1917 (2019)

Por André Dick

Em 1999, o diretor inglês Sam Mendes estreava na direção com Beleza americana, sobre um pai de família descontente com o casamento que resolve deixar seu emprego para tentar uma volta à adolescência. Ele tem uma filha, admirada por um jovem vizinho sempre em conflito com o pai. Este fio de história não esclarece o que acontecerá, mas guarda um senso estranho de visão sobre a sociedade norte-americana. E já guarda uma ideia de guerra (entre familiares) que tomaria proporções diferentes na carreira do cineasta: sob a ótica dos gângsteres (Estrada para perdição), de um casal (Foi apenas um sonho) e mesmo militar (Soldado anônimo). Esta ideia de guerra (desta vez contra o terrorismo) foi explorada literalmente por Mendes em seus dois 007, alguns dos melhores de toda a série, e regressam em 1917.

Com o auxílio notável da fotografia de Roger Deakins, querendo adotar um plano-sequência com poucos cortes evidentes, Mendes coloca o espectador num campo de batalha da Primeira Guerra Mundial. Um jovem cabo, Blake (Dean-Charles Chapman), é chamado pelo General Erinmore (Colin Firth), a fim de levar uma mensagem ao Segundo Batalhão do Regimento de Devonshire. O aviso a ser transmitido  para o tenente Joseph Blake (Benedict Cumberbatch) é de que as tropas inglesas não devem avançar num terreno determinado, arriscando a vida de mais de 1.600 homens, porque isso seria uma cilada dos alemães. O soldado escolhe como parceiro de missão o amigo Schofield (George MacKay).
E esta premissa é motivo para Mendes exercer uma proeza técnica junto com Deakins numa tentativa de plano-sequências semelhante àquela que Iñárritu empreendeu com Emmanuel Lubezki em Birdman. Se no filme do cineasta mexicano esse plano se passava nos bastidores de um teatro da Broadway, e às vezes ia para as ruas de Nova York, Mendes filma os dois soldados caminhando em trincheiras e cenários devastados de guerra, até descampados.

Isso, no início, é bastante funcional, principalmente quando Mendes empreende alguns diálogos perto de uma fazenda perdida em meio ao cenário de guerra e, finalmente, depois de uma sequência fortíssima, aos poucos o filme vai retrocedendo até que a proeza técnica se constitua em si quase o único atrativo.
Não ajuda o fato de haver tão poucos diálogos para os personagens centrais, nem que as participações especiais se sintam engessadas, pelo formato, o que não acontecia em Birdman – quando a câmera de Lubezki buscava a expressão dos personagens e o plano-sequência, como em 1917, era um truque técnico, e muito bem realizado. Por meio de um design de produção meticuloso de Dennis Gassner, Mendes, de qualquer modo, insere o espectador a um cenário de Primeira Guerra, evocando em seus melhores momentos O resgate do soldado Ryan e Nascido para matar, além de Glória feita de sangue, os dois últimos de Kubrick, além, evidentemente, de Dunkirk, de Nolan (e, como este, 1917 é para ser visto na tela grande, com o melhor som possível, mas com o critério de que isso não torna um filme isento de falhas).

Mendes gosta muito de lidar com personagens que se sentem desamparados no mundo. Em Beleza americana, eles estavam perdidos, mas isso fazia com que, em algum momento, tentassem se encontrar. O roteiro ia delineando essas figuras com algum interesse pelo seu fim, sobretudo o vizinho, que filma um sacola voando ao vento. A violência em sua casa é apenas para o jovem que não pode se mover, sob o silêncio da mãe. Na outra, a mãe, trabalhando com vendas de imóveis, quer envolvimentos fora do casamento. Em 1917, a figura da mãe é decisiva para compreender a intimidade dos dois personagens centrais – e, mesmo distante, é afetuosa.
Para Mendes, o enfrentamento continua representando um pesadelo, e Beleza americana, ao contrário das belas rosas vermelhas que mostra (dialogando com David Lynch), apresenta mais espinhos. Em seu filme de guerra, os jovens soldados tranquilos embaixo de uma árvore, tendo ao fundo uma paisagem cheia de flores ao fundo, logo estão em meio ao barro, lama, cinza e marrom dos uniformes. Não há vida para Mendes aqui a não ser o heroísmo dos personagens. Ele também mostra uma árvore seca em meio à paisagem desolada num determinado momento, mostrando a progressão da narrativa. O que falta a Mendes, no entanto, apesar de uma sequência-chave angustiante, seguida de outra mais adiante depois de uma passagem de tempo que contraria a tentativa de realismo da narrativa (e, particularmente, me tirou em parte do filme, pois não tem a ver com o seu objetivo central) é justamente uma emoção: em certos momentos os personagens parecem, por meio de diálogos, reproduzirem etapas de um jogo: “Você quer voltar?”, pergunta um deles, aos 30 minutos do filme. Ou: “Eu preciso chegar a determinado lugar em X tempo”.

Boa parte dos poucos diálogos é excessivamente expositiva, mesmo que não se desprendam da realidade – e uma entrada numa das passagens escuras é notável. Do mesmo modo, algumas soluções se revelam apressadas demais e, pela dificuldade da filmagem, os atores dão a sensação de insegurança em expressar de maneira mais enfática seus diálogos, com o risco de terem de refilmar o que fizeram (embora antes tenham acontecido, claro, cortes que a montagem esconde). Ainda assim, Chapman (que faz o irmão de Chalamet em O rei) e MacKay (a grande revelação de Capitão Fantástico) são bons atores e fazem o possível com o roteiro. A trilha sonora de Thomas Newman no início é discreta e eficiente, no entanto aos poucos vai se tornando intrusiva e tentando impor uma emoção difícil de ser notada. E, finalmente, há uma sequência impecável de batalha, mas que indica o mais falho em 1917: a necessidade de chama a atenção para a câmera de Deakins, com um soldado correndo de maneira a ressaltar o que se passa ao fundo. É magistral do ponto de vista técnico; como função narrativa, é evidentemente forçoso. A ação se baseia basicamente em corridas, para que a câmera possa ir atrás dos personagens – no início funciona, depois cansa. A passagem de tempo se torna estranhamente sem ritmo, como se fosse um encadeamento apenas de passagens que precisassem retratar a guerra, porém sem qualquer contato verdadeiro com as situações, tornando-se tudo muito ligeiro e até sem criar expectativa.
De certo modo, 1917 é um filme que pela técnica merece ser visto e apreciado em escala, no entanto parece estar longe de mostrar o melhor de Mendes e Deakins em termos de funcionalidade narrativa Como virtuose, este talvez seja o auge deles– como artistas, possivelmente lhes falte ainda outro projeto mais interessante. 1917 está muito interessado em demonstrar técnica quando lhe falta um pouco de originalidade e um roteiro não tão focado apenas na ação de seus personagens.

1917, EUA/ING, 2019 Diretor: Sam Mendes Elenco: George MacKay, Dean-Charles Chapman, Mark Strong, Andrew Scott, Richard Madden, Claire Duburcq, Colin Firth, Benedict Cumberbatch Roteiro: Sam Mendes e Krysty Wilson-Cairns Fotografia:Roger Deakins Trilha Sonora: Thomas Newman Produção: Sam Mendes, Pippa Harris, Jayne-Ann Tenggren, Callum McDougall, Brian Oliver Duração: 119 min Estúdio: DreamWorks Pictures, Reliance Entertainment, New Republic Pictures, Mogambo, Neal Street Productions, Amblin Partners Distribuidora: Universal Pictures (Estados Unidos), eOne (Reino Unido), Reliance Entertainment (Índia)

Uma beleza fantástica (2017)

Por André Dick

Com direção de Simon Aboud, Uma beleza fantástica tem sido recebido como uma espécie de versão inglesa de O fabuloso destino de Amélie Poulain. Há realmente semelhanças em certo design de produção infantil e na ingenuidade da personagem central, Bella Brown (Jessica Brown Findlay), que foi abandonada quando bebê perto de um rio, sendo protegida por patos. Depois de ser criada por freiras, ela se torna bibliotecária e pretende escrever um livro infantil. Para quem tem uma origem relatada deste modo, não se torna estranho que ela deseje viver como uma escritora de fábulas, e nesse sentido o cineasta Aboud consegue costurar bem uma narrativa a princípio indefinida entre o humor mais raso e um drama profundo. Ele não possui a intensidade do filme de Jean-Pierre Jeunet, mas, de certo modo, possui a sua elegância em conectar as ideias.
O problema da vida de Belle é sua desorganização: ela não consegue ser pontual no trabalho e deixou seu jardim de casa chegar a um ponto de poder ser despejada. Isso contrasta exatamente com a mania de encaixar todos os seus alimentos perfilados de maneira exata nas prateleiras de seu armário de cozinha.

O seu vizinho, Alfie (Tom Wilkinson), bastante grosseiro, perde para Bella o seu cozinheiro irlandês, Vernon (Andrew Scott, o temível Moriarty da série de TV Sherlock), que se torna o melhor amigo dela. Isso acontece de modo abrupto, sem muitas explicações, até o espectador perceber os caminhos de Aboud: a maneira como ele apresenta a trama também possui certos elementos mais corriqueiros de uma fábula, às vezes parecendo, inclusive, não ser trabalhada o quanto deveria.
Enquanto isso, na biblioteca, a aspirante à escritora se interessa pelo inventor Billy (Jeremy Irvine), enquanto se desentende com a chefe, Bramble (Anna Chancellor). O inventor possui algumas criações notáveis, mesclando realidade e natureza, principalmente uma ave mecânica realmente impressionante. Aboud (curiosamente genro de Paul McCartney) oferece a cada sequência de encontro entre os dois um romantismo de fundo não exatamente inglês, mas europeu, dialogando com Rohmer em seus melhores momentos, mas imbuído de uma carga fantasiosa. Tudo vai depender de o espectador apreciar um determinado estilo de narrativa mais propositadamente leve e sem uma clara ambição de soar mais pretensioso. Alfie caracteriza bem isso, não apenas pela ótima atuação de Wilkinson, como pelo seu comportamento oscilante entre a inimizade e a tentativa de mudar a vida alheia.

Apesar de Findlay não ser especialmente simpática como requisitaria a personagem central, não conseguindo produzir uma personagem inocente na mesma intensidade alcançada por Audrey Tautou como Amélie Poulain, correspondente mais direto, deve-se destacar o elenco que a cerca, a começar por um excelente Wilkinson e um convincente Scott. Irvine parece se recuperar de sua estreia muito fraca como protagonista de Cavalo de guerra, de Spielberg, entregando uma atuação sensível.
Em seu início, Uma beleza fantástica é excessivamente exagerado e mesmo caricato, mas aos poucos os diálogos de Bella com o vizinho Alfie e seu pretendido levam a fotografia de Mike Eley a se mostrar realmente importante para o andamento de tudo. É um filme que parece despretensioso, mas guarda exatamente aquilo que Bella deseja escrever: uma história de fundo infantil que lida com a relação e a memória das pessoas, com uma busca pelo vínculo.

O jardim é uma metáfora transparente para as pessoas. Quando Bella e seu vizinho caminham em meio a ele, pode-se notar a primeira vez em que o muro que divide suas casas é colocado em segundo plano e eles passam a entender melhor o que se passa na vida ao lado. Aboud materializa essa ideia de maneira comovente, mesmo quando o espectador sabe exatamente o que poderá ocorrer aos personagens. Uma obra singela, como poucas se vê hoje em dia, com um certo sentimentalismo bem dosado, sem nunca diminuir a capacidade de o espectador entender a história, Uma beleza fantástica se torna, de forma insuspeita, num drama delicado sobre como mudanças individuais podem afetar todo o universo de pessoas ao redor.

This beautiful fantastic, ING, 2017 Diretor: Simon Aboud Elenco: Jessica Brown Findlay, Tom Wilkinson, Andrew Scott, Jeremy Irvine, Anna Chancellor, Eileen Davies, Sheila Hancock Roteiro: Simon Aboud Fotografia: Mike Eley Produção: Andrea Iervolino, Monika Barcadi, Christine Alderson, Kami Naghdi, Matt Treadwell, Iliane Ogilvy Thompson, Jennifer Levine, Norman Merry, Phil Hunt, Compton Ross Duração: 92 min. Estúdio: Ipso Facto Productions, Smudge Films

 

Alice através do espelho (2016)

Por André Dick

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Os estúdios Walt Disney tiveram um primeiro semestre bastante lucrativo, com Mogli – O menino lobo, Zootopia e Capitão América – Guerra civil. Parece que o filme a ficar de fora desse grupo de sucesso será exatamente aquele que dá continuação a um dos maiores títulos da companhia desta década, Alice no país das maravilhas, de Tim Burton, que iniciava como uma jornada a um reino de encantamento e em busca da passagem ao universo adulto. Em Alice através do espelho, o diretor James Bobin (responsável pelos dois Muppets mais recentes) parece utilizar a mesma fórmula e o mesmo requinte visual de Burton. No entanto, desde o primeiro movimento, pode-se perceber algumas diferenças. Não apenas na bilheteria, que, pelo início, será muito inferior, acompanhada pelas acusações feitas a Johnny Depp por sua ex-esposa Amber Heard depois de uma separação tumultuada, mas pelo enfoque.
No primeiro Alice no país das maravilhas, a personagem central, depois de perseguir um coelho, acaba caindo num universo paralelo. Neste, ela inicia já como capitã de um navio, em meio a uma tormenta, fazendo o que sonhava. Depois de voltar para casa e ver que sua mãe, Helen Kingsleigh (Lindsay Duncan), está para vender o barco – a grande herança de seu pai – ao ex-noivo, Hamish (Leo Bill), ela ingressa, através de um espelho, seguindo uma larva, Absolem (Alan Rickman, a quem o filme é emotivamente dedicado), justamente de volta no País das Maravilhas.

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Lá, ela reencontra o Chapeleiro Maluco (Depp), a Rainha Branca (Anne Hathaway, novamente com um batom escuro contrastando com a pele pálida e a única visivelmente sem um papel definido) e os dois irmãos, Tweedledum e Tweedledee (Matt Lucas). Os cenários têm uma densidade pop muito forte como cores berrantes, mas nada que substitua um elemento soturno, que está no fundo das paisagens e dos personagens, como no primeiro. O Chapeleiro Maluco, nesse caso, é um Willy Wonka mais contido, melancólico, desta vez numa das atuações mais concentradas de Depp. Alice recebe um pedido dele: que encontre sua família desaparecida, em que o pai, Zanik Hightopp (Rhys Ifans), também faz chapéus. Para isso, Alice deve chegar ao Tempo (Sacha Baron Cohen), que tem relação com a Rainha Vermelha (Helena Bonham Carter), aqui chamada Iracebeth, e parece controlar todos os relógios do mundo. No entanto, deve-se dizer que o que Alice mais procura é sua família, principalmente o pai já morto. Ao se refletir no desejo do Chapeleiro, ela passa a viajar pelo tempo.
Quando vemos as cenas de ação no primeiro, Tim Burton está na verdade querendo focalizar mais o aspecto dramático de seus personagens, ou seja, as relações de poder que surgem entre eles, e nesse sentido tornar uma fábula a princípio ingênua numa narrativa em forma de pesadelo. Essas características também o acompanhavam, de certo modo, em seus filmes mais soturnos, como a série Batman, Edward, mãos de tesoura e A lenda do cavaleiro sem cabeça, mas sempre com a presença do humor, capaz de atenuar alguma gravidade pretendida, sem abrir espaço mesmo para qualquer graça remetendo a jogos de palavras, Jaguadartes ou Humptys Dumptys. Neste segundo, o diretor Bobin está mais interessado numa narrativa em ritmo contínuo, sem quebras, e não trabalha tanto com o clima de pesadelo, embora o humor continue sendo uma parcela mal resolvida, mesmo com a presença de Baron Cohen. O diretor tem um senso considerável de manipulação de elementos fantásticos, com uma característica específica de comprimir as cenas em pequenos núcleos que vão se correspondendo uns com os outros.

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A questão é que Alice através do espelho esconde o que era mal resolvido no filme de Burton. Bobin oferece uma agilidade emotiva ao personagem central, também em razão de Mia Wasikowska ter crescido como atriz. Ela é uma especialista em viver personagens de época, a exemplo de Jane Eyre e Madame Bovary, assim como se provou excelente atriz de dramas contemporâneos e futuristas, como O duplo e Mapas para as estrelas, e mesmo num suspense falho, Segredos de sangue: aqui ela compõe uma Alice com a qual é possível se identificar. Há uma ressonância em sua atuação que consegue se equilibrar com o número de efeitos especiais e a história que faz referências a A invenção de Hugo Cabret, O Hobbit – A batalha dos cinco exércitos e De volta para o futuro 2. De modo geral, a história original de Lewis Carroll também dá oportunidade a Bobin fazer cenas que lembram um clássico infantojuvenil dos anos 80, A história sem fim, principalmente quando lida com as engrenagens do tempo e como se pode pará-lo, a fim de modificar as suas consequências. Trata-se de um elemento decisivo para compreender esse universo de Alice: não por acaso, ela, em determinado momento, se vê numa espécie de sanatório – como a personagem de Sombras da noite e parecendo estar em A colina escarlate – e perdendo seu sonho.
O filme trata de sonhos não realizados e de um passado que não pode ser realizado, mas, principalmente, da motivação em fazê-lo. Nessa linha, mais ainda do que o primeiro de Burton, um dos filmes mais irregulares de sua trajetória exitosa, Alice através do espelho focaliza o universo masculino como controlador, não apenas pela figura do Tempo e sim pela dos pais de Alice e do Chapeleiro: seguir a profissão paterna parece uma realização de sonhos. É este o elo principal que une os personagens principais. Do mesmo modo, é o que afasta a Rainha Vermelha de sua irmã: a aceitação dos pais.

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De maneira ampla, são temas comuns em filmes da Disney, porém existe aqui uma profusão de temas interessantes e mesclados, em razão também do roteiro de Linda Woolverton, responsável pelos de A bela e a fera O rei leão, e da montagem muito ágil de Andrew Weisblum, responsável por colaborar em O fantástico sr. Raposo e Moonrise Kingdom. E não se poderia deixar de comentar – sendo uma obra de fantasia – sobre o primor novamente dos figurinos, dos efeitos especiais e dos diálogos com obras de arte: os seguranças da Rainha Vermelha são como figuras do pintor Arcimboldo, compostos de alimentos. A máquina do tempo em que Alice viaja, chamada cronosfera, parece um globo terrestre em movimento e os anos que ela atravessa têm o formato de um mar tempestuoso, como se fosse seu próprio inconsciente projetado – e o gato Cheshire (Michael Scheen) se projeta numa das ondas. As cenas em que aparecem ponteiros de relógio gigantes e que devem ser saltados por Alice são também impressionantes, numa correspondência direta com Brazil – O filme, de Terry Gilliam. Também a imensa claraboia do sanatório lembra a cronosfera, mas apontando para um céu azul. E há robôs que assessoram o Tempo que remetem a O fantástico mundo de Oz, continuação do clássico feita nos anos 80. Como grande parte das peças de fantasia recentes igualmente contestadas, a exemplo de Peter Pan e Oz – Mágico e poderoso, Alice através do espelho se mantém muito pela nostalgia que pode ter ou não o espectador.

Alice through the looking glass, EUA, 2016 Diretor: James Bobin Elenco: Johnny Depp, Mia Wasikowska, Helena Bonham Carter, Anne Hathaway, Sacha Baron Cohen, Rhys Ifans, Matt Lucas, Lindsay Duncan, Leo Bill, Geraldine James, Andrew Scott, Richard Armitage, Ed Speleers, Alan Rickman, Timothy Spall, Paul Whitehouse, Stephen Fry, Barbara Windsor, Michael Sheen, Matt Vogel Roteiro: Linda Woolverton Fotografia: Stuart Dryburgh Trilha Sonora: Danny Elfman Duração: 112 min. Produção: Jennifer Todd, Joe Roth, Suzanne Todd, Tim Burton Distribuidora: Disney Estúdio: Estúdio Shepperton

Cotação 4 estrelas

 

007 contra Spectre (2015)

Por André Dick

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Alguns anos depois de 007 – Operação Skyfall, Sam Mendes relutou em voltar à franquia de James Bond, mas, convencido pelo estúdio, rodou mais este 007 contra Spectre. Segundo boa quantidade de admiradores do personagem, ele não deveria tê-lo feito, ou seja, teria sido melhor ele ter deixado sua marca apenas no anterior. Se a franquia com Daniel Craig no papel do agente britânico está em seu quarto filme, e Skyfall é considerado o melhor, seguido por Cassino Royale, deve-se admitir que este novo empreendimento está muito longe de ser o fracasso que quiseram transformá-lo. Pelo contrário, desde seu início no Dia dos Mortos na cidade do Novo México, quando James Bond está atrás de Marco Sciarra (Alessandro Cremona), e antes seduz uma latina para, então, partir de vez ao serviço programado, e o embate se dá num helicóptero, 007 contra Spectre se transforma no filme mais sólido do herói desde 007 – A serviço secreto de sua majestade, o único filme protagonizado por George Lazenby de uma série que já contou, entre seus atores, com Sean Connery, George Moore, Timothy Dalton e Pierce Brosnan.

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Daniel Craig sempre fez o James Bond mais bruto da história e aqui acontece o mesmo: a sua ação, desde o início, não é exatamente pela conversa mais ponderada, e sim pela ação da arma. Por isso, talvez M (Ralph Fiennes) queira desativar a sua função, o que Bond não considera, à medida que conta com a ajuda de Q (Ben Wishaw) e Moneypenny (Naomie Harris), em momentos de humor que estavam no mínimo ausentes em 007 – Operação Skyfall e sempre fizeram parte do personagem. Sua ida de Londres para Roma marca um dos grandes momentos da série, quando ele precisa encontrar a mulher de Sciarra, Lucia, feita por uma ótima Monica Bellucci (embora em papel diminuto), e depois se depara com uma seita que nada fica a dever para aquela de De olhos bem fechados, de Kubrick.
Eis um dos melhores momentos da trajetória de Sam Mendes: a construção de suspense dessas cenas desencadeia um 007 realmente mais soturno, mesmo em relação ao anterior, por causa também da fotografia notável de Hoyte Van Hoytema (de Interestelar e Ela), que rende uma das melhores cenas de perseguição. Que o 007 de Skyfall já lidava com traumas do passado do personagem e sua relação com M era, sem dúvida, uma conquista de Mendes e também do diretor de fotografia Roger Deakins, neste parece que o espectador consegue entrar na mente de Bond, como em determinado momento do filme, vendo seus temores. Isso fica claro numa sequência-chave em que ele encontra um determinado homem que o levará à personagem de Madaleine Swann. Que Léa Seydoux não está tão à vontade neste papel, é determinante para que se torne uma das bond girls mais discretas da história. No entanto, tal atitude não extrai de sua presença enigmática uma ponte com o passado do agente, capaz de explicar não apenas o filme, como também os capítulos anteriores, junto com Franz Oberhauser (Christoph Waltz), ou seja, há um espectro rondando 007 realmente, ritmado pela trilha de Thomas Newman, que aproveita temas clássicos dando uma roupagem de suspense.

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O que mais torna o James Bond de Craig interessante desde Cassino Royale é seu equilíbrio entre a força incalculável e uma certa vulnerabilidade em qualquer confronto que precisa enfrentar – e da qual o espectador não sabe se sairá bem, desde o momento em que acaba tomando um whisky de forma descuidada em Cassino Royale. Ainda assim, essa vulnerabilidade é que estabelece o personagem como um ser humano e não meramente um agente secreto capaz de defender as cores da Rainha da Inglaterra desde sua origem.
Mendes, de maneira sugestiva, coloca os momentos iniciais numa claridade que serão ofuscados pela noite tanto da Inglaterra quanto de Roma, onde se dará o início dos eventos que levarão ao grande confronto, e durante a narrativa vai alternando lugares escuros com lugares claros dependendo das motivações estarem evidentes ou não para Bond. Há um enigma em 007 contra Spectre que não havia nos filmes anteriores de Craig e dificilmente foram tratados em algum momento. Sam Mendes é um cineasta irregular, mas muito interessante, capaz de ter se consagrado já no início de carreira com Beleza americana e sucedendo a trajetória com filmes que mostram os recantos escuros da América, a exemplo de Estrada da perdição, Soldado anônimo e Foi apenas um sonho, além de seu singelo Distante nós vamos, irrealizado filme sobre um casal querendo criar laços entre si e com os outros. Em todos esses filmes, Mendes mostra a fragilidade das relações, no entanto sempre oferece uma espécie de segunda chance a seus personagens.

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Num determinado encontro com Madeleine, a claridade do vagão de trem não chega a iluminar por completo uma cena que certamente vai desencadear algo muito remoto e escondido dentro de cada um desses personagens, além da ameaça de Mr. Hinx (Dave Bautista). É como se David Fincher estivesse fazendo um capítulo da franquia de 007, e não por acaso, mesmo pela presença de Craig, temos indícios da presença de Millennium na maneira como as paisagens são enquadradas, embora Rooney Mara seja mais participativa do que Seydoux e estabeleça uma parceria mais convincente com o ator. O ritmo empregado por Mendes traz um equilíbrio entre as paisagens espetaculares e as ações, com uma elegância incomum, já entrevista em Operação Skyfall, mas que chega ao ápice neste filme. Sua necessidade de mostrar James Bond como uma figura complexa, sempre ligado a uma questão familiar, é uma das saídas mais interessantes do período da série em que Daniel Craig está à frente. Mendes, com isso, nunca o mostra como um agente voltado apenas para sua missão, e sim como uma figura com virtudes e falhas. Desse modo, 007 contra Spectre é uma peça de alta tensão, feita realmente com a dedicação dada a um filme de Bond e que alterna cenários distintos como a naturalidade de quem muda o figurino do personagem central.

Spectre, Reino Unido, 2015 Diretor: Sam Mendes Elenco: Daniel Craig, Christoph Waltz, Léa Seydoux, Ben Whishaw, Naomie Harris, Andrew Scott, Monica Bellucci, Ralph Fiennes, Dave Bautista Roteiro: John Logan, Neal Purvis, Robert Wade Fotografia: Hoyte Van Hoytema Trilha Sonora: Thomas Newman Produção: Barbara Broccoli, Michael G. Wilson Duração: 148 min. Distribuidora: Sony Pictures Estúdio: B24 / Columbia Pictures / Eon Productions / Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) / United Artists

Cotação 4 estrelas e meia