Por André Dick
O diretor Martin Scorsese havia saído de um experimento chamado Vivendo no limite, com Nicolas Cage como o motorista de uma ambulância, em diálogo com Taxi Driver, seu clássico dos anos 70, um pouco antes de ingressar num dos seus projetos mais ambiciosos, Gangues de Nova York. Nunca foi o desejo de Scorsese recontar a história dos Estados Unidos, preferindo mostrar o universo de gângsteres em obras como Os bons companheiros, Cassino e O irlandês, a desestrutura psicológica baseada no traço cômico em O rei da comédia e Depois de horas, assim como certo medo que se reflete em indivíduos, em peças como Cabo do medo. Desse modo, Gangues se torna um filme essencial para compreender outros meandros de sua filmografia, e uma influência direta para Lincoln, por exemplo, de Spielberg.
No início, acontece uma batalha no Five Points, Manhattan , em 1846, entre duas gangues: uma de William Cutting, ou Bill, o Açougueiro (Daniel Day-Lewis), e um grupo de imigrantes católicos irlandeses, os “Dead Rabbits”, liderados pelo “Padre” Vallon (Liam Neeson). Os homens estão armados de maneira bárbara, suscitando uma época sem nenhuma lei envolvida, apenas o instinto e a tentativa de impor a própria condição e origem. Não é spoiler, mas necessário dizer que Bill mata Vallon, declarando os adversários fora da lei.
O filho de Vallon é levado para um orfanato e ressurge depois de 16 anos usando o pseudônimo de Amsterdam (Leonardo DiCaprio). Primeiramente ele reencontra um antigo amigo, Johnny Sirocco (Henry Thomas, de E.T.), que passa a contar sobre a rotina dos núcleos que constituem a então cidade de Nova Tork, até levá-lo a Bill, aquele que o filho do Padre Vallon deseja matar para concretizar a vingança.
Amsterdam conhece nesse meio tempo a ladra Jenny Everdeane (Cameron Diaz), por quem Johnny é apaixonado. Amsterdam acaba aos poucos se tornando um dos melhores amigos de Bill. Em torno circula o político William M. Tweed (Jim Broadbent)., à frente do Tammany Hall, e Amsterdam também reencontra Walter “Monk” McGinn (Brendan Gleeson) e Walter “Monk” McGinn (John C. Reilly), que eram próximos do seu pai.
Scorsese constrói essa saga de maneira muito ágil, editando as cenas de forma abrupta com a colaboração vital de Thelma Schoonmaker. Desde o início, ele oferece um escopo em escala épica, procurando rapidamente a motivação dos personagens para que, ao longo da trama, sejam desenvolvidos. Não apenas Day-Lewis tem uma atuação excepcional como Bill, mas DiCaprio também consegue captar um personagem que age perturbado por uma consequência do passado.
O duelo entre os dois, tanto em atitudes quanto em atuações, abrange talvez o que Gangues de Nova York mais tem a oferecer, junto com seu contexto sobre os primórdios da cidade em que se passa a história. Tirando o porto no qual chegam os imigrantes principalmente da Irlanda, já encaminhados para lutar pela Confederação, Scorsese evita mostrar muitos cenários, concentrando-se mais nas ruas e interiores onde Bill fica com sua gangue. Diaz tem um papel de interesse romântico para Jenny Everdeane – e, numa época em que era uma das atrizes com maior salário de Hollywood, tem seu papel talvez mais exitoso da carreira, com o lapso de Scorsese em praticamente colocá-la em segundo plano no terceiro ato.
Até determinado ponto, sua presença é de muito destaque, sobretudo porque tem uma relação como amante com Bill e mais romântica com Amsterdam; sua figura faz a costura entre as diferenças desses dois e é entregue de maneira empenhada por Diaz, com sua mescla entre certa destreza e ingenuidade. Podia haver certa influência, pelo contexto de época, com a personagem de Winona Ryder em A época da inocência em outra abordagem, porém se mostra mais complexa do que aquela no próprio resultado alcançado por Scorsese, cuja narração em Gangues de Nova York é mais contida, dando mais expansão aos próprios personagens e suas reações.
Gangues de Nova York costuma ser comparado com O portal do paraíso, de Michael Cimino, e sem dúvida há cenários, detalhes de interiores, que os aproximam fala-se que Scorsese o teria filmado antes não fosse o fracasso de bilheteria daquele. No entanto, a abordagem de Scorsese é mais comercial e direta, embora não menos interessante na essência, conduzindo os eixos de modo particularmente feliz. De maneira abrupta, o início lança tudo para um duelo que vai ser incorporado ao longo da trama e distribuído na tensão entre os demais personagens. Alguns ressurgem do passado para atormentar Amsterdam, outros seguem em sua penumbra. Há valores de amizade aqui, mas a Scorsese interessa mais uma concepção religiosa em atrito com a condução politica, que se dá de maneira ampla e irrestrita com a ajuda da trilha sonora impactante de Howard Shore e os efeitos sonoros. O roteiro de Jay Cocks, complementado por Kenneth Lonnergan – cineasta que faria bons trabalhos em tramas expansivas como Margaret e Manchester à beira-mar – e Steven Zaillian – responsável por trabalhos com grande número de personagens e ações, como O gângster e Êxodo, de Ridley Scott – exerce uma grande influência para o resultado, apostando na interconexão entre vários núcleos narrativos que vão se aproximando e se completando.
A figura de Bill traz à memória exatamente, no figurino, a de Lincoln e ele se cerca de homens como se fosse uma figura pública capaz de, ao contrário do presidente dos Estados Unidos fez, manter as pessoas divididas em gangues para uma tensão constante, e não parece por acaso que ele também fica atirando facas em imagens que encontra do político. Num passeio inicial que faz pelas ruas, com os fogos de artifício ao fundo, Bill evoca Max Cady de Cabo do medo. Scorsese, em termos de estilo, não explora tanto seus travellings, preferindo acompanhar seus personagens em quadros que evocam mais pinturas, também por causa da excelência do design de produção e dos figurinos. Sob determinado ponto de vista, é interessante como esse filme também revitaliza uma certa visão sobre a influência da religiosidade, que se manifestou antes principalmente em Kundun e se reproduziria anos mais tarde em Silêncio, também com a participação de Liam Neeson. Quando Bill chega a um determinado extremo, e Amsterdam precisa se refugiar na antiga igreja do pai, é um dos momentos mais sagazes do cinema deste século: é o diálogo entre o movimento histórico e a mudança captada por meio de certa violência misturada com uma tentativa apenas de sobreviver ao próprio tempo.
Gangs of New York, EUA, 2002 Diretor: Martin Scorsese Elenco: Leonardo DiCaprio, Daniel Day-Lewis, Cameron Diaz, Jim Broadbent, John C. Reilly, Henry Thomas, Brendan Gleeson Roteiro: Jay Cocks, Steven Zaillian, Kenneth Lonergan Fotografia: Michael Ballhaus Trilha Sonora: Howard Shore Duração: 167 min. Estúdio: Touchstone Pictures, Miramax Films,Alberto Grimaldi Productions, Initial Entertainment Group Distribuidora: Buena Vista Distribution