Enola Holmes (2020)

Por André Dick

Alguns filmes se sustentam pelo talento de seu elenco ou pelos valores técnicos. Quando essas duas peças se reúnem normalmente assessoradas por um roteiro interessante, o resultado pode se aproximar de um acerto. Ebnola Holmes traz Millie Bobby Brown como uma das produtoras e atriz principal, depois do seu grande sucesso como Eleven em Stranger things. Antes seu único papel de destaque no cinema era em Godzilla II – Rei dos monstros; agora ela parece disposta a empregar seu carisma em papéis diferentes. Baseado em The Enola Holmes Mysteries: The Case of the Missing Marquess, de Nancy Springer, a história começa mostrando a relação de Enola com sua mãe Eudoria (Helena Bonham Carter). Ela é irmã do detetive mais conhecido da Inglaterra, Sherlock (Henry Cavill), e tem em seu irmão Mycroft (Sam Claflin) uma possibilidade de mudar de vida quando sua mãe desparece, apesar de ter mais a ajuda da governanta Lane (Claire Rushbrook). Mas, diante dos acontecimentos e da mania de Mycroft em querer vê-la longe, ela começa a procurar uma saída para seus problemas, fugindo de casa num trem, onde conhece Tewkesbury (Louis Patridge). Depois de uma perseguição brusca, eles acabam viajando juntos até Londres, onde se saparam. Mal ela sabe que ele está sendo visado por um criminoso, Linthom (Burn Gorman).

Mas Enola quer reencontrar principalmente sua mãe enquanto seus irmãos não parecem se importar muito com isso. Enola Holmes tem o seu melhor na presença de Bobby Brown, uma atriz que adquiriu uma versatilidade ao longo das temporadas em Stranger things. Ela encarna de maneira empática essa personagem, falando diretamente com a câmera para provocar certa interação com o telespectador e provocar humor, e o diretor, Harry Bradbeer, de Fleabag, consegue ser eficiente ao conduzir tudo sob seu olhar. Bobby Brown ofusca Sam Claflin, muito bem como seu irmão ranzinza, e Henry Cavill, certamente o Sherlock mais discreto de todos, em comparação sobretudo com os anteriores mais recentes, de Robert Downey Jr. e Benedict Cumberbatch, quase tímido em sua maneira de investigar ou segurar livros. Enola Holmes, apesar de subutilizar Helena Bonham Carter como a mãe da família Holmes, é uma mescla entre história simples (às vezes até excessivamente, principalmente em se tratando de envolver detetives) e bem feita, no sentido técnico. O design de produção, os figurinos e a fotografia são peças da engrenagem que funcionam em todos os momentos, e, apesar dos custos modestos de produção, nunca se sentem superficiais. É um conjunto muito bem montado e que nada fica a dever tecnicamente para os Sherlock Holmes de Guy Ritchie. Os campos esverdedeados, as grandes mansões e castelos, as ruas cheias de carroças de Londres são captados com rara eficiência pela fotografia de Giles Nuttgens.

O diretor acerta em nunca expandir demais os núcleos, deixando tudo levemente livre para que os personagens não se sintam muito pressionados pelos acontecimentos. É bem verdade que isso acaba apagando um pouco a atuação de Cavill e torna a veia cômica de Bobby Brown solitária, mas Louis Partridge, como seu interesse, é especialmente eficiente, ao tornar a personagem de Enola mais humana. É Bobby Brown que não permite que se trate de uma espécie de figura excessivamente inteligente ou convencida de técnicas que apenas seu irmão teria. Ela torna a personagem quase desprovida de convencimento,  o que colabora para que a trama flua, e em alguns momentos é especialmente engraçada, como no momento em que se vê numa instituição rigorosa liderada por Miss Harrison (Fiona Shaw).
Os blocos da trama se movem também com uma edição muito ágil, com deslocamento de lugares sem afetar a compreensão do espectador. Os personagens também não adquirem muitas nuances capazes de deixá-los excessivamente herméticos e, nesse sentido, tudo se assemelha bastante a um conto de mistério sob uma ótica infantojuvenil um acerto da adaptação de Thorne. Não há muitos enigmas, nem pistas a serem seguidas: tudo é mais ou menos costurado para se chegar à finalidade desejada. Neste sentido, o filme de Bradbeer é um dos mais simpáticos e despretensiosos do ano.

Enola Holmes, EUA, 2020 Diretor: Harry Bradbeer Elenco: Millie Bobby Brown, Sam Claflin, Henry Cavill, Helena Bonham Carter, Louis Partridge, Burn Gorman Roteiro: Jack Thorne Fotografia: Giles Nuttgens Trilha Sonora: Daniel Pemberton Produção: Mary Parent, Alex Garcia, Ali Mendes, Millie Bobby Brown, Paige Brown Duração: 123 min. Estúdio: Legendary Pictures, PCMA Productions Distribuidora: Netflix

Peixe grande e suas histórias maravilhosas (2003)

Por André Dick

Como todo cineasta, Tim Burton sempre dedica um projeto em meio a outros a suas obsessões maiores. Depois de realizar Batman em seguida aos seus autorais As aventuras de Pee Wee Herman e Os fantasmas se divertem,.embora também com sua marca especial na adaptação do super-herói da DC para as telas, ele regressaria com intensidade com Edward mãos de tesoura. E, logo depois de Batman – O retorno, ele faria Ed Wood, a cinebiografia que é um de seus melhores momentos.
Quando Burton surgiu com Peixe grande e suas histórias maravilhosas, ele havia feito anteriormente sua criticada (e boa) adaptação e Planeta dos macacos. Era o momento, portanto, para se voltar a um script mais particular. É o que faz aqui, ao filmar a vida de um senhor, Ed Bloom (Albert Finney), que está doente e conta histórias fantásticas ao filho Will (Bill Crudup). O desejo deste é se reconciliar com o pai, com a presença da mãe Sandra (Jessica Lange) e ao lado da esposa Josephine (Marion Cotillard), na volta à sua casa em Ashton, no Alabama.

Na juventude, Ed é vivido por Ewan McGregor, que faz amizade primeiro com um gigante que atormenta a sua cidezinha, Karl (Matthew McGrory) – e, quando corta a barba e cabelo, é convidado a ir embora, o que Bloom acompanha – e depois chega a uma cidade secreta, Spectre, onde faz amizade com um poeta saído de Ashton, Norther Winslow (Steve Buscemi), e a filha do prefeito, Jenny (Hailey Anne Nelson). Na continuação da jornada, ele se depara com um grupo de circo, liderado por Amos Callaway (Danny DeVito), e com uma bruxa (Helena Bonham-Carter). No circo, ela conhece Sandra Templeton (Alison Lohman), por quem se apaixona. O filho deseja descobrir se as histórias são reais e sai em busca disso – inclusive com a famosa história de ter pego um peixe grande.
Burton oscila novamente entre a realidade e a fantasia, como em A lenda do cavaleiro sem cabeça e Edward, mãos de tesoura. O diretor tem uma especial consideração por este personagem do pai contador de histórias, como se estivesse retratando sua própria carreira, em meio a devaneios de fábulas, antes de sua fase mais amarga, aquela de Alice no país das maravilhas.

O filme guarda seu registro como cineasta interessado pelas lendas do interior norte-americano, a partir do livro de Daniel Wallace, o que pode se corresponder, inclusive, com Forrest Gump, mesclado com seu excepcional A lenda do cavaleiro sem cabeça. Na maneira como retrata os cenários, no entanto, ele retoma elementos de Os fantasmas se divertem e Edward na simetria das casas, e na coleção de histórias retoma As aventuras de Pee Wee, dos anos 80, com certa ingenuidade. McGregor, fazendo o Ed mais jovem consegue desenhar um personagem modesto e, ao mesmo tempo, gentil. Suas lembranças de como teria conhecido sua amada mulher estão entre os mais belos da trajetória de Burton, com uma espécie de intensificação de um romantismo que dá espaço a certa melancolia. Mais exatamente quando conhece o dono do circo, que, para lhe revelar detalhes de sua amada, que frequenta o local, o faz de empregado, registra uma espécie de sonho americano que Burton retomaria em Dumbo, com certo olhar triste, assim como quem é de fato o dono do circo.
Do mesmo modo, quando Burton mostra quem de fato é a bruxa das histórias de Ed, há uma espécie de retomada de uma característica do cineasta – da mulher que é solitária, personificada por Sandra, com atuação atenciosa de Jessica Lange, e de Jenny, vivida por Bonham Carter.

Na fotografia de Phillipe Rousselot Buiton colhe um certo ar europeu, mesmo com suas paisagens dialogando com a cultura norte-americana, e a brincadeira com a literatura, por meio do poeta que está na escondido de cidade de Spectre, a fim de escrever seu épico – que Bloom constata não ser mais que um poema óbvio com três linhas. Burton se dedica aqui, mais do que nunca, a ser uma espécie de Spielberg dos anos 80 em formato mais agridoce, sabendo lidar com certos sentimentos de decepção que às vezes não são tão bem trabalhados pelo mestre da fantasia dos anos 90. Além disso, não só por meio das figura, ele apresenta um design de produção notável, sobretudo quando Bloom participa da Segunda Guerra Mundial ou quando tem seu carro submerso numa grande enchente quando está voltando para sua cidadezinha. É uma espécie de contínuo retorno que Burton proporciona a seu filho, uma ilha de desejo por nais criatividade e pela maneira inigualável de querer transformar história simples em algo mais extraordinário e chamativo para as pessoas. O terceiro ato do seu filme acaba, nesse sentido, explorando mais seu olhar dos anos 90, de Edward e Ed Wood, com uma notável perspicácia em filmar o diferente de maneira acessível e comovente.

Big fish, EUA, 2003 Diretor: Tim Burton Elenco: Ewan McGregor, Albert Finney, Billy Crudup, Jessica Lange, Helena Bonham Carter, Alison Lohman, Robert Guillaume, Marion Cotillard, Steve Buscemi, Danny DeVito Roteiro: John August Fotografia: Philippe Rousselot Trilha Sonora: Danny Elfman Produção: Richard D. Zanuck, Bruce Cohen, Dan Jinks Duração: 125 min. Estúdio: Columbia Pictures, Jinks/Cohen Company, The Zanuck Company Distribuidora: Sony Pictures Releasing

Alice através do espelho (2016)

Por André Dick

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Os estúdios Walt Disney tiveram um primeiro semestre bastante lucrativo, com Mogli – O menino lobo, Zootopia e Capitão América – Guerra civil. Parece que o filme a ficar de fora desse grupo de sucesso será exatamente aquele que dá continuação a um dos maiores títulos da companhia desta década, Alice no país das maravilhas, de Tim Burton, que iniciava como uma jornada a um reino de encantamento e em busca da passagem ao universo adulto. Em Alice através do espelho, o diretor James Bobin (responsável pelos dois Muppets mais recentes) parece utilizar a mesma fórmula e o mesmo requinte visual de Burton. No entanto, desde o primeiro movimento, pode-se perceber algumas diferenças. Não apenas na bilheteria, que, pelo início, será muito inferior, acompanhada pelas acusações feitas a Johnny Depp por sua ex-esposa Amber Heard depois de uma separação tumultuada, mas pelo enfoque.
No primeiro Alice no país das maravilhas, a personagem central, depois de perseguir um coelho, acaba caindo num universo paralelo. Neste, ela inicia já como capitã de um navio, em meio a uma tormenta, fazendo o que sonhava. Depois de voltar para casa e ver que sua mãe, Helen Kingsleigh (Lindsay Duncan), está para vender o barco – a grande herança de seu pai – ao ex-noivo, Hamish (Leo Bill), ela ingressa, através de um espelho, seguindo uma larva, Absolem (Alan Rickman, a quem o filme é emotivamente dedicado), justamente de volta no País das Maravilhas.

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Lá, ela reencontra o Chapeleiro Maluco (Depp), a Rainha Branca (Anne Hathaway, novamente com um batom escuro contrastando com a pele pálida e a única visivelmente sem um papel definido) e os dois irmãos, Tweedledum e Tweedledee (Matt Lucas). Os cenários têm uma densidade pop muito forte como cores berrantes, mas nada que substitua um elemento soturno, que está no fundo das paisagens e dos personagens, como no primeiro. O Chapeleiro Maluco, nesse caso, é um Willy Wonka mais contido, melancólico, desta vez numa das atuações mais concentradas de Depp. Alice recebe um pedido dele: que encontre sua família desaparecida, em que o pai, Zanik Hightopp (Rhys Ifans), também faz chapéus. Para isso, Alice deve chegar ao Tempo (Sacha Baron Cohen), que tem relação com a Rainha Vermelha (Helena Bonham Carter), aqui chamada Iracebeth, e parece controlar todos os relógios do mundo. No entanto, deve-se dizer que o que Alice mais procura é sua família, principalmente o pai já morto. Ao se refletir no desejo do Chapeleiro, ela passa a viajar pelo tempo.
Quando vemos as cenas de ação no primeiro, Tim Burton está na verdade querendo focalizar mais o aspecto dramático de seus personagens, ou seja, as relações de poder que surgem entre eles, e nesse sentido tornar uma fábula a princípio ingênua numa narrativa em forma de pesadelo. Essas características também o acompanhavam, de certo modo, em seus filmes mais soturnos, como a série Batman, Edward, mãos de tesoura e A lenda do cavaleiro sem cabeça, mas sempre com a presença do humor, capaz de atenuar alguma gravidade pretendida, sem abrir espaço mesmo para qualquer graça remetendo a jogos de palavras, Jaguadartes ou Humptys Dumptys. Neste segundo, o diretor Bobin está mais interessado numa narrativa em ritmo contínuo, sem quebras, e não trabalha tanto com o clima de pesadelo, embora o humor continue sendo uma parcela mal resolvida, mesmo com a presença de Baron Cohen. O diretor tem um senso considerável de manipulação de elementos fantásticos, com uma característica específica de comprimir as cenas em pequenos núcleos que vão se correspondendo uns com os outros.

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A questão é que Alice através do espelho esconde o que era mal resolvido no filme de Burton. Bobin oferece uma agilidade emotiva ao personagem central, também em razão de Mia Wasikowska ter crescido como atriz. Ela é uma especialista em viver personagens de época, a exemplo de Jane Eyre e Madame Bovary, assim como se provou excelente atriz de dramas contemporâneos e futuristas, como O duplo e Mapas para as estrelas, e mesmo num suspense falho, Segredos de sangue: aqui ela compõe uma Alice com a qual é possível se identificar. Há uma ressonância em sua atuação que consegue se equilibrar com o número de efeitos especiais e a história que faz referências a A invenção de Hugo Cabret, O Hobbit – A batalha dos cinco exércitos e De volta para o futuro 2. De modo geral, a história original de Lewis Carroll também dá oportunidade a Bobin fazer cenas que lembram um clássico infantojuvenil dos anos 80, A história sem fim, principalmente quando lida com as engrenagens do tempo e como se pode pará-lo, a fim de modificar as suas consequências. Trata-se de um elemento decisivo para compreender esse universo de Alice: não por acaso, ela, em determinado momento, se vê numa espécie de sanatório – como a personagem de Sombras da noite e parecendo estar em A colina escarlate – e perdendo seu sonho.
O filme trata de sonhos não realizados e de um passado que não pode ser realizado, mas, principalmente, da motivação em fazê-lo. Nessa linha, mais ainda do que o primeiro de Burton, um dos filmes mais irregulares de sua trajetória exitosa, Alice através do espelho focaliza o universo masculino como controlador, não apenas pela figura do Tempo e sim pela dos pais de Alice e do Chapeleiro: seguir a profissão paterna parece uma realização de sonhos. É este o elo principal que une os personagens principais. Do mesmo modo, é o que afasta a Rainha Vermelha de sua irmã: a aceitação dos pais.

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De maneira ampla, são temas comuns em filmes da Disney, porém existe aqui uma profusão de temas interessantes e mesclados, em razão também do roteiro de Linda Woolverton, responsável pelos de A bela e a fera O rei leão, e da montagem muito ágil de Andrew Weisblum, responsável por colaborar em O fantástico sr. Raposo e Moonrise Kingdom. E não se poderia deixar de comentar – sendo uma obra de fantasia – sobre o primor novamente dos figurinos, dos efeitos especiais e dos diálogos com obras de arte: os seguranças da Rainha Vermelha são como figuras do pintor Arcimboldo, compostos de alimentos. A máquina do tempo em que Alice viaja, chamada cronosfera, parece um globo terrestre em movimento e os anos que ela atravessa têm o formato de um mar tempestuoso, como se fosse seu próprio inconsciente projetado – e o gato Cheshire (Michael Scheen) se projeta numa das ondas. As cenas em que aparecem ponteiros de relógio gigantes e que devem ser saltados por Alice são também impressionantes, numa correspondência direta com Brazil – O filme, de Terry Gilliam. Também a imensa claraboia do sanatório lembra a cronosfera, mas apontando para um céu azul. E há robôs que assessoram o Tempo que remetem a O fantástico mundo de Oz, continuação do clássico feita nos anos 80. Como grande parte das peças de fantasia recentes igualmente contestadas, a exemplo de Peter Pan e Oz – Mágico e poderoso, Alice através do espelho se mantém muito pela nostalgia que pode ter ou não o espectador.

Alice through the looking glass, EUA, 2016 Diretor: James Bobin Elenco: Johnny Depp, Mia Wasikowska, Helena Bonham Carter, Anne Hathaway, Sacha Baron Cohen, Rhys Ifans, Matt Lucas, Lindsay Duncan, Leo Bill, Geraldine James, Andrew Scott, Richard Armitage, Ed Speleers, Alan Rickman, Timothy Spall, Paul Whitehouse, Stephen Fry, Barbara Windsor, Michael Sheen, Matt Vogel Roteiro: Linda Woolverton Fotografia: Stuart Dryburgh Trilha Sonora: Danny Elfman Duração: 112 min. Produção: Jennifer Todd, Joe Roth, Suzanne Todd, Tim Burton Distribuidora: Disney Estúdio: Estúdio Shepperton

Cotação 4 estrelas

 

Uma viagem extraordinária (2013)

Por André Dick

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As aproximações de Uma viagem extraordinária com a obra de Wes Anderson existirão, mesmo que tratemos aqui de um autor como Jean-Pierre Jeunet, responsável por um dos filmes mais interessantes do início do século, O fabuloso destino de Amélie Poulain e cujo visual certamente também inspirou Anderson. São cineastas com influência de leituras que remetem ao universo infantil e não por acaso Anderson adaptou O fantástico Sr. Raposo de uma obra de Roald Dahl e filmes como Os excêntricos Tenenbaums e Moonrise Kingdom lidam com esse mesmo universo. Nele, as imagens remetem a figuras de relevo – bastante claras em Uma viagem extraordinária.
Baseado no livro The Selected Works of T.S. Spivet, de Reif Larsen, que se destaca também pelos gráficos, desenhos, mapas, num diálogo direto com o leitor, há diferenças, no entanto, bastante evidentes. A primeira é que Jeunet, a partir da leitura dessa obra, visualiza a infância como um lugar mais de melancolia e culpa, no caso do personagem de T.S. Spivet (Kyle Catlett), ligada à figura do irmão. Ele mora com a mãe, Dra. Clair (Helena Bonham Carter), o pai (Callum Keith Rennie) e a irmã, Gracie (Niamh Wilson), tendo lembranças desse irmão, Layton (Jakob Davies). Embora a mãe faça pesquisas sobre besouros e a irmã queira disputar o Miss Estados Unidos, enquanto o pai é um cowboy, ele é uma espécie de inventor, sem a atenção devida (inclusive do professor na escola) e cria uma novidade tecnológica (a máquina do movimento perpétuo), o que o credencia a receber um prêmio, depois do telefonema de G.H. Jibsen (Judy Davies), do Museu Smithsonian. A questão natural é de que ele é uma criança e não poderia sair em viagem. Mas a invenção, na verdade, parece ser apenas a justificativa para que ele possa se reencontrar com a imagem do irmão.

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Passado em Montana, Uma viagem extraordinária tem uma das fotografias mais belas já registradas num filme. Em 1970, o italiano Michelangelo Antonioni iluminou as paisagens dos Estados Unidos com Zabriskie Point, o que repercutiu em inúmeros cineastas, inclusive em outros europeus (como Wim Wenders em Paris, Texas), e pode-se dizer que Jeunet e seu fotógrafo Thomas Hardmeier fazem o mesmo mais de quarenta anos depois, com um trabalho capaz de lembrar os trabalhos de Malick e Reygadas (o de Luz silenciosa, principalmente), mas com um trabalho de cores remetendo a livros infantis – aquele mesmo em que se baseia. Apoiado nessa exuberância fotográfica, Uma viagem extraordinária é repleto de momentos verdadeiramente afetivos, e eles surgem nos momentos mais imprevistos, seja quando se Spivet e seu pai encontram uma cabra presa a um arame numa estrada deserta (e a cor vermelha do sangue contrasta com o branco do seu pelo e a paisagem ao redor), seja quando o personagem está para partir em viagem e precisa fazer com que o trem pare, a fim de que possa embarcar nele.
Os seus primeiros 20 minutos são um trabalho notável de ligação entre os personagens e o ambiente, mas é quando Spivet parte em viagem que a narrativa atinge caminhos tocantes: é antológica a analogia entre o trem no qual o personagem embarca com as paisagens e a figura do bisão, um animal que serve de referência para a história dos Estados Unidos, em direções contrárias. Não à toa, ele também está dentro de um trailer, símbolo das viagens dos norte-americanos (como As confissões de Schmidt), assim como as imagens da família de papelão e o café (com bacon e ovo) típico. Aliás, o filme está repleto dessas referências à cultura dos Estados Unidos e ao fato de que o ambiente em que vive Spivet (o pai é um legítimo cowboy) só aparenta fazer parte de um passado, em que os animais vão sendo deixados para trás das máquinas, tema que também é discutido em Nebraska, também de Payne, mas são essenciais na progressão para o futuro, a fim de manter um certo equilíbrio. É justamente este núcleo do filme que se transforma talvez naquilo que Jeunet melhor trouxe ao cinema, conduzido também pela trilha sonora notável de Denis Sanacore.

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Em outro momento, há um caminhoneiro que mostra fotografias dos passageiros para quem oferece carona – entre elas, está uma em que tirou na guerra, apontando sua arma para o que se entende ser um integrante do Talibã. Nesse sentido, Jeunet investe no filme elementos não comuns ao universo infantil, tornando seu filme ao mesmo tempo um retrato bastante interessante da infância e um ingresso no que se denomina vida adulta, na qual se pode reconhecer as perdas e uma certa culpa. O irmão de Spivet, Layton, é uma presença que persiste sobretudo na memória, mas Jeunet não foge a também retratá-lo como aquilo que representaria principalmente a vontade do pai de Spivet, de ter um filho dedicado à fazenda, ao contrário de Spivet, interessado exclusivamente em suas invenções. Esse peso da culpa é carregado pelo personagem de modo a nunca deixá-lo tranquilo. Inegável também ver a presença policial nessa fuga, quando Jeunet mostra o personagem tendo de se alimentar num trailer com lanche típico, em elementos de transição que remetem ao filme Delicatessen.
O menino Kyle Catlett, que faz Spivet, tem o comportamento realmente de uma criança, ou seja, não é um miniadulto, o que torna os filmes de Anderson também tão especiais. Isso fica claro sobretudo quando o personagem vasculha um determinado diário e pensa nas pessoas que podem estar vendo seu trem passar. A maneira como Catlett revela seu interesse pelo diário da mãe – que constitui boa parte do livro – é revelador de um talento mirim. Em outros momentos, a presença de Catlett dá ao filme uma noção mais estagnada do que aquela que encontramos em Anderson e torna a parte final menos interessante do que poderia, mesmo com a presença da excelente Judy Davis, cuja linha de interpretação destoa sensivelmente do elenco. No entanto, Jeunet nunca extrai de Catlett uma certa ingenuidade que torna Spivet um personagem verossímil. Outro detalhe, nesse terceiro ato, que, por outro lado, oferece uma atmosfera de melancolia é a sensação de perda que traz o filme de Jeunet, de algo que está sendo deixado para trás, enquanto Anderson imagina uma infância, para usar o nome do experimento de Spivet, perpétua.
É neste ato, ao mesmo tempo, que Helena Bonham Carter, como a mãe de Spivet, volta a fazer um papel mais direto e menos excêntrico, se destaca, mas é realmente a presença de um dos atores preferidos de Jeunet, Dominique Pinon, que traz ao filme seu momento mais singelo, quando se trata da origem do nome do personagem. Nesta altura, o espectador já está satisfeito: cercado de uma direção de arte impecável, proporcionando a vontade de emoldurar as suas imagens, Uma viagem extraordinária é um dos filmes mais humanos lançados recentemente, e, na mesma medida em que tem pretensões artísticas, procura um diálogo direto com o universo infantil, com uma linha narrativa situada entre o poético e o tom de lição de moral, por vezes até simples, mas sem o lugar-comum. Há filmes que fazem o espectador se sentir bem, e Jeunet consegue lidar com este caminho como poucos cineastas. Se O fabuloso destino de Amélie Poulain o colocou num grupo seleto de autores, Uma viagem extraordinária comprova sua sensibilidade contemporânea em larga escala.

The Young and Prodigious T.S. Spivet, FRA/CAN, 2013 Diretor: Jean-Pierre Jeunet Elenco: Kyle Catlett, Helena Bonham Carter, Judy Davis, Callum Keith Rennie, Niamh Wilson, Jakob Davies, Dominique Pinon Roteiro: Jean-Pierre Jeunet Fotografia: Thomas Hardmeier Trilha Sonora: Denis Sanacore Produção: Frédéric Brillion, Gilles Legrand, Jean-Pierre Jeunet Duração: 105 min. Distribuidora: Califórnia Filmes Estúdio: Epithète Films / Gaumont

Cotação 4 estrelas

O cavaleiro solitário (2013)

Por André Dick

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Nunca foi uma qualidade de Gore Verbinski a duração de seus filmes. Depois da série Piratas do caribe, O chamado e A mexicana, parece que apenas a animação Rango e o drama O sol de cada manhã conseguiam uma síntese. Em O cavaleiro solitário, novamente situado no universo do Velho Oeste, Verbinski volta com uma produção em alto desempenho dos estúdios Walt Disney, e cenas de ação variadas. Mas, em primeiro plano, é difícil lembrar de outro momento em que Depp esteve tão deslocado. Fala-se que em Sombras da noite, de Burton, ele já havia se desgastado consideravelmente com suas atuações baseadas também em trejeitos e na maquiagem, e ainda assim era divertido como Barnabas. Aqui, a partir de determinado momento, quando acentua o overacting, ele deixa transparecer o incômodo. Se antes Verbinski lhe deu o antológico Jack Sparrow – divertido até pelo menos o fim do primeiro da série –, aqui Depp não consegue ser, do mesmo modo, eficaz. Embora a presença do ator seja no mínimo questionável, o principal problema é o estilo de humor utilizado, a partir de fatos reais (o massacre de indígenas). Em segundo plano, Armie Hammer, como o Cavaleiro, não consegue repetir a proeza dos gêmeos de A rede social e mesmo do amante de J.Edgar do filme de Eastwood. Ele não tem uma habilidade para o que O cavaleiro solitário exigiria: a comédia física.
Mas a questão seria como lidar com este roteiro, escrito a oito mãos, por Eric Aronson, Justin Haythe, Ted Elliott e Terry Rossio, que parte da ideia de um menino vestido de “Lone Ranger” (Mason Cook), em 1933, em San Francisco, visitando um museu, em que encontra uma figura que apenas aparenta ser de cera, o comanche Tonto (e toda vez que a história se desloca para esse diálogo parece que Verbinski parece fazer uma concessão a uma visão idílica dos índios na América), com a placa: “O nobre selvagem em seu habitat natural”. É ele que lembra quando conheceu John Reid (Armie Hammer), um advogado, numa viagem de trem – e já esta sequência inicial apresenta o elemento mais chamativo do filme: a grandiosidade em todos os sentidos, mesclando humor a situações fantasiosas. Ambos são aprisonados por Butch Cavendish (William Fichtner), um bandido que foge do trem com uma trupe de companheiros. Reid chega à mulher, Rebecca (Ruth Wilson), e ao filho do irmão, Dan (James Badge Dale), um Texas Ranger, mas vai encontrá-los num perigo mortal.

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Entre idas e vindas, Reid e Tonto ficam amigos, mas Verbinski não consegue localizar essa amizade por meio de diálogos ou de humor substancioso, sempre sucedendo cada sequência com alguma gag visual ou verbal, encerrando cada atitude com uma espécie de detrimento de uma possível humanidade. Nesse sentido, quando apresenta alguns coadjuvantes, como Red (Helena Bonham Carter, que, assim como Depp, entrega-se a um estereótipo, já cultivado este ano em Os miseráveis), Verbinski não consegue desenhá-los a ponto de torná-los parte de uma engrenagem. A sensação, por isso, ao se assistir O cavaleiro solitário, é de que se vai saltando de um filme para outro dentro da mesma obra – e não se coloca, aqui, as influências de outros faroestes, bastante comentadas e evidentes, por todas as panorâmicas realizadas a cada minuto. Falta, além de um diálogo entre as partes, uma espécie de comedimento, que, em não existir, compromete o restante.
Não há dúvida de que há sequências realmente divertidas (spoiler: aquela em que Tonto e o cavaleiro solitário estão enterrados, apenas com o pescoço para fora) e fantásticas (a sequência final), e há um trabalho de fotografia respeitável, embora excessivamente monocromático, de Bojan Bazelli. No entanto, Verbinski coloca os montadores numa situação delicada: existem ao menos 30 minutos a mais de filme, e a história, que já seria insuficiente para pouco mais de duas horas, torna-se ainda mais inconsistente. O fato é que o que sustentaria a trama – a amizade entre Tonto e o Cavaleiro – praticamente inexiste, acontecendo apenas entre provocações de parte a parte. Restaria haver um vilão provocante, mas Butch não corresponde.

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O cavaleiro solitário.Filme 7Percebe-se que Verbinski tinha bem claro que gostaria de dar ao filme um crescente a partir de sua parte técnica. No entanto, isso acaba sendo fatal para a proposta de um filme que é desencadeado a partir da conversa de um menino com um índio, a princípio, de cera de museu, e o fato de transformar a chacina a índios numa espécie de culpa pessoal por oferecer o ouro a alguém que não o merecia, reduzindo de forma simbólica o contexto (mesmo que seja para uma fantasia, e se pode falar nesses termos pela quantidade de absurdos na parte final principalmente, dos estúdios Disney).
Há uma necessidade, ao mesmo tempo, de Verbinski ressoar, na verdade, o que seria os Estados Unidos: a disposição de bandeiras do país em momentos-chave depois do clímax parecem dizer que o filme, mais do que uma experiência infantil por esse monumento de referências passadas, é bastante político e, ao contrário do herói, nem um pouco desastrado. É talvez isto que torne O cavaleiro solitário, além de um filme que não consegue trabalhar o que pretendia em suas entrelinhas, uma espécie de referência vazia do mesmo período que tenta satirizar e tornar bem-humorado. Sabemos que em Hollywood os vilões podem experimentar o gosto da vingança dos comanches, mas, ao satirizar esta mesma vingança, O cavaleiro solitário apenas prefere buscar o saldo financeiro capaz de colocar mais um herói em disparada na linha do horizonte, com o cavalo branco que o escolheu. Diante de tudo, talvez seja realmente a última fala do filme que conceda a Verbinski um instante, mesmo que rápido, de sinceridade. Também não deixa de ser um pedido aos comanches colocados no museu de cera. No fim, tudo isso colabora para que O cavaleiro solitário se torne o que é: uma fascinante falha de ignição em todos os níveis.

The lone ranger, EUA, 2013 Diretor: Gore Verbinski Roteiro: Eric Aronson, Justin Haythe, Ted Elliott, Terry Rossio Elenco: Johnny Depp, Armie Hammer, Helena Bonham Carter, William Fichtner, Ruth Wilson, James Badge Dale, Mason Cook Produção: Gore Verbinski, Jerry Bruckheimer Fotografia: Bojan Bazelli  Trilha Sonora: Jack White Duração: 149 min. Distribuidora: Disney Estúdio: Jerry Bruckheimer Films / Silver Bullet Productions

 1 estrela e  meia

Os miseráveis (2012)

Por André Dick

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O fato de Tom Hooper ter recebido um Oscar precipitado de melhor diretor por O discurso do rei, com um dos filmes menos merecedores do prêmio principal, pode trazer uma desconfiança inicial para Os miseráveis. Em segundo, o fato de o gênero musical sofrer um declínio desde os anos 1970, quando foram feitos Um violinista no telhado e Hair, nos quais a história e as canções envolviam o espectador de forma inegável, e se pode ouvir as trilhas de forma quase independente, tamanho o seu alcance. No entanto, recentemente, torna-se difícil não lembrar da experiência desgastante que Baz Luhrmann nos proporcionou em Moulin Rouge, com sua montanha-russa de imagens, Rob Marshall, em Chicago, apesar dos bons atores, e Tim Burton, no excessivamente soturno Sweeney Todd. Além disso, os atores selecionados para Os miseráveis estavam prontos para entregar uma atuação dramática de ponta, capaz de ser credenciada para o Oscar, e isso, muitas vezes, compromete o resultado, pois soa artifical.
Tom Hooper por trás das câmeras, Anne Hathaway em lágrimas, Russell Crowe tentando cantar e Hugh Jackman na pele de um homem frágil e perseguido: eis os quesitos que podiam ter aniquilado Os miseráveis, baseado não apenas no histórico romance de Victor Hugo, de 1862, mas na adaptação feita inicialmente para a Broadway por Alain Boublil, Claude-Michel Schönberg e Herbert Kretzmer. Não se sabe exatamente, ao final, a contribuição de cada um para o resultado, mas é inegável dizer que Os miseráveis é um alento (incapaz de agradar a todos), podendo ser identificado como espetáculo teatral traduzido para o cinema. Close-ups no rosto dos artistas, câmeras em movimento constante, e ainda assim Hooper foi um dos poucos diretores a traduzir para o cinema uma encenação musical e tornar canções que poderiam simplesmente soar piegas (algumas o são) em algo que merece ser visto e apreciado. A sensação é de que estamos diante de um palco, mas um palco não estável, que nos permite nos aproximarmos das feições e gestos mais imperceptíveis dos atores, tentando vê-los cantar com a própria voz, nem que às vezes isso não aconteça (um tratamento depois da filmagem é visível), os acordes soem imperfeitos e os movimentos, frenéticos. Mas há certamente um propósito: Hooper não conseguiria captar o movimento dos personagens e encobrir o fato de que eles cantam (muito), e não dançam, com planos estáticos ou afastados dos personagens, à medida que cada canto se constitui numa espécie de monólogo e substitui, quase sempre, a sua parte falada.

Les Miserables

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Desde o início, Os miseráveis impressiona por sua qualidade justamente na direção de Hooper, quando, com um movimento espetacular de câmera, ele mostra um grupo de prisioneiros, em meio à chuva e às ondas do mar, condenado a trabalhar em embarcações (que à época era a condenação por crimes contra a igreja), fazendo um trabalho braçal, sob o olhar de Javert (Russell Crowe). Ele ordena um dos homens, Jean Valjean (Hugh Jackman), preso por 19 anos por ter roubado um pedaço de pão, a erguer um mastro de navio e, em seguida, entrega sua liberdade condicional. Crowe, obviamente, não sabe cantar, mas Os miseráveis consegue justamente por isso (pelo menos na maior parte das vezes, os atores não parecem ter um canto aperfeiçoado depois em estúdio) transparecer a encenação teatral de cada situação. Em contrapartida, Jackman apresenta-se como um ator que consegue se desvencilhar de seus papéis anteriores, e sua peregrinação até ser acolhido numa igreja acontece em poucos minutos, nos quais Hooper emprega uma estética de videoclipe,  sem cair numa superficialidade, ou seja, as imagens continuam parecendo de um filme histórico. Ao roubar algumas pratarias do padre que o acolhe, ele é preso, mas, ao ser entregue por policiais, o religioso o protege. Prepara-se para se transformar em outro homem. E, com a câmera seguindo os olhos de Valjean, somos transportados para anos depois, quando ele já se transformou em dono de uma fábrica e prefeito de uma cidezinha. Uma de suas empregadas, Fantine (Anne Hathaway), precisa ser ajudada, depois de atravessar a prostituição, levando-o à sua filha, Cosette (primeiro, Isabelle Allen, depois Amanda Seyfried, de Mamma mia), e a um casal de oportunistas, os Thénardier (Sasha Bara Cohen e Helena Bonham Carter), a porção Sweeney Todd desta adaptação, sempre perseguido, noite adentro, por Javert. Cada um dos personagens é um símbolo sem dúvida, mas Fantine alcança um poder emocional maior quando canta de “I Dreamed a Dream”. De modo geral, esta é a história de Os miseráveis, e ela se passa, a partir de determinado momento, durante a Revolução dos estudantes contra a monarquia, em Paris, em que se insere o personagem do revolucionário Marius (Eddie Redmayne, de Sete Dias com Marilyn), Gavroche (a revelação Daniel Huttlestone) e Éponine, filha dos Thénardier (Samantha Barks).

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Trata-se, desse modo, ao mesmo tempo, um filme com uma reconstituição de época impressionante, desde a fotografia, passando pelo desenho de produção até o figurino, que soam em harmonia o tempo todo. Destaca-se a mescla do azul (como no teto da Igreja do início do filme, das roupas de vários personagens) com o branco da neve e o escuro da noite, o amarelo das velas e o vermelho das bandeiras e uniformes, iluminados por velas ou candelabros (veja Delacroix).
Particularmente, embora o poder vocal de cada ator varie em intensidade, há exatamente em Os miseráveis, com sua impressionante reconstituição de época e com a direção ousada de Hooper (como Bigelow, Wes e Paul Thomas Anderson, Peter Jackson, os irmãos Wachowski e Tom Tykwer, ele foi desta vez esquecido pelo Oscar), sustentado pela fotografia de Danny Cohen (parceiro do diretor na série John Adams e em O discurso do rei) e uma seleção de músicas que ora conseguem traduzir a experiência de cada personagem, ora simplesmente soam exageradas aos ouvidos, uma ausência de artificialidade, exatamente aquilo que costuma relegar muitos musicais ao esquecimento. Por mais que haja uma quantidade de câmeras em dispersão, em momento algum isso incomoda a ponto de diminuir a obra; pelo contrário, é a partir dessa maneira de registro que o filme ganha uma potência inesperada e realça o pano de fundo dos personagens de Os miseráveis: a miséria do povo, o trabalho escravo, o sofrimento. Não se pode esquecer que Victor Hugo é um autor romântico, e muitas de suas ideias, nesse sentido, realçam o sublime, o contato fervoroso com uma imagem divina. Não por acaso, o personagem Valjean está sempre cercado por imagens religiosas ou de crucifixos, e os cenários parecem sempre assustadores e grandiosos, tornando menor a presença do homem neles – Javert, em específico, está sempre andando em coberturas de prédios, como se fosse quase cair. É, sem dúvida, um elemento básico para a compreensão do filme, ou seja, suas especificações narrativas também pertencem a um determinado período, que o diretor Hooper consegue traduzir para a vertente contemporânea, sem apagar seu elemento histórico.
É bem verdade que exatamente este romantismo exacerbado acaba diminuindo a intensidade da segunda metade, quando Cosette e Marius se apaixonam e, em meio à Revolução de 1832, cantam declarações de amor, enquanto Varjean se conscientiza de que poderá perder sua filha adotiva para outro homem. Nesses momentos, Hooper não consegue contrabalançar da maneira mais coesa o canto de amor com as cenas de revolução (aliás, apesar de apressadas, muito bem feitas), tirando um pouco Os miseráveis do caminho que adotara até então, assinalado ainda por um final um tanto abrupto, embora o filme tenha 158 minutos. Mas não se trata de um equívoco capaz de atrapalhar o filme, pois não se percebe a duração. Pelo contrário: como poucos musicais desde os anos 70, Os miseráveis convida a um novo olhar.

Les misérables, Reino Unido, 2012 Diretor: Tom Hooper  Elenco: Hugh Jackman, Russell Crowe, Anne Hathaway, Amanda Seyfried, Sacha Baron Cohen, Helena Bonham Carter, Eddie Redmayne, Samantha Barks, Aaron Tveit, Colm Wilkinson Roteiro: William Nicholson, baseado na obra de Victor Hugo Fotografia: Danny Cohen Trilha Sonora: Claude-Michel Schönberg Duração: 158 min. Distribuidora: Paramount Pictures Brasil Estúdio: Working Title Films / Cameron Mackintosh Ltd.

Cotação 4 estrelas