Resultados do Oscar 2019

Por André Dick

Dos possíveis candidatos ao Oscar que apontei em setembro de 2018 (neste post), quatro chegaram às indicações de melhor filme: Infiltrado na KlanNasce uma estrela, A favorita e Roma. Das repescagens, Pantera Negra e Vice (à época chamado de Backseat). No entanto, as grandes surpresas foram O primeiro homem e Se a Rua Beale falasse, dos diretores que em 2017 quase conquistaram juntos o Oscar de melhor filme por La La Land e Moonlight, lembrados em várias premiações, serem deixados de lado.
Este foi um Oscar surpreendente. Certamente poucos apostavam que Bohemian Rhapsody saísse com o maior número de estatuetas (quatro), seguido por Pantera Negra Green Book – O guia, cada um com três, ao lado de Roma. Interessante é a Academia, no momento menos prestigiado de sua história, recorrer a dois sucessos de bilheteria para manter sua atenção (veremos como isso se refletiu na audiência). Uma curiosidade, pouco recorrente: todos os indicados a melhor filme saíram com pelo menos um prêmio, quando normalmente dois ou três candidatos não saem com nenhum. Apenas se lamenta que o melhor filme de 2018, particularmente, Nasce uma estrela, tenha saído apenas com uma estatueta, depois de ver esvaziado seu hype justamente na época das premiações.
A falta de um apresentador prejudicou substancialmente a festa, que não tinha ninguém para dialogar ou interagir com a plateia e mesmo com o que nela transcorria. Apenas uma voz anunciando a entrada dos atores parecia impessoal, que anunciavam os candidatos para mostrar o resultado como se corressem contra o tempo. Algumas apresentações musicais foram ótimas (como a de “Shallow”), o show inicial do Queen, assim como as participações de Melissa McCarthy (apresentando uma categoria vestida com um figurino espalhafatoso que remetia à rainha de A favorita), Tina Fey, Ana Poehler e Maya Rudolph (que poderiam ter apresentado perfeitamente todo o show) e entre os agradecimentos se destacaram os de Olivia Colman (realmente surpresa), Regina King e Rami Malek. Cuarón, com o feito de conseguir três Oscars, parecia sem qualquer entusiasmo, mostrando que ele privilegia uma certa simetria que há em seus filmes, sem destoar muito do script, o que é uma pena. Foi uma festa sem emoção, talvez a mais mal organizada que vi desde o ano em que passei a acompanhar o Oscar, em 1987.

Melhor filme

A seleção deste ano tem filmes excelentes (RomaNasce uma estrela) dois ótimos (A favorita e Green Book – O guia), dois muito bons (Infiltrado na Klan e Bohemian Rhapsody) e um historicamente interessante e bem interpretado (Vice), apesar de abaixo do esperado, além do sucesso de bilheteria Pantera Negra.
O prêmio dado a Green Book – O guia, de Peter Farrelly, não foi totalmente merecido, mas nem de longe é questionável, levando em conta sua qualidade de atores, narrativa e roteiro. Certamente ele lida com temas sensíveis de modo politicamente incorreto. No entanto, o mais impactante é alguns considerarem um filme preconceituoso, quando, na verdade, mostra parte da trajetória de um pianista afroamericano, Don Shirley, de grande talento e sua amizade com um italiano racista que, aos poucos, compreende o que está em jogo. Que se considere Pantera Negra, um personagem fictício, mais importante e historicamente mais excepcional do que ele é uma incógnita típica da cultura pop. Questionável, a partir disso, é O discurso do rei ganhar de A rede social, Cisne negro e Bravura indômita, ou Argo vencer A hora mais escura, Django livre, Amor e O lado bom da vida, e Spotlight derrotar O regresso. Spike Lee teria se irritado com a premiação. Faz sentido. Há um momento em que Tony, o motorista interpretado por Viggo Mortensen, aconselha o pianista feito por Mahershala Ali a ouvir nomes da música negra da época, a exemplo de Aretha Franklin, Chubby Checker e Little Brown, para fugir um pouco do seu universo clássico de compositores como Chopin, o que soa um pouco forçoso, visto que é como se a figura do afro-americano tivesse de ser guiada pela do branco que aprendeu a reconhecer culturas híbridas. Mas, na verdade, é quase o discurso oposto que Spike Lee apresentava em Faça a coisa certa, quando o personagem do entregador de pizza que interpretava apontava a seu chefe, um pizzaiolo italiano, que seus ídolos eram predominantemente afrodescendentes. Lee sabe, claro, que Peter Farrelly está fazendo uma provocação indireta a ele e sua obra.

Novamente a Academia não atinge 10 concorrentes. Nas duas vagas não preenchidas, os votantes poderiam ter lembrado de Suspiria, de Luca Guadagnino (que recebeu os prêmios de melhor fotografia e elenco no Independent Spirit Awards), O primeiro homem (ignorado em categorias principais, como de diretor, ator e atriz coadjuvante), Se a Rua Beale falasse (com direção, atuações centrais e parte técnica primorosas), Querido menino (com a melhor atuação de um ator coadjuvante do ano, de Timothée Chalamet), Creed II (com grandes atuações de Michael B. Jordan, Tessa Thompson e Sylvester Stallone), A balada de Buster Scruggs (indicado a três Oscars, mas que merecia melhor recepção), No portal da eternidade (com uma fotografia e direção de arte fora de série), 22 de julho (melhor trabalho de Paul Greengrass, já lembrado pelo Oscar em Voo United 93 e Capitão Phillips), Hereditário (com destaque para Toni Colette e o design de produção) e Vida selvagem (estreia na direção do ator Paul Dano). Eu daria mais destaque a Jogador Nº 1 e Animais fantásticos – Os crimes de Grindelwald, menosprezados mesmo nas categorias técnicas.

Melhor diretor

O grande vencedor foi Alfonso Cuarón, por Roma, já premiado anteriormente com Gravidade. É um feito extraordinário que, desde 2015, três mexicanos tenham recebido o Oscar de diretor: Iñárritu por Birdman e O regresso, Guillermo del Toro por A forma da água e agora ele. Praticamente é a visão autoral do cinema originário do México se estabelecendo em Hollywood. Considero seu trabalho impecável, também à frente da fotografia e do roteiro. O grego Lanthimos já havia sido indicado pelo roteiro de O lagosta e por filme estrangeiro em Dente canino. Sua indicação foi bastante merecida por A favorita e reserva uma possível trajetória cada vez mais exitosa em Hollywood, assim como Pawel Pawlikowski ter sido incluído entre os indicados por Guerra fria pode significar sua entrada no mercado norte-americano, mesmo que pareça mais independente que Cuarón e Lanthimos. Spike Lee já fez trabalhos muito melhores que Infiltrado na Klan, como Faça a coisa certa, Malcolm X e Oldboy, mas, de qualquer modo, foi um concorrente à altura. Já o mediano McKay ocupou a vaga de vários possíveis candidatos: Luca Guadagnino (Suspiria), Lynne Ramsay (Você nunca esteve realmente aqui), Bradley Cooper (Nasce uma estrela), Paul Dano (Vida selvagem), Damien Chazelle (O primeiro homem), Felix Van Groeningen (Querido menino), Paul Greengrass (22 de julho) e Joel e Ethan Coen (A balada de Buster Scruggs).

Melhor ator

Embora quase não tenha uma carreira no cinema, sendo mais conhecido pela série Mr. Robot, pela qual recebeu vários prêmios, Rami Malek levou Bohemian Rhapsody a se superar nesta temporada de premiações. Suas atuações em O mestre e em Buster’s mal heart são excepcionais, recorrendo a trabalhos anteriores dessa sua performance detalhista baseada em Freddie Mercury. Ele superou o favoritismo de Christian Bale depois do Critics Choice Awards, abalado pela perda do SAG. Bale realmente não parecia merecer o prêmio (difícil separar onde inicia a atuação e onde acaba o overacting), que eu daria para Viggo Mortensen, por Green Book, ou Bradley Cooper, por Nasce uma estrela. Willem Dafoe fez também um ótimo Van Gogh em No portal da eternidade. A Academia volta a manifestar sua antipatia por Ethan Hawke, premiado no Independent Spirit Awards por Fé corrompida, e Steve Carell, esquecido por Querido menino. Também John David Washington em Infiltrado na Klan, Michael B. Jordan no subestimado Creed II e Joaquin Phoenix em Você nunca esteve realmente aqui estavam melhores que Bale.

Melhor atriz

Glenn Close era a grande favorita. Depois de várias indicações nos anos 80 (O mundo segundo Garp, O reencontro, Um homem fora de série, Atração fatal e Ligações perigosas), e uma nesta década (Albert Nobbs), Close parecia que ia conseguir finalmente o prêmio mais importante da indústria de cinema. Isso não aconteceu: sua atuação não merece, e seu filme, A esposa, é apenas bom. Mesmo Lady Gaga tendo uma atuação muito superior às outras candidatas (e não recebeu o prêmio por preconceito a artista pop que se arrisca em atuar e por ser seu primeiro papel de destaque no cinema, ao contrário de Cher, vencedora da categoria por Feitiço da lua, que já havia aparecido em Silkwood, Marcas do destino e As bruxas de Eastwick), é valoroso lembrar de Melissa McCarthy, a segunda melhor atuação da categoria, por Poderia me perdoar?, e de Yalitza Aparicio, a grande figura de Roma: sua indicação é um reconhecimento. Vencedora em Veneza e do BAFTA, Olivia Colman venceu por A favorita, mesmo não sendo a atriz principal e sim Emma Stone, certamente indicada a coadjuvante porque já ganhou há poucos anos com La La Land. Seu agradecimento foi o melhor momento do show. Acrescento entre as atrizes que poderiam ter sido lembradas: Rosamund Pike (A private war), Elsie Fisher (Eighth grade), Toni Collette (Hereditário), Viola Davis (As viúvas), Juliette Binoche (Deixe a luz do sol entrar), Regina Hall (Support the girls), Carey Mulligan (Vida selvagem) e Charlize Theron (Tully).

Melhor ator coadjuvante

Indicado no ano passado por Me chame pelo seu nome na categoria de melhor ator, Timothée Chalamet poderia ter regressado nessa categoria com uma performance realmente extraordinária, em Querido menino; acabou sendo preterido. Mahershala Ali já havia ganho o prêmio por Moonlight e merecidamente ganha o segundo; sua atuação é repleta de detalhes e sustenta boa parte do filme. Sam Elliott teve uma presença rápida, mas marcante, em Nasce uma estrela. Adam Driver e Sam Rockwell, por Infiltrado na Klan e Vice, respectivamente, não mereciam ser indicados, ocupando possíveis vagas para Steve Carell (Vice), Nicholas Hoult (A favorita), Daniel Kaluuya (As viúvas), Jesse Plemmons (A noite do jogo), Robert Pattinson (Damsel), Jeff Bridges (Maus momentos no Hotel Royale), Ed Oxenbould (Vida selvagem), Russell Crowe (Boy erased), Sylvester Stallone (Creed II) e Jonas Strand Gravli (22 de julho).

Melhor atriz coadjuvante

Regina King confirmou o favoritismo por Se a Rua Beale falasse, mas as melhores atuações eram as de Emma Stone e Rachel Weisz em A favorita, tornando a presença de suas personagens no melhor embate da temporada. Amy Adams não merecia ser indicada por Vice, nem Marina de Tavira por Roma, tirando a vaga de atrizes como Olivia Cooke (Puro-sangue), Zoe Kazan (A balada de Buster Scruggs), Rachel McAdams (Desobediência), Tilda Swinton (Suspiria), Elizabeth Debicki (As viúvas) e Nicole Kidman (Boy erased).

Melhor roteiro original

Apesar de o roteiro de A favorita ter mais camadas narrativas, o vencedor, Green Book, assinado por Brian Hayes Currie, Peter Farrelly e Nick Vallelonga, é simples e, ao mesmo tempo, lida com temas complexos. A grande falha é a inclusão de McKay nessa categoria, por um roteiro no máximo competente em Vice.

Melhor roteiro adaptado

Spike Lee, David Rabinowitz, Charlie Wachtel e Kevin Willmott venceram por Infiltrado na Klan, embora Nasce uma estrela Se a Rua Beale falasse tenham melhor desenvolvimento e o dos Coen para A balada de Buster Scruggs, premiado no Festival de Veneza, seja memorável. Spike Lee nunca havia recebido um Oscar, o que, por sua trajetória, era injusto.

Melhor filme estrangeiro

Há anos não havia um favorito tão grande quanto Roma (talvez o último tenha sido Amor). Seu concorrente principal era Guerra fria, também com uma extraordinária fotografia em preto e branco. Imagino que a péssima distribuição de A árvore dos frutos selvagens, de Ceylan, que estreou apenas este ano nos Estados Unidos, tenha colaborado na sua não nomeação (o filme de Ceylan é melhor que o de Cuarón).

Melhor animação

Há filmes inventados pela crítica e Homem-Aranha no aranhaverso é um deles. É recebido como uma animação inovadora, mas neste campo aquela que se destaca é Ilha dos cachorros, de Wes Anderson. Sou apreciador de Os incríveis 2 e WiFi Ralph – Quebrando a Internet também, muito bem solucionados em sua despretensão.

Melhor documentário em longa-metragem

Free Solo

Melhor documentário em curta-metragem

Period. End of sentence

Melhor curta em animação

Bao

Melhor curta-metragem

Skin

Melhor fotografia

Alfonso Cuarón recebeu o seu Oscar por Roma, mesmo que minha aposta fosse em Lukasz Zal, por Guerra fria, ambos com fotografia em preto e branco. O trabalho de Robbie Ryan em A favorita e Matthew Libatique em Nasce uma estrela eram notáveis, o que aumenta a qualidade da vitória. Lembremos que, no ano passado, Paul Thomas Anderson fez a fotografia também de seu excepcional Trama fantasma e não foi indicado. Na época, disseram que era por uma “defesa” dos diretores de fotografia.

Melhor trilha sonora

A vitória de Ludwig Goransson por Pantera Negra deve ter quebrado com algumas bolsas de aposta. O favorito era Nicholas Britell, pela trilha irretocável de Se a Rua Beale falasse, e Alexandre Desplat tinha um belo trabalho em Ilha dos cachorros, assim como Terence Blanchard em Infiltrado na Klan. O melhor trabalho, no entanto, de Justin Hurwitz, de O primeiro homem, sequer tinha sido indicado.

Melhor canção original

A performance da noite foi a do grande vencedor desta categoria, “Shallow”, de Nasce uma estrela, cantada por Bradley Cooper e Lady Gaga. Deve-se considerar que “When a Cowboy Trades his Spurs for Wings”, de A balada de Buster Scruggs também é muito bela.

Melhor design de produção

Hannah Beachler e Jay Hart ganharam por Pantera Negra, superando A favorita, Roma, O primeiro homem e O retorno de Mary Poppins, todos trabalhos de alto nível. Fico um pouco em dúvida quanto ao uso de CGI, de excesso de computação gráfica, como trabalho de design de produção tão sofisticado quanto aquele com objetos reais. A favorita, por exemplo, lembra Barry Lindon em seus detalhes e O primeiro homem simplesmente reproduz as salas e corredores da Nasa nos anos 60.

Melhor figurino

Quem venceu foi Ruth E Carter, por Pantera Negra, superando A favorita e Duas rainhas, principalmente, além de O retorno de Mary Poppins. Com influência do figurino de O jardineiro fiel e Rainha de Katwe, Carter mescla influências de costura africana com elementos futuristas.

Melhor edição

O trabalho de John Ottman em Bohemian Rhapsody não tem a agilidade de Green Book – O guia e é cronologicamente confuso, no estabelecimento de algumas fases da banda e alguns shows dos quais ela participou. O trabalho de Vice era muito bom, no sentido frenético.

Melhor maquiagem e cabelo

Merecido prêmio para Vice, com um trabalho de caracterização de Dick Cheney em Christian Bale e George W. Bush em Sam Rockwell irretocável.

Melhor edição de som

O grande vencedor foi Bohemian Rhapsody, superando o favoritismo de O primeiro homem. É um trabalho competente e consegue lidar com materiais de gravação do Queen com sons criados especialmente para a obra.

Melhor mixagem de som

Novamente o grande vencedor foi Bohemian Rhapsody, superando o favoritismo de O primeiro homem.  A obra de Chazelle parecia mais detalhista neste quesito e possui uma função na narrativa que não há na obra de Singer. No entanto, o melhor trabalho nesse campo parece estar em Nasce uma estrela, com seu uso poderoso e menos artificial do som dos espetáculos e dos eventos a que os personagens comparecem na narrativa, mais realista.

Melhores efeitos visuais

O único Oscar de O primeiro homem veio na categoria em que mais merecia. Duvidar de sua vitória frente a trabalhos questionáveis e que sequer deveriam ter sido lembrados nesta categoria (com seu excesso de CGI e de má qualidade) não parecia plausível. Seu único concorrente forte era Jogador Nº 1, sobretudo por causa da cena que homenageia uma obra de Kubrick, antológica. A obra de Chazelle talvez seja a primeira a recuperar momentos de verdadeira angústia no espaço desde 2001 – Uma odisseia no espaço, uma referência clara no pouso da lua, além de muitos serem extremamente próximos da realidade (os experimentos com os astronautas, tendo à frente Neil Armstrong). Este é um dos filmes mais injustiçados pelo Oscar.

Querido menino (2018)

Por André Dick

Baseado em dois livros, Beautiful Boy: A Father’s Journey Through His Son’s Addiction, de David Sheff, e Tweak: Growing Up on Methamphetamines, de Nic Sheff, Querido menino é justamente a reunião de duas perspectivas. Steve Carell interpreta David Scheff, jornalista do The New York Times, um pai que se separou de Vicki (Amy Ryan) e casou novamente com Karen Barbour(Maura Tierney), tendo dois filhos. No entanto, ele traz do casamento anterior com Vicki seu primeiro filho, o jovem Nicholas (Timothée Chalamet). O problema é que este possui problemas graves com as drogas. Dirigido pelo belga Felix Van Groeningen, de Alabama Monroe, Querido menino é um dos filmes mais interessantes já surgidos sobre o tema.
Se a maior parte das narrativas costuma atenuar o problema do vício na adolescência, Querido menino aposta exatamente nas consequências que ele acarreta para elaborar uma trama que se constrói por meio de lembranças do pai de momentos-chave da relação com seu filho. Com um quarto que reúne pôsters de Nirvana e de David Bowie, Nic é infuenciado claramente pela figura do pai. Este é como se fosse uma representação de um período de sua vida em que, justamente, ele era mais inocente e apegado a temas do cotidiano que não misturassem a busca incessante pelas drogas.

Sob certo olhar, Querido menino trata principalmente do recomeço das trajetórias de determinadas pessoas dentro da mesma vida. Se David parece se recolher do mundo externo em uma casa confortável, afastada da cidade, quase uma chácara, Nic procura nas drogas um refúgio para fases que não quer enfrentar, principalmente o estudo na universidade e o compromisso. Chalamet havia sido muito elogiado por seu papel em Me chame pelo seu nome, mas é aqui que ele se mostra um ator fora de série. Sua atuação é tão melhor que a de qualquer coadjuvante deste ano que sua ausência do Oscar soa quase um boicote da Academia a momentos de real afeto cinematográfico.
Sua transição do Nic envolvido com drogas para o Nic buscando uma vida normal é dolorosa e emocional no sentido exato, nunca deixando espaço para exageros de abordagem ou manipulação com os sentimentos do espectador. E ele, ao trabalhar com o tema, é claro sobre o que quer dizer: os possíveis prazeres e distanciamento da realidade dura do personagem, por meio das drogas, nunca o levam mais do que a oscilações e retrocessos em sua vida, embora sejam eles que podem, depois de sofrer, levá-lo adiante. Não é verdade que este filme traga soluções óbvias ou lugares-comuns; sua base narrativa é de alto significado. A luta do pai para entender o filho é a luta deste para entender sua compreensão (ou falta de) da vida. Não por acaso, a narrativa inicia com David consultando o Dr. Brown (Timothy Hutton), querendo adentrar no campo do autoconhecimento.

Da relação dele com o pai, Felix Van Groeningen extrai uma história agridoce, situada entre um lado trágico – o périplo de Nic por casas de recuperação é o principal elemento disso –, e nunca pendendo para o uso do vício em drogas como um traço pop, o que vemos em certo cinema de Danny Boyle, sem deméritos para o olhar que este lança. Ele se lança mais no terreno que era desbravado por Trier em Oslo, 31 de agosto: o sentimento inescapável de alguém sentir-se sozinho e sem apoio, mesmo tendo opções para contornar seu rumo. Há uma dramaticidade decisivamente corrente no roteiro do diretor em parceria com Luke Davies, sem apelar a um excesso de situações que mostrem o jovem usando drogas, e sim seus efeitos em relações sociais. A atmosfera de solidão e dificuldade de inserção de Nic não raramente reproduzem cenários constantemente desabitados, só preenchidos por sentimentos perdidos no tempo.

É desse modo que o diretor acolhe flashbacks pontuais e canções bem encaixadas (“Territorial pissings”, do Nirvana, e “Heart of Gold”, de Neil Young, por exemplo), reproduzindo determinadas sensações dos personagens em épocas diferentes e como elas, na verdade, se completam, mesmo que algumas num momento mais puro e em outro mais ruidoso. Carell, nesse sentido, entrega uma de suas melhores atuações, mais exatamente numa cena em que se despede do filho, ainda pequeno, antes de ele fazer uma viagem de avião. Em outro momento, ele visualiza um encontro perfeito com Nic num restaurante, querendo apenas compartilhar uma refeição, não fosse o comportamento irreconhecível daquele que criou. Um encontro na casa de recuperação traz o olhar incrédulo do pai em relação à impossibilidade de o filho conseguir enfrentar seu vício. Já Nic tenta se estabelecer num romance com Lauren (Kaitlyn Dever), não fosse ele ao mesmo tempo autodestrutivo, e Dever repete sua competência dramática já mostrada em Homens, mulheres e filhos e Outside in. Van Groeningen se mostra um diretor muito acima do que já demonstrava ser, trazendo um dos trabalhos mais belos do cinema nos últimos anos e subestimado como os grandes filmes costumam ser antes do reconhecimento.

Beautiful boy, EUA, 2018 Diretor: Felix Van Groeningen Elenco: Steve Carell, Timothée Chalamet, Maura Tierney, Amy Ryan, Kaitlyn Dever Roteiro: Luke Davies e Felix Van Groeningen Fotografia: Ruben Impens Produção: Dede Gardner, Jeremy Kleiner, Brad Pitt Duração: 120 min. Estúdio: Plan B Entertainment, Big Indie Pictures Distribuidora: Amazon Studios

Possíveis vencedores do Oscar 2019

Por André Dick

Gosto tanto da seleção do Oscar deste ano quanto a do ano passado. Há excelentes filmes (Roma e Nasce uma estrela), dois ótimos (Green Book – O guia e A favorita), e os demais com qualidades, alguns com mais, outros com menos. Uma lista com 10 indicados seria bem-vinda, principalmente com a inclusão de Querido menino, A balada de Buster Scruggs, Vida selvagem, No portal da eternidade ou Suspiria.
Dos indicados, a disputa vai ficar, ao que tudo indica, entre Roma, Green Book – O guia e, com menos chances, A favorita. Pessoalmente, seria uma surpresa Vice, Pantera Negra e Bohemian Rhapsody vencerem, isto é, Infiltrado na Klan tem chances se conseguir os Oscars de trilha sonora e roteiro adaptado. Já Nasce uma estrela teve seu hype inicial reduzido, na temporada de premiações, à categoria de melhor canção, e o trabalho de Bradley Cooper foi praticamente ignorado. No caso de Pantera Negra, a Academia pensava em criar uma categoria para possivelmente premiá-lo (melhor filme pop), ou seja, dificilmente ele sairá sem uma estatueta. A grande incógnita é quantas estatuetas serão dadas a Alfonso Cuarón. Como os Oscars de melhor diretor e filme estrangeiro muito possivelmente serão dele, não sei se a Academia terá interesse de consagrá-lo ainda com melhor filme principal, fotografia ou roteiro, inclusive porque ele já recebeu o prêmio por Gravidade; acredito que não. É basicamente esta divisão de prêmios que vai definir o Oscar. Se não quiserem consagrar de modo absoluto Cuarón, Roma não irá vencê-lo, ficando com Green Book. Abaixo, quem VAI ganhar, PODE ganhar e DEVERIA ganhar em cada categoria principal, em escolhas pessoais (destaco a imagem do filme preferido).

Melhor filme

Vai ganhar: Green Book – O guia

Pode ganhar: Roma

Deveria ganhar: Nasce uma estrela

Melhor diretor

Vai ganhar: Alfonso Cuarón (Roma)

Pode ganhar: Spike Lee (Infiltrado na Klan)

Deveria ganhar: Alfonso Cuarón (Roma)

Melhor ator

Vai ganhar: Rami Malek (Bohemian Rhapsody)

Pode ganhar: Christian Bale (Vice)

Deveria ganhar: Viggo Mortensen (Green Book – O guia)

Melhor atriz

Vai ganhar: Glenn Close (A esposa)

Pode ganhar: Lady Gaga (Nasce uma estrela)

Deveria ganhar: Lady Gaga (Nasce uma estrela)

Melhor ator coadjuvante

Vai ganhar: Mahershala Ali (Green Book – O guia)

Pode ganhar: Sam Elliott (Nasce uma estrela)

Deveria ganhar: Mahershala Ali (Green Book – O guia)

Melhor atriz coadjuvante

Vai ganhar: Regina King (Se a Rua Beale falasse)

Pode ganhar: Rachel Weisz (A favorita)

Deveria ganhar: Emma Stone (A favorita)

Melhor roteiro original

Vai ganhar: Deborah Davis e Tony McNamara (A favorita)

Pode ganhar: Brian Hayes Currie, Peter Farrelly e Nick Vallelonga (Green Book – O guia)

Deveria ganhar: Deborah Davis e Tony McNamara (A favorita)

Melhor roteiro adaptado

Vai ganhar: Spike Lee, David Rabinowitz, Charlie Wachtel e Kevin Willmott (Infiltrado na Klan)

Pode ganhar: Nicole Holofcener e Jeff Whitty (Poderia me perdoar?)

Deveria ganhar: Bradley Cooper, Will Fetters e Eric Roth (Nasce uma estrela)

Melhor filme em língua estrangeira

Vai ganhar: Roma (México)

Pode ganhar: Guerra fria (Polônia)

Deveria ganhar: Roma (México)

Melhor animação

Vai ganhar: Homem-Aranha no aranhaverso 

Pode ganhar: Os incríveis 2

Deveria ganhar: Ilha dos cachorros

Melhor fotografia

Vai ganhar: Lukasz Zal (Guerra fria)

Pode ganhar: Alfonso Cuarón (Roma)

Deveria ganhar: Alfonso Cuarón (Roma)

Melhor trilha sonora

Vai ganhar: Nicholas Britell (Se a Rua Beale falasse)

Pode ganhar: Terence Blanchard (Infiltrado na Klan)

Deveria ganhar: Nicholas Britell (Se a Rua Beale falasse)

Melhor canção

Vai ganhar: “Shallow” (Nasce uma estrela)

Pode ganhar: “All the Stars” (Pantera Negra)

Deveria ganhar: “Shallow” (Nasce uma estrela)

Melhor design de produção

Vai ganhar: Pantera Negra

Pode ganhar: A favorita

Deveria ganhar: A favorita

Melhor figurino

Vai ganhar: A favorita

Pode ganhar: O retorno de Mary Poppins

Deveria ganhar: A favorita

Melhor edição

Vai ganhar: Green Book – O guia

Pode ganhar: Vice

Deveria ganhar: Green Book – O guia

Melhor mixagem de som

Vai ganhar: Nasce uma estrela

Pode ganhar: Bohemian Rhapsody

Deveria ganhar: Nasce uma estrela

Melhor edição de som

Vai ganhar: O primeiro homem

Pode ganhar: Bohemian Rhapsody

Deveria ganhar: O primeiro homem

Melhor maquiagem e cabelo

Vai ganhar: Vice

Pode ganhar: Border

Deveria ganhar: Vice

Melhores efeitos visuais

Vai ganhar: O primeiro homem

Pode ganhar: Jogador Nº 1

Deveria ganhar: O primeiro homem 

Melhores filmes de 2018

Por André Dick

Abaixo, a lista dos melhores filmes de 2018 do Cinematographe, seguida por menções honrosas, depois da temporada de lançamentos em festivais importantes. A primeira versão dela foi publicada em 31 de maio de 2018, sendo atualizada mês a mês. Conta-se a data de lançamento internacional deles, não apenas no país de origem ou em festivais. Por isso, há obras nela que foram lançadas, por exemplo, no Festival de Cannes e Festival de Berlim de 2017. São incluídos lançamentos realizados também em VOD e na Netflix. Finalmente, ela é diferente daquela dos Melhores filmes lançados no Brasil em 2018.

1. Nasce uma estrela (Bradley Cooper)
2. Roma (Alfonso Cuarón)
3. Foxtrot (Samuel Maoz)
4. Hereditário (Ari Aster)
5. Colo (Teresa Villaverde)
6. A balada de Buster Scruggs (Joel e Ethan Coen)
7. Maus momentos no Hotel Royale (Drew Goddard)
8. Querido menino (Felix Van Groeningen)
9. Suspiria – A dança do medo (Luca Guadagnino)
10. Vida selvagem (Paul Dano)

***

11. O amante duplo (François Ozon)
12. Você nunca esteve realmente aqui (Lynne Ramsey)
13. Outside in (Lynn Shelton)
14. No portal da eternidade (Julian Schnabel)
15. 22 de julho (Paul Greengrass)
16. Green Book – O guia (Peter Farrelly)
17. A favorita (Yorgos Lanthimos)
18. Deixe a luz do sol entrar (Claire Denis)
19. Dogman (Matteo Garrone)
20. Arábia (João Dumons e Affonso Uchoa)
21. Animais fantásticos – Os crimes de Grindelwald (David Yates)
22. O primeiro homem (Damien Chazelle)
23. Creed II (Steven Caple Jr.)
24. Puro-sangue (Cory Finley)
25. Se a Rua Beale falasse (Barry Jenkins)

Menções honrosas: Sicario – Dia do soldado (Stefano Sollima), Custódia (Xavier Legrand), Mudo (Duncan Jones), Corpo e alma (Ildikó Enyedi), As aventuras de Paddington 2 (Paul King), Noviciado (Margaret Betts), Ilha dos cachorros (Wes Anderson), Jogador Nº 1 (Steven Spielberg), Tully (Jason Reitman), 15h17 – Trem para Paris (Clint Eastwood), Like me (Robert Mockler), Deadpool 2 (David Leitch), Best f(r)iends – Vol. 1 (Justin MacGregor), Em pedaços (Fatih Akin), The girl (Lukas Dhont), O conto (Jennifer Fox), Bird box (Susanne Bier), Baseado em fatos reais (Roman Polanski), Os incríveis 2 (Brad Bird), Eighth grade (Bo Durnham), Noite de lobos (Jeremy Saulnier), Mais uma chance (Tamara Jenkins), A pé ele não vai longe (Gus Van Sant), Venom (Ruben Fleischer), Jumanji – Bem-vindo à selva (Jake Kasdan), Hearts beat loud (Brett Haley), Unfriend: dark web (Stephen Susco), As boas maneiras (Juliana Rojas, Marco Dutra), Damsel (David e Nathan Zellner), Domando o destino (Chloé Zhao), Missão: impossível – Efeito Fallout (Christopher McQuarrie), Permission (Brian Crano), Who we are now (Matthew Newton), Princess Syd (Stephen Cone), Summer of 84 (François Simard, Anouk Whissell, Yoann-Karl Whissell), What keeps you alive (Colin Minihan), Bumblebee (Travis Knight), Pérolas no mar (Rene Liu), A noite do jogo (John Francis Daley e Jonathan M. Goldstein), O outro lado do vento (Orson Welles), Sem amor (Andrey Zvyagintsev), Você e os seus (Hong Sang-soo), Não vai dar (Kay Cannon), Felicité (Alain Gomis), Homem-Formiga e a Vespa (Peyton Reed), Rastros (Agnieszka Holland), Fútil e inútil (David Wain), Halloween (David Gordon Green), Espectador profissional (Dito Montiel), Vende-se esta casa (Suzanne Coote e Matt Angel), Newness (Drake Doremus), Jurassic World – Reino ameaçado (J. A. Bayona), Tudo que quero (Ben Lewin), Hostis (Scott Cooper), Alfa (Albert Hughes), Rampage – Destruição total (Brad Peyton), Desobediência (Sebastián Lelio), Cargo (Ben Howling e Yolanda Ramke), Flower (Max Winkler), Almas secas (Liz W. Garcia), Blame (Quinn Shepard), Together (Terrence Malick), Distúrbio (Steven Soderbergh), No coração das trevas (Paul Schrader), Becks (Daniel Powell, Elizabeth Rohrbaugh), Fullmetal alchemist (Fumihiko Sori), Perigo na montanha (Lin Oeding), Frost (Šarūnas Bartas), A vingança de Lefty Brown (Jared Moshe), Submersão (Wim Wenders), Aniquilação (Alex Garland), O ritual (David Bruckner), Um lugar silencioso (Joseph Krasinki), O animal cordial (Gabriela Amaral Almeida), A sombra da árvore (Hafsteinn Gunnar Sigurðsson), Todas as razões para esquecer (Pedro Coutinho), O plano imperfeito (Claire Scanlon), O mercador (Tamta Gabrichidze), Utoya, 22 de julho – Terrorismo na Noruega (Erik Poppe), O rei da polca (Maya Forbes), Vingança (Coralie Fargeat), The Cloverfield Paradox (Julius Onah), Woman walks ahead (Susanna White), A rota selvagem (Andrew Haigh), Maria Madalena (Garth Davis), A câmera de Claire (Hong Sang-soo), Christopher Robin – Um reencontro inesquecível (Marc Forster), Golden exits (Alex Ross Perry), Tal pai, tal filha (Lauren Miller), O predador (Shane Black), Com quem será? (Victor Levin), Stella’s last weekend (Polly Draper), A esposa (Björn Runge), Juliet, nua e crua (Jesse Peretz), O mistério do relógio na parede (Eli Roth), Buscando… (Aneesh Chaganty), Bohemian Rhapsody (Dexter Fletcher), The kindergarten teacher (Sara Colangelo), Infiltrado na Klan (Spike Lee), Legítimo rei (David Mackenzie), Guerra fria (Pawel Pawlikowski), Meu ex é um espião (Susanna Fogel), Never goin’ back (Augustine Frizzell), Skate kitsch (Crystal Moselle), Boy erased – Uma verdade anulada (Joel Edgerton), Acrimony (Tyler Perry), WiFi Ralph – Quebrando a internet (Rich Moore, Phil Johnston), O retorno de Mary Poppins (Rob Marshall), Poderia me perdoar? (Marielle Heller), Aquaman (James Wan), The Sisters brothers (Jacques Audiard), Mogli – Entre dois mundos (Andy Serkis), Millennium – A garota na teia da aranha (Fede Alvarez), Viúvas (Steve McQueen), Um pequeno favor (Paul Feig), Support the girls (Andrew Bujalski), Vice (Adam McKay), Zama (Lucrecia Martel), Mid90s (Jonah Hill)

Se a Rua Beale falasse (2018)

Por André Dick

Baseado num romance de James Baldwin, de 1974, o novo filme de Barry Jenkins, de Moonlight – Sob a luz do luar, Se a Rua Beale falasse, recorre a um estilo de imagem novamente atemporal, em que as épocas se misturam e se perdem. Os tons de azul, verde e amarelo dos figurinos e das iluminações que percorrem as imagens constituem um panorama amplo de uma história não apenas pessoal, como também vigorosa. KiKi Layne é Clementine “Tish” Rivers, de 19 anos, apaixonada por Alonzo “Fonny” Hunt (Stephan James), 22 anos, acusado de estupro por Victoria Rogers (Emily Rios). e, por isso, injustamente preso. Ela descobre estar grávida e luta para que o marido possa sair da prisão, onde se encontra esporadicamente com ele. É uma obra sobre a descoberta do amor e sobre como o ser humano resiste, por meio dele, à prisão. Desde o início, quando o casal desce por uma rua, parece que estamos num universo à parte, ao qual a realidade vai aos poucos se encaixando.

Com uma impressionante meia hora inicial, em que Jenkins utiliza os melhores elementos de seu filme oscarizado, uma belíssima fotografia de James Laxton e design de produção requintado, a obra prefere aos poucos, numa sucessão de flashbacks que mostram como Tish conheceu seu amado, até o acontecimento-chave para a história, uma certa dispersão planejada. O elenco é muito bom, principalmente KiKi Layne (uma revelação), e Regina King atua de modo exemplar como sua mãe, Sharon Rivers, embora sem tanto tempo de tela. Os personagens coadjuvantes surgem quase todos na primeira hora – a mãe de Fonny, vivida por Aunjanue Ellis, e o pai de Tish, Joseph (Colman Domingo), são especialmente expressivos – e tem boas aparições, com um pano de fundo trazendo a discussão religiosa, no entanto Jenkins prefere focalizar tudo no casal. Há um jantar com a presença deles e da irmã de Tish, Ernestine (Teyonah Parris), que resulta no que há de melhor no filme, que, por vezes, adota certas premissas de tom político que não conseguem soar tão orgânicas na história, mesmo que, como Moonlight, ofereça poesia ao lugar-comum.

É interessante como, ao lado de Chazelle, Jenkins procura variar seu estilo, buscando aqui mais enquadramentos rebuscados (a ampla visão de uma rua, por exemplo) e oferece, ao mesmo tempo, um certo ar atmosférico mais leve (apesar dos temas) que faltava ao peso dramático de Moonlight. Jenkins acerta, por exemplo, nas sequências com o amigo de Fonny, Daniel (Brian Tyree Henry), na qual se desenvolvem diálogos excelentes, com Pedrocito (Diego Luna), que trabalha num restaurante, ou quando o casal encontra um agente imobiliário (Dave Franco). Em certa medida, o roteiro convence sobre o fato de seus personagens não atingirem o que desejam – e os ambientes e os figurinos evocam uma sensualidade contemporânea e clássica ao mesmo tempo, com o auxílio da trilha sonora de Nicholas Britell. O que mais chama a atenção é como Barry Jenkins se afasta de um determinado estilo concebido por Spike Lee em Febre da selva, assim como Moonlight, inovava em relação a Os donos da rua e a Dope. Se Jenkins em seu filme anterior usava muito os ruídos da natureza, a exemplo do mar em algumas sequências, aqui a trilha consegue emprestar a sensibilidade que falta nos espaços urbanos pelos quais os personagens passam ou mesmo na prisão em que está Fonny. Ela oferece uma credibilidade ao romance entre os dois, convencida ainda pela atuações: o espectador trabalha com a consciência de que se trata de uma paixão autêntica.

Jenkins tem um olhar muito interessante para a condição de Fonny e sua amada assim como mostrava Cherrie em três fases da vida em Moonlight, incorporando novamente um sentimento de solidão fortíssimo, de elementos que se estendem ao longo do tempo e que não deixam mais de fazer parte do indivíduo, de lembranças que perduram e atitudes que, por mais que se esforce, não podem ser perdoadas. Novamente chama a atenção como o cineasta aborda os assuntos com uma sabedoria e calma e, na condução de algumas cenas, quase poética (em Moonlight havia uma belíssima sequência com um um jukebox; em Se a Rua Beale falasse o que comove é Fonny fingindo transportar os móveis para dentro de um espaço sem mobílias, a fim de convencer a amada de que ali pode estar a casa de ambos). Ele acerta bastante até o terceiro ato, quando tudo parece se inclinar mais para uma lição de moral e é, acima de tudo, anticlimático, tirando a força que seus personagens tinham até então. Por isso, ele não consegue ser como Loving, de Jeff Nichols, na discussão de seus temas, ou seja, usar uma discrição que comova o espectador. Ainda assim, é cinema de grande nível, tentando ser diferente e não com uma pretensão vazia. A força do filme está no olhar e nas expressões desses personagens e Jenkins não raramente os filma em close-ups. É uma maneira de revelar o amor que une o casal e de fazer o espectador se aproximar de um sentimento incapaz de ser desfeito, independente da situação. Como em Moonlight, mesmo sob um manto de certa melancolia, ainda permanece vivo um otimismo diante de tudo.

If Beale Street could talk, EUA, 2018 Diretor: Barry Jenkins Elenco: KiKi Layne, Stephan James, Colman Domingo, Teyonah Parris, Michael Beach, Dave Franco, Diego Luna, Pedro Pascal, Ed Skrein, Brian Tyree Henry, Regina King Roteiro: Barry Jenkins Fotografia: James Laxton Trilha Sonora: Nicholas Britell Produção: Megan Ellison, Dede Gardner, Jeremy Kleiner, Adele Romanski, Sara Murphy, Barry Jenkins Duração: 117 min. Estúdio: Plan B Entertainment, Pastel Productions Distribuidora: Annapurna Pictures

Alita – Anjo de combate (2019)

Por André Dick

Com roteiro de James Cameron e Laeta Kalogridis, Alita – Anjo de combate, baseado na série de mangás criada por Yukito Kishiro, parece uma reprodução das heroínas do responsável por O exterminador do futuro. Encontrada em meio ao ferro-velho de Iron City, pelo Dr. Dyson Ido (Christoph Waltz), a ciborgue que passa a ser chamada de Alita (Rose Perez) e carrega um cérebro humano, é reconstruída. Logo, ela descobre que muitos da Terra querem chegar a Zalem (o que lembra Elysium), uma espécie de cidade tecnológica no céu da cidade, principalmente o jovem pelo qual se apaixona, Hugo (Keean Johnson). Por sua vez, Ido foi casado com Chiron (Jennifer Connelly), da qual se afastou após a morte da filha e que terá uma ligação essencial com a trama para explicar os destinos da narrativa.
Essa premissa é uma prévia do que virá: Ido, na verdade, trabalha como um guerreiro caçador, buscando peças de ciborgues à noite, no longínquo ano de 2563, até o dia em que precisa enfrentar Grewishka (Jackie Earle Haley), em relação ao qual Alita vai demonstrar sua capacidade de luta chamada “Panzer Kunst”. Nesse sentido, talvez a melhor sequência da história se passa no Kansas Bar, no qual Alita precisa enfrentar vários de sua corporação e, principalmente, uma versão atualizada de uma ameaça que já combateu.

Aos poucos, ela começa a recuperar as memórias de sua vida passada, o que faz lembrar Ghost in the shell, além de possuir uma grande influência dos mangás, com sua cultura cyberpunk, Blade Runner. Não por acaso, trata-se de uma personagem feminina bem delineada. É de praxe nas obras de Cameron: a Grace de Avatar é uma extensão daquelas heroínas que esse cineasta privilegiou em sua trajetória, desde Sarah Connor, de O exterminador do futuro, passando pela Lindsey de O segredo do abismo, Ripley, de Aliens, até a Rose, de Titanic.  Pode-se dizer, nesse sentido, que Alita – Anjo de combate, parece muito mais uma obra de Cameron do que de Robert Rodriguez, o diretor oficial. Conhecido por sua parceria com Quentin Tarantino desde Um drink no inferno, passando por Planeta Terror, Rodriguez se projetou com A balada do pistoleiro nos anos 90 e com Sin City, a adaptação estilosa dos quadrinhos de Frank Miller. Também fez algumas séries com visual kitsch (Pequenos espiões) ou excessivamente exageradas (Machete), e pode-se dizer que a elegância visual de seu novo filme também tem muita influência de Cameron. São em torno de 150 e 200 milhões de dólares muito bem aplicados.

Pode-se dizer, também, o quanto há de influência aqui, de Sucker Punch, de Zack Snyder, sobre uma menina presa numa clínica psiquiátrica que, para fugir da sua realidade, se recolhia num mundo de sonho, onde podia se livrar dos seus carrascos. Alita, pela própria maneira com que é escrita, também está dividida entre o universo em que precisa obedecer ao doutor que a recria e aquele em que se mostra poderosa, com uma competência para lutar que pode lembrar o Neo de Matrix. Nesse sentido, ao mesmo tempo, a obra das irmãs Wachowski é uma nítida inspiração visual do filme de Rodriguez, assim como o RoboCop de Paul Verhoeven, principalmente em sua violência bastante contundente em alguns trechos, pouco normal numa obra a princípio para um público infantojuvenil. As sequências no Motorball, que dialogam com Speed Racer e Jogador Nº 1 (que virou uma referência para este gênero), são, não raramente, empolgantes e filmadas com autenticidade, elemento cada vez mais raro em blockbusters.

Do mesmo modo, o vilão Vector, feito por um inusitado (pois conhecido por papéis mais melodramáticos) Mahershala Ali, é uma extensão do que os burocratas maléficos dos filmes de Cameron podem fazer, o que acontece desde o tempo em que roteirizou Rambo II e dirigiu O exterminador do futuro 1 e 2, Aliens – O resgateTrue lies e O segredo do abismo. Apesar de boa parte de sua trama ser sobre um romance entre adolescentes, Alita nunca perde o seu foco, o de mostrar um universo fantástico abalado pela tentativa de o ser humano querer atravessar os caminhos da criação e se tornar o olhar vigilante de qualquer tipo de sistema. Rodriguez aplica de maneira muito consciente um certo estilo que demonstrou sobretudo em Sin City, convertendo imagens fantásticas num realismo bastante ameaçador, sem, aqui, no entanto se desviar para uma homenagem a uma época específica (no caso daquele, do cinema noir) e aproveitando o elenco talentoso do melhor modo, inclusive Waltz num momento muito bom, sem recorrer tanto a alguns de seus maneirismos, e Ali (este, se ganhar o Oscar de coadjuvante com Green Book, soma, com Waltz, quatro estatuetas desta categoria apenas na última década), além de uma emocional Connelly. Os intérpretes jovens, Salazar (com sua captação de movimentos), e Johnson, também são plausíveis, assim como Haley. É justamente a figura de Alita, mistura entre humano, animação e ciborgue, que torna o filme eficiente em todos os aspectos. Ela traz, ao mesmo tempo, um discurso, suas lembranças e uma vontade de superação que não torna o roteiro numa peça apenas funcional, como poderia, e sim bastante reflexivo.

Alita – Battle Angel, EUA, 2019 Diretor: Robert Rodriguez Elenco: Rosa Salazar, Christoph Waltz, Jennifer Connelly, Mahershala Ali, Ed Skrein, Jackie Earle Haley, Keean Johnson Roteiro: James Cameron, Laeta Kalogridis Fotografia: Bill Pope Trilha Sonora: Tom Holkenborg Produção: James Cameron, Jon Landau Duração: 122 min. Estúdio: 20th Century Fox, Lightstorm Entertainment, Troublemaker Studios, TSG Entertainment Distribuidora: 20th Century Fox

Velvet Buzzsaw (2019)

Por André Dick

O diretor Dan Gilroy estreou com um filme muito bem recebido, O abutre, e em seguida fez Roman J. Israel, esq., que rendeu uma indicação ao Oscar de ator para Denzel Washington e dialogava com a atmosfera dos anos 70. Eram obras marcadas pelo estudo de personagens distintos, no primeiro caso um jornalista inescrupuloso e no segundo um advogado muito competente e em busca de maior justiça para seus clientes, embora em determinado ponto se deixasse confundir por acontecimentos. Conhecido antes dessa carreira como cineasta como roteirista, Gilroy assume novamente as duas funções em Velvet Buzzsaw, lançado no Festival de Sundance.
A história se passa em Miami, onde acompanhamos o crítico de arte Morf Vandewalt (Jake Gyllenhaal), que tem como melhor amiga e agente Josephina (Zawe Ashton). Ela trabalha para Rhodora Haze (Rene Russo), dona de uma galeria, que foi vocalista da banda de punk rock que dá título ao filme.

Mesmo tendo um namorado, Ed (Sedale Threatt Jr.), Morf se sente atraído por Josephina, e os dois já tiveram um caso anteriormente. Ela, certo dia, encontra um homem morto perto de seu apartamento, Vetril Dease, pintor de talento desconhecido. Recolhendo suas obras, resolve fazer uma parceria com Rhodora para vendê-la e com Morf para que ele escreva sobre elas.
Dois outros conhecidos de Morf, a curadora Gretchen (Toni Collette) e o artista plástico Piers (John Malkovich), ficam impressionados com o trabalho do pintor recém-descoberto. Este tem obras que são marcadas sobretudo por elementos assustadores, como se trouxessem uma energia soturna com eles, mas que acabam fascinando os frequentadores de exposições. Tudo é articulado sobre um clima de mistério, ao mesmo tempo com um certo descompromisso. A referência de Gilroy é clara: a obra de Dario Argento nos anos 70, principalmente O pássaro das plumas de cristal, que lidava com o universo das exposições de obras de arte. No entanto, Gilroy não é tão estilístico quanto o cineasta italiano, preferindo utilizar uma fotografia bastante realista, aos poucos sendo mesclada com toques de fantástico, feita pelas mãos do ótimo Robert Elswit, que trabalhou com o diretor em seus projetos anteriores e também com Paul Thomas Anderson em Vício inerente, cuja tonalidade de imagens se corresponde com algumas daqui.

Não me parece que o objetivo de Gilroy seja justamente aplicar uma sátira sobre esse universo focado, já vista algumas vezes, contudo mostrar o quanto esses personagens podem lidar com um elemento imprevisível naquilo que está pré-concebido em todos os detalhes, como as peças feitas para agradar ao público ou dialogar com ele sob qualquer ponto de vista. O alvo não é exatamente a cobiça financeira sobre obras, como plana na superfície do roteiro, e sim como esse universo é tão irreal, mesmo se sentindo muitas vezes teorizável concretamente, quanto o que começa a acontecer a partir de determinado ponto. Mesmo porque, caso contrário, ele certamente se transformaria numa espécie de autossátira, a exemplo do que vemos em instantes do brilhante The Square – A arte da discórdia. Há conversas sobre o universo da crítica que remetem a Birdman, no entanto sem a mesma consciência, a não ser no nome da banda que nomeia o filme, clara referência ao Velvet Underground, que teve a capa de um dos seus discos mais conhecidos ilustrada por Andy Warhol (aqui lembrado pela imagem de seu filme Empire, com suas mais de 8 horas de plano-sequência do prédio Empire State Building, de Nova York). Gyllenhaal estabelece uma boa parceria novamente com Russo, depois de O abutre, e sua atuação é o que de melhor tem aqui. Ele consegue se situar entre os duplos de si mesmo e o que enxerga nas obras para seu ganho pessoal e para seu respeito como crítico. O elo com Russo é essencial para que essa duplicidade se estabeleça, assim como a atuação indefinida de Ashton.

O que mais interessa nesta obra de Gilroy é a multiplicidade de estilos que ele adota: se tudo começa como uma conversa de artista e relações que parecem lembrar um filme B, logo ele passa para um clima de suspense e tensão e, quando parece finalmente se desviar para uma espécie de análise do mundo da arte, ele entrega um caminho mais virulento e inesperado do que se costuma ver em peças de Hollywood. Esta é uma história que pode ser até estranha, como já o era a anterior de Gilroy, no entanto é justamente isso que lhe concede as maiores qualidades. Nesse sentido, talvez o espectador que julgue o debate sobre arte no filme pouco natural tende a considerá-lo mais superficial. Por outro lado, quando se considera que a mescla feito entre esse tema e os gêneros de terror e suspense se mostra notavelmente funcional, particularmente na meia hora derradeira, quando o diálogo entre o universo da arte e o desfecho para cada personagem se estabelece, é que a narrativa se mostra mais encontrada e verdadeiramente original.

Velvet Buzzsaw, EUA, 2019 Diretor: Dan Gilroy Elenco: Jake Gyllenhaal, Rene Russo, Toni Collette, Zawe Ashton, Tom Sturridge, Natalia Dyer, Daveed Diggs, Billy Magnussen, John Malkovich, Sedale Threatt Jr. Roteiro: Dan Gilroy Fotografia: Robert Elswit Trilha Sonora: Marco Beltrami e Buck Sanders Produção: Jennifer Fox Duração: 113 min. Estúdio: Netflix, Dease Pictures Inc. Distribuidora: Netflix

Climax (2018)

Por André Dick

O diretor franco-argentino Gaspar Noé sempre foi conhecido por seus filmes polêmicos, a começar por Sozinho contra todos, mas, principalmente, por Irreversível, desde o seu lançamento em Cannes. O Festival francês costuma ser o palco da estreia de seus filmes, e o mesmo ocorreu com Enter the void, em 2009, e Love em 2015 – em ambas as ocasiões sem receber nenhum prêmio ou mesmo ter um destaque especial. Se Enter the void tornou-se, com o tempo, numa obra referencial – e parece, em retrospectiva, o melhor trabalho de Noé –, com Love (lançado nos cinemas em 3D) não aconteceu o mesmo, mas se manteve cult, tratando de uma história sobre um triângulo amoroso que se depara com uma determinada realidade capaz de levá-lo a um extremo por vezes conflitante e desagradável, mesmo em meio a cores brilhantes.

Em Climax, seu novo filme, também lançado em Cannes, acompanhamos alguns dançarinos que se reúnem para ensaiar, com o objetivo de fazerem uma turnê na França e nos Estados Unidos. Depois de assistirmos cada um deles em vídeos de audição, Noé mostra todos dançando num espaço iluminado nos moldes das suas peças anteriores. Os movimentos de dança belíssimos e bem coreografados são ousados, frenéticos e compõem uma sequência que antecede os créditos, já aos 45 minutos de narrativa. A divisão clara do filme indica que Noé, no princípio, continua brincando com a linguagem cinematográfica, assim como em Love, com seu 3D pouco habitual. Seus jovens, depois de falarem para a câmera a fim de conseguirem suas participações no grupo, são filmados de frente, como se estivessem num documentário, compartilhando impressões sobre alguns temas. Sob certo ponto de vista, este é o momento em que mais Noé presta homenagem a Jean-Luc Godard, sobretudo aquele de A chinesa ou Made in U.S.A., dos anos 60, com o uso de uma certa câmera estática, mas sem exatamente congelar o que está mostrando e também sem o mote político.

Quando todos estão flertando uns com os outros, eles bebem a sangria que a líder da companhia, Emmanuelle (Claude Gajan Maull), fez. A mistura entre bebida e frutas, além de proporcionar as cores buscadas por Noé, acentua também o lado enigmático da obra. Os efeitos dela contribuem para o que Noé mostra a seguir, continuando suas experimentações principalmente de Enter the void, com a sua câmera acompanhando os personagens pelas costas, num trabalho de fotografia notável novamente do habitual parceiro, Benoît Debie. Entre os personagens que acompanhamos, estão David (Romain Guilermic), Selva (Sofia Boutella) e Daddy (Kiddy Smile), este o DJ da festa. Os personagens vão se revelando e as inter-relações, apesar de continuarem confusas, se mostram mais evidentes. A principal atriz é Boutella, que surgiu no blockbuster Kingsman e depois esteve em A múmia, sendo no mínimo uma presença curiosa e mainstream nesta obra underground e entregando certamente a sua melhor atuação até agora, embora esteja muito bem em Atômica, ao lado de Charlize Theron.
Mas o apanhado é de horror, uma espécie de Birdman de Iñárritu situado às portas do inferno de Dante Alighieri, e é curioso que a personagem se chama Selva (remetendo a “selva oscura” da Divina Comédia: “Nel mezzo del cammin di nostra vita / Mi ritrovai per una selva oscura”). Em Enter the void, sabemos que se trata, do ponto de vista de alguém que faz uma passagem pelo inferno e purgatório até chegar ao paraíso – uma possível outra vida. É uma viagem quase dantesca, e nela temos cenas singulares a Noé: cenas graficamente densas e violência. Esse lado mais denso pode, por outro lado, reservar um escapismo e a compreensão do maior significado da vida, no fundo a base para se entender a trajetória de Noé.

Porém, também temos, ao mesmo tempo, uma ligação com o personagem central de Enter the void, que carregava todos os elementos: havia referências ao fogo, à água, à terra e ao ar (sobretudo num momento surpreendente, em que Noé lança seu personagem para acima da cidade de Tóquio, como se fosse um anjo de Asas do desejo). Se o personagem morria em posição fetal no banheiro da The Void, aqui Selva é abalada pela bebida e logo em seguida mesmo as paredes adquirem imagens que lembram um espaço à parte. Noé emplaca um clima de tensão e horror, com sua inevitável reflexão sobre vida e morte, contrapondo a leveza da música da primeira parte à opressão da segunda. Ainda assim, ele parece dialogar mais com o Fellini de Satyricon, principalmente no surrealismo subterrâneo, do que qualquer outro cineasta produzindo nos dias de hoje. E, se normalmente ele costuma ser extremamente negativo em relação à realidade, aqui não parece ser diferente, com um toque, ao final, de David Lynch. Para Noé, os anjos podem vir salvar, afinal, um espaço perturbador. O resultado é, no mínimo, interessante e mantém Noé entre os nomes de grande talento do cinema contemporâneo.

Climax, FRA/BEL, 2018 Diretor: Gaspar Noé Elenco: Sofia Boutella, Kiddy Smile, Roman Guillermic, Souheila Yacoub, Claude Gajan Maull, Giselle Palmer, Taylor Kastle, Thea Carla Schott Roteiro: Gaspar Noé Fotografia: Benoît Debie Produção: Edouard Weil, Alice Girard, Vincent Maraval Duração: 96 min. Estúdio: Rectangle Productions, Wild Bunch, Arte France, La Cinémas de la Zone, Eskwad, KNM, Arte France Cinéma, Artemis Productions, Vice Studios, Arte France, VOO, Be TV, Shelter Prod, Taxshelter.be, ING, CNC, La Sacem, Cineventure 3 Distribuidora: O’Brother (Bélgica) e Wild Bunch (França)

Vice (2018)

Por André Dick

Em 2015, ao oferecer um movimento ininterrupto, seja do centro de Nova York, dos escritórios ou de Las Vegas, A grande aposta acabava apresentando uma dissolução interessante de gêneros. Além disso, tinha um elenco estelar em grande forma (Ryan Gosling, Brad Pitt, Christian Bale e Steve Carell, entre outros), apesar de alguns nomes não terem o tempo necessário para poderem brilhar, talvez mesmo porque não quisessem, com a consciência de que o roteiro e a visão sobre o colapso financeiro dos Estados Unidos em 2008 e suas consequências eram mais importantes para o espectador ter consciência sobre o tema. Seu diretor Adam McKay, mais conhecido por sua parceria com Will Ferrell em comédias, tornava esse assunto complexo e delicado numa bateria de imagens que pareciam mesclar ficção e documentário com a mesma intensidade, apoiado também em Margin Call, de alguns anos antes. Trata-se de um caminho muito difícil e que descontenta, de certo modo, ao público que aguarda mais “fatos reais” e aquele que aguarda mais “ficção”; é uma dosagem complicada para se atingir.

Em Vice, chamado antes da estreia de Backseat, o foco passa a ser a política norte-americana a partir principalmente de meados da década de 1960, com McKay lançando as luzes sobre a figura de Dick Cheney. Ele foi o vice-presidente dos Estados Unidos nas duas gestões de George W. Bush, e McKay quer mostrar seu início de trajetória no Wyoming, quando passou a namorar Lynne (Amy Adams). Depois de conhecer Donald Rumsfeld (Steve Carell), Cheney se incorporou aos republicanos. Como em A grande aposta, a grande virtude de Vice é sua montagem frenética, fazendo com que o espectador não perceba direito a passagem de tempo. No entanto, aqui, por mostrar uma figura política de destaque por várias décadas, parece que McKay procura abraçar mais do que pode.
Ao construir um panorama de Cheney nos bastidores, sua chegada à Casa Branca ainda na gestão de Nixon, depois sua importância nos bastidores nos governos de Reagan e Bush pai, por exemplo, McKay quer mostrar sua ação entre 2001 e 2009, quando esteve por trás da política de tortura contra presos em Guantánamo, principalmente terroristas. Porém, McKay se situa muito na superfície, mesmo que tenha propositadamente um sentido documental. Ou seja, o personagem de Cheney é visto com certo humor, apoiado na atuação de Christian Bale, com contundência, no entanto não são passados dados suficientes desta figura para que procuremos analisar as informações dispostas ou que alguns espectadores já tem previamente.

É curioso, nessa linha, que Cheney passe de uma espécie de ingênuo beberrão nos anos 60 para alguém capaz de influenciar e ditar estratégias para os presidentes. O problema de filmes que criticam uma determinada figura é saber exatamente como seguir esse rumo sem parecer exagerado. Vice não quer evitar o exagero, no entanto ele se apoia demasiadamente na ideia de que Cheney era apenas um desequilibrado: ele, ao fazer isso, evita analisar exatamente como foi proporcionado espaço a esse desequilíbrio e os motivos, mesmo que não explicáveis. Usando a voz que deu conhecimento a sua versão de Batman, Bale se esconde por trás de uma pesada maquiagem (aliás, impecável) e com maneirismos na maneira de falar, tentando copiar Cheney, que podem ser vistos como perfeitos, não incorressem não raramente num overacting bastante cansativo com o passar do tempo. Esse, contudo, não é o problema: Vice não consegue reunir as boas atuações de Adams e Carell, além de Rockwell, num conjunto que ressoe para o espectador. Eles oferecem bons momentos, mas estão ligeiramente dispersos na narrativa. Como não se trata exatamente de um documentário, não basta apresentar imagens soltas deles, como fazia Michael Moore em Fahrenheit 11/9, e sim buscar uma estrutura narrativa.

McKay poderia ter tornado Vice num grande filme, assim como a fotografia de Greig Frasier, de A hora mais escura, é notável, melhor característica da narrativa. Sua tentativa de expandir o estilo de Oliver Stone dos anos 90, mesclando imagens e sobrepondo estilos, além de trechos de telejornais (em que Naomi Watts é a apresentadora, numa participação que lembra a de Margot Robbie em A grande aposta), como víamos em obras como JFK, Um domingo qualquer e Reviravolta, além de Nixon, é claro e muitas vezes efetivo, fazendo de sua peça uma espécie de reunião de camadas sonoras e visuais. Imagine-se, portanto, o que Stone faria com esse material no melhor momento de sua trajetória. Também há uma certa influência na movimentação de câmera de David O. Russell, aquele especificamente de Trapaça. Ainda assim, quando ele precisa mostrar um certo aprofundamento na composição da narrativa, não consegue inserir do melhor modo a figura do personagem de Jesse Plemmons, por exemplo, e acaba por perder o fio da meada. Isso, no entanto, não tira de seu filme um certo atrativo de ambientação (poucas vezes a Casa Branca teve um design de produção tão realista no cinema), assim como ele mostra a política com um aspecto de noite contínua, em que personagens sobem e descem de helicópteros para decidir o que o povo deve, enfim, seguir. Talvez por lidar com temas polêmicas, McKay prefira brincar mais com uma cena de créditos antes do seu momento do que tratar de seus personagens, ainda vivos e que podem muito bem processá-lo por qualquer ideia mais densa, digamos assim. Nesse sentido, o diretor prefere planar sobre os assuntos, mantendo-se a distância, sobretudo quando adentra a Guerra do Iraque, e fazendo dessa o seu modo de criar um “ataque”. Na verdade, porém, McKay não ataca e se resguarda por trás de uma visão de que o establishment norte-americano está a serviço de pessoas incapazes para seus postos, contudo sem querer trabalhar exatamente os motivos, o que apontaria entender seu público (e este inclui mesmo aqueles que não concordam com sua visão sobre os fatos). Quando a resposta parece evidente, apenas parece: ele quer, antes de tudo, emular Stone e David O. Russell e ser indicado ao Oscar.

Vice, EUA, 2018 Diretor: Adam McKay Elenco: Christian Bale, Amy Adams, Steve Carell, Sam Rockwell, Tyler Perry, Alison Pill, Lily Rabe, Jesse Plemons Roteiro: Adam McKay Fotografia: Greig Fraser Trilha Sonora: Nicholas Britell Produção: Brad Pitt, Dede Gardner, Jeremy Kleiner, Kevin J. Messick, Will Ferrell, Adam McKay Duração: 132 min. Estúdio: Plan B Entertainment, Gary Sanchez Productions Distribuidora: Annapurna Pictures

A favorita (2018)

Por André Dick

O melhor de O sacrifício do cervo sagrado, filme imediatamente anterior de Yorgos Lanthimos ao mais recente A favorita, era a sua compreensão de atmosfera, apostando tudo num sentimento de obra de terror, sem cair num humor corrosivo que por vezes pode desconstruir em demasia a narrativa. Em Dente canino e O lagosta, o excesso de estranheza por vezes distanciava o espectador, como se inserido num surrealismo desmesurado. Quem conhece o trabalho do diretor sabe que ele privilegia a construção das imagens, sempre impactantes, em detrimento de uma explicação narrativa (que na maioria das vezes não importa para seu interesse). Em O sacrifício, ele se limitava a algumas bordas, e apara as arestas de maneira mais reflexiva e contundente, construindo uma mistura de gêneros efetiva e surpreendente. Ainda utilizando uma espécie de estilo de teatro filmado com diálogos lentos e atores quase estáticos, esses elementos não se encontram em A favorita.

Vendedor do Grande prêmio do júri e de melhor atriz (Olivia Colman) no Festival de Veneza e com várias indicações ao Oscar, A favorita se passa na Inglaterra, no início do século XVIII, quando a rainha Anne (Colman) tem uma amiga, Sarah Churchill (Rachel Weisz), governando na realidade em seu lugar. Surge uma nova serva, Abigail Masham (Emma Stone), que é prima de Sarah e passa a ser a nova favorita da rainha. Em linhas gerais, a narrativa foca na relação de inimizade entre Sarah e Abigail, mas se estende também à tentativa de Robert Harley (Nicholas Hoult) influenciar nas decisões relacionadas à política e à guerra com a França. Essas relações, no entanto, servem mais a exibir como uma rainha entra num jogo de espelhos com duas mulheres que desejam conquistar o poder, cada uma à sua maneira. Sarah manipula Anne para que seu marido, Lorde Marlborough (Mark Gatiss), se destaque à frente da guerra. Por sua vez, Abigail flerta com Samuel Masham (Joe Alwyn). Esse flerte, porém, é gélido, quase como a relação do personagem de Nicole Kidman com seu marido médico em O sacrifício do cervo sagrado.

O design de produção de Fione Crombie é fabuloso, lembrando Barry Lindon e Maria Antonieta, o figurino de Sandy Powell notável e a fotografia de Robbie Ryan usa a lente olho de peixe, como Emmanuel Lubezki nos trabalhos de Iñárritu e Malick, para captar uma certa grandeza palaciana, em contraposição aos humanos mesquinhos e reduzidos quase a indivíduos sem nenhuma personalidade. Lanthimos sempre foi muito próximo da ideia de um estilo estranho e em A favorita ele consegue, de certo modo, inserir elementos de humor onde costuma não haver. No entanto, parte de sua estranheza é evidentemente tornada mais popular e palatável, para que o público possa se aproximar mais dos personagens. Enquanto Stone opta por uma variação de humor correspondente ao roteiro que recebe, sendo de fato a intérprete principal (embora na temporada de premiações seja incluída como coadjuvante), Weisz se comporta como na maior parte de sua filmografia recente, não chegando a ter uma grande interpretação, no entanto com sua habitual competência, enquanto Colman aparece bem em seu papel, principalmente na sua demonstração de desgaste com a dor física imposta por problemas de saúde.

Com roteiro de Deborah Davis e Tony McNamara, o primeiro filme de Lanthimos sem trabalhar sua própria história, A favorita flutua entre episódios distintos, quase como contos da realeza, e corridas de pato em meio a punições a criadas que ousam buscar um tratamento médico para os problemas de saúde da rainha. Suas características podem ser descobertas em meio aos percalços existenciais de cada um e na futilidade de Sarah, atendida prontamente por todos. Lanthimos insere mais suas propriedades quando transforma Abigail no centro da história, e Stone consegue reproduzir sua estranheza de maneira por vezes impactante. A utilização dos cenários para representar os sentimentos de cada uma dessas mulheres constrói um contraste interessante. O Palácio de Kensington representa uma redoma de solidão e, ao mesmo tempo, de lugar onde muitas personalidades vão se revelar de modo contundente. Se no início o humor está mais presente (com uma personagem, por exemplo, sendo jogada de uma carruagem diretamente na lama), a dramaticidade e mesmo certos elementos soturnos aos poucos vão consumindo a história, chegando a um último ato anticlimático, em relação à filmografia de Lanthimos, embore funcione simbolicamente. Ainda assim, a figura do homem, como aquela vista por meio do primeiro-ministro Sidney Godolphin (James Smith), é, não raras vezes, patética.

Volta e meia, Lanthimos faz com que os cenários sejam escuros, quase como se tudo fosse um subterfúgio, assim como deixa as luzes das janelas em determinados momentos fazerem o contrário. Os bastidores se aproximam da realidade e o que se mostra diante dos olhos de todos lembra mais uma peça teatral encenada, em que as personagens precisam disfarçar aquilo que realmente pensam. Quando a rainha brinca com os dezessete coelhos que possui, eles estão na parte iluminada do seu quarto, ao contrário de quando ela precisa esconder sua sexualidade. Whit Stillman havia tentado alguns desses movimentos em Amor & amizade, sem a concretização vista aqui. Para Lanthimos, esconder a sexualidade faz parte da própria ordem do poder enfocado por A favorita. Este, no entanto, atua como um eixo de coordenação entre figuras que podem ser vistas como vítimas, no caso de Abigail, e extremamente poderosas, no caso da rainha. É aí que o diretor conduz tudo a uma espécie de tragédia geral: a história se repete mesmo que sejam figuras diferentes a vivê-la.

The favourite, EUA/IRL/ING, 2018 Diretor: Yorgos Lanthimos Elenco: Olivia Colman, Emma Stone, Rachel Weisz, Nicholas Hoult, Joe Alwyn Roteiro: Deborah Davis, Tony McNamara Fotografia: Robbie Ryan Produção: Ceci Dempsey, Ed Guiney, Lee Magiday, Yorgos Lanthimos Duração: 120 min. Estúdio: Scarlet Films, Element Pictures, Arcana, Film4 Productions, Waypoint Entertainment Distribuidora: Fox Searchlight PicturesRelease date