, falar dos temas que não aparecem na superfície. Em A colina escarlate, ele mostra uma jovem, Edith Cushing, que perdeu a mãe muito cedo e deseja ser escritora. Morando com o pai, Carter (Jim Beaver, excelente), ela é cortejada por Alan McMichael (Charlie Hunnam, adequado), um médico, até que chegam à sua cidade Thomas (Tom Hiddleston) e Lucille Sharpe (Jessica Chastain). Thomas pretende que invistam num projeto ao qual se dedica há anos – e vem da Europa aos Estados Unidos a fim de escapar da falência. O pai de Edith fica desconfiado quando ele passa a ter intenções de um relacionamento com ela e coloca um detetive, Holly (Burn Gorman), para investigá-lo. A relação de Thomas com a irmã é baseada em algum mistério ligado ao passado, e, quando Lucille deve ir morar com ambos na mansão Allerdale Hall, no alto de uma colina, tudo parece ficar mais nebuloso.
A composição de Del Toro para A colina escarlate não é menos notável do que o cuidado que tinha com a fotografia em A espinha do diabo e com os efeitos especiais esplendorosos de Círculo de fogo. Esta mansão tem por baixo uma barro vermelho que os Sharpe pretendem vender – e tanto pode remeter à ameaça do lugar quanto à pena da escrita e à lacradura de cartas. O filme, nesse sentido, é sobre uma escritora que não tem nenhuma vivência exatamente real para tratar de seu romance de fantasmas, quando ainda não entende exatamente o que são as pessoas que a cercam. Quando ela se depara com uma mansão em que até mesmo o transporte da água até a banheira desperta certo pânico, ou cujas portas podem ranger a noite inteira, e ainda há um vento que pode amedrontar a noita toda, Edith parece que não depende tanto da literatura pois já está inserida nela. Por isso, talvez não seja desperdício dizer que a narrativa remete a clássicos como O morro dos ventos uivantes e a autores como Lovecraft, escritor que certamente inspirou Del Toro na transição de gêneros, e Mary Shelley, de determinada literatura gótica.

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Este roteiro muito mais sugestivo do que colocado em palavras foi assinado em parceria de Del Toro com Matthew Robbins, já colaboradores em MutaçãoNão tenha medo no escuro, e de um dos próximos projetos do cineasta mexicano, Pinóquio. Robbins ganhou o prêmio de melhor roteiro em Cannes com Louca escapada, o primeiro filme oficial de Spielberg (uma vez que Encurralado foi feito para a TV), além de ter participação não creditada nos escritos de Contatos imediatos do terceiro grau, E.T., e ter dirigido dois cults na década de 80, O dragão e o feiticeiro e O milagre veio do espaço. Possivelmente seja de Robbins – é característica desses projetos – a fluência do roteiro de A colina escarlate e sua capacidade de, por meio de um desenho de produção gigantesco de Thomas E. Sanders (Drácula de Bram Stoker) e que insere o espectador no cenário retratado, além da fotografia elaboradíssima de Dan Laustsen (que havia trabalhado com o diretor em Mutação), também desenhar uma camada psicológica para os personagens.
Desde o início, com Lucille Sharpe interessada em casulos de mariposas, é possível entender que A colina escarlate, também pela personagem central ser jovem, está nessa mansão para que conheça a maturidade para a qual apenas a literatura não poderia transportar. É interessante, nesse sentido, como a sugestão de uma aproximação com Thomas depende sempre de alguma fantasia com alguém que pode ser o escolhido. O próprio figurino e o cabelo da personagem passam a sugerir uma determinada inocência e dependência, quando no início do filme ela se mostra independente, inclusive da aproximação de Alan. A personagem de Lucille representa certamente a ameaça que representa a iminência do relacionamento – e em determinado momento ela estende um livro que Edith nega.

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O vemelho de sangue depois da tosse pode não ser exatamente a tuberculose que levava os poetas românticos – e sim a maldade humana. Ou seja, a personagem de Edith, por causa da atuação de Mia Wasikowska – uma atriz que encadeou alguns grandes trabalhos, em O duplo, Mapas para as estrelas e Madame Bovary, depois do início hesitante em Alice no país das maravilhas –, tem uma transformação interessante ao longo da história. E a partir de determinado momento ela parece ter o mesmo dilema da personagem Jane Eyre, curiosamente também interpretada por Wasikowska numa adaptação recente.
O que se destaca, porém, é a maneira como Del Toro dispõe o lugar, com os quartos na parte de cima, a cozinha no térreo e folhas e neve que não param de adentrar nesse lugar, como se ele não pudesse segurar a natureza, assim como cada um dos personagens não pudesse esconder as suas diferentes faces. E, finalmente, há o porão enigmático, onde Edith tentará descobrir o mistério que cerca a mansão e se reproduz nos irmãos Sharpe. Esses ambientes são preenchidos principalmente pela figura de Lucille, numa atuação excepcional de Jessica Chastain, mesmo depois de um início indefinido em razão do sotaque acentuado, e Tom Hiddleston e seu talento habitual se equilibra entre as duas performances femininas com naturalidade. Afinal, o filme é sobre o embate entre duas mulheres: uma que sobrevive de um certo passado que pode ser glorioso, ligado a esta mansão, a outra uma mulher que procura a independência e a literatura como forma de subsistir em meio a um mundo em que os homens se reúnem ao redor da mesa para decidir sobre as novas invenções que devem ganhar espaço. Para Del Toro, a maioria dos homens são fantasmas que tentam sobreviver de uma tradição, e a mudança pode ser exatemente a convivência com os outros. Ele aponta isso com a culpa ligada a um passado em que a perda é, por um lado, da natureza e, por outro, pela loucura. Quando o cineasta trabalha com imagens como se fossem símbolos – Edith caminhando pela casa escura com um candelabro atrás da infância que parece ter perdido ameaçada por fantasmas, o barro vermelho querendo sair à superfície, o fantasma como uma ameaça ao longe –, A colina escarlate chega ao que mais imaginava: é resultado de um diretor que entende substancialmente da fantasia e de temores humanos que podem existir nela.

Crimson Peak, EUA, 2015 Diretor: Guillermo del Toro Elenco: Mia Wasikowska, Jessica Chastain, Tom Hiddleston, Charlie Hunnam, Jim Beaver, Burn Gorman, Leslie Hope, Doug Jones, Jonathan Hyde, Bruce Gray, Emily Coutts Roteiro: Guillermo del Toro, Matthew Robbins Fotografia: Dan Laustsen Trilha Sonora: Fernando Velázquez Produção: Callum Greene, Guillermo del Toro, Jon Jashni, Thomas Tull Duração: 119 min. Distribuidora: Universal Pictures Estúdio: Legendary Pictures

Cotação 4 estrelas e meia

 

Luz silenciosa (2007)

Por André Dick

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Os diretores mexicanos mais conhecidos atualmente possivelmente sejam Alfonso Cuarón e Alejandro González Inãrritu, por terem recebido o Oscar de melhor direção, e Guillermo del Toro, por sua influência no meio de produções ligadas à fantasia. No entanto, desde o início deste milênio, possivelmente o diretor mexicano com uma obra mais ligada ao cinema com influências de Stanley Kubrick, Tarkovsky e Béla Tarr é outro: Carlos Reygadas. Nascido em 1971, este cineasta estreou em 2002 com Japão, um filme enigmático claramente baseado em Tarkovsky e que hoje pode antecipar um diálogo com Ceylan, principalmente o de Winter sleep, ao tratar de um homem que chega a um limite e deseja modificar o rumo de sua vida, depois de se abrigar no hotel de um topo de montanha. O estilo de filmagem de Reygadas, lento e introspectivo, faz com que os personagens tenham uma ligação diretamente com o ambiente em que estão ou habitam. Essa característica ficaria clara no seu segundo longa, Batalha no céu, obra polêmica sobre o embate entre camadas sociais em seu país por meio das figuras de um motorista envolvida no sequestro de um bebê com sua esposa e da filha de um militar.

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Exibido no Festival de Cannes com uma recepção conturbada, o filme é bastante denso no modo como enfoca esses personagens, com cada sequência elaborada com um cuidado especial. Reygadas é especialista em extrair significados de cenas corriqueiras, e o modo como filma a cidade e o campo, do alto de uma montanha, ou os símbolos que cercam cada personagem amplia a percepção do espectador. Embora pareça, às vezes, bastante ousado, o cineasta não se deixa levar pelas aparências: a história mostra claramente como seu olhar está amargurado diante de uma realidade que aparenta ser incontornável, dependendo da mudança ampla, o que nem sempre pode acontecer. E, ainda assim, ele não se mostra panfletário, assim como Heli, o qual produziu, na medida em que é uma obra que deixa o entendimento a cargo de cada espectador. Trata-se de um dos grandes filmes da década passada, como justamente o terceiro de Reygadas, Luz silenciosa, também lançado no Festival de Cannes, onde recebeu o Prêmio do Júri, junto com Persépolis.
A partir deste, pode-se dizer que Reygadas, além de influenciado por Terrence Malick, sobretudo aquele de Dias de paraíso (ou Cinzas do paraíso, se utilizarmos o título usado no lançamento para cinema), também influenciou o diretor norte-americano: Luz silenciosa possui cenas que certamente caberiam em A árvore da vida e Amor pleno, sem demérito para nenhum dos dois diretores. Ao centralizar sua narrativa numa comunidade Menonita, Reygadas não faz o que Peter Weir mostra em A testemunha, que é de fato usar os símbolos dos Amish para criar um contraste com a violência contemporânea (e que Harrison Ford e Kelly McGillis traduzem tão bem por meio de seus personagens), e sim tenta transformar essa comunidade, cuja língua é o Plautdietsch, próxima do alemão, e localizada em Chihuahua, numa espécie de aparente contraposição ao mundo moderno de maneira ampla, sempre inquieto.

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Depois de acompanharmos um fabuloso nascer do sol, vemos Johan (Cornelio Wall) com sua mulher, Esther (Miriam Towes), e seus seis filhos, na fazenda onde moram, sentados na mesa, rezando – em seguida, todos saem e ele fica, em choro contido. Há certamente uma crise entre o casal. Logo adiante, quando ele conta a um amigo, Zacarias (Jacobo Klassen) um caso que está tendo com Marianne (Maria Pankratz), e sua mulher tem conhecimento, fica explicado não apenas o motivo, como a síntese dessa história. A tradição familiar, no meio bucólico, é abalada pela traição e pela possível dissolução da família. Por isso, seu encontro com a amante no alto de uma montanha e, em seguida, o foco sobre os filhos dele se banhando num rio – precursor certo de imagens de A árvore da vida – possui também o símbolo dessa mudança inesperada. Nada de extraordinário acontece, porém sabemos que existe uma mudança em curso, que Johan tenta compartilhar com o pai (Peter Wall), que promete não contar para a sua mãe (Elizabeth Fahr). As plantações do lugar, nas quais Johan e Esther trabalha,, também revelam esse dia a dia controlado e repetitivo. Segue ao calor do verão um inverno rigoroso – e o caso entre Johan e Marianne continua, desta vez numa casa rigorosamente simétrica. Tudo soa ao mesmo tempo calculado e solto; os atores são integrantes dessa comunidade e Reygadas não está exatamente interessado em suas emoções, devido à tradição. Esse olhar sobre uma determinada comunidade também diz muito do diálogo que tem Luz silenciosa com A palavra, de Dreyer, clássico de 1955, cuja fotografia em preto e branco é tão luminosa quanto a fotografia de Alexis Zabé utilizada aqui.
Reygadas, além de seu talento para compor imagens inesquecíveis, mostra, como em seu filme seguinte, Luz depois das trevas, uma inclinação para uma análise entre o religioso, o místico e o provocador. Enquanto Batalha no céu e Luz depois das trevas se sentem mais voltados ao corpo, não deixa de haver a mesma tentativa de obter uma transcendência que há em Luz silenciosa. A sequência em Johan se encontra com Marianne numa casa, além de belíssima sob o ponto de vista técnico, contempla os símbolos que representam esses seres humanos que se movem com dificuldade durante toda a narrativa: eles parecem procurar a mesma luz do amanhecer do sol ou, antes, das estrelas, mas conseguem apenas entender um ao outro num plano afastado de toda a realidade. Não por acaso, Reygadas filma as estradas do lugar como se elas levassem a esse pôr ou nascer do sol, e o que no início eram um céu completamente límpido se torna mais fechado com o rigor do inverno, para encadear novamente a luminosidade de outra estação.

Stellet Licht/Silent light, MEX/ FRA/HOL, 2007 Diretor: Carlos Reygadas Elenco: Cornelio Wall Fehr, Elisabeth Fehr, Jacobo Klassen, María Pankratz, Miriam Toews, Peter Wall Roteiro: Carlos Reygadas Fotografia: Alexis Zabé Produção: Carlos Reygadas, Jaime Romandía Duração: 127 min.

Cotação 5 estrelas

Chamada.Filmes dos anos 2000

 

 

Peter Pan (2015)

Por André Dick

Peter Pan 6Se o espectador acompanha adaptações para o cinema de obras literárias, sabe que uma das que mais receberam esse bônus foi Peter Pan, de James Matthew Barrie. Ela já foi lançada em diferentes vertentes, embora a mais conhecida seja a clássica animação dos estúdios Walt Disney feita nos anos 50. Nos anos 90, Spielberg procurou renová-la trazendo-a para o universo moderno, em Hook – A volta do Capitão Gancho e em 2003 quem a adaptou foi o australiano P.J. Hogan.
Na adaptação de Joe Wright, o criador de peças como Desejo e reparação e o ótimo Anna Karenina, a história se passa durante a Segunda Guerra Mundial, quando Londres está sob ataque frequente. Num orfanato coordenado por freiras pouco acolhedoras, Peter (Levi Miller) é cuidado depois de ser abandonado pela mãe, Mary (Amanda Seyfried), e tem como melhor amigo Nibs (Lewis MacDougall). A rotina do lugar e a constante falta de comida, devido ao racionamento provocado pela guerra ou, segundo Peter, por uma das freiras, Madre Barnabas (Kathy Burke), estar estocando os alimentos num lugar escondido, fazem com que se imagine um universo à parte e, principalmente, em reencontrar a mãe.  Daí é um passo para que surja um navio de piratas no céu de Londres, em meio aos ataques, para capturar algumas crianças do lugar. Possivelmente não seja preciso muito conhecimento do mundo da fantasia de Barrie para perceber que este filme eleva à máxima potência a estranheza do universo de Peter Pan.

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Quando todos, finalmente, vão para a Terra do Nunca, e o menino herói precisa enfrentar a exploração numa mina, num diálogo claro com Indiana Jones e o templo da perdição, sob o comando de Barba Negra (Hugh Jackman), com o auxílio de Bishop (Nonso Anozie), o filme traz até mesmo um determinado hino do Nirvana à cena. As crianças, trabalhando como mineradores, devem encontrar o pó de pixum, que seria o pó das fadas. No lugar, Peter faz amizade, mesmo que forçada, com James Hook (Garrett Hedlund), sempre acompanhado pelo braço direito Sam Smiegel (Adeel Akhtar).
O que se tem dito, com base neste conjunto de cenas, é que a narrativa se perde. Se há, no entanto, fantasia capaz de misturar As aventuras do Barão de Münchausen (de modo geral, do universo de Terry Gilliam), Avatar e a profusão de cores que Wright já apresentava em Anna Karenina, é esta. Dificilmente se percebe em outras obras uma tentativa de fazer com que um clássico se reproduza em sua essência, mesmo que com liberdades evidentes, constuindo-se num prólogo. Este Peter Pan não apenas inicia com uma homenagem a um dos clássicos de Guillermo del Toro, passado num orfanato durante a Guerra Civil Espanhola, com suas bombas ameaçadoras caindo do céu, como leva o espectador a um encontro com uma certa indefinição entre gêneros que proporciona suas melhores características.

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Além disso, temos o elenco, sustentado pela revelação infantil Levi Miller, que convence durante todo o filme e nunca soa um personagem sob encomenda para tentativa de venda de brinquedos, assim como Jackman está particularmente bem como o vilão, e Garrett Hedlund finalmente tem uma nova chance de mostrar o talento comprovado como Dean Moriarty em Na estrada, desta vez com elementos de humor e um certo overacting sem prejudicá-lo no contexto. E Rooney Mara, que surge no papel coadjuvante de Tiger Lily, não desaponta por sua qualidade dramática já revelada em outro registro no ótimo Millennium, apesar de estar visivelmente desconfortável com sua premissa entre ser uma guerreira e um interesse amoroso. Wright põe em movimento esse elenco com a colaboração de seu diretor de fotografia habitual Seamus McGarvey e da trilha sonora excelente de John Powell, que evoca o alcance da imaginação proporcionada pelos figurinos, design de produção e efeitos especiais não menos do que notáveis.
Peter Pan contrapõe, de forma elegante, o ambiente cinza da Segunda Guerra Mundial com um universo de imaginação em grande escala de cores e variações. Há, igualmente, uma opção de Wright em fazer as cenas sem violência, mas sem abdicar de uma imaginação própria – principalmente numa determinada cena de confronto do Barba Negra. Claro que Peter Pan também tem outra qualidade bastante atrativa: embora não adapte Barrie de forma fiel, servindo tudo como um prólogo da história oficial, ele consegue estabelecer uma conexão entre o drama pessoal do personagem de querer reencontrar a mãe. Não deixa de ter uma clara relação com o perturbador Hanna, em que Wright expunha uma jovem aos experimentos que a transformaram numa máquina de guerra.

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Toda a história de Peter Pan gira em torno do menino querendo encontrar a sua mãe. O fato de a história de Barrie ser conhecida como a do menino que não queria crescer mostra que, na verdade, ele está sempre ligado a uma infância e à figura materna. No entanto, ao localizar este filme durante a Segunda Guerra e as crianças serem transformadas em mineradoras por um pirata explorador, e mesmo quando estão na Terra serem punidas, mostra que Wright indica a infância eterna como uma espécie de fuga aos problemas do dia a dia. É uma espécie de elogio localizado ao escapismo, que Wright explora por meio de cores e formas extraordinárias. Há três anos, John Carter foi rechaçado e fazia as mesmas tentativas de entregar um material diferenciado.
Se em alguns momentos o roteiro de Jason Fuchs não tem os diálogos mais explorados, pelo menos na caracterização dos personagens, nunca o faz por falta e sim por um ritmo contínuo – e avaliar que Peter Pan nesse sentido teria problemas de montagem ou seria tedioso é inevitavelmente uma surpresa. Do mesmo modo, ele tem algumas soluções criativas de plasticidade belíssima, como a memória que traz uma árvore (e não se trata de um ent) ou o momento em que por um lado temos a ameaça de um crocodilo e a presença tranquila de uma sereia (Cara Delevingne). Assim, num escopo abrangente, Wright trabalha com imagens como se fossem resquícios de uma infância perdida, seja no vislumbre de um navio de pirata encalhado ou em pássaros gigantes que parecem trazer apenas seu esqueleto como se fossem esboços inacabados, ou simples caravelas que flutuam no espaço e parecem vigiar com luzes à noite como se estivéssemos numa versão adiantada do novo Blade Runner, além de mostrar batalhas entre elas e aviões da Segunda Guerra com a profundidade daquelas que vemos em Invencível, e cenas no fundo das águas capazes de evocar um lugar desconhecido – quando as águas recuperam, para Wright, todas as lembranças, remetendo ao fio da corda em que Peter Pan fica em determinado momento preso no espaço, como se estivesse renascendo. Nesse sentido, esta visão para o clássico de Barrie se transforma numa fantasia memorável.

Pan, EUA/Reino Unido, 2015 Diretor: Joe Wright Elenco: Hugh Jackman, Garrett Hedlund, Rooney Mara, Levi Miller, Amanda Seyfried, Adeel Akhtar, Nonso Anozie, Cara Delevingne Roteiro: Jason Fuchs Fotografia: Seamus McGarvey Trilha Sonora: John Powell Produção: Greg Berlanti, Paul Webster, Sarah Schechter Duração: 111 min. Distribuidora: Warner Bros. Estúdio: Berlanti Productions

Cotação 4 estrelas

 

Perdido em Marte (2015)

Por André Dick

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A qualidade do trabalho de Ridley Scott parece ainda apenas associada aos seus primeiros filmes, como Alien e Blade Runner, como se depois disso não tivesse realizado outros grandes filmes. Apenas nos anos 2000, ele fez Gladiador, Falcão negro em perigo, Os vigaristas, Cruzada, Um bom ano e O gângster, obras que revelam uma variação muito grande de dicção, e há três anos apresentou Prometheus, colocado de forma surpreendente como uma de suas decepções. Quando um cineasta como Scott, certamente um dos maiores artesãos já surgidos em Hollywood e que continua, quase octogenário, produzindo filmes, faz uma superprodução como Êxodo: deuses e reis, parece apenas para passar o tempo e um mero blockbuster, mas junto consigo sempre traz uma concepção visual extraordinária. A partir daí, adaptar o livro de ficção científica The martian, para o cinema se transformou no seu grande projeto antes da continuação de Prometheus.
Escrito por Andy Weir, Perdido em Marte teve a adaptação de Drew Goddard, que fez em parceria com Joss Whedon o roteiro da sátira aos filmes de terror O segredo da cabana e do pouco recomendado Guerra Mundial Z. A narrativa começa com uma expedição precisando sair de Marte às pressas. Liderada por Melissa Lewis (Jessica Chastain), tem em seu grupo Rick Martinez (Michael Peña), Beth Johanssen (Kate Mara), Chris Beck (Sebastian Stan) e Axel Vogel (Aksel Hennie), além de Mark Watney (Matt Damon), que acaba sofrendo um contratempo e fica isolado no planeta vermelho.

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Que Marte é um planeta dos mais propícios a mistérios e pesquisas, isso está provado em vários filmes, e mesmo já foi colonizado em O vingador do futuro, antes de se descobrir recentemente a presença de água em sua superfície. Scott tem uma ideia muito clara da imensidão do universo, como já provou em Alien e Prometheus. Ele joga esses mistérios na narração de Watney, quase sempre falando para a câmera em que deseja deixar gravada a sua experiência. Como sobreviver em Marte? De que modo fazer a comida durar o tempo suficiente para que possa ser resgatado pela Nasa? Entre os integrantes da Nasa, temos o diretor Teddy Sanders (Jeff Daniels), Annie Montrose (Kristen Wiig), Mitch Henderson (Sean Bean) e o responsável pela expedição, Vincent Kapoor (Chiwetel Ejiofor), além de seu auxiliar Bruce Ng (Benedict Wong), enquanto Mindy Park (Mackenzie Davis) é quem acompanha os movimentos de Watney.
Perdido em Marte possui um cuidado muito grande em retratar o planeta vermelho, principalmente em sua superfície arenosa e entrega a Watney alguns momentos de quem precisa descobrir o fogo (neste caso, o oxigênio) para poder sobreviver mais do que os mantimentos indicam. Ele também precisa fazer o reconhecimento da área e lembrar de possíveis referências no planeta que possam fazer com que estabeleça um contato com a Terra. A diferença do personagem de Watney para outros recentes, especificamente da doutora interpretada por Sandra Bullock em Gravidade e do fazendeiro astronauta feito por Matthew McConaughey em Interestelar, é especificamente o seu descompromisso com alguma angústia que possa evocar o espaço sideral e o isolamento em Marte.

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É visível que Scott quis fazer um filme diferente dessas duas referências recentes e, mesmo que Perdido em Marte tenha um lado espetacular visual próximo desses dois (principalmente nos momentos em que se concentra no espaço), não chega próximo da densidade dos projetos de Cuarón e Nolan. Isso, por um lado, torna o filme mais bem-humorado, inclusive por sua trilha sonora, e mais centrado em discussões da Nasa, principalmente de Sanders, Montrose e Kapoor. Ejiofor, principalmente, está ótimo como o coordenador do projeto de viagens a Marte e consegue dar o toque mais humano do filme de Scott, mesmo que Watney seja o homem em missão e a ser resgatado. Embora seus diálogos com Sanders e Montrose não rendam como seria de se esperar, deixando Wiig lamentavelmente subaproveitada, Kapoor é o elo de ligação entre Watney e a Nasa. Quando em determinado momento surge o personagem de Rich Purnell, interpretado por Donald Glover, há também mais agilidade em cena.
Em alguns momentos, Perdido em Marte também se ressente claramente de um núcleo mais emocional, que Scott trabalhou tão bem em filmes como Gladiador, Um bom ano e Thelma & Louise. O personagem de Watney se apresenta sempre por meio da descrição do que está ocorrendo com ele, no entanto não se tem uma noção mais exata de seu passado e de sua relação com o restante da equipe. Como o filme inicia rapidamente, com uma tempestade que remete claramente a Prometheus, e Scott se aprimora ao lançar os personagens num cenário ameaçador, não há tempo o suficiente para que conheçamos os personagens. E, depois disso, o roteiro de Goddard e a montagem de Pietro Scalia – habitual colaborador de Scott e responsável pelo filme mais bem montado que já vi, particularmente, JFK – deixam a equipe desparecer do filme por um tempo longo demais, a fim de que haja uma conexão emocional mais sustentada com Watney, o companheiro deixado em Marte por se achar que estava morto, além de não estabelecer rapidamente uma conexão com a Nasa.

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É como se a equipe do projeto fosse alijada do roteiro – não apenas ela, como também coadjuvantes como Chastain, Peña e Mara, que poderiam contribuir muito –, e isso sinaliza, em parte, para certo afastamento das emoções guardadas por Watney: como não se tem ligação dele com pessoas que o cercavam e mesmo com pessoas da Terra, é como se ele não estivesse mais do que já costumeiramente está: só (o que tornava Náufrago, com Tom Hanks, tão surpreendente, na sua indefinição de que se iria ou não reencontrar o seu amor). Nesse sentido, parece se perder em parte a essência de um filme como este: de que ele está num ambiente desconhecido e solitário. Ao reagir com bom humor à situação, dá espaço a alguns momentos realmente engraçados, no entanto extrai do personagem a sua preocupação principal, que, de fato, é sobreviver. Matt Damon é um ótimo ator, e ainda assim não temos uma interpretação propriamente dita em sua essência: o roteiro simplesmente não o ajuda, e sua curiosidade pelas coisas se revela apenas autoafirmação. Neste sentido, Perdido em Marte elabora sua trama mais em cima do que Watney pode fazer a partir de seus conhecimentos científicos para lidar com as adversidades – e o que ele faz não é pouco, e pode também dialogar com outras peças conhecidas de homem sobrevivendo em ambiente inóspito. Quando, por um vislumbre de Scott e de atuação de Damon, a emoção surge, no seu ideal de sobrevivência, é muito claro que Perdido em Marte sobe de patamar (como, por exemplo, (spoiler), a troca de mensagens pública entre Watney e a Nasa).
Há alguns filmes de Scott em que a conexão dos personagens não é bem solucionada – o próprio Êxodo –, e com Perdido em Marte não é diferente, principalmente pela quantidade que apresenta deles (em torno de vinte), porém a grandiosidade costuma ser uma de suas saídas. Em Cruzada, havia algumas irregularidades no tratamento histórico, por exemplo, mas os cenários fantásticos e a atmosfera faziam a estrutura do filme se movimentar por todos os lados, especialmente em sua versão estendida. O mesmo vale para Prometheus, com uma meia hora final não menos do que fantástica para os admiradores de boa ficção científica, e no caso de outros filmes de Scott menos estimados, a exemplo de A lenda (dos anos 80) e 1492 (com uma fotografia esplendorosa e trilha sonora de Vangelis). Em Perdido em Marte, por sua vez, Scott pretende dar mais espaço a como o ser humano pode ver a ciência e se utilizar dela como própria fonte de vida, com seus conhecimentos de gerações longínquas. Por isso, em sua meia hora final, Scott parece conduzir seu filme ao que há de melhor nele: uma espécie de sublimação da tentativa de enfrentar as estrelas como quem está disposto a sobreviver e retomar seu contato com o que ainda está prestes a brotar do solo como se fosse a primeira vez.

The martian, EUA, 2015 Diretor: Ridley Scott Elenco: Matt Damon, Jessica Chastain, Chiwetel Ejiofor, Jeff Daniels, Kate Mara, Sean Bean, Michael Peña, Mackenzie Davis, Kristen Wiig, Donald Glover, Sebastian Stan, Sam Spruell Roteiro: Drew Goddard Fotografia: Dariusz Wolski Trilha Sonora: Harry Gregson-Williams Produção: Mark Huffam, Michael Schaefer, Ridley Scott, Simon Kinberg Duração: 141 min. Distribuidora: Fox Film do Brasil Estúdio: Genre Films / International Traders / Mid Atlantic Films / Scott Free Productions / Twentieth Century Fox Film Corporation

Cotação 3 estrelas

Pixels – O filme (2015)

Por André Dick

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Para muitos, Pixels – O filme é quase uma ofensa pessoal, uma espécie de descida perigosa a um nível de gratuidade ameaçador, embora acompanhada pela tranquilidade de ter todo o Rotten Tomatoes ao seu lado. Quer se mostrar inteligente aos amigos e familiares? Se viu, diga simplesmente que é ruim. Algumas vezes o motivo é Adam Sandler, que tem bons momentos em filmes como Embriagado de amor, Tratamento de choque, EspanglêsComo se fosse a primeira vez e Homens, mulheres e filhos, e o caminho, cada vez mais presente, de querer homenagear os anos 80 de forma contínua, neste caso os video games.
Seres extratrerrestres interpretam uma fita com imagens de jogos de video game, em que há peritos em arcade, lançada junto com uma cápsula ao espaço nos anos 80 como uma espécie de convite a uma guerra – e decidem invadir a Terra usando as mesmas imagens desses jogos, em movimento vivo e grandioso. Pode-se dizer que as crianças não se interessam por esses games dos anos 80 – bem, elas se interessam por outros, que dialogam com esse universo. O presidente Will Cooper (Kevin James) chama o seu amigo de infância, Sam Brenner (Adam Sandler), para combater essa invasão, ao lado de Ludlow Lamonsoff (Josh Gad) e Eddie Plant (Peter Dinklage). Will e Sam eram amigos desde essa década – o filme inicia exatamente em 1982, ano de E.T. – e participavam de torneios de video games, em que Plant era o inimigo a ser batido.

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Quando a terra passa a ser ameaçada, o presidente precisa mostrar serviço – pois seus índices de aprovação estão baixos – e a tenente-coronel Violet Von Patten (Michelle Monaghan) lhe serve de guia, enquanto Brian Cox é o Almirante Porter, não tão interessado na resolução de todo o problema. Nesse universo, Von Patten estabelecerá ligação com Sam, principalmente depois de compartilharem, parte a parte, frustrações amorosas. O problema é que podemos sofrer ataques não apenas de “Galaga”, como de “Centipede” e, principalmente – a imagem de marketing do filme –, do Pac-Man. A cada ataque dos alienígenas, surgem imagens de figuras ligadas à década de 80 tratando de novas fases desse jogo vivo, a exemplo de Madonna e da dupla de A ilha da fantasia.
Baseado num curta-metragem de mesmo nome, dirigido por Patrick Jean em 2010, que mostrava figuras de jogos invadindo uma cidade, dizer que a trama deste filme é estapafúrdia é investir no lugar-comum. De que os diálogos são apenas passageiros, como forma de passar o tempo, e realmente os roteiristas Tim Herlihy (responsável por um dos melhores trabalhos de Sandler, Afinado no amor) e Timothy Dowling não utilizam o conceito do filme totalmente a seu favor, também. E investir num espaço em que Pixels se transforma num exemplo de filme a ser contestado porque não seria suficientemente elaborado e sério, ainda mais. Chris Columbus, o diretor que se destacou nos anos 80, como roteirista de Os Goonies, Gremlins e O enigma da pirâmide, já mostrou talento no universo infantojuvenil, em filmes como Esqueceram de mim, Uma noite de aventuras e os dois primeiros Harry Potter, assim como o ótimo e esquecido Uma noite com o rei do rock, uma homenagem a Elvis Presley.

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Em Pixels, ele conduz tudo com tanto descompromisso que faz com que Evolução, de Jason Reitman, seja uma espécie de obra máxima da invasão alienígena. No entanto, ele tem noção de contar uma história que prende a atenção – e Pixels faz isso de modo que o espectador por vezes esquece que a trama é sustentada por uma mistura de Os caça-fantasmas com Uma aventura Lego. Os gráficos do filme são muito bons, com design de produção elaborado e ótimos efeitos especiais. Talvez pela presença do Donkey Kong – um dos personagens de games –, o filme também pareça dialogar visualmente com Detona Ralph e Scott Pilgrim contra o mundo, além do referencial Tron, com seu mundo de jogos tentando invadir o espaço real; a questão é que Pixels, sem nenhum objetivo de levar o espectador a pensar sobre elos de trama, é uma diversão. E ainda consegue suscitar uma bem-humorada crítica ao militarismo norte-americano desde Reagan e seus elos com a Inglaterra, numa óbvia brincadeira com Margaret Thatcher na figura de Jane Krakowski. Há, igualmente, em Pixels, alguns elementos que tanto contestam em filmes de Sandler, como piadas sexistas, mas este não é o ponto (nem nos anos 80 haveria interesse em destrinchar recados simbólicos na trama a esse respeito): trata-se de uma sátira aos filmes de invasão espacial e o faz com uma excelente fotografia de Amir Mokri, de Homem de aço.

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Se Adam Sandler repete seus maneirismos, ele não tem a presença a ponto de incomodar, e Kevin James se mostra mais aceitável do que em outros momentos, enquanto Monaghan, sempre menosprezada como atriz, e Dinklage (de Game of Thrones) estão muito bem. Dinklage, em especial, soa não raramente divertido. Gad, por sua vez, tenta o riso em algumas situações, mas possivelmente seja o menos adequado à história, com suas teorias da conspiração envolvendo JFK. Diante do curta-metragem que o inspirou, Pixels consegue, principalmente em sua parte final, trabalhar com uma certa visualidade que remete às misturas entre humanos e animações que a Disney tentou em outros momentos – e o mais conhecido é Uma cilada para Roger Rabbit –, inclusive tentando trazer uma figura irreal também à vida. É de se lamentar apenas que as gags não sejam tão numerosas que acompanhem os efeitos especiais fabulosos de Pixels, capazes de realmente criar um universo à parte dentro da realidade que conhecemos. Os esforços não são no sentido de Uma aventura Lego, um manancial grande de referências culturais também vertidas em diálogos ininterruptos entre os personagens, o que acaba deixando as características dos personagens pouco desenhados. Ainda assim, ele atende ao que se propõe: é, de certo modo, parte da cultura pop em movimento.

Pixels, EUA, 2015 Diretor: Chris Columbus Elenco: Adam Sandler, Kevin James, Peter Dinklage, Michelle Monaghan, Josh Gad, Matt Lintz, Brian Cox, Jane Krakowski Roteiro:  Tim Herlihy, Timothy Dowling Fotografia: Amir Mokri Trilha Sonora: Henry Jackman Produção: Adam Sandler, Allen Covert, Chris Columbus, Mark Radcliffe, Michael Barnathan Duração: 105 min. Distribuidora: Sony Pictures Estúdio: Columbia Pictures / Happy Madison Productions

Cotação 3 estrelas e meia