Passageiros (2016)

Por André Dick

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Há dois anos, o cineasta Morter Tyldum foi recebido com grande ânimo por causa de O jogo da imitação, com Benedict Cumberbatch atuando como Alan Turing, gênio que encontrou uma maneira de enfrentar o grave problema da Segunda Guerra Mundial. Lá, Keira Knightey fazia o par do personagem de Cumberbatch, numa relação conflituosa e abalada pela época em que transcorreu. Agora ele regressa em outro gênero, mais delicado do que o drama, neste Passageiros, tendo uma recepção contrária: poucas vezes se viu tantas críticas negativas. Com uma bilheteria razoável, ele pode, no entanto, se transformar naquilo que mais pretende: uma sessão descompromissada.
Na narrativa, a nave Avalon transporta mais de 5 mil colonos para o planeta Homestead II, um novo habitat, numa viagem que deverá durar 120 anos. No entanto, o engenheiro mecânico Jim “Peter Quill” Preston (Chris Pratt) acorda 90 anos mais cedo. Ele fica desesperado, pois está sozinho, pelo menos se contarmos os humanos. A sua única companhia é o androide Arthur (Michael Sheen), não tão discreto quanto os da série Alien, que atende num bar da nave espacial que remete, claro, a O iluminado.

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Não apenas o bar remete ao filme de Kubrick, como o enorme refeitório dos passageiros (desacordados), embora o design de produção deva bastante a Prometheus, de Ridley Scott, principalmente na sua iluminação. A sua dúvida existencial é justamente se ficará sozinho para o resto de sua vida, uma vez que não consegue mais localizar como poderia hibernar novamente. Esta dúvida não é cercada por alguma angústia, assemelhando-se mais à alegria do personagem de Matt Damon isolado no planeta vermelho em Perdido em Marte. Certo dia, ele, de qualquer modo, parecendo o personagem da série de TV O último cara da terra, decide despertar uma nova passageira, Aurora Lane (Jennifer Lawrence), sem avisá-la sobre isso. Antes, claro, ele fica sabendo de sua história, do fato de que é uma escritora e acaba, antes de tudo, se apaixonando por ela. O drama dessa paixão poderia se equivaler àquele do casal de Solaris, no entanto Tyldum não tem essa pretensão, e temos até uma cena de Aurora subindo pouco discretamente na mesa do refeitório. O roteiro de Jon Spaihts, que colaborou em Prometheus e Doutor Estranho, prefere as características românticas de um encontro improvável do que os dilemas existenciais desses personagens, que certamente renderiam bons conflitos na superfície do filme.

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Tyldum tem em Pratt e Lawrence seus apoios para contar esta história e inicia fazendo com que Preston lembre Quill, o contrabandista dançarino de Guardiões da galáxia. Ele deve ter gostado também de O lado bom da vida, e coloca Lawrence como uma maneira de descobrir uma companheira ao invés de enfrentar a solidão do espaço sideral e para dar também um novo sentido aos passos de dança de um jogo. O mais curioso em relação a Passageiros é o quanto seu roteiro autenticamente fraco possui alguns temas interessantes sobre a solidão humana. Não poucas vezes ele parece remeter a traços da história de Adão e Eva, sobre um casal que pode constituir por si só uma humanidade, quando são ameaçados por uma revelação que pode colocar o relacionamento em prova, e não parece por acaso que a personagem de Lawrence se chame Aurora. Já tivemos clássicos sobre seres humanos com sentimento de solidão no espaço, a começar pelo clássico Corrida silenciosa – sobretudo na amizade entre Preston e os robôs que trabalhavam na nave – e mais recentemente Gravidade. Uma saída dos personagens para um passeio fora da nave lembra imediatamente a de Spock em Star Trek – O filme, no qual se ressalta a beleza visual e certa poeticidade, logo quebrada por um humor desajeitado, que permeia toda a obra, indecisa entre a faceta dramática e a comédia mais facilitada.

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Também há um grande impacto quando a nave passa por uma estrela, lembrando Sunshine – Alerta solar, de Danny Boyle. Há referências também bastante evidentes a 2001 (quando Aurora corre pela espaçonave), e a  fotografia de Rodrigo Prieto é eficaz, principalmente quando mostra a parte externa da nave, assim como a trilha sonora de Thomas Newman oferece ritmo a cada bloco – um ritmo que não havia, particularmente, em O jogo da imitação, um filme com padrão clássico que se demorava excessivamente em cada sequência.
Ainda assim, falta a Passageiros um toque de complexidade pelo roteiro fraco e pela atuação de Pratt, mesmo que em determinados momentos ele até convença, embora Lawrence também não esteja em seus melhores dias. Nesse sentido, temos um exemplar de ficção científica interessante e divertido dentro de alguns aspectos, com bela direção de arte e efeitos visuais de qualidade. Havia uma obra de maior potencial aqui, mas nada que a transforme num desperdício.

Passengers, EUA, 2016 Diretor: Morter Tyldum Elenco: Chris Pratt, Jennifer Lawrence, Michael Sheen Roteiro: Jon Spaihts Fotografia: Rodrigo Prieto Trilha Sonora: Thomas Newman Produção: Michael Maher, Neal H. Moritz, Ori Marmur, Stephen Hamel Duração: 118 min. Distribuidora: Sony Pictures Estúdio: Columbia Pictures / Original Film / Start Motion Pictures

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Alice através do espelho (2016)

Por André Dick

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Os estúdios Walt Disney tiveram um primeiro semestre bastante lucrativo, com Mogli – O menino lobo, Zootopia e Capitão América – Guerra civil. Parece que o filme a ficar de fora desse grupo de sucesso será exatamente aquele que dá continuação a um dos maiores títulos da companhia desta década, Alice no país das maravilhas, de Tim Burton, que iniciava como uma jornada a um reino de encantamento e em busca da passagem ao universo adulto. Em Alice através do espelho, o diretor James Bobin (responsável pelos dois Muppets mais recentes) parece utilizar a mesma fórmula e o mesmo requinte visual de Burton. No entanto, desde o primeiro movimento, pode-se perceber algumas diferenças. Não apenas na bilheteria, que, pelo início, será muito inferior, acompanhada pelas acusações feitas a Johnny Depp por sua ex-esposa Amber Heard depois de uma separação tumultuada, mas pelo enfoque.
No primeiro Alice no país das maravilhas, a personagem central, depois de perseguir um coelho, acaba caindo num universo paralelo. Neste, ela inicia já como capitã de um navio, em meio a uma tormenta, fazendo o que sonhava. Depois de voltar para casa e ver que sua mãe, Helen Kingsleigh (Lindsay Duncan), está para vender o barco – a grande herança de seu pai – ao ex-noivo, Hamish (Leo Bill), ela ingressa, através de um espelho, seguindo uma larva, Absolem (Alan Rickman, a quem o filme é emotivamente dedicado), justamente de volta no País das Maravilhas.

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Lá, ela reencontra o Chapeleiro Maluco (Depp), a Rainha Branca (Anne Hathaway, novamente com um batom escuro contrastando com a pele pálida e a única visivelmente sem um papel definido) e os dois irmãos, Tweedledum e Tweedledee (Matt Lucas). Os cenários têm uma densidade pop muito forte como cores berrantes, mas nada que substitua um elemento soturno, que está no fundo das paisagens e dos personagens, como no primeiro. O Chapeleiro Maluco, nesse caso, é um Willy Wonka mais contido, melancólico, desta vez numa das atuações mais concentradas de Depp. Alice recebe um pedido dele: que encontre sua família desaparecida, em que o pai, Zanik Hightopp (Rhys Ifans), também faz chapéus. Para isso, Alice deve chegar ao Tempo (Sacha Baron Cohen), que tem relação com a Rainha Vermelha (Helena Bonham Carter), aqui chamada Iracebeth, e parece controlar todos os relógios do mundo. No entanto, deve-se dizer que o que Alice mais procura é sua família, principalmente o pai já morto. Ao se refletir no desejo do Chapeleiro, ela passa a viajar pelo tempo.
Quando vemos as cenas de ação no primeiro, Tim Burton está na verdade querendo focalizar mais o aspecto dramático de seus personagens, ou seja, as relações de poder que surgem entre eles, e nesse sentido tornar uma fábula a princípio ingênua numa narrativa em forma de pesadelo. Essas características também o acompanhavam, de certo modo, em seus filmes mais soturnos, como a série Batman, Edward, mãos de tesoura e A lenda do cavaleiro sem cabeça, mas sempre com a presença do humor, capaz de atenuar alguma gravidade pretendida, sem abrir espaço mesmo para qualquer graça remetendo a jogos de palavras, Jaguadartes ou Humptys Dumptys. Neste segundo, o diretor Bobin está mais interessado numa narrativa em ritmo contínuo, sem quebras, e não trabalha tanto com o clima de pesadelo, embora o humor continue sendo uma parcela mal resolvida, mesmo com a presença de Baron Cohen. O diretor tem um senso considerável de manipulação de elementos fantásticos, com uma característica específica de comprimir as cenas em pequenos núcleos que vão se correspondendo uns com os outros.

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A questão é que Alice através do espelho esconde o que era mal resolvido no filme de Burton. Bobin oferece uma agilidade emotiva ao personagem central, também em razão de Mia Wasikowska ter crescido como atriz. Ela é uma especialista em viver personagens de época, a exemplo de Jane Eyre e Madame Bovary, assim como se provou excelente atriz de dramas contemporâneos e futuristas, como O duplo e Mapas para as estrelas, e mesmo num suspense falho, Segredos de sangue: aqui ela compõe uma Alice com a qual é possível se identificar. Há uma ressonância em sua atuação que consegue se equilibrar com o número de efeitos especiais e a história que faz referências a A invenção de Hugo Cabret, O Hobbit – A batalha dos cinco exércitos e De volta para o futuro 2. De modo geral, a história original de Lewis Carroll também dá oportunidade a Bobin fazer cenas que lembram um clássico infantojuvenil dos anos 80, A história sem fim, principalmente quando lida com as engrenagens do tempo e como se pode pará-lo, a fim de modificar as suas consequências. Trata-se de um elemento decisivo para compreender esse universo de Alice: não por acaso, ela, em determinado momento, se vê numa espécie de sanatório – como a personagem de Sombras da noite e parecendo estar em A colina escarlate – e perdendo seu sonho.
O filme trata de sonhos não realizados e de um passado que não pode ser realizado, mas, principalmente, da motivação em fazê-lo. Nessa linha, mais ainda do que o primeiro de Burton, um dos filmes mais irregulares de sua trajetória exitosa, Alice através do espelho focaliza o universo masculino como controlador, não apenas pela figura do Tempo e sim pela dos pais de Alice e do Chapeleiro: seguir a profissão paterna parece uma realização de sonhos. É este o elo principal que une os personagens principais. Do mesmo modo, é o que afasta a Rainha Vermelha de sua irmã: a aceitação dos pais.

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De maneira ampla, são temas comuns em filmes da Disney, porém existe aqui uma profusão de temas interessantes e mesclados, em razão também do roteiro de Linda Woolverton, responsável pelos de A bela e a fera O rei leão, e da montagem muito ágil de Andrew Weisblum, responsável por colaborar em O fantástico sr. Raposo e Moonrise Kingdom. E não se poderia deixar de comentar – sendo uma obra de fantasia – sobre o primor novamente dos figurinos, dos efeitos especiais e dos diálogos com obras de arte: os seguranças da Rainha Vermelha são como figuras do pintor Arcimboldo, compostos de alimentos. A máquina do tempo em que Alice viaja, chamada cronosfera, parece um globo terrestre em movimento e os anos que ela atravessa têm o formato de um mar tempestuoso, como se fosse seu próprio inconsciente projetado – e o gato Cheshire (Michael Scheen) se projeta numa das ondas. As cenas em que aparecem ponteiros de relógio gigantes e que devem ser saltados por Alice são também impressionantes, numa correspondência direta com Brazil – O filme, de Terry Gilliam. Também a imensa claraboia do sanatório lembra a cronosfera, mas apontando para um céu azul. E há robôs que assessoram o Tempo que remetem a O fantástico mundo de Oz, continuação do clássico feita nos anos 80. Como grande parte das peças de fantasia recentes igualmente contestadas, a exemplo de Peter Pan e Oz – Mágico e poderoso, Alice através do espelho se mantém muito pela nostalgia que pode ter ou não o espectador.

Alice through the looking glass, EUA, 2016 Diretor: James Bobin Elenco: Johnny Depp, Mia Wasikowska, Helena Bonham Carter, Anne Hathaway, Sacha Baron Cohen, Rhys Ifans, Matt Lucas, Lindsay Duncan, Leo Bill, Geraldine James, Andrew Scott, Richard Armitage, Ed Speleers, Alan Rickman, Timothy Spall, Paul Whitehouse, Stephen Fry, Barbara Windsor, Michael Sheen, Matt Vogel Roteiro: Linda Woolverton Fotografia: Stuart Dryburgh Trilha Sonora: Danny Elfman Duração: 112 min. Produção: Jennifer Todd, Joe Roth, Suzanne Todd, Tim Burton Distribuidora: Disney Estúdio: Estúdio Shepperton

Cotação 4 estrelas