A visão de Napoleão de Ridley Scott

Por André Dick

O mais recente filme de Ridley Scott, Napoleão, é um épico nos moldes que o diretor costuma apresentar desde Gladiador, passando por Cruzada, até Êxodo – Deuses e reis. Com uma duração determinada para o cinema de 158 minutos, já se anuncia uma versão de 4 horas a ser exibida no streaming da Apple TV+, que produziu o filme. A princípio, é muito tentador entrar na polêmica entre o diretor e historiadores, que contestam algumas informações do filme, que não corresponderiam ao que aconteceu, mas se vê que isso é apenas uma isca para tentar capturar o espectador e o público pelo que não importa tanto aqui. Tentador, como se diz.
Ridley Scott inicia o filme tecendo uma crítica virulenta contra a Revolução Francesa – é o pontapé inicial dele contra o próprio status com que se vê a cultura francesa, sem ter aqui nenhum demérito, porque ele é coerente com as ações desses personagens que expõe. Seria difícil que isso contentasse a historiadores e a críticos em geral; é justamente contra eles que Scott coloca sua visão para mostrar por que é, desde os anos 70, um dos maiores cineastas em atividade e certamente um dos mais subestimados. O requinte visual e narrativo de Scott é tão superior quanto à maior parte dos pares de sua geração e de gerações mais novas que soa como uma falta de generosidade explícita o que fazem com muitos de seus filmes, para selecionar apenas alguns Prometheus, O último duelo e Casa Gucci, nos últimos 10 anos. Geralmente, tirando talvez Thelma & Louise, nunca se interessou por subtextos políticos, embora os apresente muito bem algumas vezes, como em Gladiador, Falcão negro em perigo Cruzada.
Napoleão mostra a trajetória do conhecido líder francês (Joaquin Phoenix mais uma vez excelente, alternando melancolia, um humor involuntário e insegurança) que durante um certo período estabeleceu um grande número de vitórias em batalhas contra vários países. Ele alterna paisagens da França, Egito, Rússia, mas o que menos interessa aqui a Scott é como se dão os efeitos da Revolução Francesa, tendo a figura de Paul Barras (Tahar Rahim, eficiente) como proeminente na era napoleônica. Os efeitos dela se dão como qualquer outra: são incorporados ao sistema (em determinado momento uma autoridade diz que é só misturar os ideais da revolução com o que eles, políticos, sempre faziam) e passam a fazer parte dele. Ridley Scott distribui isso numa sequência de reuniões, conversas sem uma solidez aparente, para exatamente comunicar o que permite ao espectador entender o que seria a História com letra maiúscula: é aquela que se passa longe do burburinho e do campo de batalha.

A maior História é a que se trava nos bastidores, com a própria miséria do personagem diante principalmente da sua amada Josephine (uma excepcional atuação de Vanessa Kirby), e a luta para ter um filho e herdeiro quando já está num posto de muito maior respeito. Por isso, não é surpreendente que o filme seja tomado por muitos como uma comédia, porque isso dá uma premissa exata para descredenciar o que Scott está expondo principalmente por imagens e negar essas relações internas e interiores faz com que apenas uma História dita pública e verdadeira se sobressaia e seja realmente importante. Ao se anular a história mais subjetiva de Napoleão e Josephine, tenta-se anular a história do indivíduo em prol da coletividade que Ridley Scott começa por acusar na primeira frase do seu filme. Ou seja, o que deveria importar são as manifestações públicas, as ações que movimentam para esses críticos o povo nas ruas, quando à parcela deles o que menos importa (nunca importou) é a condição de olhar que se dá a esse povo ou sua condição de subsistência. O povo continua miserável, mas como Scott não tentou pelo menos atenuar isso? Ele discretamente expõe a relação entre Josephine e Napoleão por cartas em alguns momentos, evitando o discurso expositivo capaz de levar o espectador a pensar de um determinado modo. Nesse ponto, o roteiro de David Scarpa é muito exitoso ao mesclar uma série de informações sem perder de vista esta relação. Destaque-se a fluidez das passagens do roteiro de Scarpa nesta versão, independente daquela ainda desconhecida de 4 horas (para a qual aparecerão admiradores posteriores do que já estava aqui) e a maneira como ele conduz a ideia de uma personagem a princípio supérflua no tratamento, como Josephine, a uma visão feminina realmente em camadas. Certamente ela é outro motivo para as críticas, pois Scott não segue também o previsível: Josephine começa se apresentando a Napoleão como Sharon Stone a Michael Douglas em Instinto selvagem. Não há em nenhum momento uma indicação de que ela o impeliu a fazer isso ou aquilo em sua trajetória – isso é indesculpável, mas, mesmo não tendo existido, não estando na história “verdadeira”, certamente seria muito bem-vindo para alguns que lidam com a história, entre aspas, exata.

Napoleão, nesse sentido, é uma espécie de retrato de sua época: ao não abraçar o coletivismo e sim a individualidade, ele está simplesmente indo contra os manuais que se apresentam para aquilo “tudo” que está em “todo o lugar ao mesmo tempo”; e ao enaltecer a individualidade (nisso se expondo a falta de certeza em relação a qualquer manobra de existência) ele está buscando seu calabouço e sua ilha de exílio. Mas é para isso que Ridley Scott jogou seu filme e jogou com todas as suas fichas. Sua postura em relação a declarações de historiadores pode ser precipitada e pouco calibrada, mas ele sabe que muito mais do que o relato da história há a “perspectiva do relato” da história, ou seja, esta é às vezes muito mutável, dependendo de quem a conta, que pode ressaltar episódios nem tão importantes como destacáveis e ignorar outros muito mais necessários para o entendimento da própria história. Será, nesse sentido, um erro histórico colocar Napoleão assistindo à cena da guilhotina de Maria Antonieta? Não seria apenas uma liberdade criativa, fílmica? Para o filósofo Gianni Vattimo, a história é sempre contada do ponto de vista do vencedor. Teria sido Napoleão um vencedor? As batalhas de Toulon e Austerlitz, por exemplo, são filmadas por uma larga escala de homens aglomerados ou em marcha e, consequentemente, com o destino deles inserido no cenário que os cerca, mas será que Ridley não está usando essas batalhas para contar exatamente algo que escapa ao movimento ininterrupto. Ora, Ridley está claramente falando, do início até o fim da narrativa, da solidão de Napoleão Bonaparte, em sua complexidade de atingir a grandeza como político ou estrategista, daí, em determinado momento, Josephine se referir a ele como amigo mostra a lacuna do que ele nunca parece ter encontrado exatamente na maneira como dispôs a sua existência.
Em se tratando de opulência visual, não há nada no cinema na última década em termos de filme de guerra que se compare a Napoleão: ele tanto lembra Barry Lindon e Maria Antonieta no trabalho de design de produção e figurinos, com a fotografia irretocável de Dariusz Wolski, quanto lembra Mistérios de Lisboa e outros filmes de Manoel de Oliveira, que capturam uma atmosfera europeia que apenas Scott e Malick, e antes David Lynch, entre os cineastas que produziram a partir dos anos 70, conseguem reverter para o cinema norte-americano.
Por isso, deve-se destacar que a escala de Napoleão é épica e dramática, com design de produção e figurinos simplesmente levando o espectador para o período enfocado. Também a fotografia lembra uma sequência de pinturas e a trilha sonora pontua com eficácia toda a narrativa. Como é de se esperar em Ridley Scott, as cenas de batalha impressionam, são ainda mais impactantes do que as de Gladiador e Cruzada, fazendo com que os 158 minutos transcorram parecendo menos, conduzindo tudo a uma ilha ou a um sonho de tudo ser revivido ou não, porque, afinal, é preciso passar pela experiência que move toda a história. Nenhuma crítica, boa ou negativa, será lembrada futuramente mais do que o próprio filme de Scott, que fez este épico com 85 anos em apenas dois meses e ainda precisa ouvir lições de como se deve dirigir um filme de críticos imberbes e outros já muito sábios que acham que Cahiers du Cinéma é uma marca de caderno.

Napoleon, EUA/ING, 2023 Direção: Ridley Scott Elenco: Joaquin Phoenix, Vanessa Kirby, Tahar Raim Roteiro: David Scarpa Fotografia: Dariusz Wolski Trilha Sonora: Martin Phipps Produção: Ridley Scott, Kevin J. Walsh, Mark Huffam, Joaquin Phoenix Duração: 158 min. Estúdio: Apple Studios Scott Free Productions Distribuidora: Columbia Pictures

Casa Gucci (2021) e O último duelo (2021)

Por André Dick

O diretor Ridley Scott tem se mostrado, com 84 anos, um dos nomes mais profícuos da história do cinema. Em 2017, ele já havia lançado dois filmes, Alien: Covenant e Todo o dinheiro do mundo, além de ter sido produtor de Blade Runner 2049. Agora, em 2021, volta a mostrar um par de projetos, O último duelo e Casa Gucci, ambos praticamente com a mesma equipe principal. Ambos os filmes mostram como se trata de um cineasta multifacetado. Se O último duelo apresenta elementos de sua fascinação pela história, a exemplo de Gladiador, Cruzada e Robin Hood, Casa Gucci tem mais elementos de sua aproximação com a cultura italiana, o que já se mostrava em Hannibal e Todo o dinheiro do mundo.
O último duelo traz roteiro de Ben Affleck e Matt Damon, repetindo a parceria de Gênio indomável, com o acréscimo de Nicole Holofcener. A narrativa mostra dois cavaleiros amigos, Jean de Carrouges (Matt Damon) e o escudeiro Jacques Le Gris (Adam Driver), que servem ao conde Pierre d’Alençon (Ben Affleck, surpreendente), nomeado senhor supremo de Jean por seu primo, o rei Carlos VI, na França, por volta de 1386. Jacques, no entanto, comete um ato contra a mulher de Jean, Marguerite de Thibouville (Jodie Comer), o que vai acarretar o dilema moral da história, muito bem trabalhado sob determinados pontos de vista.

Scott extrai de Affleck e Damon duas atuações que estão entre as melhores dos dois – particularmente Damon tinha atuações precárias nos últimos anos. Do mesmo modo, Driver é muito enigmático, como o seu personagem requer, e Comer uma atriz excepcional na sua discrição. O filme tem uma história sob diferentes pontos de vista, o que remete a Rashomon, com grande qualidade nas suas intenções e apresenta um design de produção e figurino espetaculares, como era de se esperar num filme de Scott. Por meio desses olhares distintos, Scott estabelece sua tentativa de mostrar toda uma textura social de época e, apesar de conseguir na maior parte do tempo, há um certo excesso na duração, o que faz com que alguns momentos não se estabeleçam com tanta fluidez. Mesmo assim, os diálogos e a presença ambígua de Jacques e conde Pierre estabelecem uma segurança para a narrativa em todos os pontos desenvolvidos, assim como há uma visão crua desse embate dos homens.

Casa Gucci, por sua vez, mostra a paixão de Maurizio Gucci (novamente Adam Driver) e Patrizia Reggiani (Lady Gaga). Ele é filho de Rodolfo (Jeremy Irons), responsável pela marca Gucci, ao lado do irmão Aldo (Al Pacino), e não quer ver o filho envolvido com uma mulher de outra classe social. No entanto, o filho gosta de Patrizia e decide se casar com ela. Com um toque de Todo o dinheiro do mundo nos cenários e nas situações, Scott traça um conflito familiar entre Maurizio e seu pai, e de Aldo com seu atrapalhado filho Paolo (Jared Leto).  Driver emana bem um homem simples e que não quer se consagrar como o pai e Lady Gaga é efetivamente uma mulher ambiciosa, embora com toques de certa inocência e paixão irresolvível. A interação entre os dois é muito boa, assim como Irons é especial em conferir um toque de dramaticidade, e Pacino está num de seus melhores momentos. Mesmo o atacado Jared Leto, com uma excepcional maquiagem, atua de maneira que faz lembrar de certos filmes italianos dos anos 50 e 60, como Visconti e Fellini, com um personagem extremamente exagerado e que, estranhamente, pelo menos para mim, consegue ser a alma da obra, elevando as cenas em que aparece. É nesse sentido que Casa Gucci tem algo de Trapaça, de David O. Russell, com um exagero de época, mas é mais calibrado, por causa do roteiro acertado de Becky Johnston e Roberto Bentivegna, que não complica nem facilita demais a apresentação desse universo da moda.

Assim como O último duelo, Casa Gucci trabalha com personagens um pouco confusos e com dilemas morais a serem vividos. Se no primeiro Scott lança um tema existencial, de violação da inocência, em Casa Gucci ele trabalha com personagens que almejam o poder, no entanto não sabem bem o motivo nem como fazê-lo. Nesse sentido, Driver oferece nuances, assim como Gaga entrega falas de impacto e uma boa desenvoltura, embora não tão exitosa quanto a que mostrou em Nasce uma estrela. Scott consegue unir elenco e roteiro de modo que há um crescimento forte dessas figuras. A transformação de Maurizio é muito bem trabalhada, e seu envolvimento com Patrizia elaborado em minúcias, principalmente a partir da metade do filme, quando a relação entre eles é trabalhada de modo dúbio e eficiente e se insere outra personagem entre eles. A edição é ágil, com cenas compactas, tecendo uma espécie de miniépico nas relações entre esses personagens, remetendo a O siciliano, de Michael Cimino, e à trilogia dos Corleone de Coppola sobretudo em algumas paisagens e tons da espetacular fotografia de Dariusz Wolski, o mesmo de O último duelo. O filme também, pela trilha sonora, consegue uma atmosfera intensa de anos 70 e depois dos anos 80, remetendo, por vezes, a Wall Street, de Oliver Stone, sem nunca cansar em seus 158 minutos. É por isso um dos filmes mais subestimados de 2021, para mim superior a O último duelo e que continua mostrando o talento inesgotável de Scott em recriar seu estilo cinematográfico em cada detalhe, de verdadeiro amor ao cinema ainda baseado em imagens grandiosas, mesmo quando revela apenas a rotina de figuras que tentam se encontrar.

House of Gucci, EUA, 2021 Direção: Ridley Scott Elenco: Lady Gaga, Adam Driver, Jared Leto, Jeremy Irons, Salma Hayek, Al Pacino Roteiro: Becky Johnston e Roberto Bentivegna Fotografia: Dariusz Wolski Trilha Sonora: Harry Gregson-Williams Produção: Ridley Scott, Giannina Scott, Kevin J. Walsh, Mark Huffam Production Duração: 158 min. Estúdio: Metro-Goldwyn-Mayer, Bron Creative, Scott Free Productions Distribuidora: United Artists Releasing (Estados Unidos) e Universal Pictures (Internacional).

The last duel, EUA/ING, 2021 Direção: Ridley Scott Elenco: Matt Damon, Adam Driver, Jodie Comer, Ben Affleck Roteiro: Nicole Holofcener, Matt Damon, Ben Affleck Fotografia: Dariusz Wolski Trilha Sonora: Harry Gregson-Williams Produção: Ridley Scott, Kevin J. Walsh, Jennifer Fox, Nicole Holofcener, Matt Damon, Ben Affleck Duração: 153 min. Estúdio: Scott Free Productions, Pearl Street Films, TSG Entertainment Distribuidora: 20th Century Studios

Cruzada (2005)

Por André Dick

Cruzada.Filme 1

Poucos são os cineastas que conseguem voltar a um tempo demarcado da história sem darem a impressão de que estão querendo apenas relatar fatos. Ridley Scott é um deles. Ele sempre fez filmes primorosos visualmente (como Os duelistas, Alien e Blade Runner). A partir do novo século, ele passou a focar mais em dramas cotidianos, mas sempre com cenários elaborados, alternando com peças de sentido histórico. Vencedor do Oscar em 2001, Gladiador é um feito moderno da narrativa mais simples e, ao mesmo tempo, épica, grandiosa. O personagem principal, interpretado por Russel Crowe, é traído e precisa recuperar sua dignidade voltando à Roma para salvá-la de um tirano (Joaquin Phoenix), o filho do antigo César. O argumento é mais do que previsível, contudo Ridley Scott consegue transformá-lo em imagens antológicas de lutas em arenas, com atuação eficiente de todo o elenco. A direção de arte e os efeitos especiais também são de muita consistência, sobretudo porque estamos diante de um filme de época, que nos faz crer que Roma está de volta.

Cruzada.Filme 2

Cruzada.Filme 3

Cruzada.Filme 5

Também não há muitos filmes em que o corte do diretor realmente mude o significado da história e da narrativa. O portal do paraíso talvez seja o mais representativo, em razão da polêmica que cercou o corte imposto à metragem original da obra de Cimino. E há os cortes com os quais os diretores não concordam, como aquele de Duna, nunca aceito por David Lynch. Nos últimos anos, talvez não haja outro corte novo tão significativo quanto o de Cruzada, feito por Ridley Scott. A duração original tinha 144 minutos e a que saiu em Blu-ray tem 194 minutos, ou seja, quase uma hora de acréscimo. O filme com a metragem original tinha uma grande qualidade, no entanto era irregular; Scott, por meio dessas cenas novas, mostra realmente um épico. Talvez essa diferença não funcione com todos, talvez eu tenha visto a primeira versão em uma época em que esperava mais, e hoje esse gênero de filme parece mais raro; particularmente, a versão estendida de Cruzada é extraordinária, um dos melhores momentos na trajetória de Scott.
O filme inicia em 1184, mostrando um ferreiro, Balian (Orlando Bloom), na França, às voltas com a perda recente da esposa, que se suicidou depois de perder o bebê. Chega à sua cidade o Barão Godfrey de Belin (Liam Neeson), que pede a Balian para que o acompanhe em direção à Terra Santa. Godfrey lhe pede para que sirva ao Rei de Jerusalém, Rei Baldwin IV (Edward Norton, escondido atrás de uma máscara de ferro), assessorado por Tiberias (Jeremy Irons), o Marechal de Jerusalém. O rei é irmão da princesa Sibylla (Eva Green), que se interessa por Balian, enquanto seu marido Guy de Lusignan (Marton Csokas) investe contra os muçulmanos com a Ordem dos Templários. Abre-se uma guerra de Jerusalém contra Saladino (Ghassan Massoud).

Cruzada.Filme 4

Cruzada.Filme 7

Cruzada.Filme 9

Dizer que Cruzada tem elementos de Gladiador, filme anterior de Ridley Scott, é bastante claro. Mas eis uma obra em que realmente a fotografia, de John Mathieson, faz uma diferença imprescindível, auxiliado pelo fabuloso desenho de produção. Se Orlando Bloom se entrega com certa dificuldade ao papel principal – e seus conflitos nunca são devidamente externados –, Scott selecionou um grande elenco coadjuvante, não apenas Norton, Irons e Massoud, mas Eva Green em um dos momentos de início de carreira mais exitosos. Sua personagem em Cruzada é possivelmente a mais elaborada do roteiro, adotando uma dualidade estranha, e, ao mesmo tempo que tenta ser sedutora, é abalada pela tragédia. É Green quem conduz com talento as cenas com Bloom. Trata-se de um personagem feminino típico da filmografia de Scott, que lançou a Ripley de Sigourney Weaver em 1979 e pouco mais de uma década depois fez Thelma & Louise. A personagem de Green se conecta com essas personagens na maneira de ver além de seu tempo, e Scott deseja visualizá-la com os encantos de Marion Cotillard de Um bom ano num cenário justificado de combate entre exércitos.

Cruzada.Filme 11

Cruzada.Filme 14

Cruzada.Filme 12

Já Scott filma não apenas cenários do Oriente Médio com um talento impressionante, como faz uma batalha final (de em torno de 40 minutos) com a mesma persuasão de Kurosawa em Ran, como apontou certa crítica. Não estamos mais no meio da fantasia, mas de uma reprodução da história poucas vezes igualada na história do cinema. Se a atuação de Bloom não está à altura dessa grande condição alcançada pelo filme, não exatamente importa: a versão com mais de três horas concede a ele uma chance a mais, com sequências não quebradas de maneira abrupta como na versão que foi aos cinemas. Com este filme, também se conclui que os anos 2000 não ficam para trás dos anos 70-80 na qualidade da obra de Scott: Cruzada forma um número de fpeas muito interessantes, ao lado de Falcão negro em perigo, Os vigaristas e O gângster.

Kingdon of heaven, EUA, 2005 Diretor: Ridley Scott Elenco: Orlando Bloom, Eva Green, Jeremy Irons, David Thewli, Brendan Gleeson, Marton Csokas, Liam Neeson, Marton Csokas Roteiro: William Monahan Fotografia: John Mathieson Trilha Sonora: Harry Gregson-Williams Produção: Ridley Scott Duração: 144 min. (versão de cinema) 194 min. (versão estendida) Estúdio: Scott Free Productions,
Inside Track,Studio Babelsberg Motion Pictures GmbH Distribuidora: 20th Century Fox

 

 

Thelma & Louise (1991)

Por André Dick

Durante alguns anos, depois do sucesso de público e crítica de Os duelistasAlien e Blade Runner – o terceiro de forma tardia –, Ridley Scott tentou encontrar um novo rumo para sua carreira. Realizou obras como A lenda, Perigo na noite e Chuva negra, para chegar à consagração, nos anos 90, com Thelma & Louise. Mesmo que não tenha sido indicado ao Oscar de melhor filme, Scott teve sua primeira nomeação, assim como seu elenco feminino.
Geena Davis é Thelma Dickinson, dona de casa infeliz por causa do marido egoísta, Darryl (Cristopher McDonald). Amiga da garçonete Louise Sawyer (Susan Sarandon), casada com o músico Jimmy (Michael Madsen), as duas partem em viagem a bordo de um Thunderbird 1966. No caminho, Thelma precisa ser protegida pela amiga de um homem (Timothy Carhart), desencadeando uma situação imprevisível que atrai a polícia no encalço das duas, promovendo uma caçada. Enquanto Thelma conhece JD (Brad Pitt), um cowboy de estrada errante, Louise tenta ser a ponta extrema, tentando trazer equilíbrio. As duas, porém, se sentem insatisfeitas com suas vidas, e o acontecimento que desencadeia a história parece apenas complementar essa sensação (daqui em diante, spoilers).

Iniciando a jornada no Arkansas, rumo ao interior dos Estados Unidos, com suas planícies que se perdem de vista, Ridley Scott quer mostrar as duas como símbolos femininos, de desejo de liberdade, e consegue. Mas o faz caindo algumas vezes em poucas nuances, embora a roteirista Callie Khouri substitua certo drama pela ação de em momentos-chave de forma convincente. Isso porque a polícia planeja para capturar as duas e o chefe da operação, Hal Slocumbe (Harvey Keitel), não chega a convencer por causa do roteiro apressado em seu caso, embora Keitel seja ótimo intérprete. Slocombe acaba sendo o personagem masculino mais elaborado, uma espécie de psiquiatra do caso que está ocorrendo com as duas, tentando entender o que as leva a agir de forma extremada. No entanto, Ridley Scott emprega uma direção tão boa e os diálogos fluem de maneira tão precisa que o espectador permanece atento até o final antológico. E as duas personagens centrais combinam, cada uma com personalidade definida.

O roteiro, vencedor do Oscar, aponta linhas interessantes, deixando a impressão de que, num panorama de libertação de mulher, Thelma e Louise simbolizam a própria época na qual vivem. Isso, no entanto, é apenas aparente. Em Tomates verdes fritos, lançado também em 1991, uma senhora (Kathy Bates) conhece uma idosa (Jessica Tandy) numa clínica, e a mais experiente decide contar a história de duas mulheres que, para se manterem amigas, enfrentaram alguns homens e a Ku Klux Khan, que vinham em busca de afrodescendentes no vilarejo onde elas moravam. Já em Thelma & Louise, Scott brinca com os estereótipos: o caminhoneiro (Marco St. John) com que se deparam prova do próprio tipo que emprega. A mulher se vinga à altura do que tentaram lhe fazer e passa a agir de forma diferente, porém, no fundo, reserva uma imagem para si própria, que não é a do homem, nem a de ocupar o espaço dele, e sim o seu lugar: o fato definitivo é colocar em questão as maiores características de ambas, também de mudança geracional. Num momento interessante, duas senhoras observam Louise com o olhar triste pela janela de um estabelecimento e ela imagina que a consideram desarrumada: quando vai passar o batom, ela o joga fora. As duas senhoras parecem almejar a liberdade que a imagem de Louise, mesmo em fuga, proporciona. Este, porém, é apenas um exemplo em meio a tantos, alguns subentendidos. Alguns anos antes, George Miller já havia tratado de algumas questões sob o tom da comédia em As bruxas de Eastwick.

A dupla de amigas se envolve com novos problemas e sua saída é fugir para o México, como faziam os cowboys no Velho Oeste. O medo delas é, na verdade, sua maior fortaleza. Mas Thelma e Louise não chegam a se considerar invencíveis, e Scott deixa isso claro. Não é incomum se esperar nisso de Ridley Scott, que fez personagens femininas anteriormente tão marcantes, como a Ripley de Alien e a Rachel de Blade Runner.
Quem se destaca mais é Geena Davis, que surpreende num papel difícil. Susan faz uma Louise antológica, no entanto Ridley, seguindo o tom de Chuva negra, um sucesso de bilheteria, na dose equilibrada entre seu visual e a narrativa, não chega a se arriscar, apesar dos bons movimentos de câmera, e, com uma bela fotografia de Adrian Biddle e algumas músicas country de qualidade, opta por fazer um road movie clássico e libertador. Embora sua narrativa soe às vezes superficial, não pelas atrizes, trata-se de uma de suas grandes conquistas como diretor. Por sua vez, certamente influenciada por Vanishing Point, por exemplo, a mescla entre drama, humor e ação é o grande trunfo do roteiro de Khouri.

Thelma & Louise, EUA, 1991 Diretor: Ridley Scott Elenco: Susan Sarandon, Geena Davis, Harvey Keitel, Michael Madsen, Cristopher McDonald, Brad Pitt, Timothy Carhart, Marco St. John Roteiro: Callie Khouri Fotografia: Adrian Biddle Trilha Sonora: Hans Zimmer Produção: Ridley Scott eMimi Polk Gitlin Duração: 129 min. Estúdio: Pathé, Percy Main Productions, Star Partners III Ltd., Metro-Goldwyn-Mayer Distribuidora: Metro-Goldwyn-Mayer

Alien – O oitavo passageiro (1979)

Por André Dick

Dirigido por Ridley Scott – que vinha de Os duelistas (1977) – Alien – O oitavo passageiro marcou o final dos anos 1970 como uma das ficções científicas mais originais até então feitas, com elementos de terror e visual repleto de jogos de luz. Apesar de revolucionário e ter influenciado dezenas de filmes em seguida, Alien surgiu da impossibilidade do roteirista Dan O’Bannon terminar um roteiro para a versão cinematográfica de Duna (que seria também filmado por Jodorowsky, depois por Ridley Scott e acabou sendo feito por David Lynch), e fez tanto sucesso que deu origem a uma franquia, que perdura até hoje, muito em razão também da sua sequência, Aliens, dirigida por James Cameron.
Os personagens estão em viagem espacial na Nostromo, um cargueiro de minério espacial. quando são acordados ao receberem sinais de vida vindos de um planeta. A bordo da espaçonave, estão o capitão Dallas (Tom Skerritt), os oficiais Kane (John Hurt) e Ripley (Sigourney Weaver), Lambert (Veronica Cartwright), o cientista Ash (Ian Holm) e dois engenheiros, Parker (Yaphet Kotto) e Brett (Harry Dean Stanton). Ao descerem no planeta de onde vêm os sinais, além de problemas estruturais, o principal: uma criatura fica grudada no capacete de Kane, com tentáculos agarrados em seu pescoço, deixando-o numa espécie de coma. Como deixá-lo vir a bordo trazendo uma potencial ameaça?

É nesse planeta que se destaca, além dos excelentes efeitos visuais (vencedores do Oscar), o desenho de produção fascinante de H. R. Giger. A maneira como se prepara o que irá acontecer, numa mesa de jantar, é definidora dos padrões de mescla entre terror e ficção científica que seria replicada com êxito por John Carpenter em O enigma de outro mundo (aliás, O’Bannon havia escrito Dark Star, de 1974, dirigido pelo próprio Carpenter).
Durante alguns anos, depois do sucesso de público e crítica de Os duelistasAlien e Blade Runner – o terceiro de forma tardia –, Ridley Scott tentou encontrar um novo rumo para sua carreira. Nos anos 80, depois de Blade Runner, realizou obras como A lenda, para chegar à consagração, nos anos 90, com Thelma & Louise, até chegar ao subestimado Gladiador, um dos melhores filmes já realizados sobre a Roma Antiga. Depois de fazer Falcão negro em perigo, com cenas de ação muito bem feitas, Hannibal (a sequência desagradável de O silêncio dos inocentes), Os vigaristas (mistura entre drama e comédia com Nicolas Cage), encadeou uma espécie de remake de Gladiador, o grandioso Cruzada, e alguns filmes com Russell Crowe: Um bom anoO gângsterRede de mentiras e Robin Hood – dos quais os dois primeiros se destacam, e nos últimos anos retomou a saga Alien, com os ótimos e subestimados Prometheus e Alien: Covenant.

É em Alien – O oitavo passageiro que Scott constrói a a premissa de sua trajetória elegante: um cineasta com primor visual, logo depois de Os duelistas (em seu diálogo com Barry Lindon), e que busca concentrar as ideias em narrativas aparentemente simples. O androide Ash antecipa David de Prometheus e Alien: Covenant, um parente próximo também de Roy Batty, feito por Rutger Hauer, em Blade Runner, à procura de uma explicação divina para a existência, ao mesmo tempo que parece se afastar dela ou mesmo colocá-la em dúvida. Será, afinal, que ele deseja conservar a vida eterna de seu pai? É este pai, responsável pela corporação à qual pertence a Nostromo, que lembra Tyrell, o criador dos replicantes de Blade Runner. O deuses – e os homens que se movem para descoberta –, são colocados em dúvida – mas aparecem a cada instante, na forma de conflitos e tentativa de persuadir o outro a caminhar rumo ao abismo. David é quem dá uma espécie de consistência existencial a Prometheus, e as partes de que participa são as melhores, seja no início, inspecionando os sonhos de Elizabeth, seja quando anda de bicicleta jogando basquete ou caminha de chinelo num ambiente asséptico – remetendo ao David Bowman de 2001.

Quando coloca um uniforme com capacete, logo é perguntado por que faz aquilo, já que é um androide. Ele responde que é porque foi feito para que não fosse diferenciado dos seres humanos. Ou seja, há uma espécie de consciência para David, disfarçada de desumanidade, e todas as suas ações são completamente mecânicas e calculadas. Ele se difere dos androides feitos por Holm e Henriksen nos dois primeiros filmes da série, pois se aproxima muito mais do homem – e se visualiza que aqueles foram criados como versões avançadas deste – em suas ações inexplicáveis e indefinidas mesmo por quem está, digamos, “acima” dele em hierarquia.
De qualquer modo, é justamente seu antecessor Ash, numa atuação brilhante de Ian Holm, que concede a faceta humana mais assustadora de Alien, pois ele, de fato, é uma criação do homem em que não se tem confiança alguma. Por mais que se distancie das atitudes que teria um ser humano comum, ou seja, baseado em fatos assustadores. Quando Ripley desconfia de seu comportamento, Scott oferece a guinada de seu filme, entre corredores escuros da Nostromo. Weaver, nesse sentido, tem uma atuação excepcional, oferecendo um tom preocupado singular, precursor das personagens de outro sucesso de Scott, Thelma & Louise. Em meio a um clima misterioso, a trilha sonora de Jerry Goldsmith concede um atrativo extra para compor uma atmosfera aterradora e que ainda pode sintetizar boa parte da trajetória do cineasta britânico. Veja-se, por exemplo, as sequências em que Brett procura por um gato pela nave espacial ou aquela na qual o capitão Dallas tenta usar um aparelho para saber da chegada de uma potencial ameaça. Além disso, a maneira como Scott liga Alien e Prometheus é um dos grandes achados do cinema recente, colocando em discussão temas como a exploração espacial e como a humanidade pode ser colocada em segundo plano em nome de possíveis descobertas científicas. Para Scott, o elemento mais assustador pode ser justamente a decisão sob influência da humanidade. Para combatê-la, é preciso certo heroísmo e seguir o caminho certo para a autodescoberta.

Alien, EUA/ING, 1979 Diretor: Ridley Scott Elenco: Tom Skerritt, Sigourney Weaver, Veronica Cartwright, Harry Dean Stanton, John Hurt, Ian Holm, Yaphet Kotto Roteiro: Dan O’Bannon Fotografia: Derek Vanlint Trilha Sonora: Jerry Goldsmith Produção: Gordon Carroll, David Giler, Walter Hill Duração: 117 min. Estúdio: 20th Century Fox e Brandywine Productions Distribuidora: 20th Century Fox

 

A lenda (1985)

Por André Dick

A Segunda História da Criação da Bíblia inicia-se no versículo 5 do Cap. II do Gênese. Em III, 22, expressa-se a razão pela qual Deus pune o ser humano no paraíso. É que estariam, homem e mulher, a um passo de elevar-se à condição de “deuses” (III, 5). Bastaria que eles, já possuidores do “conhecimento”, lançassem a mão ao fruto da “árvore da vida” e, comendo-o, ganhassem a imortalidade, passando a viver para sempre.
Em A lenda, de Ridley Scott, este início da Bíblia se reproduz na história da Princesa Lily (Mia Sara), que é chamada por Jack (Tom Cruise) a ver dois unicórnios que não podem ser tocados no rio em meio a uma espécie de floresta encantada. Não há uma explicação clara, no roteiro, de como eles se conheceram, nem onde seria exatamente seu palácio, mas Jack surge como o seu amor – como se eles fizessem parte de um mundo à parte, em que Lily sai pela floresta apenas para encontrar uma camponesa amiga, Nell (Tina Martin).
Ela acaba por tocar num dos unicórnios e permite com que duendes, tendo à frente Blix (Alice Playten), enviados pela escuridão, cortem o chifre de um deles e levem a unicórnio fêmea para o sacrifício. A escuridão é almejada pelo senhor das Trevas (Tim Curry), e os unicórnios representam a claridade do universo.

A lenda

A lenda.Filme 2

A lenda.Filme 8

Depois de cair nas águas de um lago, a fim de encontrar o anel da princesa Lily, Jack acaba por ficar embaixo do gelo; quando ele consegue quebrá-lo, o mundo já está transformado e ele, sem saber ao certo o que aconteceu, passa a ir atrás de Lily, que volta à casa de Nell, tentando escapar dos duendes.
A lenda, de Ridley Scott, é um produto acabado dos anos 80 e encontra diálogo com outros filmes de fantasia, como Labirinto, Flash Gordon e Krull. Mas é interessante mesmo como o filme de Scott, com seu visual extraordinário (em que havia pouco CGI e os cenários, de Assheton Gordon e Leslie Dilley, este de Star Wars, pareciam realmente reais), composto nos estúdios Pinewood, da Inglaterra, além de influenciado por outros filmes de Scott, como Alien – e interessante como, hoje, se vê traços do filme também em Prometheus –, com a belíssima fotografia de Alex Thomson, tem esse curioso subtexto religioso. E, como outros filmes de Scott, sua qualidade fica ainda mais perceptível na versão estendida (109 minutos, vinte a mais que o original).

A lenda.Filme 6

Jack serve como uma espécie de Adão. Na Bíblia, este foi colocado para nomear as coisas do mundo. E para Lily ele nomeia os unicórnios. Assim como o unicórnio em A lenda, a maçã, na Bíblia, traz a queda do paraíso, e Adão, como um romântico, leva consigo a noção de Deus, como seu grande criador, mas também como o gênio solitário, que é abandonado, como o Werther de Goethe. O castigo imposto a Adão e Eva por Deus é um castigo exatamente por se ceder à maçã proibida.
A presença de Deus, levando as personagens (no caso, Adão e Eva) a tentar reconhecer o que desconhecem (e não tem nome, pois guarda o segredo do sexo e do corpo humano), revela uma autodescoberta da violência que existe quando não há nomeação para aquilo que se faz. Adão não consegue nomear o que fez, porém Deus sim: seria o pecado. Em A lenda, de Scott, esse pecado surge no momento em que Jack resolve mostrar a Lily os unicórnios. Ele não sabe ao certo por que o cenário se torna invernoso e encoberto, no entanto sabe que algo foi cometido, e não poderia. Seu amor também não se encontra definido, mas ele sabe que está ligado a ela.

A lenda.Filme 9

A lenda.Filme 3

A lenda.Filme 5

O homem, feito à sua imagem e semelhança, continua sendo o espelho de Deus, contudo este espelho, no silêncio do pecado, se quebra. E ele, expulso do paraíso, precisa enfrentar a escuridão. Em A lenda, esse enfrentamento começa na travessia de um pântano e nos corredores da grande torre onde se esconde a besta, com a ajuda de Honeythorn Gump (David Bennent e dublado por Alice Playten), a fada Oona (Annabelle Lanyon), que se apaixona por Jack – uma espécie de Sininho de Peter Pan –, e uma dupla de duendes (Billy Barty e Cork Hubbert).
É interessante como Lily e sua inocência também tem parentesco com a menina Sarah (Connely, ainda adolescente), de Labirinto, uma garota triste, que vive no mundo da fantasia e pede para que o rei dos duendes, Jareth (David Bowie), leve embora seu irmão por parte de pai. Ela se arrepende de ter feito isso; no entanto, ela terá de atravessar um labirinto para trazê-lo de volta. No labirinto, arranja inúmeros amigos, como Hogglle, que a ajuda a chegar ao castelo, e outros: Ludo, um gigante peludo, e Sir Didymus, que parece um Fox terrier. Há, aqui, outro parentesco com A lenda: os duendes ajudam Jack e Lily a buscarem o unicórnio fêmea.

Trata-se, como A lenda, de uma referência em direção de arte e efeitos especiais, e da tentativa de possuir responsabilidade de uma garota saindo entre a adolescência e a vida adulta. Connelly é uma boa atriz para representar essa passagem, e algo de sua inocência se perde nessa jornada: o ingresso no quarto depois de passar pelo ferro-velho é um primor de concepção. Mia Sara, em A lenda, desempenha um papel em que o atrito entre a fantasia e a realidade, e, assim como Connelly em Labirinto, deseja recuperar o universo que perdeu. A Lily de Sara precisa enfrentar o que o senhor das Trevas lhe oferece: todas as riquezas materiais e uma sensação de poder, de controle sobre todo o universo. Enquanto isso, Jack precisa enfrentar a ilusão do espelho causado pela fada Oona, que pode enganá-lo. Na sequência final, os claros-escuros de A lenda proporcionam algumas cenas assustadoras, o que explica por que a Disney, a quem o filme foi oferecido inicialmente, não o aceitou.
Interessante, ao mesmo tempo, como, afastado dos anos 80, A lenda é uma espécie de prenúncio visual para séries como O senhor dos anéis – sendo que seu roteiro se inspira claramente nos livros de Tolkien – e merece uma reavaliação à altura de seus conceitos e referências mitológicas e religiosas.

Legend, EUA/Reino Unido, 1985 Diretor: Ridley Scott Elenco: Tom Cruise, Mia Sara, Tim Curry, David Bennent, Alice Playten, Billy Barty, Cork Hubbert, Peter O’Farrell, Kiran Shah, Annabelle Lanyon, Robert Picardo, Tina Martin, Ian Longmur, Mike Crane, Liz Gilbert, Eddie Powell Roteiro: William Hjortsberg Fotografia: Alex Thomson Trilha Sonora: Jerry Goldsmith (Versão estendida), Tangerine Dream (Versão original) Produção: Arnon Milchan Duração: 89 min. (Versão original), 109 min. (Versão estendida) Distribuidora: Universal Pictures, 20th Century Fox  

Todo o dinheiro do mundo (2017)

Por André Dick

No ano em que completou 80 anos, o diretor Ridley Scott lançou a sequência de Prometheus, colaborou no roteiro de Blade Runner 2049 sem ser creditado, ajudou a produzir Assassinato no expresso do Oriente e finalmente, diante de várias denúncias de assédio contra Kevin Spacey, que participava de seu novo filme, Todo o dinheiro do mundo, resolveu refilmar todas as cenas em que ele aparecia, trocando-o por Christopher Plummer. O resultado em termos financeiros e de crítica foram irrisórios, mas a nova obra de Scott tem uma história muito interessante, baseada em fatos reais.
Tudo começa em 1973, quando JP “Paul” Getty III (Charlie Plummer) é sequestrado em Roma por um grupo. Ele é um jovem de 16 anos, neto de J. Paul Getty (Christopher Plummer), magnata do petróleo e o homem mais rico daquela época. Os sequestradores exigem 17 milhões de dólares como resgate. Sabemos por meio de flashbacks que os pais do adolescente, Gail Harris (Michelle Williams) e John Getty Jr. (Andrew Buchan), se divorciaram quase uma década antes e ela não recebe nenhuma pensão alimentícia para ter a custódia dos filhos. E que John Getty se entregou às drogas.

Ela fica desesperada e pede o dinheiro ao ex-sogro, que coloca Fletcher Chase (Mark Wahlberg), negociador do Getty Oil, a empresa de Getty, para cuidar do caso. Sem querer dar o montante em dinheiro requisitado, Getty quer que seu assessor, também ex-integrante da CIA, investigue onde pode estar o neto. Este se encontra num cativeiro no interior da Itália, vigiado por, entre outros, Cinquanta (Romain Duris).
A história parece previsível, porém a maneira como Ridley Scott a conduz tem a voltagem de um thriller americanos em terra italiana, com um bom contraste entre a cidade e a área rural e entre o desespero de uma mãe e o luxo de um milionário pouco emotivo. De forma indireta ou direta, Todo o dinheiro do mundo trata da constituição de uma família e de como um sobrenome pode pesar ou significar em momentos que se tornam nebulosos ou perturbadores diante de uma realidade mais angustiante.

Williams apresenta uma atuação discreta e ainda notável, seguida pela de Plummer, num registro muito mais expansivo do que pareciam indicar as refilmagens. O personagem dele realmente serve de guia para o filme, com uma presença estranhamente maligna, embora, mais ao início, sua participação seja um pouco entrecortada pelas idas e vindas no tempo. Sua reação ao sequestro do neto reserva um comportamento dúbio: se, por um lado, ele parece se preocupar com o que acontece a ele, por outro há uma frieza. Ele lembra do neto principalmente criança, e quando Scott mostra os dois caminhando em ruínas do Coliseu (seus semblantes lembram de Chaplin e o menino em O garoto) parece que ele quer entrelaçar passado e frente para dizer que o personagem está em outra dimensão, junto com sua concepção de dinheiro. E Romain Duris apresenta uma atuação muito convincente como um dos sequestradores que deseja pôr fim à situação o quanto antes. A atuação de Charlie Plummer (nenhum parentesco real com Christopher) é surpreendente, mesmo com pouco roteiro, e Wahlberg é competente, mesmo com uma figura escrita com menos ênfase, principalmente levando em conta a função que poderia ter.

A fotografia de Dariusz Wolski ajuda a criar uma atmosfera que mescla alguns dos melhores momentos da trajetória de Scott, fazendo a história dialogar com Gladiador, Hannibal e O conselheiro do crime, além de Um bom ano: Scott é quase um cidadão italiano por seu interesse pelo país. Desde O poderoso chefão III, no cinema norte-americano ou inglês, não se tinha uma visão geral do interior desse país tão aproximada, com suas cidades de becos apertados e fazendas como pontos de encontro entre mafiosos. Ele tem uma obsessão por esculturas e estátuas do universo romano, e aqui mostra literalmente como alguns privilegiam essas peças do que o corpo humano e seu sentimento. Há uma concepção muito interessante do filme sobre a arte ser considerada uma riqueza e um passo para um indivíduo se sentir atemporal e acima de seus semelhantes. Isso se manifestava no início de Alien: Covenant, por exemplo, quando vemos Peter Weyland e David numa sala com a pintura “Natividade”, de Piero della Francesca, ao fundo. Aqui, surge outra obra de arte como significado para as perturbações de Getty. Em outro momento, é oferecida uma quantia de dinheiro para que possa aproveitar de forma jornalística uma informação referente ao neto. Scott evita uma manipulação dramática e concede à sua narrativa uma visão moderna de que todos desejam tirar algo dessa situação.

Os sequestradores não podem ter seu rosto revelado, mas em nenhum instante vemos também Getty se revelar. Em Todo o dinheiro do mundo, o rosto habita as notas de dinheiro e as esculturas, não os humanos. Esses se escondem sempre por trás de suas decisões meramente pessoais. Não existe em Getty, por exemplo, a visão que Scott lançava em O gângster, sobre como um homem crescia por meio da máfia, porém a maneira com que ambos se distanciam da realidade é semelhante. Não imagino o impacto que terá para o espectador que sabe da história real. Evitei ter informações antes de assisti-lo e, mesmo com alguns traços recorrentes de narrativa de sequestro, teve uma certa surpresa.
O roteiro de David Scarpa, adaptado do livro Painfully rich: The outrageous fortunes and misfortunes of the heirs of J. Paul Getty, é muito conciso e funcional, não havendo nenhum excesso, com auxílio da montagem agilíssima, e Scott entrega sua melhor direção desde O conselheiro do crime, com grande domínio sobre os espaços e elenco. Que este filme não esteja entre os indicados principais ao Oscar é um mistério tão grande quanto se achar que a última grande obra de Scott é Blade Runner. Todo o dinheiro do mundo é excepcional.

All the money in the world, EUA/ING, 2017 Diretor: Ridley Scott Elenco: Michelle Williams, Christopher Plummer, Mark Wahlberg, Romain Duris, Charlie Plummer, Andrew Buchan Roteiro: David Scarpa Fotografia: Dariusz Wolski Trilha Sonora: Daniel Pemberton Produção: Chris Clark, Quentin Curtis, Dan Friedkin, Mark Huffam, Ridley Scott, Bradley Thomas, Kevin J. Walsh Duração: 135 min. Estúdio: Imperative Entertainment, Scott Free Productions Distribuidora: TriStar Pictures

 

80 anos de Ridley Scott

Por André Dick

O cineasta britânico Ridley Scott comemora hoje 80 anos de idade. Algumas críticas sobre filmes dele, publicadas no Cinematographe e no Letterboxd, como homenagem a um dos grandes cineastas da história.

Alien – O 8º passageiro (1979)

Blade Runner – O caçador de androides (1982)

Thelma & Louise (1991)

Gladiador (2000)

Cruzada (2005)

Um bom ano (2006)

Prometheus (2012)

O conselheiro do crime (2013)

Êxodo – Deuses e reis (2014)

Perdido em Marte (2015)

Alien: Covenant (2017)

Abaixo, um TOP 10 de sua carreira:

Blade Runner 2049 (2017)

Por André Dick

Lançado em 1982, Blade Runner – O caçador de androides, de Ridley Scott, teve uma recepção tímida por parte da crítica e do público, mas acabou se transformando num grande cult, uma obra-prima da ficção científica. Visto como um filme intocável, foi estranho à primeira vista imaginar uma continuação, e sem a direção de Scott. Foi ele, como produtor executivo, quem convidou Denis Villeuneuve para estar à frente da sequência. O diretor canadense se notabilizou nos últimos anos por transitar entre gêneros diferentes, em filmes como Polytechnique, Incêndios, Os suspeitos, O homem duplicado e Sicario – Terra de ninguém. No ano passado, ele fez a elogiada ficção científica A chegada, sobre a tentativa de contato humano com extraterrestres.
Por toda a carga de expectativa, ele parecia cada vez o melhor nome para dirigir Blade Runner 2049. Tendo como base o roteiro de Hampton Fancher (que colaborou no primeiro) e Michael Green, baseado nos personagens de Philip K. Dick, o filme mostra um novo caçador, K (Ryan Gosling), um replicante, que trabalha para a tenente Joshi (Robin Wright), da LAPD, e, quando vai atrás de um replicante mais datado, Sapper Morton (Dave Bautista), numa sequência que lembra a de Leon (Brion James) no original, descobre uma árvore com uma ossada escondida embaixo dela.

Levando os dados para sua equipe em Los Angeles, tão chuvosa quanto no clássico de Scott (spoiler até o fim deste parágrafo), descobre-se que seria da replicante Rachael (Sean Young), desaparecida com Rick Deckard (Harrison Ford) muitos anos antes. K, certamente uma homenagem ao segundo nome do autor que criou esse universo (Kindred), vai atrás de dados dela na corporação comandada por Niander Wallace (Jared Leto), assessorado por Luv (Sylvia Hoeks), que segue a linha da Tyrell original. Nisso, um pequeno cavalo de madeira é a pista para lembranças decisivas, em paralelo com o unicórnio da obra de Scott. Há uma analogia desse símbolo com a árvore sustentada por cordas e uma pequena flor que K recolhe perto dela como se precisasse dela para uma pesquisa científica, tamanha a raridade.
Além disso, K tem uma relação cibernética com Joi (Ana de Armas), um programa de computador que reproduz uma imagem feminina, nos moldes de Ela, mas, como os replicantes do primeiro filme, que então só podiam viver em colônias da Terra, deseja, de forma angustiada, ser humano. Para quem gosta do estilo de atuação de Ryan Gosling (o meu caso), Blade Runner 2049 certamente funcionará melhor. Gosling, como nos filmes de Refn (Drive e Apenas Deus perdoa), usa o mínimo de expressões, mas de maneira relevante e sua busca pelo lado humano que pode existir nele é o mote do roteiro e da direção sensível de Villeuneuve. Suas memórias, mesmo implantadas, são o guia desta viagem. A todo instante, a história pergunta se as sensações são reais ou imaginárias.

O diretor canadense nunca apresentou personagens extremamente simpáticos, e sim conflituosos, e aqui não é diferente. K é um Deckard ainda mais frio, mais concentrado na investigação de por que Rachael morreu e quem seria seu elo de ligação – e sua busca por si mesmo dialoga com a do personagem de Scarlett Johansson em Ghost in the shell este ano. Do lado contrário, Luv faz as vezes de Roy Batty, personagem de Rutger Hauer, com um sentido implacável de abreviar a vida de quem pretende descobrir um determinado mistério decisivo para a trama. Eles são opostos que se complementam. K não deixa de ser um Batty às avessas, com sua paixão real não pela própria existência, mas para compartilhar com os outros sua experiência de vida. O afeto que tem por Joi é real, mesmo romântico (numa cena embaixo da chuva, muito bem filmada por Villeneuve), não o que tem Niander por suas criações – o beijo nelas, depois de deslizarem por uma espécie de placenta plastificada, é um sinal de abandono. O corpo é sempre o símbolo de um prazer proibido (spoiler: K vai ver sua musa desnuda apenas num holograma ao final do filme e sua relação com ela, por meio de Mariette (Mackenzie Davis), é quase impessoal).
Seria talvez desnecessário elogiar a parte técnica, que certamente reproduziria a competência mostrada em Blade Runner. No entanto, é obrigatório: o trabalho de Roger Deakins na fotografia e Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch na trilha sonora (captando as sensações daquela clássica de Vangelis) são exemplos notáveis de como ajudar a contar uma história e tornar este um blockbuster sem elementos de blockbuster (talvez por isso como o primeiro tenha estreado mal nas bilheterias). Além disso, os efeitos visuais trazem um realismo poucas vezes visto em tempos de CGI exagerado: as naves espaciais têm uma movimentação verossímil e Villeneuve, como em Sicario, aproveita para fazer tomadas áreas sobre o deserto de maneira particular. E, na parte de efeitos sonoros, há ecos de A chegada, principalmente, embora aqui sejam mais impactantes.

O filme anterior era mais uma perseguição incessante e atmosférica; este é mais uma investigação, e com todas as minúcias do gênero. Menos noir que o anterior, ele sai de Los Angeles e vai para outros lugares, mostrando mais a amplidão de 2049 do que a opressão da metrópole na vida desses personagens. Isso fica claro desde o início, quando K está atrás de Morton numa espécie de fazenda na Califórnia. Como em Sicario, Villeuneuve está interessado em mostrar cenários imensos, em que o horizonte se perde, e nunca deixa de inserir o espectador num universo futurista incontestável. Se no primeiro Los Angeles parecia Tóquio, com uma profusão infinita de neons, em seu retrato cyberpunk, este lembra mais o deserto… de Las Vegas. No apartamento de K, as luzes do lado de fora remetem mais ao filme de 1982, mas Villeneuve não tenta copiar o estilo de Scott, preferindo os ambientes mais assépticos e menos coloridos, sem também as luzes entrando pelas janelas, uma característica das narrativas noir e dos anos 80. A corporação de Niander lembra muito a do original, mas, ainda assim, parece mais labiríntica, como se a identidade das pessoas se perdesse em corredores e salas frias. Villeneuve sempre foi cuidadoso com o design, mas ele se supera em Blade Runner 2049, levando o espectador realmente para outro universo, com certa influência ainda de Inteligência artificial, na maneira como torna os ambientes desolados e, sobretudo, na sequência passada em Las Vegas, quando há também referências musicais por meio de hologramas e aos duelos de faroeste, que, se resolvidos, só poderiam terminar na mesa de um bar. Em determinado momento, também há uma referência pertinente à exploração do trabalho infantil, porém sem nenhum traço facilitador ou piegas, numa ilha de sucata remetendo a Eraserhead, de Lynch, contrastando com uma reunião de crianças imaginária ao redor de um bolo de aniversário.

Embora Leto e Hoeks tenham participações breves, ambos estão muito bem, assim como Ana de Armas e Robin Wright. Já Harrison Ford, voltando como Deckard, é particularmente emocionante, mais do que sua retomada como Han Solo em Star Wars. Este elenco conserva uma particularidade pessoal, tornando Blade Runner 2049 numa obra bastante independente da primeira, apesar dos óbvios diálogos visuais e temáticos. Se o de Scott tinha uma atmosfera mais pessimista, o novo é mais esperançoso, mas não no sentido do lugar-comum e sim na maneira como visualiza principalmente o trajetória de K. Este é um personagem que amplia a solidão anunciada no clássico de 1982 e, mais ainda, sinaliza para um futuro real. A longa duração (quase 50 minutos a mais que o original) não prejudica; pelo contrário, torna as sequências mais definidas e compostas com um cuidado extremo, fazendo com que cada uma ressoe junto ao espectador. São belas principalmente as que trazem simbologias, como o fogo (nas lembranças de K) e a água (representando a morte e a vida), encontrando na neve (imaginária ou não) o meio-termo para as lágrimas na chuva, da mensagem de Batty, que tanto comovia minha mãe, admiradora do primeiro filme e que, imagino, apreciaria muito também esta nova obra-prima. É um filme que, à medida que é assistido, cresce na imaginação: nunca um replicante do primeiro, mas uma obra grandiosa.

Blade Runner 2049, EUA, 2017 Diretor: Denis Villeneuve Elenco: Ryan Gosling, Harrison Ford, Robin Wright, Ana de Armas, Sylvia Hoeks, Jared Leto, Dave Bautista, Edward James Olmos, Wood Harris, Mackenzie Davis, Hiam Abbass, David Dastmalchian, Tómas Lemarquis Roteiro: Hampton Fancher e Michael Green Fotografia: Roger Deakins Trilha Sonora: Benjamin Wallfisch, Hans Zimmer Produção: Andrew A. Kosove, Broderick Johnson, Bud Yorkin, Cynthia Yorkin Duração: 163 min. Estúdio: Warner Bros. Distribuidora: Sony Pictures

Alien: Covenant (2017)

Por André Dick

Depois de Prometheus, em 2012, tende-se a dizer que Ridley Scott não deveria ter voltado mais à franquia Alien. Talvez tenha sido um dos melhores caminhos adotados pelo cineasta depois de um início de século com várias obras de destaque, a exemplo de Gladiador, Cruzada, Falcão negro em perigo e O gângster. Desta vez, com roteiro de John Logan (007 – Operação Skyfall e Gladiador) e Dante Harper, Scott desenha uma continuação que fica entre Prometheus e os demais filmes da série. Ele é um exemplo de cineasta que, nos seus quase 80 anos, continua tentando mostrar uma visão que se situe entre a grandiosidade e o drama de seus personagens.
O início estabelece logo uma ligação com Prometheus. Peter Weyland (Guy Pearce, agora jovem) conversa com David (Michael Fassbender), recém-criado por ele, nome baseado na obra escultural de Miguelangelo, e lhe pede para que toque ao piano uma música de Wagner. Na parede ao fundo, a pintura “Natividade”, de Piero della Francesca, na qual aparece a figura de Virgem Maria ajoelhada diante do bebê Jesus. Atrás dessas figuras, estão cinco anjos músicos, dois violonistas e três cantores. Então, a história se transporta para 2104, quando, ao som da trilha de Jed Kurzel com referências à original de Jerry Goldsmith, a nave colonizadora Covenant carrega dois mil colonos (predominantemente casais) e mil embriões a bordo. Lembrando uma espécie de arca sideral (chamada de “mãe” pelos tripulantes), a nave tem como androide Walter (também Fassbender), modelo igual a David. Acontece um problema e alguns tripulantes acordam (a partir daqui, possíveis spoilers). Durante o conserto da nave, feito por Tennessee (Danny McBride), um sinal de rádio é captado, e essa sequência lembra muito tanto 2001 quanto sua sequência, 2010.

O capitão Oram (Billy Crudrup), com discordância da subcapitã Daniels (Katherine Waterston), resolve ir atrás do sinal. Originalmente, ele não havia sido escolhido para o posto, porque teria fé, podendo comprometer suas ações. Uma equipe, tendo entre os componentes a mulher de Tennessee, Faris (Amy Seimetz), Ledward (Benjamin Rigby), Karine (Carmen Ejogo), Hallett (Nathaniel Dean) e Lope (Demián Bichir), desce no planeta do qual vem a transmissão a fim de investigar o que acontece e o espectador pode vir a saber finalmente sobre o destino de Elizabeth Shaw (Noomi Rapace), do filme anterior. Imediatamente, Scott mostra de maneira impressionante a influência de germes do planeta sobre alguns deles. Na nave, tanto Tennessee quanto Upworth (Callie Hernandez) tentam manter a calma. Embora não haja a interação necessária entre os personagens – e os teasers divulgados antes da estreia e que certamente foram cortados de alguma versão inicial acrescentariam –, Scott em nenhum momento interrompe a história com diálogos excessivos como fez em Perdido em Marte.
Se o espectador não deseja ver exploradores do espaço se colocando em situações complicadas ou arriscando sua vida sem nenhuma justificativa, não deve assistir nem a Alien: Covenant nem a nenhum outro filme da série, pois ela existe justamente por causa dessa falta de atenção de que há um ser alienígena capaz de tirar suas vidas rondando o lugar onde se encontram.

Por isso, é estranho que se diga que em Alien – O oitavo passageiro há uma construção de personagens (quase psicológica) e que em Aliens ou, principalmente, em Prometheus ela inexista. Trata-se de uma invenção da crítica, para provocar um culto especial à obra dos anos 70, ignorando que o cinema desde então proporcionou um universo mais amplo da série, por meio de James Cameron, David Fincher, Jeunet (apesar dos pesares) e novamente Scott. Outra necessidade visível é delimitar que Scott não tem domínio (ou até conhecimento) sobre a figura do alien, o que é no mínimo questionável. Não apenas ele é um cineasta vigoroso na criação de um universo como entende sua criação como os cineastas que o antecederam não entendem – Scott visualiza o universo da criação do monstro como um mistério que pode elucidar a própria condição humana e a fé de personagens como Oram em conflito com o universo onde adentra.
Em Prometheus, ele buscava diálogos com A árvore da vida, de Malick, numa ficção científica existencialista, voltada a construir um passado para a genealogia de Alien muito interessante. Chega a ser lamentável que não visualizem na figura de David aquela de Batty em Blade Runner: ele procura o criador assim como os seres humanos e seu comportamento de androide não o impede de querer exercer esse domínio sobre quem teria criado a humanidade. Isso já ficava claro em seu confronto com o space jockey no primeiro filme e nessa continuação atinge um grau ainda mais interessante. Não por acaso, Alien: Covenant inicia mostrando seu olhar verde, assim como Scott mostrava os olhos dos androides a serem investigados em Blade Runner.

Lembre-se que ele é convidado a tocar Wagner, compositor preferido de Hitler, e David se comporta justamente como ele, pretendendo criar uma nova espécie (numa das sequências de que participa, um povo é perseguido por uma fumaça de vírus impactante). No planeta onde essa equipe desce, David vive como um criador, com desenhos de xenomorfos espalhados numa caverna. E ele tenta ensinar Walter a tocar uma flauta, assim como Weyland, no início, tentava lhe mostrar a arte musical, também presente na pintura “Natividade”. Em Alien: Covenant, como em Prometheus, David quer a todo custo ser um criador (ou o guia da humanidade), mas o que realiza mostra como ele se torna o pior monstro: em relação a um determinado personagem, por exemplo, ele age como Frankenstein. E perceba-se que os engenheiros parecem ter a mesma forma da estátua de Miguelangelo que levou Weyland a nomear David.
Impressiona como Scott fundamenta sua história com base naquelas premissas religiosas que ele cultiva desde Blade Runner, mas que se pronunciam ainda mais em A lenda – uma adaptação livre de Adão e Eva –, Cruzada, Gladiador e o subestimado Êxodo, todos com um notável design de produção. Alien: Covenant faz lembrar o embate entre Moisés e Ramsés II nas figuras de David e Walter – ambos idênticos visualmente, mas com comportamento diferente, em grande atuação de Fassbender. Mais ao final, Scott ainda mostra uma fotografia com os integrantes da espaçonave lembrando a Santa Ceia (com o primeiro comandante ao centro).

Do mesmo modo, Katherine Waterston, na figura de Daniels, configura uma espécie de libertadora de uma certa visão masculina, como Ripley. No entanto, enquanto havia fúria em Ripley, Waterston atenua seu enfrentamento com um receio plausível. Ela sofre ao ter de enfrentar a situação, não é uma guerreira como Ripley – e nisso Scott desenha um arco diferente e interessante da produção de Cameron principalmente, na qual Sigourney Weaver construía uma versão feminina de combate. No final, apesar da montagem excessivamente rápida, Scott continua exímio em filmar cenas de ação, com a fotografia impecável de Dariusz Wolski, e faz uma homenagem no terror do espaço a Psicose (neste caso, o diretor retoma os esboços originais do monstro feitos por H.R. Giger, com viés sexual), além de fazer um paralelo de David com Norman Bates. Waterston, que aparece em Vício inerente e Animais fantásticos e onde habitam, tem uma atuação excepcional, que também dialoga com a de Noomi Rapace em Prometheus, embora tenha menos cenas do que deveria. Alien: Covenant expande com qualidade evidente as ideias de Prometheus, sem ficar restrito ao universo simplesmente de monstros alienígenas; pode-se dizer que Scott ingressa numa fase em que o choque, como mostra ao final de O conselheiro do crime, atualiza o heroísmo dos anos 70 e 80. Não assusta como o recente Vida, inspirado em Alien, mas é mais denso, e que alguns espectadores não queiram esse caminho mostra o quanto Scott está no caminho certo: do acréscimo substancial à sua criação.

Alien: Covenant, EUA, 2017 Diretor: Ridley Scott Elenco: Michael Fassbender, Katherine Waterston, Billy Crudup, Danny McBride, Demián Bichir, Amy Seimetz, Carmen Ejogo, Benjamin Rigby, Jussie Smollett, Callie Hernandez Roteiro: John Logan, Dante Harper Fotografia: Dariusz Wolski Trilha Sonora: Jed Kurzel Produção: David Giler, Mark Huffam, Michael Schaefer, Ridley Scott, Walter Hill Duração: 122 min. Distribuidora: Fox Film Estúdio: Brandywine Productions / Scott Free Productions / Twentieth Century Fox Film Corporation