Melhores filmes de 2018

Por André Dick

Durante 2018, os filmes estiveram, cada vez mais, divididos entre a tela do cinema e a tela da TV. Isso porque, mais do que em outros anos, o sistema de streaming (principalmente a Netflix) disponibilizou uma quantidade de obras acima da média, melhor, inclusive, do que muitos lançamentos diretamente na tela grande. Pelo estado atual, as redes de cinema talvez tenham de optar entre arrefecer os gastos e se manter ou dar cada vez mais espaço ao streaming. A indústria da música não entendeu a passagem do tempo. Entre os festivais, o de Cannes, por exemplo, ainda não entendeu o que está ocorrendo no mercado cinematográfico; o de Veneza, por sua vez, sim.
Não que os blockbusters não impeçam ainda o filme lançado no cinema de ser um evento, no entanto cifras bilionárias não representam tanto quanto a manutenção de um cinema que cada vez mais os estúdios grandes menosprezam, com receio de não faturar.
Embora não tanto como no ano passado, tivemos blockbusters de grande qualidade, a exemplo de Animais fantásticos – Os crimes de Grindelwald e Missão: impossível – Efeito Fallout e animações de excelência da Pixar, Os incríveis 2 e Viva – A vida é uma festa, e de Wes Anderson, Ilha dos cachorros.

Se a temporada do Oscar trouxe um costureiro às voltas com a imagem da mãe em Trama fantasma, pode-se dizer que ao longo do ano a representação do nascimento esteve sob ameaça, seja em Um lugar silencioso, seja em Bird box, assim como sob um sinal de otimismo, mesmo em meio ao cansaço, em Tully, ou de melancolia, em Mais uma chance e Roma, assim como a ameaça se manifestou em Hereditário.
A confusão da vida contemporânea ou futura, afetada pelas altas tecnologias, esteve em obras como Mudo, Ingrid vai para o oeste, Permission, Pequena grande vidaHappy end e Newness. A visão sobre certa solidão da mulher foi enfocada de maneiras diferentes em filmes como As boas maneiras, Novititae, O conto, Os amantes, Millennium – A garota na teia da aranha, Almas secas e Deixe a luz do sol entrar.

Tivemos dois filmes sobre um acontecimento trágico na Suécia, em 22 de julho e Utoya, 22 de julho – Terrorismo na Noruega, sob pontos de vista complementares.
Diferentes guerras estiveram presentes em Foxtrot, Mudbound – Lágrimas sobre o Mississipi, A melhor escolha e Honra ao mérito, assim como a ameaça do terrorismo em 15h17 – Trem para Paris, Sete dias em Entebbe e O que te faz mais forte, do racismo em Infiltrado na Klan e do tráfico de drogas em Sicario – Dia do soldado. O apelo de uma causa marcou presença em 120 batimentos por minuto.

Certa nostalgia de uma Hollywood perdida pode ser entrevista em Nasce uma estrela, A balada de Buster Scruggs e A forma da água, assim como nas referências a filmes que marcaram Cuarón em Roma, em outro extremo, Puro-sangue, entretanto principalmente na recuperação e finalização da obra O outro lado do vento, de Orson Welles.
A influência do cinema de Refn esteve presente em obras como Você nunca esteve realmente aqui, Puro-sangue, O animal cordial e mesmo na refilmagem de Halloween.
Steven Spielberg alternou dois momentos: o do cinema político sem efetividade (The Post) e o da diversão e homenagem aos anos 80 e à cultura pop (Jogador Nº 1).
O gênero da comédia, tão esquecido no cinema, se mostrou ainda vigoroso, mesmo com despretensão, em obras como A noite do jogo, Não vai dar, Um pequeno favor e O plano imperfeito.

Manifestações sobre a adolescência estiveram presentes em filmes como Lady Bird, Super dark times, Pérolas no mar, Não vai dar, As aventuras de Brigsby Bear; o universo infantil esteve bem representado no drama de Projeto Flórida, em Christopher Robin – Um reencontro inesquecível, O mistério do relógio na parede, O retorno de Mary Poppins e As aventuras de Paddington 2.
Gêmeos foram essenciais para se compreender as tramas de Um pequeno favor e O amante duplo.
E o gênero da cinebiografia sobrevive com muitos exemplares de qualidade: O conto, O primeiro homem, O que te faz mais forte, Artista do desastre, Bohemian Rhapsody, O destino de uma nação, A pé ele não vai longeFútil e inútilO rei da polcaEu, Tonya.

Os filmes avaliados para as listas estrearam no Brasil entre janeiro e dezembro de 2018, inclusive aqueles indicados ao Oscar de 2017, seja nos cinemas, em VOD ou na Netflix. Desde o ano passado, não é mais possível avaliar como foi o ano apenas com base naquelas obras que chegaram às salas, principalmente porque várias de qualidade não estreiam por causa de filmes de menos qualidade. Não foram avaliados obras exibidas apenas em festivais ou que estrearam nos Estados Unidos e irão estrear no próximo ano em circuito comercial no Brasil.
Cinematographe apresenta a seguir listas com menções honrosas, apreciados, subestimados, apreciados em parte e decepções e/ou superestimados.

Menções honrosas

As viúvas (Steve McQueen), Legítimo rei (David Mackenzie), Três anúncios para um crime (Martin McDonagh), Sicario – Dia do soldado (Stefano Sollima), Custódia (Xavier Legrand), Mudo (Duncan Jones), Corpo e alma (Ildikó Enyedi), As aventuras de Paddington 2 (Paul King), Novititae (Margaret Betts), Ilha dos cachorros (Wes Anderson), Jogador Nº 1 (Steven Spielberg), Tully (Jason Reitman), 15h17 – Trem para Paris (Clint Eastwood), Deadpool 2 (David Leitch), Zama (Lucrecia Martel), Best f(r)iends: Vol. 1 (Justin MacGregor), Em pedaços (Fatih Akin), O conto (Jennifer Fox), Baseado em fatos reais (Roman Polanski), Os incríveis 2 (Brad Bird), Noite de lobos (Jeremy Saulnier), O outro lado do vento (Orson Welles), Mais uma chance (Tamara Jenkins), As boas maneiras (Juliana Rojas, Marco Dutra), Domando o destino (Chloé Zhao), Missão: impossível – Efeito Fallout (Christopher McQuarrie), Pérolas no mar (Rene Liu), Halloween (David Gordon Green), Bird box (Susanne Bier), Millennium – A garota na teia da aranha (Fede Alvarez), Honra ao mérito (Jason Hall), Roman J. Israel, Esq. (Dan Gilroy), Pequena grande vida (Alexander Payne), O que te faz mais forte (David Gordon Green), A grande jogada (Aaron Sorkin), Ratos de praia (Eliza Hittman), Viva – A vida é uma festa (Lee Unkrich, Adrian Molina), Os amantes (Azazel Jacobs), Ingrid vai para o oeste (Matt Spicer), Artista do desastre (James Franco), Christopher Robin – Um reencontro inesquecível (Marc Forster)

Apreciados

Newness (Drake Doremus), Tudo que quero (Ben Lewin), Maria Madalena (Garth Davis), Jumanji – Bem-vindo à selva (Jake Kasdan), A noite do jogo (John Francis Daley e Jonathan M. Goldstein), Sem amor (Andrey Zvyagintsev), Aquaman (James Wan), Não vai dar (Kay Cannon), Homem-Formiga e a Vespa (Peyton Reed), Buscando… (Aneesh Chaganty), Bohemian Rhapsody (Dexter Fletcher), Infiltrado na Klan (Spike Lee), Um pequeno favor (Paul Feig), O animal cordial (Gabriela Amaral Almeida), A câmera de Claire (Hong Sang-soo),  A rota selvagem (Andrew Haigh), Utoya, 22 de julho – Terrorismo na Noruega (Erik Poppe), A vingança de Lefty Brown (Jared Moshe), O destino de uma nação (Joe Wright), Homens de coragem (Joseph Kosinski), Permission (Brian Crano), A pé ele não vai longe (Gus Van Sant), The little hours – A comédia dos pecados (Jeff Baena)

Subestimados

Vende-se esta casa (Suzanne Coote e Matt Angel), Jurassic World – Reino ameaçado (J. A. Bayona), Venom (Ruben Fleischer), Fútil e inútil (David Wain), O mistério do relógio na parede (Eli Roth), Meu ex é um espião (Susanna Fogel), O plano imperfeito (Claire Scanlon), Almas secas (Liz W. Garcia), Cargo (Ben Howling e Yolanda Ramke), Tal pai, tal filha (Lauren Miller), Fullmetal alchemist (Fumihiko Sori), Mogli – Entre dois mundos (Andy Serkis), As aventuras de Brigsby Bear (Dave McCary), Na selva (Greg Mclean), Bumblebee (Travis Knight), Espectador profissional (Dito Montiel)

Apreciados em parte

A maldição da Casa Winchester (Michael Spierig, Peter Spierig), Juliet, nua e crua (Jesse Peretz), O predador (Shane Black), Aniquilação (Alex Garland), Para todos os garotos que já amei (Susan Johnson), Um lugar silencioso (Joseph Krasinki), Em chamas (Lee Chang-Dong), A sombra da árvore (Hafsteinn Gunnar Sigurðsson), Todas as razões para esquecer (Pedro Coutinho), 120 batimentos por minuto (Robin Campillo), O rei da polca (Maya Forbes), Vingança (Coralie Fargeat), The Cloverfield Paradox (Julius Onah), Submersão (Wim Wenders), O ritual (David Bruckner), Alfa (Albert Hughes), Rampage – Destruição total (Brad Peyton), Apóstolo (Gareth Evans), Perigo na montanha (Lin Oeding), Distúrbio (Steven Soderbergh), O mercador (Tamta Gabrichidze), O retorno de Mary Poppins (Rob Marshall)

Decepções e/ou superestimados

Faca no coração (Yann Gonzalez), Benzinho (Gustavo Pizzi), Bleach (Shinsuke Sato), A sociedade literária e a torta de casca de batata (Mike Newell), Western (Waleska Grisebach), Me chame pelo seu nome (Lucas Guadagnigno), Vingadores – Guerra infinita (Anthony e Joe Russo), The Post – A guerra secreta (Steven Spielberg), Megatubarão (Jon Turteltaub), Sete dias em Entebbe (José Padilha), Culpa (Gustav Möller), Han Solo – Uma história Star Wars (Ron Howard), Mom and dad (Brian Taylor), Os estranhos – Caçada noturna (Johannes Roberts), O segredo de Marrowbone (Sergio G. Sánchez), A casa que Jack construiu (Lars von Trier), Amante por um dia (Philippe Garrel), Os iniciados (John Trengove), Pantera Negra (Ryan Coogler), Siberia (Matthew M. Ross), Super dark times (Kevin Phillips), Criminosos de novembro (Sacha Gervasi), Visas, villages (Agnès Varda). Círculo de fogo – A revolta (Steven S. DeKnight), Eu, Tonya (Craig Gillespie)

A seguir, o Cinematographe apresenta sua lista dos 25 melhores filmes do ano. Foi um grande ano cinematográfico. Grato pela sua companhia e leitura durante o ano.

Com direção de Cory Finley, este é um dos mais estranhos filmes da temporada, influenciado por Nicolas Winding Refn, por meio de um trabalho cuidadoso de câmera e regiões simétricas, e uma certa assepsia. O título do filme é uma passagem da vida de Amanda (Olivia Cooke), mas diz mais: ela, como os animais dos quais não esquece, enxerga atentamente o que acontece em torno, mesmo que não seja importante. Muito interessante, nesse sentido, é quando ela está no jardim da casa de Lily ((Anya Taylor-Joy), que tem um enorme tabuleiro de xadrez e ela vai mudando como peças de jogo (com o símbolo do cavalo). A analogia entre o comportamento e os animais que desprezam a visão da visão de Finley sobre os humanos que cercam as duas, parece um tanto robotizado, e sim sem nenhuma sensação de que são humanos. E, apesar de Anya Taylor-Joy e Cooke desempenharam a mídia também sem muita emoção, sempre há um interesse pelo que elas fazem. Um sinal de talento do cinema novo norte-americano.

Muitas críticas avaliam que o filme de Damien Chazelle falharia ao ser um tanto antiamericano. Não é o caso, apenas não sendo patriótico ou com sentimentos retumbantes pelo êxito do país na corrida espacial, que seriam incoerentes com a figura mostrada de Neil Armstrong, vivido por Ryan Gosling, na narrativa, na qual o luto é definidor mesmo para um discurso de John Kennedy sobre a Lua e com um instante-chave da personagem de Claire Foy. É, por alguns instantes, bastante profundo. O seu problema é não ser uma obra com a grandeza do acontecimento enfocado, apesar de sua parte técnica notável, deixando no espectador a sensação de que muitos elementos estavam prontos para funcionar, sem serem, ao fim, totalmente colocados em prática. O que temos ainda, porém, é uma obra bastante interessante de um gênero que não cansa de receber novos exemplares de impacto.

A história de Sem fôlego se mostra cada vez mais próxima do espectador quando aparenta estar distante, com seu jogo de ilusões e espelhos. Que esta obra nova de Todd Haynes tenha sido recebido com tanta apatia, ao contrário do anterior (não tão interessante, a meu ver), Carol, mostra, infelizmente, certa padronização no que se refere a histórias com crianças. O filme, de maneira exemplar, trata da íntima comunicação que se estabelece quando menos se percebe e onde menos parece ser atrativa: trata dos dilemas mais pessoais de um ser humano em busca de sua história, assim como a humanidade busca a sua num museu. Quando, em determinado momento, Haynes expõe uma enorme maquete, extraordinária, pode-se dizer que ela representa tudo aquilo em que esses personagens passeiam, com a segurança de quem conseguirá obter o acesso a um grande planetário a céu aberto.

Desde o início, quando há a libertação de Grindelwald nos céus soturnos e chuvosos de Nova York, em meio a uma sequência de relâmpagos, remetendo à saga cibernética das Wachowski, e dragões desenhados em meio às gotas de chuva, passando por uma criatura marítima gigante, até o momento em que, nas ruas de Paris, Newt parece domar uma criatura que parece saída de As sete faces do Dr. Lao, dos anos 60 (assim como quando surge o Circus Arcanus), o segundo Animais fantásticos possui uma vibração fantástica, capaz de dialogar com o primeiro e anuncia o que virá. Mesmo quando os diálogos não fluem do melhor modo, é mais uma conquista de David Yates e J. K. Rowling, uma fantasia capaz de aliar nostalgia e expectativa por novas aventuras desses personagens.

O rock de Raul Seixas e a música popular de se entrelaçam, em rodas de violão ou palcos de apresentação para ninguém. O conflito entre castas e crenças é sempre teórico; na prática e as culturas e experiências diversas se imbricam, o que se mostra de maneira notável em Central do Brasil e volta a se manifestar de maneira exemplar nesta obra. O próprio personagem central é uma espécie de síntese disso, com seu sentimento permanente de estar à margem e não poder voltar à vida de antes. Já devidamente filtrado pelo ambiente das fábricas onde trabalha, ele irrompe, ao final, com um discurso poético que poderia fazer o prosaico que o rodeia ficar em segundo plano, constituindo um cinema de fluxo.

Juliette Binoche é uma atriz inclinada a tornar seu sentimento introspectivo numa grande referência para o espectador sentir o que suas personagens estão passando. Desde sua parceria inicial com Leos Carax em Sangue ruim, ela efetua uma transição impecável entre a volatilidade e a mudança. Quando Claire Denis a mostra em lugares simples, parece que sempre há um destaque implícito em suas ações. Nesse sentido, há algo do Godard dos anos 70, mesclado com a Agnès Varda de As duas faces do amor, na maneira como o filme vai se montando e se desconstruindo sem muita definição ou particularidades fixas. Isabelle parece nunca querer, na verdade, se envolver. Ela se afasta de cada homem com uma mágoa passada e ainda assim amorosa.

22 de julho se constitui numa das obras mais particulares da filmografia de Paul Greengrass e possivelmente o mais autoconsciente de seus caminhos. Com um estilo europeu e uma fotografia belíssima de Pål Ulvik Rokseth, ele contrasta o ataque feito ao país à tentativa de Viljar superar a violência em sua recuperação diária. A atuação de Gravli é espetacular, talvez a mais contida até agora do ano e ainda assim altamente impactante, assim como Anders Danielsen Lie, ator preferido de Joachim Trier, é de uma frieza controlada e angustiante no papel do homem que procura deixar uma espécie de legado da distorção da realidade. 22 de julho poderia servir para apresentar um discurso político por trás de suas ideias, porém como em Voo United 93, Greengrass mostra a humanidade resistente das vítimas de um psicopata.

Este é um dos melhores dramas independentes dos últimos anos. Grandes atuações de Jay Duplass, Edie Falco e Kaitlyn Dever, uma história comovente e uma trilha sonora rara garantem a qualidade dessa peça de Lynn Shelton. Tratando do reingresso de um ex-presidiário na sociedade, feito por Duplass com eficiente dramaticidade, ele revela conflitos que vão ao encontro da construção de uma base familiar, com paisagens invernais que acentuam o sentido de solidão pelo qual passa o personagem central, sem nunca abdicar de sua busca pela descoberta de novas amizades.

Em meio aos resíduos de obras do museu e uma performance primata de Oleg (Terry Notary, o mesmo que fez os movimentos do gorila gigante de Kong – A Ilha da Caveira), The Square mostra que tudo que foge à segurança do quadrado pode também incluir peças descartáveis. O filme busca uma certa crítica corrosiva a peças que se consideram provocativas, mas, no fim das contas, se inserem apenas no mesmo establishment que contestam. Nisso, inclui-se o discurso de Christian, em determinado momento, ao telefone. Não se trata de uma crítica previsível a curadores de museu; trata-se de um olhar sobre a sociedade a partir da estrutura de um museu. Uma das cenas mais divertidas é aquela em que o público aguarda ansiosamente que o discurso de Christian termine para que possam jantar (e é em outro jantar que acontece a cena-chave, já referida, da obra de Ruben Östlund, na qual o artista Julian (Dominic West) é desafiado).

O melhor de O sacrifício do cervo sagrado em relação aos anteriores de Yorgos Lanthimos é sua compreensão de atmosfera, apostando tudo num sentimento de obra de terror, sem cair num humor corrosivo que por vezes desconstrói em demasia a narrativa. Em Dente canino e O lagosta, o excesso de estranheza por vezes distanciava o espectador, como se inserido num surrealismo desmesurado. Quem conhece o trabalho do diretor sabe que ele privilegia a construção das imagens, sempre impactantes, em detrimento de uma explicação narrativa (que na maioria das vezes não importa para seu interesse). Aqui ele se limita a algumas bordas, e apara as arestas de maneira mais reflexiva e contundente, construindo uma mistura de gêneros efetiva e surpreendente.

De algum modo, o filme de Lynne Ramsay é um Bom comportamento que deu certo, numa Nova York perturbadora e ainda assim cheia de detalhes sonoros e visuais ressonantes, além da trilha de Jonny Greenwood pontuando a tensão, capaz de se equivaler aos melhores trabalhos que fez com Paul Thomas Anderson. Desenhando uma atmosfera que faz o espectador adentrar na história sem que haja um excesso de diálogos, a fotografia de Thomas Townend acompanha uma narrativa pode ser vista como uma extensão do minimalismo que caracteriza, neste século, principalmente o cinema de Refn, e Drive eApenas Deus perdoa são, sem dúvida, influências no comportamento do personagem central, feito por Joaquin Phoenix de modo exemplar.

François Ozon faz uma espécie de drama mesclado com thriller de voltagem erótica, lembrando em alguns pontos Gêmeos, de Cronenberg, e Elle, de Verhoeven, no entanto com uma sensação ainda maior de vazio, como é de praxe em sua obra. Vacth (estrela de Jovem e bela, também do diretor) tem uma atuação surpreendente e se entrega ao papel com vulnerabilidade, protagonizando cenas difíceis e nas quais Ozon chega a comparar o olhar com o sexo feminino, com um requinte visual de fazer inveja aos melhores diretores de cinema de arte. Uma fotografia decisivamente bela de Manu Dacosse entrega não apenas ao museu uma representação da duplicidade que persegue esses personagens. Veja-se a cena em que Chloé adentra um espaço em que sua imagem é multiplicada por vários espelhos, ou como a Ozon enquadra seu rosto para se assemelhar a uma figura felina (e outras vezes andrógina).

Com uma trilha belíssima de Daniel Hart, Sombras da vida parece uma história previsível e calcada num efeito comum – um fantasma escondido por baixo de um lençol –, mas abraça um caminho extremamente interessante, sobre lembranças, passado, futuro, tempos mesclados e um sentimento constante de deslocamento. É um cinema feito para se aproveitar aos poucos – assim como Rooney Mara aproveita uma torta, comportando-se, na verdade, como duas pessoas, num triunfo estilístico de David Lowery. Há um sentimento belo por trás das imagens da narrativa, de que o ser humano é uma junção de vários tempos possíveis. Ele apresenta isso de maneira simples, direta e ainda assim complexa ao extremo, sobretudo em seus vinte minutos finais. Para Lowery, há um entendimento amplo de que a vida reúne épocas passadas e futuras em conjunto.

Há alguns elementos que Guillermo Del Toro colocou anteriormente em sua trajetória, contudo são melhor resolvidos aqui. Mesmo em relação ao A colina escarlate, subestimado, A forma da água se sente com temas mais complexos e distribuídos em camadas iguais. E a água é, afinal, o símbolo da libertação da narrativa. Todas as sequências que a envolvem dão uma sensação de que a opressão causada por determinados humanos é colocada em segundo plano e os personagens encontram a sua essência. Em A colina escarlate, já havia uma metáfora da terra. Além disso, como em A espinha do diabo e O labirinto do fauno, Del Toro faz com que seus personagens em transformação também combatam a guerra que há nos bastidores de suas existências.

O tom de Mudbound possui certa melancolia, mas ela nunca é utilizada para uma certa comoção pré-programada e sim como um elo entre esses personagens. O Mississipi é uma paisagem que serve de pano de fundo para os conflitos, no entanto vai, aos poucos, se integrando a cada uma dessas figuras, como se existisse para elas. O tom dado pela fotografia – que remete à terra – segue desde o início seu estilo eficaz. Esse tom não está apenas na própria ambientação, como no horizonte e nos figurinos dos personagens. Dee Rees mostra a dificuldade que era construir uma família e uma casa nesse período com rara eficácia. Ela visualiza o trabalho da fazenda como uma espécie de tentativa de o ser humano não ter mais do que outro, e sim poder ter direito de dizer que a terra é mais sua do que do outro.

Happy end é um exemplo do talento de Michael Haneke para compor imagens do cotidiano de forma altamente sugestiva, seja na distância que toma de um homem em confronto físico com outro, seja na maneira como mostra um cão latindo atrás de uma das portas da casa para o dono voltando depois de um acidente (e isso diz muito do dono). Como nos melhores momentos do cineasta, há uma fascinação no jogo que ele faz entre tecnologia e realidade, na maneira como mostra os personagens conversando pelo computador, com um discurso entre o afetivo e o patético. Haneke não está buscando o discreto charme da burguesia; ele está olhando para aquilo que se quer burguesia e deseja ser sua antítese. Um diálogo entre Georges e o homem que corta seu cabelo é o exemplo primoroso desse humor surreal sem nunca parecer fora de si.

Há uma concepção muito interessante deste filme de Ridley Scott sobre a arte ser considerada uma riqueza e um passo para um indivíduo se sentir atemporal e acima de seus semelhantes. Isso se manifestava no início de Alien: Covenant, por exemplo, quando vemos Peter Weyland e David numa sala com a pintura “Natividade”, de Piero della Francesca, ao fundo. Aqui, surge outra obra de arte como significado para as perturbações do ultramilionário Getty (Christopher Plummer). Em outro momento, é oferecida uma quantia de dinheiro para que possa aproveitar de forma jornalística uma informação referente ao neto. Scott evita uma manipulação dramática e concede à sua narrativa uma visão moderna de que todos desejam tirar algo dessa situação.

Todos os personagens de A balada guardam em comum a solidão, a falta de uma família estabelecida, e a carruagem representa essa transitoriedade. É um mundo em composição e, ao mesmo tempo, em decomposição, levando o espectador de volta a uma época em que a humanidade era colocada em xeque a cada vilarejo. As atuações do elenco nesse sentido (principalmente as de Blake Nelson, Waits e Kazan) colaboram de forma fundamental para o êxito. Os irmãos Coen não chegam a almejar uma pretensa filosofia por meio de seus contos, no entanto ela pode ser vista a cada passo dos personagens. Sob um verniz de despretensão, de contar histórias de um livro (que o filme usa como recurso), eles mostram mais uma vez sua interessante visão sobre a constituição dos Estados Unidos. Melhor: após o marcante Ave, César!, sobre a Hollywood dos anos 50, parecem voltar à melhor forma, aquela dos anos 90, quando encadearam várias obras excelentes e se mostraram autores de cinema fundamentais.

Hereditário oferece a sensação de que esses personagens estão isolados em relação ao mundo. Há um clima permanente de luto, de um passado não resolvido. O distanciamento entre os personagens confere um sentimento de que nenhum é verdadeiramente trabalhado, quando esta decisão parece estar ligada justamente ao fato de Aster não querer revelar nenhum traço definitivo. Isso fornece duas camadas. Uma delas é representada pelo fato de nenhum se atrever a mudar o que está acontecendo; a outra é que, quando se tenta fazer algo, pode ser que o caminho seria não fazê-lo.

A dor com a qual Foxtrot lida envolve não apenas a família, como também a própria tradição da qual ela faz parte. Por isso, é tão espetacular quando, de maneira discreta, Samuel Maoz costura o primeiro ato com o ato final, como se tudo fizesse parte de uma história a ser recontada por gerações. A descoberta de pequenas lembranças, objetos deixados para a posteridade, se encaixa com uma notável sensibilidade voltada à culpa pelo que se escondeu. Preocupado com um certo discurso poético subliminar, Maoz lida com o destino dos personagens como parte daquilo que os antecedeu não apenas no cargo do qual se encarregam e sim do passado que recontam às pessoas próximas. Nesse sentido, a visita de Jonathan à sua mãe adquire toda uma carga simbólica, fazendo de Foxtrot um registro documental da sensibilidade.

Alfonso Cuarón trabalha seu estilo contido e, ao mesmo tempo, grandioso, principalmente numa cena de embate entre a população num centro urbano, que leva a uma das cenas mais impactantes da narrativa, tudo sem uso de trilha sonora, apenas com sons ambientais. Do mesmo modo, Cuarón libera um espaço para o uso da luz e de paisagens que evocam um certo enigma, como o lugar onde a família vai passar as festas no fim do ano e que em determinado momento lembram um pouco O regresso, de Iñárritu, ou um enorme campo de areia a céu aberto com um viés um tanto surreal e onírico, com beleza plástica indiscutível e marcante. Se ele começa mostrando Cleo lavando a garagem, e a água espelha o céu acima, é notável que tenhamos o mar em outro momento mostrando a força da maternidade. Não raramente, o espectador se sente inserido na narrativa: a experiência de Cleo passa a ser universal, daí a vitalidade surpreendente de Roma. Ao final, como a personagem, ele quase parece atingir o céu.

Há uma cena em que Moonee e sua amiga brincam diante de um campo rural com vacas que parece extraída do início de Luz depois das trevas, de Reygadas. É como se esse universo campestre representasse o verdadeiro ingresso num mundo fantasioso coberto de nuvens que dialoga com os estabelecimentos de alimentação. Algumas esculturas em forma de foguetes ao longo deste cenário lembram uma já longínqua corrida espacial. É um grande passo na carreira de Sean Baker e dos atores aqui envolvidos. Não se sente nunca como um semidocumentário, problema em que poderia ter incorrido, e sim num retrato de um cotidiano que se movimenta como as corridas de um lado para o outro em busca de descoberta. Por isso, Projeto Flórida se destaca como um dos filmes mais belos do ano, com um aspecto humano comovente que poucas vezes se vê retratado com tanta ênfase.

Como diretor, além da atuação com mais nuances do que a de Kris Kristofferson, da versão dos anos 70, fazendo deste o seu melhor trabalho desde O lado bom da vida, Bradley Cooper compõe vinte minutos finais especialmente belos, reunindo sentimentos e conflitos que não podem ser sintetizados por palavras, apenas por imagens. Vem dessa parte final a grandeza desta versão de Nasce uma estrela: em seu tempo de viagem, conta mais o que percebemos no interior dos personagens e o que permanecem são os momentos mais afastados do grande público e que impulsionam esse casal atrás de um sonho, como na melhor canção do filme, “Shallow”. Temos aqui um exemplo de filme que capta parte da vida e de sentimentos ligados a ela muitas vezes esquecidos e que permanecem fortes independente do que aconteça.

Greta Gerwig insere seus personagens num equilíbrio entre a transgressão (querer ser rebelde) e a permanência (a tradição da família), não sem uma boa porção de gags, visuais sobretudo, em peças de teatro exageradas. No roteiro, há um humor agridoce que Gerwig traz também de Mulheres do século 20, no qual faz uma jovem também de cabelo tingido, como Lady Bird, ajudando uma amiga a criar seu filho adolescente. Com uma mescla de nuances e sobreposições de tempos que remetem aos melhores momentos recentes de Malick (quando várias festas de fim de ano passam e Lady Bird procura emprego), sem o uso de voice overs, por outro lado, a narrativa se constrói de maneira interessante e sem, embora aparente, um elemento pop. Para um olhar superficial, trata-se apenas de um filme sobre a vinda da adolescência, como se costuma falar. É muito mais.

Em Trama fantasma, nunca vemos ninguém exatamente despido. Paul Thomas Anderson também não evoca carícias entre o casal. Tudo é deixado como sugestão, contudo também porque o corpo é inalcançável: a roupa deve cobrir o corpo, assim como os sentimentos inconfessáveis. Em um momento discreto, ele tira o batom dos lábios de Alma para que finalmente possa vê-la – mas ele não deseja realmente isso, pois seria não ver apenas a si próprio. Se havia uma profusão de diálogos em Vício inerente, Anderson se concentra aqui em diálogos mínimos, pausados, e alguns inesperadamente engraçados (sobretudo quando Reynolds, numa atuação fora de série de Daniel Day-Lewis, se sente perturbado por alguma conversa ao café da manhã). E ele aprimora momentos sutis, como aquele em que o designer está numa situação delicada e um vestido sendo refeito representa ele mesmo se refazendo.

 

Melhores de 2018 (diretores, atores, atrizes… e categorias técnicas)

Por André Dick

Cinematographe apresenta, a seguir, listas dos cinco melhores nas categorias principais (diretor, ator, atriz, ator coadjuvante, atriz coadjuvante, elenco, roteiro original e roteiro adaptado) e técnicas (fotografia, trilha sonora, montagem, design de produção, figurino, maquiagem, efeitos visuais e efeitos sonoros) de filmes disponibilizados comercialmente em diferentes plataformas no Brasil ao longo de 2018. Não há, nelas, ordem de preferência. O próximo post apresentará os melhores filmes do ano.

Melhor diretor

Paul Thomas Anderson (Trama fantasma), Greta Gerwig (Lady Bird – A hora de voar), Bradley Cooper (Nasce uma estrela), Sean Baker (Projeto Flórida), Alfonso Cuarón (Roma)

Melhor ator

Jay Duplass (Outside in), Joaquin Phoenix (Você nunca esteve realmente aqui), Bradley Cooper (Nasce uma estrela), Daniel Day-Lewis (Trama fantasma), Lior Ashkenazi (Foxtrot)

Melhor atriz

Juliette Binoche (Deixe a luz do sol entrar), Lady Gaga (Nasce uma estrela), Brooklyn Prince (Projeto Flórida), Sally Hawkins (A forma da água), Yalitza Aparicio (Roma)

Melhor ator coadjuvante

Christopher Plummer (Todo o dinheiro do mundo), Willem Dafoe (Projeto Flórida), Sam Rockwell (Três anúncios para um crime), Bryan Cranston (A melhor escolha), Jonas Strand Gravli (22 de julho)

Melhor atriz coadjuvante

Millicent Simmonds (Sem fôlego), Laurie Metcalf (Lady Bird – A hora de voar), Mary J. Blige (Mudbound), Olivia Cooke (Puro-sangue), Brian Vinaite (Projeto Flórida)

Melhor elenco

Trama fantasma, Mudbound – Lágrimas sobre o Mississipi, Lady Bird – A hora de voar, Três anúncios para um crime, Nasce uma estrela

Melhor roteiro original

Greta Gerwig (Lady Bird – A hora de voar), Sean Baker, Chris Bergoch (Projeto Flórida), Michael Haneke (Happy end), Rüben Ostlund (The Square – A arte da discórdia), Joel e Ethan Coen (A balada de Buster Scruggs)

Melhor roteiro adaptado

Dee Rees e Virgil Williams, baseados em romance de Hillary Jordan (Mudbound – Lágrimas sobre o Missisissipi), Brian Selznick, baseado no próprio romance (Sem fôlego), Eric Roth, Bradley Cooper e Will Fetters, baseados em roteiros de William A. Wellman, Robert Carson, Dorothy Parker, Alan Campbell (Nasce uma estrela), Aaron Sorkin, baseado em autobiografia de Molly Bloom (A grande jogada), David Scarpa, baseado em livro de John Pearson (Todo o dinheiro do mundo)

Melhor fotografia

Paul Thomas Anderson (Trama fantasma), Alexis Zabe (Projeto Flórida), Dan Laustsen (A forma da água), Bruno Delbonnel (A balada de Buster Scruggs), Alfonso Cuarón (Roma)

Melhor trilha sonora

Jonny Greenwood (Trama fantasma), Alexandre Desplat (A forma da água), James Newton Howard (Animais fantásticos – Os crimes de Grindelwald), Carter Burwell (A balada de Buster Scruggs), Justin Hurwitz (O primeiro homem).

Melhor montagem

Dylan Tichenor (Trama fantasma), Nick Houy (Lady Bird – A hora de voar), Jay Cassidy (Nasce uma estrela), Sean Baker (Projeto Flórida), Lucian Johnston e Jennifer Lame (Hereditário)

Melhor design de produção

Mark Tildesley (Trama fantasma), Stephonik Youth (Projeto Flórida), Paul D. Austerberry (A forma da água), Paul Harrod, Adam Stockhausen (Ilha dos cachorros),  Stuart Craig (Animais fantásticos – Os crimes de Grindelwald)

Melhor figurino

Donald Graham Burt (Legítimo rei), Mark Bridges (Trama fantasma), Stuart Craig (Animais fantásticos – Os crimes de Grindelwald), Julio Suárez (Zama), Sandy Powell (O retorno de Mary Poppins)

Melhor maquiagem

Animais fantásticos – Os crimes de Grindelwald, Aquaman, A forma da água, Bohemian Rhapsody, Deadpool 2

Melhores efeitos sonoros

Hereditário, O primeiro homem, Animais fantásticos – Os crimes de Grindelwald, Bird box, Jogador Nº 1

Melhores efeitos visuais

Jogador Nº 1, A forma da água, O primeiro homem, Animais fantásticos – Os crimes de Grindelwald, Aquaman

 

O retorno de Mary Poppins (2018)

Por André Dick

No clássico Mary Poppins de 1964, duas crianças, Michael e Jane, causam muitos problemas aos pais, até o dia em que pedem uma nova babá. Quem chega, voando de guarda-chuva, é a personagem-título (Julie Andrews), que transforma a vida dessa família tradicional, administrada por Mr. Banks (David Tomlinson). O melhor amigo dela é um rapaz que faz apresentações no parque – talvez a interpretação mais conhecida de Dick Van Dyke. Enquanto Mary viaja com as crianças por um mundo encantado (a primeira mistura perfeita de humanos com animação), Banks pretende associá-las ao banco onde trabalha. Mary Poppins é, ao mesmo tempo, um musical e um filme infantojuvenil clássico. Difícil negar sua qualidade e números de dança, como o da chaminé, na qual se mistura a realidade e a fantasia para recriar um novo mundo. Desde a parte técnica, passando pela direção e elenco, a obra de Robert Louis Stevenson baseada em livro de P.L. Travers marcou época.
Em 1971, na mesma linha, foi realizado Se minha cama voasse, do mesmo diretor de Mary Poppins, também com algumas cenas animadas. A atriz da Broadway Angela Lansbury faz uma aprendiz de feiticeira na época da invasão nazista. Utiliza uma de suas mágicas para fazer uma cama voar e leva junto três crianças. Juntas, viajam para um mundo animado (com cenas que lhe valeram o Oscar de efeitos especiais).

A história de O retorno de Mary Poppins inicia em 1935, na mesma Londres no primeiro, agora no período da Grande Depressão. Michael Banks (Ben Wishaw), mais velho e que perdeu sua mulher Kate há um ano, cria os três filhos, Annabel (Pixie Davies), John (Nathanael Saleh) e Georgie (Joel Dawson), com a ajuda da governanta Ellen (Julie Walters). Com problemas no banco, ele precisa travar um embate com o rei William “Weatherall” Wilkins Jr. (Colin Firth), de quem é empregado e é o novo presidente do Fidelity Fiduciary Bank. É um começo que remete muito ao argumento de Os Goonies, embora baseado numa das sequências escritas por P. L. Travers, e Michael e sua irmã Jane (Emily Mortimer), ao lembrarem que o pai deixou ações no Fidelity Fiduciary Bank, passam a procurar a prova da propriedade. Michael encontra a pipa de infância, que coloca em pertences para venda. Quando as crianças veem Mary Poppins descer do céu para ajudá-los, junto com essa pipa, ela é uma brisa literal de esperança.

A partir daí, vem o problema dessa sequência: Jane e Michael, ao reencontrarem Mary Poppins, parecem não sentir nenhuma emoção em especial – apesar de Rob Marshall encadear canções que tentem motivá-la junto aos personagens, repetindo até a mistura entre humanos e animação num dos pontos mais nostálgicos do filme, em que aparece ainda como destaque o acendedor de luzes de rua Marty (Lin-Manuel Miranda) e uma tigela se torna o objeto-chave da narrativa, sendo levada para uma excêntrica Topsy (Meryl Streep, descontrolada e ainda assim um bom acréscimo, reeditando por um breve momento a parceria com Blunt de O diabo veste prada), capaz de arrumá-la. A história segue os passos de Hook – A volta do Capitão Gancho, com a passagem do tempo como conceito de fundo para os acontecimentos e a velha rivalidade da Disney com as cifras (existente só dentro de seus filmes), o que já aparecia este ano no superior Christopher Robin.

Visualmente, O retorno de Mary Poppins é uma peça encantadora: poucas obras nos jogam de volta numa atmosfera dos anos 60, graças ao trabalho de fotografia de Dion Beebe (habitual parceiro de Marshall) e ao figurino irretocável de Sandy Powell (vencedora de três Oscars), com cores remetendo ao trabalho que apresentou em A invenção de Hugo Cabret, mas sem perder o verniz de contemporaneidade, e o elenco tenta lidar bem com o roteiro disperso. Embora Blunt tenha carisma, ela não consegue, em razão do roteiro, se alçar no papel como Julie Andrews, por um detalhe substancial: ela não tem, curiosamente, uma grande presença em cena. Por vezes, sente-se que Mary Poppins está na história apenas para justificar que se trata de uma sequência – ou melhor, um remake disfarçado – do filme de 1964. Blunt cresceu muito como atriz nos últimos anos, porém não lhe é dado o devido espaço para mostrar a atriz talentosa que é, a não ser alguns maneirismos que lembram os de Andrews, curiosamente ausente da sequência mesmo em se tratando de alguma homenagem. Enquanto isso, Lin-Manuel Miranda é uma grata surpresa, rivalizando com a empatia de Dick Van Dyke. Se as fichas fossem concentradas na relação entre Mary Poppins e Marty, a obra certamente cresceria. O problema central é a direção de Marshall, acompanhada pelo roteiro de David Magee, responsável pelos bons diálogos de Em busca da terra do nunca, sobre o criador de Peter Pan e As aventuras de Pi. No entanto, não se deve esquecer que Wishaw, Firth e a atuação das crianças não são pontos para a história criar a densidade, mesmo fantasiosa, de que necessitava.

Vencedor do Oscar por Chicago, ele fez Memórias de uma gueixa, Nine, Caminhos da floresta e outras peças que não primavam pelo estilo próprio. Em O retorno de Mary Poppins, ele tenta captar o que Stevenson fez no primeiro, no entanto o apanha apenas no visual, uma vez que as sequências musicais parecem intrusivas e pouco naturais, embora as canções sejam afetivas, e o embate entre reis das finanças com o homem mais simples é, em se tratando de seus propósitos, no mínimo forçado. Marshall não tem um grande talento para compor momentos grandiosos, e eles existiriam em profusão aqui se melhor encenados, assim como o design de produção se mostra menos amplo do que o esperado, excessivamente de estúdio. Mesmo com todos os elementos à mão, ele sempre prefere a montagem caótica, ligeira demais, quando os temas tratados exigem um tratamento mais lento. É ele certamente o responsável por O retorno de Mary Poppins ser mais um lembrete do quanto o filme de 1964 foi marcante. É agradável, contudo seu potencial exigia ser muito mais do que isso.

Mary Poppins returns, EUA, 2018 Diretor: Rob Marshall Elenco: Emily Blunt, Lin-Manuel Miranda, Ben Whishaw, Emily Mortimer, Julie Walters, Dick Van Dyke, Angela Lansbury, Colin Firth, Meryl Streep Roteiro: David Magee Fotografia: Dion Beebe Trilha Sonora: Marc Shaiman Produção: Rob Marshall, John DeLuca, Marc Platt Duração: 130 min. Estúdio: Walt Disney Pictures, Lucamar Productions, Marc Platt Productions Distribuidora: Walt Disney Studios Motion Pictures

Bird box (2018)

Por André Dick

Baseado no romance Caixa de pássaros, de Josh Malerman, adaptado por Eric Heisserer e dirigido por Susanne Bier, responsável pelo vencedor do Oscar de filme estrangeiro em 2011, Em busca de um mundo melhor, Bird box pretende ser uma obra capaz de transitar por diferentes gêneros. Com a tentativa de mesclar ficção científica, drama e comportamento familiar colocado à prova num momento especialmente delicado da humanidade, ele lida também com suspense e mesmo terror.
Começa mostrando uma mulher levando duas crianças vendadas até um bote, quando ingressam num rio. A história retrocede cinco anos. Sandra Bullock interpreta Malorie Shannon, que está grávida, esperando um filho de um homem com o qual não vive e que usa a pintura como expressão pessoal. Está acontecendo uma crise apocalíptica na Rússia e na Europa, em que pessoas enlouquecem e se suicidam. Um pouco preocupada, ela vai ao hospital com sua irmã Jessica (Sarah Paulson). Logo esse clima apocalíptico vai percorrer a pequena cidade onde as irmãs Shannon moram. Bier transforma essa sequência inicial de espanto num momento especialmente tenso, capaz de fazer o espectador temer pelos personagens.

Acontecendo duas ações imprevistas, Malorie acaba formando uma comunidade, com Tom (Trevante Rhodes), Douglas (John Malkovich), Sheryl (Jacki Weaver), Charlie (LilRel Howery) e Olympia (Danielle Macdonald), além do arquiteto e proprietário da casa onde ficam, Greg (BD Wong) e um casal ainda não consumado, Lucy (Rosa Salazar) e Felix (Machine Gun Kelly). Eles vivem dentro de uma casa, longe da rua, e vão aos poucos percebendo o que faz as pessoas enlouquecerem: a principal é simplesmente olhar para um determinado vulto. Essa primeira aproximação de Malorie com os demais personagens é interessante, sobretudo seus desentendimentos com Douglas e a amizade com Tom e Olympia, graças à química de Bullock com o elenco, e o fato de ficarem isolados numa casa lembra A noite dos mortos-vivos, de Romero. Quando Malorie está dormindo, ela entrevê vultos passando pela janela: algo vigia todos do lado de fora, impedindo sua saída, a não ser que seja forçada, para um supermercado, a fim de encontrar comida e iniciar uma sequência que remete a Aliens – O resgate, de James Cameron, amplificada pelo trabalho de Salvatore Totino à frente da direção de fotografia.

Bird box parece previsível, no entanto constrói um crescendo de tensão, muito em razão do trabalho da diretora Bier e da atuação calibrada de Bullock, a sua melhor desde Gravidade. Eis uma atriz que nunca foi levada a sério antes de seu Oscar de melhor atriz, mesmo tendo feito alguns filmes de ação e comédias românticas competentes. Talvez sua mudança tenha começado como a investigadora em Cálculo mortal e a viciada de 28 dias. Não só ela aparece bem. Os demais do elenco são ótimos, principalmente Rhodes (o Chiron da vida adulta de Moonlight) e Macdonald (a Patti Cakes), além do imprescindível Malkovich (com seu aspecto de louco suburbano, exibido já em Queime depois de ler), mesmo com pouco roteiro para trabalharem. Eles ajudam a criar interesse pela narrativa, com ecos de Fim dos tempos, de Shyamalan (o filme é de seis anos antes do lançamento do livro de Malerman, o que pode tê-lo influenciado). A maneira como Bier, por meio do roteiro de Heiserer, costura a narrativa, mesmo anunciando a disposição dos personagens, mantém o interesse. Com idas e vindas no tempo, sabemos que Malorie faz a jornada pelo rio ao lado de duas crianças, chamadas Boy (Julian Edwards) e Girl (Vivien Lyra Blair).

Essas crianças não têm nome como se vivêssemos realmente o fim do mundo, ou, visto de forma mais otimista, o início de outro. Malorie é a força que tenta afastá-las do pesadelo e levá-las a uma espécie de éden imaginário. Heisserer já havia feito dois roteiros em que a figura da mãe é preponderante para enfrentar forças do mal (Quando as luzes se apagam) ou forças espaciais (A chegada). Nesse ano, já tivemos outro filme em que não se podia falar, caso contrário apareceriam criaturas perigosas (Um lugar silencioso). Bird box joga com o sentido da visão, em que o espectador se angustia com o fato de os personagens não poderem olhar para aquilo que os ameaça e, por meio de um talento da direção de Bier, se torna amedrontador mesmo para o espectador. Mais um lançamento de destaque da Netflix, Bird Box acerta por não trazer informações didáticas para o espectador. E, para efeito de comparação, se Fim dos tempos possivelmente o influenciou, o livro Bird box pode naturalmente ter ajudado a provocar o argumento original de Krasinki para Um lugar silencioso. A trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross, que trabalhou em A rede social e Garota exemplar, também lança o espectador num universo de expectativa, em que qualquer caminhada pode representar a existência ou não de cada personagem. Em certo ponto tem momentos telegrafados, mas é conduzido de maneira intensa por Bier, acompanhado por um trabalho de efeitos sonoros bastante eficiente.

Bird box, EUA, 2018 Diretora: Susanne Bier Elenco: Sandra Bullock, Trevante Rhodes, Jacki Weaver, Rosa Salazar, Danielle Macdonald, Lil Rel Howery, Tom Hollander, BD Wong, Sarah Paulson, John Malkovich, Colson Baker, Machine Gun Kelly, Julian Edwards, Vivien Lyra Blair Roteiro: Eric Heisserer Trilha Sonora: Trent Reznor, Atticus Ross Fotografia: Salvatore Totino Produção: Chris Morgan, Barbara Muschietti, Scott Stuber, Dylan Clark, Clayton Townsend Duração: 124 min. Estúdio: Bluegrass Films, Chris Morgan Productions Distribuidora: Netflix

Loucuras de verão (1973)

Por André Dick

Dois anos depois de THX 1138, sua primeira grande ficção científica, George Lucas surgiu com o único filme que dirigiu fora do gênero que o tornou conhecido: Loucuras de verão. Ele se passa em Modesto, em 1962, e inicia no estacionamento do Mel’s, um drive-in diner, referência visual clara para o Zodíaco de Fincher, onde se encontram os amigos e recém-formados Curt Henderson (Richard Dreyfuss) e Steve Bolander (Ron Howard). Lá, eles conhecem John Milner (Paul Le Mat), o principal corredor da cidade, e Terry “The Toad” Fields (Charles Martin Smith).
Steve e Curt irão viajar para o início da faculdade. No entanto, Curt está preocupado em deixar a cidade. A namorada de Steve, Laurie Henderson (Cindy Williams), irmã de Curt, entra em crise depois de uma revelação. Eles passam a andar de carro pelas ruas da cidade, e Curt fica desesperado para encontrar uma jovem loira que dirige um Ford Ford Thunderbird 1956. Ela parece dizer “Eu te amo” quando os carros em que estão param lado a lado num semáforo.

Ao mesmo tempo, vemos The Toad conhecendo uma jovem rebelde, Debbie Dunham (Candy Clark), e John sendo perseguido pela adolescente Carol Morrison (Mackenzie Phillips), que gosta dele. Às voltas desse círculo, encontra-se Bob Falfa (Harrison Ford), que deseja desafiar John para uma corrida.
Tudo em Loucuras de verão, muito por causa do elenco e da fotografia brilhante de Ron Eveslage e Jan D’Alquen, evoca um tempo nostálgico, em que os jovens usam os carros para ouvir música (a trilha sonora é um destaque) e para se exibir, o que veríamos nos anos 80 de forma mais popular em Footloose. O roteiro de Lucas, feito em conjunto com Willard Huyck e Gloria Katz, serve apenas para delinear as situações e o que os personagens aparentam ser, no entanto é menos superficial que sua primeira impressão deixa. Ele lida com sonhos, com mágoas, com passagens de tempo e com a sensação deixada pelos estudos do ensino médio e por uma noite de verão.

Pode-se dizer o quanto Richard Linklater bebeu de Loucuras de verão em Jovens, loucos e rebeldes, mas seria mais fácil dizer que Lucas definiu uma espécie de gênero novo: quase todas as peças feitas depois desse filme remetendo aos anos 60 ou 70 têm um pouco dele. Clássicos como De volta para o futuro parecem, por exemplo, emular as festas enfocadas neste filme, assim como o musical Grease toma como base este estilo, além de servir como prévia indireta aos inúmeras peças sobre a geração que foi ao Vietnã.
Indicado aos Oscars de melhor filme, direção, roteiro original, atriz coadjuvante (Candy Clark) e edição e vencedor do Globo de Ouro de melhor comédia ou musical, Loucuras de verão teve problemas na montagem e Francis Ford Coppola se ofereceu para comprar a obra antes que o estúdio resolvesse picotá-lo. A sensação é de que a sua estrutura é aberta, em que muitas histórias caberiam, e não existe um fio linear ligando tudo que acontece, no que é bastante inovador. Os personagens entram e saem de cena não estabelecendo necessariamente uma ordem para a narrativa ser mais entendida, e sim de maneira que parecem ser independentes uns dos outros, cada um tecendo sua própria versão.

Além de tudo, não apenas a atuação de Dreyfuss é muito boa e a participação do futuro diretor Ron Howard interessante, como Paul Le Mat está excelente e Harrison Ford anunciando por que se tornaria uma estrela de Hollywood, como um motorista que tenta provocar os demais. No entanto, talvez o destaque seja Mackenzie Phillips como a adolescente que persegue John: exagerada na medida certa, ela consegue se sobressair mesmo a Le Mat. Lucas mostra ser um bom diretor de elenco, como já havia deixado claro em THX 1138, e possui uma concepção visual extraordinária. Há cenas em que os carros transitam pela cidade e as luzes dos postes parecem iluminar um lugar de decolagem (o que não seria incomum para quem viria a dirigir Star Wars), captando uma época e cultura de maneira enfática. A placa de um dos carros é THX 138. Não estamos diante de um filme de ficção científica e sim de uma visão sobre a juventude dos Estados Unidos, aliado a uma manifestação contra a guerra do Vietnã, no entanto aqui Lucas já estabelece, por meio de personagens cotidianos, uma versão prévia para os seus personagens que precisam do céu para mostrar a que vieram.

American graffiti, EUA, 1973 Diretor: George Lucas Elenco: Richard Dreyfuss, Ron Howard, Paul Le Mat, Charles Martin Smith, Candy Clark, Mackenzie Phillips, Cindy Williams, Wolfman Jack Roteiro: George Lucas, Gloria Katz, Willard Huyck Fotografia: Ron Eveslage e Jan D’Alquen Produção: Francis Ford Coppola, Gary Kurtz Duração: 112 min. Estúdio: Lucasfilm Ltd., The Coppola Company Distribuidora: Universal Pictures

 

Solaris (1972)

Por André Dick

Antes de assistir a esta obra clássica de Andrei Tarkovsky em Blu-ray da Criterion, eu certamente não a havia assistido como deveria. Lembro da cópia com cores apagadas pela qual conheci esta peça do grande cineasta russo, uma resposta dele a 2001, de Stanley Kubrick (o qual julgava frio e excessivamente espetaculoso em termos de efeitos visuais), e, associada ao ritmo lânguido, entendo que nada ajudava. Achei apenas maçante e longo, sem nenhum atrativo visual, apesar de entender as ligações filosóficas pretendidas por Tarkovsky. Mas é em Blu-ray majestoso que a fotografia de Vadim Yusov ganha vida: vemos realmente o amarelo, o vermelho, o verde, o prateado, o reflexo das luzes da espaçonave, o contraste de cores ganha vida e o design de produção relativamente inferior a 2001 não se sente mais tão incômodo. Esta é uma ficção científica que se parece mais com um drama situado em meio a falas sobre a vida espacial.

A trama, baseada num livro de Stanislaw Lem, mostra o psicólogo Kris Kelvin (Donatas Banionis), que passa seu último dia na Terra refletindo sobre sua vida à beira de um lago próximo da sua casa de infância, onde ainda mora o pai (Nicolai Grinko). Ele irá embarcar numa viagem até a estação espacial que orbita o planeta Solaris, com seu oceano infinito, e precisa avaliar a missão, que não tem mostrado avanço. Para isso, ele entra em contato com coordenadores da estação. Ao mesmo tempo, Henri Berton (Vladislav Dvorzhetsky), um ex-piloto, o visita, e ambos veem filmagens dele de um período em que esteve no espaço e passou por uma situação perturbadora.
Na chegada à estação, Kris fica sabendo que Dr. Gibarian (Sos Sargsyan), um amigo, se matou. Os dois pilotos, entre os quais Dr. Snaut (Jüri Järvet) e Dr. Sartorius (Anatoli Solonitsyn), que ficaram não estão muito interessados em conversar. O surpreendente é que aparece para ele a esposa já falecida, Hari (Natalya Bondarchuk), por um motivo-chave. Ela pode explicar por que o planeta influencia tanto as ondas cerebrais dos passageiros da nave. A imagem da esposa seria apenas resultado de sua imaginação? Os diálogos entre eles simbolizam um resquício do que poderia ter sido o casamento? Por meio de Solaris, o psicólogo estaria tentando superar traumas e possíveis sentimentos de culpa?

É a atuação de Natalya Bondarchuk o melhor elemento do filme, aquele que torna as tentativas de Tarkovsky no sentido filosófico em plausíveis. A sua figura traz, além do componente feminino para este universo focado predominantemente masculino, a sensibilidade e a lembrança de um amor vigoroso, quando ainda existia. Kris é um personagem inseguro diante dos acontecimentos e, de algum modo, Hari o conduz para a segurança de que o espaço sideral pode libertar seus sentimentos em relação ao que viveu e ainda não filtrou suficientemente.
Claro que tudo é um grande motivo para Tarkovsky expor uma narração sobre a filosofia do tempo e do amor (ainda que Nolan em Interestelar seja mais emotivo). Vejamos a sala onde acontecem as reuniões, onde aparecem pinturas, como “Os caçadores na neve” (1565), de Pieter Bruegel, o Velho: é como se Solaris e a nave representassem sempre uma extensão da verdadeira natureza humana, e as lembranças de Kelvin dialogam com essa imagem: a da criança no gelo, sobretudo. Os candelabros contrastam com o corredor tecnológico; o fogo da espaçonave contrasta com a fogueira que Kelvin usa para apagar objetos de seu passado; as pinturas são como sonhos imóveis (e a cena em que Kelvin e Hari gravitam pela sala é impecavelmente bem construída). Vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes, não é um filme, particularmente, que se compare a 2001, contudo possui uma ressonância psicológica envolvente.

Como em O espelho e Nostalgia, Tarkovsky filma tudo de maneira bastante lenta, vendo mais os detalhes teatrais do que qualquer empuxe de aventura. Ele tem elementos que antecipam também a sensação apocalíptica que percorre o belo O sacrifício, em que uma árvore simbolizava a ligação dos tempos e a passagem dele por meio dos personagens. Em Solaris, testemunhamos a relação entre um casal e do filho com seu pai que resiste à viagem ao espaço e ao tempo linear. Tarkovsky adota uma interessante concepção de que a vida existe, antes de tudo, na memória das pessoas e que Solaris, o planeta, se encarregaria de despertá-la em forma de realidade, mesmo que já não exista. O final dessa ficção científica, a partir de tudo isso, particularmente, é um dos mais belos e significativos do cinema. O cineasta russo parece emparelhar a beleza plástica de 2001 com uma vigorosa alternativa de que somos todos conduzidos a um espaço que nos lembra da casa mais íntima: não se está tratando simplesmente da faceta subjetiva de cada um e sim de sua ligação incontornável com o outro, que nos lança para frente, sempre em busca de uma explicação. Solaris tem isso em seus melhores momentos: aqueles em que a humanidade se mostra cada vez mais humana.

Solaris, RUS, 1972 Diretor: Andrei Tarkovsky Elenco: Donatas Banionis, Natalya Bandarchuk, Nikolai Grink, Yuri Yarvet Roteiro: Andrei Tarkovsky, Friedrich Goreinstein Fotografia: Vadim Yusov Trilha Sonora: Eduard Artemiev Produção: Vadim Jusov Duração: 165 min. Distribuidora: Mosfilm

 

Aquaman (2018)

Por André Dick

Não é preciso fazer um prólogo para concluir que hoje as adaptações de HQs se transformaram num grande duelo entre duas companhias, acarretando fãs de um lado ou de outro, ou de admiradores de ambos os trabalhos. A sucessão de lançamentos de filmes do gênero não deixa mais órfãos admiradores de inúmeros personagens, que antes só possuíam os quadrinhos de fato ou as animações televisivas para apreciá-los em movimento. E, cada vez mais, se espera que um filme consiga superar o outro, não tanto em termos de qualidade, mas de bilheteria. Aguardado e divulgado há muitos meses, Aquaman é lançado num ano em que a Marvel teve duas bilheterias bilionárias, com Pantera Negra e Vingadores – Guerra infinita, e ainda surge depois de uma obra polêmica da DC, Liga da Justiça.

O roteiro de David Leslie Johnson-McGoldrick e Will Beall, baseado em história de Geoff Johns, James Wan e Beall, mostra um homem que cuida de um farol, no Maine, Thomas Curry (Temuera Morrison), que salva Atlanna (Nicole Kidman), princesa de Atlantis, de uma tempestade. Ambos se apaixonam e ela dá à luz Arthur Curry. Feito de idas e vindas, Arthur, já adulto (Jason Momoa), tenta salvar um submarino nuclear de piratas, liderados por Jesse Kane (Michael Beach), pai de David, o Arraia Negra (Yahya Abdul-Mateen II), que deseja vingá-lo. Esse ataque ao submarino é pretexto para Orm (Patrick Wilson), meio-irmão de Artur e rei de Atlântida, invocar uma guerra contra os humanos. Rei Nereus de Xebel (Dolph Lundgren) tenta seguir Orm, e sua filha prometida a ele, Mera (Amber Heard), pede ajuda a Arthur. Em seguida, ambos vão encontrar Vulko (Willem Dafoe), que treinou Arthur em sua infância e juventude (quando ele é interpretado por Kaan Guldur e Otis Dhanji, respectivamente) em passagens que remetem a Mulher-Maravilha (há cenas claramente feitas antes e outras depois do filme de Jenkins).

O roteiro lida com o fato de o herói, nomeado Aquaman, uma criação de Mort Weisinger, ser filho de um humano e uma deusa como um decréscimo dele, principalmente em suas conversas com Orm, e isso se revela interessante principalmente em como Arthur se junta a Mera, indo ambos parar no Saara, em que Wan homenageia O céu que nos protege, fazendo uso da cor do cabelo de Mera para criar um diálogo com a luz solar, e depois na Sicília, aqui evocando a ilha de Themyscira, das amazonas, atrás do tridente que pode dar o poder sobre Atlântida a Curry. Nesses momentos, o diretor de fotografia Don Burgess comprova seu talento, exibido já em obras como Contato, Forrest Gump e Náufrago, além de Os Muppets. E, se as gags não funcionam, pois na verdade não se encaixam tão bem no universo da DC, a bela trilha sonora de Rupert Gregson-Williams faz esquecer algumas canções mal selecionadas. Talvez a montagem até a primeira metade seja o maior problema, de qualquer modo, da obra da Wan, com excessiva exposição e flashbacks desnecessários, fazendo a metragem ultrapassar pelo menos 15 minutos.

E, apesar da assinatura de Wan e da concepção menos sombria, Aquaman, de modo geral, apresenta o estilo delirante de Snyder, capaz de transitar por batalhas gregas com uma atmosfera de Olimpo (300), mostrar um Superman com questionamentos existenciais (O homem de aço), encadear uma sequência de imaginações de uma menina num hospício (Sucker Punch) e apresentar uma animação em que duas corujas irmãs entram em conflito (A lenda dos guardiões), além de um épico sobre um grupo de super-heróis perseguido (Watchmen), trazendo a paleta de variação de cores já vista em Liga da Justiça. Reúna tubarões montados por seres aquáticos e leões-marinhos prontos para uma batalha que se terá, no mínimo, cenas inusitadas. Foi Snyder quem criou os elementos para esse personagem ter sua estreia solo no cinema, depois da boa participação em Liga da Justiça, com um estilo roqueiro, trabalho de pescador e tendência a doses etílicas em algum bar na costa marítima. E, se Clark Kent tem o pai Jonathan (Kevin Costner), em seus sonhos, e Martha (Diane Lane) sob ameaça de Zod e Luthor, além de sua fuga da realidade de Metrópolis para o Kansas, Arthur também precisa lidar com a dualidade e com o passado: seus pais e o comportamento humano, literalmente, representam seu porto. Apenas se lamenta que, mesmo com mais tempo, o personagem não se mostre tão eficaz quanto em Liga da Justiça.

Momoa é um ator limitado dramaticamente, no entanto entrega bem seu personagem, enquanto Heard está um pouco deslocada, sem prejudicar, e Kidman sempre talentosa, independente do papel, além de Dafoe estar discreto e Wilson, apesar do rosto computadorizado, efetivo. O melhor, porém, é Morrison, numa breve participação como o pai. Aquaman, além disso, é visualmente fantástico, com ótimos efeitos especiais, prejudicados apenas pelo CGI excessivo de algumas linhas do horizonte, sendo, no entanto, a batalha final um grande momento, misturando em suas referências imagens tanto de O segredo do abismo quanto o recente Valerian e a cidade dos mil planetas e Star Wars – A vingança dos Sith, no trabalho de uma cor alaranjada, simbolizando a guerra no fundo do mar. Há cenas plásticas especialmente belas, como aquela em que o menino Arthur fica à frente de um aquário em que os peixes visualizam as demais crianças. Sem tentativa de ser épico ou revolucionar as adaptações de quadrinhos, Aquaman se caracteriza pelo interesse com que dispõe suas ideias.

Aquaman, EUA, 2018 Diretor: James Wan Elenco: Jason Momoa, Amber Heard, Willem Dafoe, Patrick Wilson, Dolph Lundgren, Yahya Abdul-Mateen II, Nicole Kidman, Kaan Guldur, Otis Dhanji Roteiro: David Leslie Johnson-McGoldrick, Will Beall Fotografia: Don Burgess Trilha Sonora: Rupert Gregson-Williams Produção: Peter Safran, Rob Cowan Duração: 143 min. Estúdio: Warner Bros. Pictures, DC Films, The Safran Company, Cruel and Unusual Films, Mad Ghost Productions Distribuidora: Warner Bros. Pictures

Roma (2018)

Por André Dick

Depois de Amor em tempo de histeria, o mexicano Alfonso Cuarón se dividiu entre uma carreira em Hollywood, realizando um episódio da série Harry Potter, o ótimo A princesinha e o subestimado Grandes esperanças, além de Filhos da esperança, e uma trajetória mais voltada a seu país de origem, com E sua mãe também. Com Gravidade, em 2013, recebeu o Oscar de melhor diretor reunindo um orçamento alto e estrelas conhecidas, George Clooney e Sandra Bullock. Chamava a atenção a estética voltada para o uso da câmera, outro trabalho do grande Emmanuel Lubezski, colaborador de Terrence Malick. É justamente pelo trabalho de fotografia, mas também o de efeitos especiais e de ambientação, mesclando os melhores ganhos trazidos por ficções mais reflexivas, como 2001 e Os eleitos – o grande filme de Philip Kaufman do início dos anos 80 –, que Gravidade ganha seu primeiro impulso.
E é por meio do trabalho de fotografia em preto e branco assinado pelo próprio Cuarón que Roma também oferece seu primeiro atrativo. Produção da Netflix vencedora do Leão de Ouro de melhor filme no Festival de Veneza, é um dos principais títulos da temporada do Oscar. Nele, Cuarón faz o mesmo movimento que efetuou depois de sua versão de Grandes esperanças em 1998 em Hollywood, voltando à época ao México para filmar E sua mãe também, que, em sua superfície, apresenta um material tipicamente de saída da adolescência. Porém, Cuarón trabalha, como na cena das folhas de outono na piscina, a passagem dessa fase com uma sensibilidade estranha e impactante. Para isso, colaboram Gael García Bernal e Daniel Giménez , como dois jovens, Julio e Tenoch, que saem em viagem com Ana Morelos (Ana López Mercado), e esta jornada, mais do que um road movie, trata de uma autodescoberta, com um roteiro aparentemente disperso e diálogos próximos do improviso, entretanto ainda assim acertados.

Seguindo a linha dessa obra do início do século, Roma também mostra um retrato da sociedade do país de Cuarón. A história foca Cleo (Yalitza Aparicio), de origem indígena, que trabalha como empregada doméstica para uma família de classe média moradora do bairro Colonia Roma (ou simplesmente Roma), na Cidade do México na passagem de 1970, quando ocorreu a Copa do Mundo no país (um adesivo dela aparece num armário), para 1971. A empregada, ao lado de Adela (Nancy Garcia), cuida da casa e dos filhos de um casal em crise, Sofia (Marina de Tavira) e Antonio (Fernando Grediaga). Na casa também mora a mãe de Sofia, Teresa (Verónica García). Ao mesmo tempo, Cleo se envolve com um homem, Fermín (Jorge Antonio Guerrero), primo de Ramón (José Manuel Guerrero Mendoza), namorado de Adela, e os dois casais se distraem indo ao cinema.
Cuarón inicia a história com uma movimentação de câmera circular, representando a rotina de Cleo, em meio aos momentos em que precisa limpar a sujeira deixada pelo cão da casa, e as brincadeiras com os filhos. Em certas sequências, como diretor de fotografia iniciando sua empreitada, fica um pouco autoindulgente e mesmo próximo de certas técnicas de Wes Anderson (também quando sai às ruas).

No entanto, aos poucos, quando Cuarón leva a história a seu núcleo e torna a atmosfera uma experiência imersiva, Roma representa uma espécie de mescla entre o melhor Antonioni (de A noite e O eclipse) com elementos de Carlos Reygadas (Batalha no paraíso), Tarkovsky, Fellini (especialmente A doce vida e 8 ½) e Pawlikoswki (Ida), mas, sobretudo, com o melhor Cuarón. Se o seu filme anterior se passava no espaço sideral, não deixa de ser curioso que coloque um dos filhos de Sofia vestido de astronauta atravessando um pequeno riacho, assim como em determinado momento, numa ida ao cinema, mostre uma obra de ficção científica.
Do mesmo modo que a personagem central de Gravidade, Cleo se vê às voltas com uma situação definidora para sua vida e que lida também com a morte. No início a atuação de Aparicio soa um pouco contida demais (ela é uma atriz estreante), contudo, aos poucos, ela vai dominando o espaço de tela, até eclodir numa grande emoção. O comportamento de Sofia algumas vezes entra em atrito com o de Cleo, e talvez a passagem que melhor simbolize isso seja aquela em que tenta passar com seu carro por dois veículos sem ter passagem para isso, igual à garagem apertada de casa. Tudo mostra uma espécie de personagens buscando seu espaço, a fim de se libertarem de uma tradição patriarcal.

Para Cuarón, nesse sentido, a família se firma como uma base sólida longe de lideranças, no entanto sempre necessitando de um afeto inabalável. Em seus melhores momentos, Roma consegue elevar o cinema contemporâneo a uma visão bastante polida e mesmo direta de um momento-chave conturbado para uma personagem, sem nunca abdicar de uma certa complexidade de pano de fundo no retrato do amor (Roma também é palíndromo de “amor”). Muito interessante como o diretor utiliza a imagem da estátua de um pequena Buda num dos cômodos da casa, em contraponto aos conflitos que emergem, também presente na espaçonave de Bullock em Gravidade. Cuarón trabalha seu estilo contido e, ao mesmo tempo, grandioso, principalmente numa cena de embate entre a população num centro urbano, que leva a uma das cenas mais impactantes da narrativa, tudo sem uso de trilha sonora, apenas com sons ambientais. Do mesmo modo, Cuarón libera um espaço para o uso da luz e de paisagens que evocam um certo enigma, como o lugar onde a família vai passar as festas no fim do ano e que em determinado momento lembram um pouco O regresso, de Iñárritu, ou um enorme campo de areia a céu aberto com um viés um tanto surreal e onírico, com beleza plástica indiscutível e marcante. Se ele começa mostrando Cleo lavando a garagem, e a água espelha o céu acima, é notável que tenhamos o mar em outro momento mostrando a força da maternidade. Não raramente, o espectador se sente inserido na narrativa: a experiência de Cleo passa a ser universal, daí a vitalidade surpreendente de Roma. Ao final, como a personagem, ele quase parece atingir o céu.

Roma, MEX/EUA, 2018 Diretor: Alfonso Cuarón Elenco: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Fernando Grediaga, Verónica García, Jorge Antonio Guerrero, José Manuel Guerrero Mendoza, Nancy Garcia Roteiro: Alfonso Cuarón Fotografia: Alfonso Cuarón Produção: Alfonso Cuarón, Gabriela Rodriguez, Nicolas Celis Duração: 135 min. Estúdio: Participant Media, Esperanto Filmoj Distribuidora: Netflix

Cinzas no paraíso (1978)

Por André Dick

Não há explicação para Terrence Malick ter se ausentado quase vinte anos depois de Cinzas no paraíso – até o lançamento de Além da linha vermelha, de 1998 – a não ser o fato de que este é um filme incontornável para o cinema e para sua própria filmografia. Malick levaria mais alguns anos para entregar sua obra-prima definidora, A árvore de vida, mas Cinzas no paraíso continua sendo uma referência direta para tudo que veio depois, mesmo em momentos menos inspirados, como em O novo mundo.
Difícil imaginar outra obra tão bem fotografada quanto esta, num trabalho dividido entre Nestor Almendros (vencedor do Oscar) e Haskell Wexler (que figura como fotógrafo adicional), em uma tentativa de reproduzir fielmente algumas pinturas de Edward Hopper e Andrew Wyeth – apesar de terem se inspirado também em Johannes Vermeer (o pintor de Moça com brinco de pérola), parece que este não foi tão influente –, que criaria laços com a obra de David Lynch. Cinzas no paraíso é uma obra notável, nesse sentido, não apenas pelo elenco e o roteiro, mas por seu diálogo com a pintura.

A história (daqui em diante, spoilers) inicia um pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando um homem, Bill (Richard Gere, no filme que o revelou) acaba matando um homem numa usina, em Chicago, e foge com sua namorada Abby (Brooke Adams ) e sua irmã Linda (Linda Manz) para o interior do Texas. Embarcando num trem, cujos trilhos parecem quase encostar o céu em determinado momento, eles vão parar numa fazenda com uma larga plantação de trigo, em que conhecem o dono (Sam Shepard). Após ouvir que ele tem pouco tempo de vida, Bill acaba convencendo a namorada, que todos consideram sua irmã, a casar com o fazendeiro, a fim de que possam herdar futuramente a sua riqueza. A casa imensa do local figura como se sustentasse a paisagem ao redor, para onde todos olham, além de ser uma quase réplica daquela retratada por Edward Hopper em “House by the ralroad”, ou seja, sua presença cênica é destacada. Logo o plano muda: ela se apaixona pelo fazendeiro, e Bill se transforma num intruso. No entanto, o fazendeiro desconfia do relacionamento de Abby com seu dito irmão. A narrativa revela que esses “dias de paraíso”, representados também pela saída de um ambiente industrial na segunda década do século XX, não são perenes, com uma fundamental contribuição pictórica e sensorial de Malick.

Sentimo-nos isolados ao vermos as imagens de Cinzas no paraíso como poucos outros filmes. Não é apenas o sentido visual desperta um diálogo com Hopper, como também o isolamento dos cenários, o afastamento de tudo. Se Bill foge para fugir da lei, ele não a reencontra numa plantação de trigo; pelo contrário, continua seu trajeto de vida desgovernado. Malick o desenha como um homem livre de qualquer compromisso moral, e o faz adentrar no quarto para chamar a amante, na cama com o fazendeiro, para ambos beberem vinho num riacho próximo. No entanto, em meio à paz e à tranquilidade, a taça de vinho cai e se mistura à água, como se destoasse daquele momento – do casal encostado na água fluindo e nas rochas. Para Malick, a natureza do homem se relaciona com a natureza das coisas e do tempo: não são poucas vezes que o cineasta direciona sua câmera para o horizonte alaranjado – a fotografia de Almendros e Wexler registra a chamada “hora mágica” do dia – e sem limite ou para a casa do fazendeiro a fim de mostrar que os personagens reproduzem aquilo que os cerca e que eles pretendem definir um espaço para uma possível felicidade. Quando correm pelos campos e pela plantação de trigo (que parece, em certo momento, quando tocado pelo vento, ganhar vida), tem-se a impressão de que suas vidas estão delimitadas àquele espaço, sem se interessarem pelo que pode vir depois, como se tocados por um sentido divino de existência e, sobretudo, perfeito. Para Malick, o homem se sustenta na base do compromisso,  com ou sem religião, porém também do desvio, e o cineasta talvez realmente faça uma árvore para pendurar nossas “mudas metáforas”, como dizia Pauline Kael, sem esquecer do fato de que realmente ele sabe fazê-la.

A menina Linda, que é a narradora do filme, se aproxima dos garotos de A árvore da vida sobretudo quando ela abre o livro e vê fábulas – inclusive da serpente, remetendo ao Éden e ao pecado original, e de gafanhotos. Não vemos, claro, o triângulo amoroso como representação de um pecado original, e sim como um acobertamento da verdade, depois das palavras ditas por um padre debaixo de árvores segurando alguns raios de sol, ao som da trilha sonora melancólica de Ennio Morricone (ponto de referência para a de Alexandre Desplat em O curioso caso de Benjamin Button).
Simbologias de Malick estão em todos os momentos, seja nos trilhos do trem, no próprio trem (que passa como se fosse uma pintura na noite ou de dia), nas plantações de trigo, na praga de gafanhotos, nos riachos e no rio levando a história de cada personagem para longe e no casamento em meio às árvores e no enfoque sempre de um pôr do sol, sem dar espaço às estrelas – tanto que numa das poucas cenas noturnas não vemos o espaço, apenas o fogo queimando, incessante. Muito difícil imaginar outro filme em que a encenação e a disposição dos personagens (que surgem em fragmentos de montagem, em diálogos soltos) seja mais importante do que a própria narrativa. Os personagens são contidos, e poucas vezes podemos ver o diálogo entre eles. No entanto, a história se reproduz em cada um deles, em conjunto ou isoladamente. O paraíso pode trazer um romance normal, a relação entre irmãos e mesmo uma trupe que chega do céu para tentar divertir um pouco o fazendeiro e os seus hóspedes. Ela mistura teatro e circo e antecipa o momento em que toda a tranquilidade pode ser colocada em risco.

Ao mesmo tempo, quase não vemos conflitos. Há um homem que trabalha há anos na fazenda e sabe que Bill e Abby são impostores, entretanto é mandado embora justamente por colocá-los em desconfiança. Este homem, na verdade, tentará recompor o paraíso que existia antes da chegada dos forasteiros, mas o paraíso, derradeiro, não ganha mais espaço depois da praga de gafanhotos.
Nesse sentido, Malick consegue contrabalançar o momento em que Bill diz que Abby é vista como uma prostituta com o final, em que sua irmã precisa recomeçar. Cada relacionamento é colocado contra o limite. Para o fazendeiro, Abby lembra, por sua vez, um anjo, porém Malick se pergunta se anjos podem fazer o que ela faz. O diretor registra uma água de orvalho sobre o trigo, assim como coloca um zoom sobre os gafanhotos, para mostrar a paz sendo corrompida na plantação. E se vemos água e prenúncio de temporais ao longo de toda a filmagem, nada mais que lembre Malick do que o fogo ao final, como se fosse uma punição dos deuses em relação ao acontecimento. Malick tem um grande talento para filmar, e isso é evidente em toda a sua obra, e ainda mais para sugerir mais do que mostrar. Tudo em Cinzas no paraíso acaba ganhando uma projeção de que é sugestivo e não firmado, ao se olhar para os personagens ao redor. Cada um deles mostra o sentido de perda e de encontro de uma humanidade em determinada trilha a ser seguida, não necessariamente para a compreensão, mas que ainda asssim pode reerguer o indivíduo.

Days of heaven, EUA, 1978 Diretor: Terrence Malick Elenco: Richard Gere, Brooke Adams, Sam Shepard, Linda Manz Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Nestor Almendros Trilha Sonora: Ennio Morricone Produção: Bert Schneider, Harold Schneider Duração: 95 min. Distribuidora: Paramount Pictures

 

Publicado originalmente em 11 de março de 2013

Mogli – Entre dois mundos (2018)

Por André Dick

Em 2016, a Walt Disney lançou o live-action de Mogli – O menino lobo, cuja adaptação para o cinema mais conhecida era a animação de 1967, dirigida pelo alemão Wolfgang Reitherman. que transformou a história original de Rudyard Kipling em algo realmente universal. Foi a caixa mágica que se esperava: depois de se aproximar do 1 bilhão nas bilheterias, o estúdio planejou inúmeros live-actions para os próximos anos.
Ao contrário do filme de 67, Favreau prefere atenuar a parte do humor e os números musicais (mantendo alguns, é verdade) para fazer uma espécie de épico, em que a animação muitas vezes se parece com cenários reais mais do que vemos em filmes – e a sensação é a de que estávamos vendo uma mistura entre As aventuras de Tintim e Avatar. Favreau e sua equipe se esmeraram em criar uma atmosfera realmente de selva para o filme. Os seus detalhes são, nesse sentido, espetaculares e, apesar de a animação de 1967 ter um trabalho de cores belíssimo, é a versão de Favreau que dá a sensação de estarmos mesmo em meio aos perigos de uma floresta, tendo merecido o Oscar de efeitos visuais.

Era muito cedo para uma novo olhar sobre a história, mas aqui está ela: Mogli – Entre dois mundos foi produzido pela Warner Bros. Diante da versão da Disney e o risco de não conseguir uma boa bilheteria, quem o lança diretamente em streaming é a Netflix. O curioso é que ele foi rodado em 2015 e seu primeiro lançamento se daria exatamente no ano em que foi liberado o filme de Favreau, sendo adiado por motivos óbvios. Enquanto a obra da Warner começou a ser discutida em 2012 (tendo como possível diretor, entre outros, Iñárritu), o anúncio de que a Disney faria uma nova adaptação foi oficializado em 2013, então não se sabe o que, nos bastidores, uma influenciou a outra. Estamos diante, aqui, ao que parece, de um estúdio ter trabalhado mais rapidamente do que o outro para lançar antes.
A história mostra Mogli (Rohan Chand) sendo inicialmente salvo por Bagheera (Christian Bale) – uma pantera –, enquanto seus pais são mortos por uma fera, quando é levado a uma matilha de lobos, na qual é adotado por Nisha (Naomie Harris), Vihaan (Eddie Marsan) e o chefe Akela (Peter Mullan). Ele vive ao lado de seus irmãos lobos e do amigo Bhoot (Louis Ashbourne Serkis) quando surge o ameaçador tigre Shere Khan (Benedict Cumberbatch), auxiliado pela hiena Tabaqui (Tom Hollander). Já o urso Baloo (com voz do próprio Serkis) tem um papel diferente nesta versão: ele ensina a matilha em técnicas de caça e corrida pela floresta. Serkis, ao contrário de Favreau e Reitherman, não lida tanto com o humor.

Esta visão de Andy Serkis, conhecido principalmente pela desenvoltura como ator na captura de imagens de personagens como Gollum (O senhor dos anéis e O hobbit) e César (na recente trilogia do Planeta dos macacos), trabalha mais num plano às vezes de uma escuridão, e personagens que pareciam apenas bem-humorados no primeiro se transformam em ameaçadores aqui, como a cobra Kaa (Cate Blanchett). A adaptação de Serkis também remete a algumas passagens do Apocalypto, de Mel Gibson. A violência é acentuada: animais são devorados e os machucados do pequeno herói se mostram presentes durante toda a metragem.
A sequência em que o menino precisava escapar de um determinado confronto e se via no meio de um estouro de búfalos da obra de Favreau lembrava um pouco a cena dos dinossauros de King Kong (2005), e Serkis, que trabalhou na versão de Peter Jackson dando movimentos ao gorila gigante, repete algumas linhas do cineasta que praticamente o consagrou, com o Gollum, também colocando o personagem perto de desfiladeiros. A hiena lembra exatamente o Gollum de O senhor dos anéis, enquanto a cena com os macacos (engraçados nas versões anteriores) evocam os Orcs, assim como os melhores momentos da versão de Serkis incluem os elefantes – e se destaca mais a violência contra esse animal, quando Mogli entra em contato com os humanos, principalmente John Lockwood (Matthew Rhys), ecoando Nas montanhas dos gorilas, dos anos 80. Por sua vez, Messua (Freida Pinto) representa a maternidade que Mogli não teve e os cantos dos indianos, assim como certo design de produção, remetem a Indiana Jones e o templo da perdição e a As aventuras de Pi.

Não se sabe se por causa da adaptação de Favreau Serkis divide a sua obra em dois atos: a primeira passada numa selva tão imaginária e espetacular quanto a da versão de 2016 e a outra passada numa tribo de indianos. E, nisso, é lamentável que o filme de Serkis, com efeitos visuais realmente excelentes e uma bela fotografia de Michael Seresin (da série Planeta dos macacos), acabe sendo tomado em pontos comparativos tão determinados com o de Favreau, mas a questão é que a Warner parece ter lamentavelmente se atrasado na confecção de sua ideia – e seria este o filme que se destacaria – e, mesmo talvez ela sendo original, aparenta ser uma cópia principalmente no plano visual, com exceção de certa temática sobre a identidade do personagem central mais adulta e cenas mais violentas. Isso a prejudica em parte, no entanto se o espectador der uma oportunidade para uma atuação muito boa de Rohan Chand, no papel central (melhor do que Neel Sethi, da obra da Disney) e para o trabalho de vozes acertado de todo o elenco, além da homenagem ao universo de Kipling, terá uma boa experiência.

Mowgli – Legend of the jungle, EUA/ING, 2018 Diretor: Andy Serkis Elenco: Christian Bale, Cate Blanchett, Benedict Cumberbatch, Naomie Harris, Andy Serkis, Matthew Rhys, Freida Pinto, Rohan Chand Roteiro: Callie Kloves Fotografia: Michael Seresin Trilha Sonora: Nitin Sawhney Produção: Steve Kloves, Jonathan Cavendish, David Barron Duração: 104 min. Estúdio: Warner Bros. Pictures, The Imaginarium Distribuidora: Netflix