Alice através do espelho (2016)

Por André Dick

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Os estúdios Walt Disney tiveram um primeiro semestre bastante lucrativo, com Mogli – O menino lobo, Zootopia e Capitão América – Guerra civil. Parece que o filme a ficar de fora desse grupo de sucesso será exatamente aquele que dá continuação a um dos maiores títulos da companhia desta década, Alice no país das maravilhas, de Tim Burton, que iniciava como uma jornada a um reino de encantamento e em busca da passagem ao universo adulto. Em Alice através do espelho, o diretor James Bobin (responsável pelos dois Muppets mais recentes) parece utilizar a mesma fórmula e o mesmo requinte visual de Burton. No entanto, desde o primeiro movimento, pode-se perceber algumas diferenças. Não apenas na bilheteria, que, pelo início, será muito inferior, acompanhada pelas acusações feitas a Johnny Depp por sua ex-esposa Amber Heard depois de uma separação tumultuada, mas pelo enfoque.
No primeiro Alice no país das maravilhas, a personagem central, depois de perseguir um coelho, acaba caindo num universo paralelo. Neste, ela inicia já como capitã de um navio, em meio a uma tormenta, fazendo o que sonhava. Depois de voltar para casa e ver que sua mãe, Helen Kingsleigh (Lindsay Duncan), está para vender o barco – a grande herança de seu pai – ao ex-noivo, Hamish (Leo Bill), ela ingressa, através de um espelho, seguindo uma larva, Absolem (Alan Rickman, a quem o filme é emotivamente dedicado), justamente de volta no País das Maravilhas.

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Lá, ela reencontra o Chapeleiro Maluco (Depp), a Rainha Branca (Anne Hathaway, novamente com um batom escuro contrastando com a pele pálida e a única visivelmente sem um papel definido) e os dois irmãos, Tweedledum e Tweedledee (Matt Lucas). Os cenários têm uma densidade pop muito forte como cores berrantes, mas nada que substitua um elemento soturno, que está no fundo das paisagens e dos personagens, como no primeiro. O Chapeleiro Maluco, nesse caso, é um Willy Wonka mais contido, melancólico, desta vez numa das atuações mais concentradas de Depp. Alice recebe um pedido dele: que encontre sua família desaparecida, em que o pai, Zanik Hightopp (Rhys Ifans), também faz chapéus. Para isso, Alice deve chegar ao Tempo (Sacha Baron Cohen), que tem relação com a Rainha Vermelha (Helena Bonham Carter), aqui chamada Iracebeth, e parece controlar todos os relógios do mundo. No entanto, deve-se dizer que o que Alice mais procura é sua família, principalmente o pai já morto. Ao se refletir no desejo do Chapeleiro, ela passa a viajar pelo tempo.
Quando vemos as cenas de ação no primeiro, Tim Burton está na verdade querendo focalizar mais o aspecto dramático de seus personagens, ou seja, as relações de poder que surgem entre eles, e nesse sentido tornar uma fábula a princípio ingênua numa narrativa em forma de pesadelo. Essas características também o acompanhavam, de certo modo, em seus filmes mais soturnos, como a série Batman, Edward, mãos de tesoura e A lenda do cavaleiro sem cabeça, mas sempre com a presença do humor, capaz de atenuar alguma gravidade pretendida, sem abrir espaço mesmo para qualquer graça remetendo a jogos de palavras, Jaguadartes ou Humptys Dumptys. Neste segundo, o diretor Bobin está mais interessado numa narrativa em ritmo contínuo, sem quebras, e não trabalha tanto com o clima de pesadelo, embora o humor continue sendo uma parcela mal resolvida, mesmo com a presença de Baron Cohen. O diretor tem um senso considerável de manipulação de elementos fantásticos, com uma característica específica de comprimir as cenas em pequenos núcleos que vão se correspondendo uns com os outros.

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A questão é que Alice através do espelho esconde o que era mal resolvido no filme de Burton. Bobin oferece uma agilidade emotiva ao personagem central, também em razão de Mia Wasikowska ter crescido como atriz. Ela é uma especialista em viver personagens de época, a exemplo de Jane Eyre e Madame Bovary, assim como se provou excelente atriz de dramas contemporâneos e futuristas, como O duplo e Mapas para as estrelas, e mesmo num suspense falho, Segredos de sangue: aqui ela compõe uma Alice com a qual é possível se identificar. Há uma ressonância em sua atuação que consegue se equilibrar com o número de efeitos especiais e a história que faz referências a A invenção de Hugo Cabret, O Hobbit – A batalha dos cinco exércitos e De volta para o futuro 2. De modo geral, a história original de Lewis Carroll também dá oportunidade a Bobin fazer cenas que lembram um clássico infantojuvenil dos anos 80, A história sem fim, principalmente quando lida com as engrenagens do tempo e como se pode pará-lo, a fim de modificar as suas consequências. Trata-se de um elemento decisivo para compreender esse universo de Alice: não por acaso, ela, em determinado momento, se vê numa espécie de sanatório – como a personagem de Sombras da noite e parecendo estar em A colina escarlate – e perdendo seu sonho.
O filme trata de sonhos não realizados e de um passado que não pode ser realizado, mas, principalmente, da motivação em fazê-lo. Nessa linha, mais ainda do que o primeiro de Burton, um dos filmes mais irregulares de sua trajetória exitosa, Alice através do espelho focaliza o universo masculino como controlador, não apenas pela figura do Tempo e sim pela dos pais de Alice e do Chapeleiro: seguir a profissão paterna parece uma realização de sonhos. É este o elo principal que une os personagens principais. Do mesmo modo, é o que afasta a Rainha Vermelha de sua irmã: a aceitação dos pais.

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De maneira ampla, são temas comuns em filmes da Disney, porém existe aqui uma profusão de temas interessantes e mesclados, em razão também do roteiro de Linda Woolverton, responsável pelos de A bela e a fera O rei leão, e da montagem muito ágil de Andrew Weisblum, responsável por colaborar em O fantástico sr. Raposo e Moonrise Kingdom. E não se poderia deixar de comentar – sendo uma obra de fantasia – sobre o primor novamente dos figurinos, dos efeitos especiais e dos diálogos com obras de arte: os seguranças da Rainha Vermelha são como figuras do pintor Arcimboldo, compostos de alimentos. A máquina do tempo em que Alice viaja, chamada cronosfera, parece um globo terrestre em movimento e os anos que ela atravessa têm o formato de um mar tempestuoso, como se fosse seu próprio inconsciente projetado – e o gato Cheshire (Michael Scheen) se projeta numa das ondas. As cenas em que aparecem ponteiros de relógio gigantes e que devem ser saltados por Alice são também impressionantes, numa correspondência direta com Brazil – O filme, de Terry Gilliam. Também a imensa claraboia do sanatório lembra a cronosfera, mas apontando para um céu azul. E há robôs que assessoram o Tempo que remetem a O fantástico mundo de Oz, continuação do clássico feita nos anos 80. Como grande parte das peças de fantasia recentes igualmente contestadas, a exemplo de Peter Pan e Oz – Mágico e poderoso, Alice através do espelho se mantém muito pela nostalgia que pode ter ou não o espectador.

Alice through the looking glass, EUA, 2016 Diretor: James Bobin Elenco: Johnny Depp, Mia Wasikowska, Helena Bonham Carter, Anne Hathaway, Sacha Baron Cohen, Rhys Ifans, Matt Lucas, Lindsay Duncan, Leo Bill, Geraldine James, Andrew Scott, Richard Armitage, Ed Speleers, Alan Rickman, Timothy Spall, Paul Whitehouse, Stephen Fry, Barbara Windsor, Michael Sheen, Matt Vogel Roteiro: Linda Woolverton Fotografia: Stuart Dryburgh Trilha Sonora: Danny Elfman Duração: 112 min. Produção: Jennifer Todd, Joe Roth, Suzanne Todd, Tim Burton Distribuidora: Disney Estúdio: Estúdio Shepperton

Cotação 4 estrelas

 

O hobbit – A batalha dos cinco exércitos (2014)

Por André Dick

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Depois de receber os Oscars de melhor filme e direção pela terceira parte de O senhor dos anéis, Peter Jackson iniciou a sua fase de adaptação a um cinema sem tanta mitologia, mas, mesmo assim, ele refilmou King Kong e tentou fazer uma história sobre o além em Um olhar do paraíso. Sem ter o êxito esperado, ele voltou ao universo de Tolkien, desta vez para a trilogia de O hobbit. No entanto, além de ficar razoavelmente circunscrito a este universo, ele passou a não ser visto mais como um cineasta de especial criatividade, justamente pela opção em transformar um livro de Tolkien em três filmes, parecendo mais interessado no lucro proporcional da franquia. O primeiro O hobbit (Uma jornada inesperada) foi recebido com desconfiança pela crítica, embora, particularmente, seja um filme de muita qualidade, enquanto A desolação de Smaug, a segunda etapa da peregrinação de Bilbo e os anões foi melhor aceito, mas tinha dificuldade de criar o movimento necessário porque justamente Jackson o projetou depois de conceber O hobbit em apenas duas partes.
Essa decisão praticamente afastou Jackson de uma pretensa admiração pela obra de J.R.R. Tolkien, na visão de muitos: ele parecia mais interessado em fazer render a franquia e proporcionar uma tentativa de se equivaler com O senhor dos anéis. Finalmente chegamos à parte final da série, O hobbit – A batalha dos cinco exércitos, e já podemos ter uma noção bastante clara no sentido comparativo com a trilogia anterior.  Como se avalia desde o início, O hobbit não foi concebido, ainda em livro, para ser um épico na proporção de O senhor dos anéis, nem tinha, apesar dos personagens interessantes, o número proporcional de situações e reviravoltas. Nesse sentido, Jackson, ao incluir novamente Legolas e mais uma elfa na linha de frente, desde A desolação de Smaug, fazia o possível para lançar seu olhar pessoal para a obra de Tolkien, a meu ver sem tanta efetividade. Mas a questão é que o segundo filme tinha um encerramento sem ligação com seus longos 160 minutos e personagens ficavam soltos, sem nenhum direcionamento específico, inclusive Bilbo, que praticamente não aparecia, além de alguns personagens serem acrescentados sem a devida força.

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A terceira parte de O hobbit começa justamente onde o segundo terminou (e aqui há possíveis spoilers para quem também não viu A desolação de Smaug), com o ataque do dragão à Cidade do Lago. Jackson coloca uma dinâmica espetacular nessa sequência, com uma sucessão de efeitos especiais notáveis e um trabalho sonoro minucioso, além da agilidade da fotografia de Andrew Lesnie, o referencial desde a primeira trilogia. Este ataque de Smaug é certamente o clímax do filme passado transposto para o início deste, e o espectador logo teme que Jackson, em seguida, tome mais alguns minutos de exposição para o que acontecerá, sem o devido ritmo. Aos poucos, ele estabelece a narrativa, mas sem lacunas e demoras, ao mostrar Thorin Escudo de Carvalho (Richard Armitage) dentro da Montanha enfrentando o que os seus companheiros de viagem chamam de “doença do dragão”. Considerando-se um rei, Thorin esquece suas promessas aos habitantes da Cidade do Lago para tentar abraçar o ouro de sua morada. Bilbo tenta contornar a situação com a ajuda sobretudo a Balin (Ken Scott), mas nada impedirá uma guerra por causa justamente de vários povos saberem do que aconteceu e irem atrás do ouro – daí os cinco exércitos do título.
A saída de Jackson para sua saga poderia render certamente batalhas e destruições em massa, com o mesmo enfoque de outros filmes de fantasia. Mas, de forma inusitada, pois Jackson se mostrava excessivamente confiante com a segunda parte da série – justamente a que foi filmada em grande parte depois de ele terminar a saga, ou seja, ele a criou para formar uma trilogia –, O hobbit derradeiro é um filme que consegue lembrar não apenas os melhores momentos de O senhor dos anéis, como apontar uma maneira original de ver esses personagens que havia, a meu ver, em Uma jornada inesperada. Ou seja, enquanto no segundo Jackson parecia fazer cenas de ação simplesmente para estender poucos argumentos do roteiro, aqui ele consegue, como em O senhor dos anéis, justificar a ação por meio da decisão de seus personagens. Há filmes de ação, que surgem principalmente no verão, que não trazem nenhuma dosagem dramática; O hobbit – A batalha dos cinco exércitos faz sua ação a partir do drama dos personagens, um elemento que Jackson resgata sobretudo da batalha do Abismo de Helm em As duas torres.

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Para quem esperava encontrar novamente ligações entre os personagens na Terra-média, finalmente temos uma presença bastante interessante de Thorin Escudo de Carvalho, numa atuação definitiva de Richard Armitage, fazendo algo difícil: colocar o espectador como alguém que tem aversão a seu comportamento, mas também atrair a empatia. Bilbo, praticamente esquecido no segundo filme, servindo como coadjuvante de Bard, o arqueiro, consegue novamente se sobressair, como no primeiro, sobretudo em alguns lances de humor e comoção do ótimo Martin Freeman. Não apenas esses personagens surpreendem, como também o próprio arqueiro consegue uma justificativa para sua presença – e Luke Evans finalmente tem reações emocionais quase ausentes no primeiro filme –, assim como Legolas (Orlando Bloom), Tauriel (Evangeline Lilly) e Kili (Aidan Turner) arquitetam uma trama paralela com interesse o suficiente para o espectador, inclusive em sua relação com Thandruil (Lee Pace), embora não sejam expansivos como os de O senhor dos anéis. Contudo, são personagens, pelo menos neste filme, com motivações humanas e uma procura inata pela nobreza que independe de guerra ou linhagem, mesmo que haja um paralelismo: em determinado momento a Arkenstone desejada por Thorin pode se passar por sementes: aquela simboliza o domínio sobre o reino; as sementes simbolizam o domínio da natureza sobre os poderes e os reinos que passam. Kili pode dar uma peça pessoal a Tauriel, e ela contém sempre uma aproximação, tendo como figura contrária a de Alfrid (Ryan Gage), que acompanha os habitantes da Cidade do Lago com outro objetivo.
Esse elenco consegue criar um equilíbrio com a parte técnica do filme. Um dos maiores incômodos da segunda parte de O hobbit era sua parte técnica com alguns problemas. Em razão de muitas cenas terem sido filmadas depois da rodagem oficial ser concluída, havia um excesso de CGI nos cenários, sobretudo na passagem pela cidade dos elfos. Aqui, se continua havendo CGI, deve-se reconhecer a riqueza de detalhes, acompanhada por figurinos que dialogam com as cores captadas por Lesnie, e Jackson coloca finalmente uma coleção de imagens fantásticas capazes de lembrar não apenas O senhor dos anéis, mas fábulas fantasmagóricas e assustadoras. Os interiores da Montanha Solitária ganham detalhes imprevistos, assim como Jackson consegue obter um olhar de 360 graus sobre o que cerca a Montanha e as batalhas em seu centro, tendo Azog (Manu Bennett) como o grande inimigo, à frente de milhares de orcs. Trata-se de um final ao mesmo tempo com tom dramático, mostrando várias ações paralelas, e teatral, como se tudo precisasse ser decidido num único lugar, em que todos os personagens se reúnem para a alegria ou a tragédia.

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Parte desta decisão se deve ao fato de ter se dividido as duas partes em três, mas o fato é que O hobbit – A batalha dos cinco exércitos funciona de maneira emocional, dramática e com um palco aberto a cenas fantásticas e de resolução que não havia em A desolação de Smaug. Um duelo do qual faz parte Gandalf (Ian McKellen, compensando a dificuldade com que fez o filme, por motivos de doença, com sua empatia) em meio a figuras fantasmagóricas apenas anuncia esse eixo em que os personagens se reúnem pela sua vida ou morte (e por um instante mesmo Galadriel, numa cena magnífica, parece lembrar a cena derradeira do Padre Karras de O exorcista, mas potencializada com mais efeitos especiais). Nesse sentido, a presença não apenas de Bilbo, como também do arqueiro, mostram sempre a necessidade de se buscar um sentido para a casa. O arqueiro, à frente daqueles que sobraram da Cidade do Lago, precisa dar um novo lar a seu povo, enquanto Thorin não entende por que Bilbo coleciona motivos para levar ao condado.
Há uma cena magnética em que Thorin, dentro da Montanha, enfrenta seu próprio eu e imagina um piso banhado de ouro – numa atuação excepcional de Armitage. Esta sequência estabelece uma relação direta com uma situação em que Thorin precisa lutar sobre a água, simbolizando sua origem, e não mais sobre o ouro. Também chama a atenção uma fala de Bilbo sobre as águias que remete ao final de Uma jornada inesperada, quando ele e Thorin conversam no alto de uma montanha sobre ter um lar. Essa motivação pessoal vai ao encontro daquela de Legolas, sobre voltar ou não para seu povo. Existiam esses elementos em O senhor dos anéis, e aqui eles são expostos de maneira sensível, em meio a batalhas ruidosas e fantásticas, assim como uma bela ligação das paisagens mais ensolaradas de Uma jornada inesperada com o cinza e a ambientação mais fria de A batalha dos cinco exércitos, como se as estações da jornada se completassem.
Neste sentido, este O hobbit consegue estabelecer pontes diretas com os filmes anteriores sem levar o espectador a se perguntar por que Jackson está estendendo determinada cena. E, em meio a sequências com um ritmo contínuo (e pela primeira vez a metragem não é excessiva, levando o espectador a se interessar pelo material que foi excluído), Jackson forma uma unidade interessante com O senhor dos anéis. Se a partir do segundo filme poderia haver uma desconfiança em relação ao cineasta, ele finaliza a trilogia com um êxito que certamente traria percalços a quem não dirigiu O senhor dos anéis. O hobbit – A batalha dos cinco exércitos não é apenas um grande filme de fantasia ou de ação, ou uma adaptação à altura do universo imaginado por Tolkien. Do mesmo modo, não é um filme apenas para os fãs dessa obra, como muitas vezes é recebido, e sim para quem admira um cinema no qual é possível rever e guardar parte da própria imaginação, que cresce como as sementes que Bilbo carrega.

The Hobbit – The battle of the five armies, EUA, 2014 Diretor: Peter Jackson Elenco: Martin Freeman, Ian McKellen, Richard Armitage, Orlando Bloom, Evangeline Lilly, Aidan Turner, Luke Evans, Lee Pace, Stephen Fry, Ken Stott, Benedict Cumberbatch, Cate Blanchett, Manu Bennett, Hugo Weaving, Christopher Lee, Billy Connolly, Ian Holm  Roteiro: Fran Walsh, Guillermo del Toro, Peter Jackson, Philippa Boyens Fotografia: Andrew Lesnie Trilha Sonora: Howard Shore Produção: Carolynne Cunningham, Fran Walsh, Peter Jackson Duração: 144 min. Distribuidora: Warner Bros Estúdio: 3Foot7 / Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) / New Line Cinema / WingNut Films

Cotação 5 estrelas

 

O hobbit – A desolação de Smaug (2013)

Por André Dick 

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Com o lançamento de O hobbit, em 2012, surgiu a discussão de que Peter Jackson havia dividido a história em três partes, como O senhor dos anéis, para conseguir alcançar uma arrecadação extra. E aconteceu o que possivelmente ele mesmo já imaginava: a comparação com O senhor dos anéis trouxe o desgaste, sobretudo para a crítica e os possíveis prêmios que uma obra desse porte normalmente conseguiria. O que resultou a partir daí foi uma grande bilheteria, própria de um blockbuster, mas um esquecimento, de modo geral, do que havia feito O senhor dos anéis uma trilogia referencial para o cinema: a aceitação de um mundo fantástico. Difícil um filme de tanta qualidade como O hobbit ter sido recepcionado apenas como um prolongamento apenas em busca de mais dinheiro e de marketing, ou pensado apenas para estender o que não deveria ter sido, para alguns, sequer filmado. Um ano depois, estamos novamente diante da jornada de Bilbo, na segunda parte, O hobbit – A desolação de Smaug. E, de modo geral, parece existir novamente uma resistência à nova trilogia em termos do que ela oferece, embora uma melhor aceitação quanto ao ritmo. O ritmo é um dos destaques de O senhor dos anéis, mas não o principal: O hobbit – Uma jornada inesperada sentia-se como uma extensão sentimental da primeira trilogia e, se o seu ritmo não era igual, tinha bastante propriedade e envolvimento.
Na continuação de sua jornada, em busca da Montanha Solitária, onde se encontra o Dragão Smaug, Bilbo (Martin Freeman) está de volta, ao lado de Thorin (Richard Armitage), dos anões e Gandalf (Ian McKellen). O início do filme reserva um número de imagens suficientemente atrativo para o espectador, com bosques misteriosos e cenários da Terra-média pensados minuciosamente. De um esconderijo em que o personagem Beorn (Mikael Persbrandt) vaga rapidamente diante de nossos olhos, à Floresta das Trevas, até a chegada dos elfos, Jackson continua permeando seu filme de imagens fantásticas, misteriosas e implacavelmente belas, com a fotografia de Andrew Lesnie.

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No entanto, à medida que vemos a ação acontecendo, e em meio a ela Bilbo apenas como um apêndice, temos a sensação de que, com dois personagens sendo trazidos à cena sem fazerem efetivamente parte dela, Legolas (Orlando Bloom, deslocado), e Tauriel (Evangeline Lilly, em momento particularmente infeliz), marca presença aquilo que inexiste, pelo menos em minha avaliação (e estou em minoria), no primeiro. Há uma sensação de inchaço em muitas sequências, personagens são acrescentados sem a devida força e o elenco não se mostra à altura. Além disso, sente-se a fidelidade exagerada ao livro em algumas passagens e liberdade em outras. E elas não seriam incômodas se justamente ocorresse aquilo que foi cobrado antes do primeiro filme: que não fosse uma trilogia. Há uma sensação, de modo geral, que se tenta reproduzir fielmente os mesmos conflitos de O senhor dos anéis: o receio de o mal se estabelecer, mas de forma excessivamente vaga, a peregrinação solitária de Gandalf e até mesmo um triângulo amoroso. E tudo soa sem a mesma engenhosidade e ânimo, mas com um certo cansaço, inclusive no excesso, com o passar do tempo, do uso de CGI, apagando a qualidade da direção de arte e prejudicando a fotografia de Lesnie e o trabalho de cores. Tudo faz com que não pareça uma continuação de O hobbit, mas uma refilmagem econômica, em menor escala, de O senhor dos anéis. Ou seja, em O hobbit – Uma jornada inesperada, Jackson conseguia criar uma nova obra a partir do mesmo universo da Terra-média, dialogando de forma criativa com O senhor dos anéis; aqui ele apenas quer reproduzir a trilogia anterior.
Ao longo do filme, é difícil entender o que fez Peter Jackson abandonar seus trunfos na primeira trilogia e no primeiro O hobbit: o privilégio dado aos personagens, à inter-relação bem-humorada e as sensações de confronto, de perda e de busca pela própria identidade. Bilbo inicia o filme às voltas com o anel roubado de Gollum, mas, ao mesmo tempo em que parece ter um conflito consigo mesmo, ele logo se perde. A partir de determinado momento, independente, aqui, do que ocorre no livro, é como se ele fosse apenas parte do cenário, sem efetivamente pertencer a ele – e o fragmento longo de filme em que o arqueiro Bard (Luke Evans, sem qualquer reação) parece se tornar o personagem central, deixando Bilbo sem falas, é o mais delicado de todos. Se o primeiro sugeria uma proximidade de Bilbo dos anões, aqui parece haver mesmo nesta relação uma amizade pouco natural e nunca atribuída aos personagens, apenas imposta, sem emoção (veja-se a cena em que um anão elogia o hobbit, parecendo uma frase extraída de outros momentos). Do mesmo modo, alguns personagens desaparecem por um longo período de tempo, quando não temos mais ideia do que eles estão fazendo (a montagem é decisivamente o problema), algumas sequências se estendem demais e outras acontecem rápido demais, e se antes havia pelo menos a presença ameaçadora de um Orc, desta vez parece não haver o que será combatido. Se há, fica mais diluído, não havendo uma ameaça aterrorizante que coloque esses personagens em estado de medo – como no primeiro havia de modo evidente – até pelo menos quando surge o ameaçador dragão Smaug (criação tecnológica de surpreendente perícia, com voz de Benedict Cumberbatch), já muito tarde.

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E chegar a este ponto é realmente incontornável, é como não reencontrar o universo fantástico que se esperava há um ano. Vê-se Peter Jackson surgindo no início do filme – ele está dizendo que a obra é dele, assim como de Tolkien – e o que menos se vê é sua agilidade narrativa e de edição conhecidas mesmo em seus experimentos mais baseados em efeitos especiais, como King Kong. Até em Um olhar do paraíso, com sua confusão visual, ainda temos a sensação de que há um diretor com determinados sentimentos. Aqui, Jackson parece ausente, assim como a antes fabulosa trilha de Howard Shore, e nem mesmo o roteiro dividido, entre outros, com Guillermo del Toro consegue reparar uma estranha ausência de rumo no envolvimento com a história. Não se sabe, ao fim das contas, se alguns atores tiveram sua participação diminuída apenas por fidelidade ao livro – que não há em termos de outros personagens acrescentados, por exemplo – ou outras questões, mas O hobbit – A desolação de Smaug não se sente filmado no mesmo ritmo do primeiro O hobbit, nem com o mesmo envolvimento, nem a mesma competência para cenas de ação de Jackson, excluindo aquelas dos barris (independente de seus exageros, mesmo para uma fantasia, com Legolas em ritmo de videogame) e da Floresta das Trevas. Parece ter havido uma quebra, e esta se deve, a meu ver, ao fato de Jackson ter planejado O hobbit em dois filmes e ter resolvido, no fim das contas, realizar três, decisão ocorrida, ao que se sabe, no fim das primeiras filmagens, antes da refilmagem de cenas e acréscimos, como acontecem em filmes rodados ao mesmo tempo. Não há nesta segunda parte o que sentimos em outras trilogias: uma ligação extrema com o que veio antes, mas sobretudo com o que virá depois. E, se Aragorn não chegava a fazer falta em O hobbit, em razão de Thorin, este agora não recebe um roteiro à altura nem uma direção para mostrar os conflitos por querer recuperar a moradia de seu povo.

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De qualquer modo, o que se lamenta mesmo é ver Martin Freeman, que havia conseguido trazer uma dignidade respeitável ao primeiro filme, ser aproveitado como figurante, com participação direta apenas no início e no final, praticamente sem diálogos. Toda vez em que ele aparece é difícil imaginar por que Jackson e os roteiristas quiseram acrescentar outros personagens que não estão no livro (e poderiam perfeitamente, pois um filme não deve necessariamente ser fiel a um livro, desde que com a devida ênfase) tendo um personagem que poderia ser melhor explorado. Bilbo – o “Hobbit” do título – seria o motivo para o sucesso do filme. Da maneira como ele surge, não temos uma ligação emotiva com os personagens a ponto de estabelecer uma ligação vital para dar sequência à jornada. A pergunta ao final do filme parece valer para o próprio Jackson. E isso, em termos de mitologia da Terra-média, é terrível. Certamente, quero voltar à Terra-média, mas de preferência com Peter Jackson, equipe e seu elenco em alta voltagem. Aqui eles parecem estar apenas preparando terreno para algo realmente grande. Parecem apenas correr para passar o tempo antes do grande clímax.

The Hobbit – The desolation of Smaug, EUA/Nova Zelândia, 2013 Diretor: Peter Jackson Elenco: Martin Freeman, Ian McKellen, Richard Armitage, Orlando Bloom, Benedict Cumberbatch, Evangeline Lilly, Lee Pace, Luke Evans, Aidan Turner, Mikael Persbrandt Roteiro: Fran Walsh, Guillermo del Toro, Peter Jackson, Philippa Boyens Fotografia: Andrew Lesnie Trilha Sonora: Howard Shore Produção: Carolynne Cunningham, Fran Walsh, Peter Jackson, Zane Weiner Duração: 161 min. Distribuidora: Warner Bros Estúdio: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) / New Line Cinema / WingNut Films

Cotação 2 estrelas e meia