Por André Dick
Com As harmonias de Werckmeister, em 2000, e o que se considera sua despedida do cinema, O cavalo de Turim, lançada apenas no início deste ano no Brasil, o cineasta húngaro Béla Tarr comprova que tem influenciado um grupo considerável de cineastas. Sua fotografia em preto e branco não esconde como ele conseguiu atingir diretores como Carlos Reygadas, Michael Haneke, Alejandro G. Iñárritu, Quentin Tarantino, Gus Van Sant e o próprio Terrence Malick e seu A árvore da vida. Mas Tarr, nascido em 1955, é ainda um cineasta difícil de ser definido, sob todos os aspectos. Um mestre da ambientação, como uma de suas influências, Andrei Tarkovsky, interessado mais na lentidão das coisas aparentemente simples do que numa narrativa que flui sem que percebamos o que está se passando, ele ainda tem como sua referência atemporal o filme Satantango, de 1994 – uma espécie de O sacrifício, em cenário semiapocalíptico, no qual se contam os dias para valorizar um resquício de humanidade (em Tarkovsky, simbolizado pela árvore transplantada pelo filho e pelo pai).
Em Tarr, no entanto, o castigo imposto à natureza sempre se volta contra o ser humano, e vemos essa passagem notável que irá desencadear a sequência que dá razão ao título – e se passa no bar do vilarejo, sob o olhar de Estike. É, porém, a caminhada de Estike pela estrada, molhada pela chuva da noite, que oferece a Satantango um de seus momentos mais impressionantes para o espectador, além daquela que ocorre no Castelo Weinkheim, para onde a menina se dirige. Parece que estamos diante de uma pintura de Edvard Munch ou de algum quadro de Eraserhead, de David Lynch, criando um diálogo com o expressionismo alemão.
Em Tarr, o dia não chega a se diferenciar da noite: tudo é soturno e desesperador (apesar de sua aparente tranquilidade), quando não implode sob uma dramaticidade remetendo à tragédia. Não por acaso, ele se encontra com László Krasznahorkai também na realização do roteiro de O cavalo de Turim. As palavras que iniciam o filme lembram de um acontecimento em Turim, em 03 de janeiro de 1889, quando Friedrich Nietzsche se depara com um homem que está tendo problemas com seu cavalo teimoso. O cavalo não aceita se mover e seu dono o chicoteia. O filósofo põe fim à cena brutal, colocando os braços em volta do pescoço do cavalo. Fala-se que, depois desse acontecimento, Nietzsche não teria mais resistido à loucura. Tarr mostra quem seria exatamente o dono desse cavalo, Ohlsdorfer (János Derzsi), sua filha sem nome (Erika Bók, a menina de Satantango), e a área em que vivem, isolados de outras pessoas, a não ser de um vizinho (Mihály Kormos) e alguns ciganos.
A rotina de ambos é minuciosamente igual, lembrando por vezes Jeanne Dielman, clássico de 1975 assinado por Chantal Akerman, e mesmo novos problemas que se apresentam parecem apenas dialogar com o mesmo prato de batatas que descascam e comem em todas as refeições. O filme mostra a convivência desse senhor e sua filha numa fazenda, havendo, no fundo dessas questões, uma ampla discussão de Tarr a respeito da exploração e da tentativa de lidar com o outro. Esta relação é baseada mais no silêncio do que no verbo e, se não há sinais de afeto do pai pela filha, isso é reproduzido na maneira como ele cuida do cavalo capaz de trazer ainda mais colheita para a fazenda. Cada sequência tem a duração predileta de Tarr, uma duração concentrada em gestos mínimos e expansivos. Se na sua obra anterior ele colecionava sequências em cenários mais expansivos, aqui ele concentra tudo nos olhares dos atores e no fato de como eles são ínfimos diante do cenário externo.
Há uma cena em Satantango em que Irimiás e Petro caminham e, diante de uma praça, aparecem cavalos. Um deles comenta: “estão fugindo do matadouro”. Tarr contrapõe os personagens do filme a animais querendo escapar de um matadouro, e tem inegavelmente eficiência ao mostrar esta ideia. Em O cavalo de Turim, os humanos parecem confinados nesse cotidiano e nessa casa como se estivessem dentro de um assustador e turbulento dia que se repete, não muito diferente do cavalo que o personagem central arrasta pelos seis minutos iniciais sem parar, estrada adentro – e o rosto dos personagens mostrado de perto, ou à janela, ou sua caminhada de costas contra o vento, ou mesmo, a partir do início, o cavalo enfrentando o ar pesado da estrada, ajudam a sintetizar esta bela peça de Tarr.
Para ele, o cotidiano é a representação da humanidade, e quando há uma preocupação com ciganos que se aproximam do local e com o poço de onde vem a água se pode perceber a limitação em que eles estão inseridos. Como em sua obra anterior, o preto e branco cria uma atmosfera apocalíptica e, ao mesmo tempo, árida, distante do que restaria ainda do universo. Por isso, não apenas os símbolos da comida (a batata) e a água parecem retribuir em imagens o que praticamente não existe em termos de diálogo, como fornece uma leitura quase bíblica. O vento, nesse lugar, representa o último resquício de movimento e humanidade, e os personagens precisam enfrentá-lo como a um deus esquecido por Nietzsche – e não por acaso algumas cenas são adaptadas para o cenário do faroeste por Tarantino em Os oito odiados. Tanto Fred Kelemen, o diretor de fotografia, quanto a equipe de design de som parecem levar O cavalo de Turim a habitar um outro universo, tão palpável e tão desconhecido ao mesmo tempo: esse espaço do filme se torna notadamente real. Num ano em que já tivemos peças em que a melancolia e o comedimento humano se transformaram em peças acessíveis sem deixarem de ser complexas (A juventude e Cemitério do esplendor, para citar apenas dois), O cavalo de Turim mostra um eixo de cinema expressionista, em que as sombras e os movimentos adquirem um outro formato e no qual reside a beleza principal da obra de Tarr.
The Turin horse, Alemanha/Estados Unidos/França/Hungria/Suíça, 2011 Diretor: Béla Tarr Elenco: Erika Bók, János Derzsi, Mihály Kormos, Ricsi Roteiro: Béla Tarr, László Krasznahorkai Fotografia: Fred Kelemen Trilha Sonora: Mihály Vig Duração: 146 min. Distribuidora: Bretz Filmes