Por André Dick
Durante 2018, os filmes estiveram, cada vez mais, divididos entre a tela do cinema e a tela da TV. Isso porque, mais do que em outros anos, o sistema de streaming (principalmente a Netflix) disponibilizou uma quantidade de obras acima da média, melhor, inclusive, do que muitos lançamentos diretamente na tela grande. Pelo estado atual, as redes de cinema talvez tenham de optar entre arrefecer os gastos e se manter ou dar cada vez mais espaço ao streaming. A indústria da música não entendeu a passagem do tempo. Entre os festivais, o de Cannes, por exemplo, ainda não entendeu o que está ocorrendo no mercado cinematográfico; o de Veneza, por sua vez, sim.
Não que os blockbusters não impeçam ainda o filme lançado no cinema de ser um evento, no entanto cifras bilionárias não representam tanto quanto a manutenção de um cinema que cada vez mais os estúdios grandes menosprezam, com receio de não faturar.
Embora não tanto como no ano passado, tivemos blockbusters de grande qualidade, a exemplo de Animais fantásticos – Os crimes de Grindelwald e Missão: impossível – Efeito Fallout e animações de excelência da Pixar, Os incríveis 2 e Viva – A vida é uma festa, e de Wes Anderson, Ilha dos cachorros.
Se a temporada do Oscar trouxe um costureiro às voltas com a imagem da mãe em Trama fantasma, pode-se dizer que ao longo do ano a representação do nascimento esteve sob ameaça, seja em Um lugar silencioso, seja em Bird box, assim como sob um sinal de otimismo, mesmo em meio ao cansaço, em Tully, ou de melancolia, em Mais uma chance e Roma, assim como a ameaça se manifestou em Hereditário.
A confusão da vida contemporânea ou futura, afetada pelas altas tecnologias, esteve em obras como Mudo, Ingrid vai para o oeste, Permission, Pequena grande vida, Happy end e Newness. A visão sobre certa solidão da mulher foi enfocada de maneiras diferentes em filmes como As boas maneiras, Novititae, O conto, Os amantes, Millennium – A garota na teia da aranha, Almas secas e Deixe a luz do sol entrar.
Tivemos dois filmes sobre um acontecimento trágico na Suécia, em 22 de julho e Utoya, 22 de julho – Terrorismo na Noruega, sob pontos de vista complementares.
Diferentes guerras estiveram presentes em Foxtrot, Mudbound – Lágrimas sobre o Mississipi, A melhor escolha e Honra ao mérito, assim como a ameaça do terrorismo em 15h17 – Trem para Paris, Sete dias em Entebbe e O que te faz mais forte, do racismo em Infiltrado na Klan e do tráfico de drogas em Sicario – Dia do soldado. O apelo de uma causa marcou presença em 120 batimentos por minuto.
Certa nostalgia de uma Hollywood perdida pode ser entrevista em Nasce uma estrela, A balada de Buster Scruggs e A forma da água, assim como nas referências a filmes que marcaram Cuarón em Roma, em outro extremo, Puro-sangue, entretanto principalmente na recuperação e finalização da obra O outro lado do vento, de Orson Welles.
A influência do cinema de Refn esteve presente em obras como Você nunca esteve realmente aqui, Puro-sangue, O animal cordial e mesmo na refilmagem de Halloween.
Steven Spielberg alternou dois momentos: o do cinema político sem efetividade (The Post) e o da diversão e homenagem aos anos 80 e à cultura pop (Jogador Nº 1).
O gênero da comédia, tão esquecido no cinema, se mostrou ainda vigoroso, mesmo com despretensão, em obras como A noite do jogo, Não vai dar, Um pequeno favor e O plano imperfeito.
Manifestações sobre a adolescência estiveram presentes em filmes como Lady Bird, Super dark times, Pérolas no mar, Não vai dar, As aventuras de Brigsby Bear; o universo infantil esteve bem representado no drama de Projeto Flórida, em Christopher Robin – Um reencontro inesquecível, O mistério do relógio na parede, O retorno de Mary Poppins e As aventuras de Paddington 2.
Gêmeos foram essenciais para se compreender as tramas de Um pequeno favor e O amante duplo.
E o gênero da cinebiografia sobrevive com muitos exemplares de qualidade: O conto, O primeiro homem, O que te faz mais forte, Artista do desastre, Bohemian Rhapsody, O destino de uma nação, A pé ele não vai longe, Fútil e inútil, O rei da polca e Eu, Tonya.
Os filmes avaliados para as listas estrearam no Brasil entre janeiro e dezembro de 2018, inclusive aqueles indicados ao Oscar de 2017, seja nos cinemas, em VOD ou na Netflix. Desde o ano passado, não é mais possível avaliar como foi o ano apenas com base naquelas obras que chegaram às salas, principalmente porque várias de qualidade não estreiam por causa de filmes de menos qualidade. Não foram avaliados obras exibidas apenas em festivais ou que estrearam nos Estados Unidos e irão estrear no próximo ano em circuito comercial no Brasil.
O Cinematographe apresenta a seguir listas com menções honrosas, apreciados, subestimados, apreciados em parte e decepções e/ou superestimados.
Menções honrosas
As viúvas (Steve McQueen), Legítimo rei (David Mackenzie), Três anúncios para um crime (Martin McDonagh), Sicario – Dia do soldado (Stefano Sollima), Custódia (Xavier Legrand), Mudo (Duncan Jones), Corpo e alma (Ildikó Enyedi), As aventuras de Paddington 2 (Paul King), Novititae (Margaret Betts), Ilha dos cachorros (Wes Anderson), Jogador Nº 1 (Steven Spielberg), Tully (Jason Reitman), 15h17 – Trem para Paris (Clint Eastwood), Deadpool 2 (David Leitch), Zama (Lucrecia Martel), Best f(r)iends: Vol. 1 (Justin MacGregor), Em pedaços (Fatih Akin), O conto (Jennifer Fox), Baseado em fatos reais (Roman Polanski), Os incríveis 2 (Brad Bird), Noite de lobos (Jeremy Saulnier), O outro lado do vento (Orson Welles), Mais uma chance (Tamara Jenkins), As boas maneiras (Juliana Rojas, Marco Dutra), Domando o destino (Chloé Zhao), Missão: impossível – Efeito Fallout (Christopher McQuarrie), Pérolas no mar (Rene Liu), Halloween (David Gordon Green), Bird box (Susanne Bier), Millennium – A garota na teia da aranha (Fede Alvarez), Honra ao mérito (Jason Hall), Roman J. Israel, Esq. (Dan Gilroy), Pequena grande vida (Alexander Payne), O que te faz mais forte (David Gordon Green), A grande jogada (Aaron Sorkin), Ratos de praia (Eliza Hittman), Viva – A vida é uma festa (Lee Unkrich, Adrian Molina), Os amantes (Azazel Jacobs), Ingrid vai para o oeste (Matt Spicer), Artista do desastre (James Franco), Christopher Robin – Um reencontro inesquecível (Marc Forster)
Apreciados
Newness (Drake Doremus), Tudo que quero (Ben Lewin), Maria Madalena (Garth Davis), Jumanji – Bem-vindo à selva (Jake Kasdan), A noite do jogo (John Francis Daley e Jonathan M. Goldstein), Sem amor (Andrey Zvyagintsev), Aquaman (James Wan), Não vai dar (Kay Cannon), Homem-Formiga e a Vespa (Peyton Reed), Buscando… (Aneesh Chaganty), Bohemian Rhapsody (Dexter Fletcher), Infiltrado na Klan (Spike Lee), Um pequeno favor (Paul Feig), O animal cordial (Gabriela Amaral Almeida), A câmera de Claire (Hong Sang-soo), A rota selvagem (Andrew Haigh), Utoya, 22 de julho – Terrorismo na Noruega (Erik Poppe), A vingança de Lefty Brown (Jared Moshe), O destino de uma nação (Joe Wright), Homens de coragem (Joseph Kosinski), Permission (Brian Crano), A pé ele não vai longe (Gus Van Sant), The little hours – A comédia dos pecados (Jeff Baena)
Subestimados
Vende-se esta casa (Suzanne Coote e Matt Angel), Jurassic World – Reino ameaçado (J. A. Bayona), Venom (Ruben Fleischer), Fútil e inútil (David Wain), O mistério do relógio na parede (Eli Roth), Meu ex é um espião (Susanna Fogel), O plano imperfeito (Claire Scanlon), Almas secas (Liz W. Garcia), Cargo (Ben Howling e Yolanda Ramke), Tal pai, tal filha (Lauren Miller), Fullmetal alchemist (Fumihiko Sori), Mogli – Entre dois mundos (Andy Serkis), As aventuras de Brigsby Bear (Dave McCary), Na selva (Greg Mclean), Bumblebee (Travis Knight), Espectador profissional (Dito Montiel)
Apreciados em parte
A maldição da Casa Winchester (Michael Spierig, Peter Spierig), Juliet, nua e crua (Jesse Peretz), O predador (Shane Black), Aniquilação (Alex Garland), Para todos os garotos que já amei (Susan Johnson), Um lugar silencioso (Joseph Krasinki), Em chamas (Lee Chang-Dong), A sombra da árvore (Hafsteinn Gunnar Sigurðsson), Todas as razões para esquecer (Pedro Coutinho), 120 batimentos por minuto (Robin Campillo), O rei da polca (Maya Forbes), Vingança (Coralie Fargeat), The Cloverfield Paradox (Julius Onah), Submersão (Wim Wenders), O ritual (David Bruckner), Alfa (Albert Hughes), Rampage – Destruição total (Brad Peyton), Apóstolo (Gareth Evans), Perigo na montanha (Lin Oeding), Distúrbio (Steven Soderbergh), O mercador (Tamta Gabrichidze), O retorno de Mary Poppins (Rob Marshall)
Decepções e/ou superestimados
Faca no coração (Yann Gonzalez), Benzinho (Gustavo Pizzi), Bleach (Shinsuke Sato), A sociedade literária e a torta de casca de batata (Mike Newell), Western (Waleska Grisebach), Me chame pelo seu nome (Lucas Guadagnigno), Vingadores – Guerra infinita (Anthony e Joe Russo), The Post – A guerra secreta (Steven Spielberg), Megatubarão (Jon Turteltaub), Sete dias em Entebbe (José Padilha), Culpa (Gustav Möller), Han Solo – Uma história Star Wars (Ron Howard), Mom and dad (Brian Taylor), Os estranhos – Caçada noturna (Johannes Roberts), O segredo de Marrowbone (Sergio G. Sánchez), A casa que Jack construiu (Lars von Trier), Amante por um dia (Philippe Garrel), Os iniciados (John Trengove), Pantera Negra (Ryan Coogler), Siberia (Matthew M. Ross), Super dark times (Kevin Phillips), Criminosos de novembro (Sacha Gervasi), Visas, villages (Agnès Varda). Círculo de fogo – A revolta (Steven S. DeKnight), Eu, Tonya (Craig Gillespie)
A seguir, o Cinematographe apresenta sua lista dos 25 melhores filmes do ano. Foi um grande ano cinematográfico. Grato pela sua companhia e leitura durante o ano.
Com direção de Cory Finley, este é um dos mais estranhos filmes da temporada, influenciado por Nicolas Winding Refn, por meio de um trabalho cuidadoso de câmera e regiões simétricas, e uma certa assepsia. O título do filme é uma passagem da vida de Amanda (Olivia Cooke), mas diz mais: ela, como os animais dos quais não esquece, enxerga atentamente o que acontece em torno, mesmo que não seja importante. Muito interessante, nesse sentido, é quando ela está no jardim da casa de Lily ((Anya Taylor-Joy), que tem um enorme tabuleiro de xadrez e ela vai mudando como peças de jogo (com o símbolo do cavalo). A analogia entre o comportamento e os animais que desprezam a visão da visão de Finley sobre os humanos que cercam as duas, parece um tanto robotizado, e sim sem nenhuma sensação de que são humanos. E, apesar de Anya Taylor-Joy e Cooke desempenharam a mídia também sem muita emoção, sempre há um interesse pelo que elas fazem. Um sinal de talento do cinema novo norte-americano.
Muitas críticas avaliam que o filme de Damien Chazelle falharia ao ser um tanto antiamericano. Não é o caso, apenas não sendo patriótico ou com sentimentos retumbantes pelo êxito do país na corrida espacial, que seriam incoerentes com a figura mostrada de Neil Armstrong, vivido por Ryan Gosling, na narrativa, na qual o luto é definidor mesmo para um discurso de John Kennedy sobre a Lua e com um instante-chave da personagem de Claire Foy. É, por alguns instantes, bastante profundo. O seu problema é não ser uma obra com a grandeza do acontecimento enfocado, apesar de sua parte técnica notável, deixando no espectador a sensação de que muitos elementos estavam prontos para funcionar, sem serem, ao fim, totalmente colocados em prática. O que temos ainda, porém, é uma obra bastante interessante de um gênero que não cansa de receber novos exemplares de impacto.
A história de Sem fôlego se mostra cada vez mais próxima do espectador quando aparenta estar distante, com seu jogo de ilusões e espelhos. Que esta obra nova de Todd Haynes tenha sido recebido com tanta apatia, ao contrário do anterior (não tão interessante, a meu ver), Carol, mostra, infelizmente, certa padronização no que se refere a histórias com crianças. O filme, de maneira exemplar, trata da íntima comunicação que se estabelece quando menos se percebe e onde menos parece ser atrativa: trata dos dilemas mais pessoais de um ser humano em busca de sua história, assim como a humanidade busca a sua num museu. Quando, em determinado momento, Haynes expõe uma enorme maquete, extraordinária, pode-se dizer que ela representa tudo aquilo em que esses personagens passeiam, com a segurança de quem conseguirá obter o acesso a um grande planetário a céu aberto.
Desde o início, quando há a libertação de Grindelwald nos céus soturnos e chuvosos de Nova York, em meio a uma sequência de relâmpagos, remetendo à saga cibernética das Wachowski, e dragões desenhados em meio às gotas de chuva, passando por uma criatura marítima gigante, até o momento em que, nas ruas de Paris, Newt parece domar uma criatura que parece saída de As sete faces do Dr. Lao, dos anos 60 (assim como quando surge o Circus Arcanus), o segundo Animais fantásticos possui uma vibração fantástica, capaz de dialogar com o primeiro e anuncia o que virá. Mesmo quando os diálogos não fluem do melhor modo, é mais uma conquista de David Yates e J. K. Rowling, uma fantasia capaz de aliar nostalgia e expectativa por novas aventuras desses personagens.
O rock de Raul Seixas e a música popular de se entrelaçam, em rodas de violão ou palcos de apresentação para ninguém. O conflito entre castas e crenças é sempre teórico; na prática e as culturas e experiências diversas se imbricam, o que se mostra de maneira notável em Central do Brasil e volta a se manifestar de maneira exemplar nesta obra. O próprio personagem central é uma espécie de síntese disso, com seu sentimento permanente de estar à margem e não poder voltar à vida de antes. Já devidamente filtrado pelo ambiente das fábricas onde trabalha, ele irrompe, ao final, com um discurso poético que poderia fazer o prosaico que o rodeia ficar em segundo plano, constituindo um cinema de fluxo.
Juliette Binoche é uma atriz inclinada a tornar seu sentimento introspectivo numa grande referência para o espectador sentir o que suas personagens estão passando. Desde sua parceria inicial com Leos Carax em Sangue ruim, ela efetua uma transição impecável entre a volatilidade e a mudança. Quando Claire Denis a mostra em lugares simples, parece que sempre há um destaque implícito em suas ações. Nesse sentido, há algo do Godard dos anos 70, mesclado com a Agnès Varda de As duas faces do amor, na maneira como o filme vai se montando e se desconstruindo sem muita definição ou particularidades fixas. Isabelle parece nunca querer, na verdade, se envolver. Ela se afasta de cada homem com uma mágoa passada e ainda assim amorosa.
22 de julho se constitui numa das obras mais particulares da filmografia de Paul Greengrass e possivelmente o mais autoconsciente de seus caminhos. Com um estilo europeu e uma fotografia belíssima de Pål Ulvik Rokseth, ele contrasta o ataque feito ao país à tentativa de Viljar superar a violência em sua recuperação diária. A atuação de Gravli é espetacular, talvez a mais contida até agora do ano e ainda assim altamente impactante, assim como Anders Danielsen Lie, ator preferido de Joachim Trier, é de uma frieza controlada e angustiante no papel do homem que procura deixar uma espécie de legado da distorção da realidade. 22 de julho poderia servir para apresentar um discurso político por trás de suas ideias, porém como em Voo United 93, Greengrass mostra a humanidade resistente das vítimas de um psicopata.
Este é um dos melhores dramas independentes dos últimos anos. Grandes atuações de Jay Duplass, Edie Falco e Kaitlyn Dever, uma história comovente e uma trilha sonora rara garantem a qualidade dessa peça de Lynn Shelton. Tratando do reingresso de um ex-presidiário na sociedade, feito por Duplass com eficiente dramaticidade, ele revela conflitos que vão ao encontro da construção de uma base familiar, com paisagens invernais que acentuam o sentido de solidão pelo qual passa o personagem central, sem nunca abdicar de sua busca pela descoberta de novas amizades.
Em meio aos resíduos de obras do museu e uma performance primata de Oleg (Terry Notary, o mesmo que fez os movimentos do gorila gigante de Kong – A Ilha da Caveira), The Square mostra que tudo que foge à segurança do quadrado pode também incluir peças descartáveis. O filme busca uma certa crítica corrosiva a peças que se consideram provocativas, mas, no fim das contas, se inserem apenas no mesmo establishment que contestam. Nisso, inclui-se o discurso de Christian, em determinado momento, ao telefone. Não se trata de uma crítica previsível a curadores de museu; trata-se de um olhar sobre a sociedade a partir da estrutura de um museu. Uma das cenas mais divertidas é aquela em que o público aguarda ansiosamente que o discurso de Christian termine para que possam jantar (e é em outro jantar que acontece a cena-chave, já referida, da obra de Ruben Östlund, na qual o artista Julian (Dominic West) é desafiado).
O melhor de O sacrifício do cervo sagrado em relação aos anteriores de Yorgos Lanthimos é sua compreensão de atmosfera, apostando tudo num sentimento de obra de terror, sem cair num humor corrosivo que por vezes desconstrói em demasia a narrativa. Em Dente canino e O lagosta, o excesso de estranheza por vezes distanciava o espectador, como se inserido num surrealismo desmesurado. Quem conhece o trabalho do diretor sabe que ele privilegia a construção das imagens, sempre impactantes, em detrimento de uma explicação narrativa (que na maioria das vezes não importa para seu interesse). Aqui ele se limita a algumas bordas, e apara as arestas de maneira mais reflexiva e contundente, construindo uma mistura de gêneros efetiva e surpreendente.
De algum modo, o filme de Lynne Ramsay é um Bom comportamento que deu certo, numa Nova York perturbadora e ainda assim cheia de detalhes sonoros e visuais ressonantes, além da trilha de Jonny Greenwood pontuando a tensão, capaz de se equivaler aos melhores trabalhos que fez com Paul Thomas Anderson. Desenhando uma atmosfera que faz o espectador adentrar na história sem que haja um excesso de diálogos, a fotografia de Thomas Townend acompanha uma narrativa pode ser vista como uma extensão do minimalismo que caracteriza, neste século, principalmente o cinema de Refn, e Drive eApenas Deus perdoa são, sem dúvida, influências no comportamento do personagem central, feito por Joaquin Phoenix de modo exemplar.
François Ozon faz uma espécie de drama mesclado com thriller de voltagem erótica, lembrando em alguns pontos Gêmeos, de Cronenberg, e Elle, de Verhoeven, no entanto com uma sensação ainda maior de vazio, como é de praxe em sua obra. Vacth (estrela de Jovem e bela, também do diretor) tem uma atuação surpreendente e se entrega ao papel com vulnerabilidade, protagonizando cenas difíceis e nas quais Ozon chega a comparar o olhar com o sexo feminino, com um requinte visual de fazer inveja aos melhores diretores de cinema de arte. Uma fotografia decisivamente bela de Manu Dacosse entrega não apenas ao museu uma representação da duplicidade que persegue esses personagens. Veja-se a cena em que Chloé adentra um espaço em que sua imagem é multiplicada por vários espelhos, ou como a Ozon enquadra seu rosto para se assemelhar a uma figura felina (e outras vezes andrógina).
Com uma trilha belíssima de Daniel Hart, Sombras da vida parece uma história previsível e calcada num efeito comum – um fantasma escondido por baixo de um lençol –, mas abraça um caminho extremamente interessante, sobre lembranças, passado, futuro, tempos mesclados e um sentimento constante de deslocamento. É um cinema feito para se aproveitar aos poucos – assim como Rooney Mara aproveita uma torta, comportando-se, na verdade, como duas pessoas, num triunfo estilístico de David Lowery. Há um sentimento belo por trás das imagens da narrativa, de que o ser humano é uma junção de vários tempos possíveis. Ele apresenta isso de maneira simples, direta e ainda assim complexa ao extremo, sobretudo em seus vinte minutos finais. Para Lowery, há um entendimento amplo de que a vida reúne épocas passadas e futuras em conjunto.
Há alguns elementos que Guillermo Del Toro colocou anteriormente em sua trajetória, contudo são melhor resolvidos aqui. Mesmo em relação ao A colina escarlate, subestimado, A forma da água se sente com temas mais complexos e distribuídos em camadas iguais. E a água é, afinal, o símbolo da libertação da narrativa. Todas as sequências que a envolvem dão uma sensação de que a opressão causada por determinados humanos é colocada em segundo plano e os personagens encontram a sua essência. Em A colina escarlate, já havia uma metáfora da terra. Além disso, como em A espinha do diabo e O labirinto do fauno, Del Toro faz com que seus personagens em transformação também combatam a guerra que há nos bastidores de suas existências.
O tom de Mudbound possui certa melancolia, mas ela nunca é utilizada para uma certa comoção pré-programada e sim como um elo entre esses personagens. O Mississipi é uma paisagem que serve de pano de fundo para os conflitos, no entanto vai, aos poucos, se integrando a cada uma dessas figuras, como se existisse para elas. O tom dado pela fotografia – que remete à terra – segue desde o início seu estilo eficaz. Esse tom não está apenas na própria ambientação, como no horizonte e nos figurinos dos personagens. Dee Rees mostra a dificuldade que era construir uma família e uma casa nesse período com rara eficácia. Ela visualiza o trabalho da fazenda como uma espécie de tentativa de o ser humano não ter mais do que outro, e sim poder ter direito de dizer que a terra é mais sua do que do outro.
Happy end é um exemplo do talento de Michael Haneke para compor imagens do cotidiano de forma altamente sugestiva, seja na distância que toma de um homem em confronto físico com outro, seja na maneira como mostra um cão latindo atrás de uma das portas da casa para o dono voltando depois de um acidente (e isso diz muito do dono). Como nos melhores momentos do cineasta, há uma fascinação no jogo que ele faz entre tecnologia e realidade, na maneira como mostra os personagens conversando pelo computador, com um discurso entre o afetivo e o patético. Haneke não está buscando o discreto charme da burguesia; ele está olhando para aquilo que se quer burguesia e deseja ser sua antítese. Um diálogo entre Georges e o homem que corta seu cabelo é o exemplo primoroso desse humor surreal sem nunca parecer fora de si.
Há uma concepção muito interessante deste filme de Ridley Scott sobre a arte ser considerada uma riqueza e um passo para um indivíduo se sentir atemporal e acima de seus semelhantes. Isso se manifestava no início de Alien: Covenant, por exemplo, quando vemos Peter Weyland e David numa sala com a pintura “Natividade”, de Piero della Francesca, ao fundo. Aqui, surge outra obra de arte como significado para as perturbações do ultramilionário Getty (Christopher Plummer). Em outro momento, é oferecida uma quantia de dinheiro para que possa aproveitar de forma jornalística uma informação referente ao neto. Scott evita uma manipulação dramática e concede à sua narrativa uma visão moderna de que todos desejam tirar algo dessa situação.
Todos os personagens de A balada guardam em comum a solidão, a falta de uma família estabelecida, e a carruagem representa essa transitoriedade. É um mundo em composição e, ao mesmo tempo, em decomposição, levando o espectador de volta a uma época em que a humanidade era colocada em xeque a cada vilarejo. As atuações do elenco nesse sentido (principalmente as de Blake Nelson, Waits e Kazan) colaboram de forma fundamental para o êxito. Os irmãos Coen não chegam a almejar uma pretensa filosofia por meio de seus contos, no entanto ela pode ser vista a cada passo dos personagens. Sob um verniz de despretensão, de contar histórias de um livro (que o filme usa como recurso), eles mostram mais uma vez sua interessante visão sobre a constituição dos Estados Unidos. Melhor: após o marcante Ave, César!, sobre a Hollywood dos anos 50, parecem voltar à melhor forma, aquela dos anos 90, quando encadearam várias obras excelentes e se mostraram autores de cinema fundamentais.
Hereditário oferece a sensação de que esses personagens estão isolados em relação ao mundo. Há um clima permanente de luto, de um passado não resolvido. O distanciamento entre os personagens confere um sentimento de que nenhum é verdadeiramente trabalhado, quando esta decisão parece estar ligada justamente ao fato de Aster não querer revelar nenhum traço definitivo. Isso fornece duas camadas. Uma delas é representada pelo fato de nenhum se atrever a mudar o que está acontecendo; a outra é que, quando se tenta fazer algo, pode ser que o caminho seria não fazê-lo.
A dor com a qual Foxtrot lida envolve não apenas a família, como também a própria tradição da qual ela faz parte. Por isso, é tão espetacular quando, de maneira discreta, Samuel Maoz costura o primeiro ato com o ato final, como se tudo fizesse parte de uma história a ser recontada por gerações. A descoberta de pequenas lembranças, objetos deixados para a posteridade, se encaixa com uma notável sensibilidade voltada à culpa pelo que se escondeu. Preocupado com um certo discurso poético subliminar, Maoz lida com o destino dos personagens como parte daquilo que os antecedeu não apenas no cargo do qual se encarregam e sim do passado que recontam às pessoas próximas. Nesse sentido, a visita de Jonathan à sua mãe adquire toda uma carga simbólica, fazendo de Foxtrot um registro documental da sensibilidade.
Alfonso Cuarón trabalha seu estilo contido e, ao mesmo tempo, grandioso, principalmente numa cena de embate entre a população num centro urbano, que leva a uma das cenas mais impactantes da narrativa, tudo sem uso de trilha sonora, apenas com sons ambientais. Do mesmo modo, Cuarón libera um espaço para o uso da luz e de paisagens que evocam um certo enigma, como o lugar onde a família vai passar as festas no fim do ano e que em determinado momento lembram um pouco O regresso, de Iñárritu, ou um enorme campo de areia a céu aberto com um viés um tanto surreal e onírico, com beleza plástica indiscutível e marcante. Se ele começa mostrando Cleo lavando a garagem, e a água espelha o céu acima, é notável que tenhamos o mar em outro momento mostrando a força da maternidade. Não raramente, o espectador se sente inserido na narrativa: a experiência de Cleo passa a ser universal, daí a vitalidade surpreendente de Roma. Ao final, como a personagem, ele quase parece atingir o céu.
Há uma cena em que Moonee e sua amiga brincam diante de um campo rural com vacas que parece extraída do início de Luz depois das trevas, de Reygadas. É como se esse universo campestre representasse o verdadeiro ingresso num mundo fantasioso coberto de nuvens que dialoga com os estabelecimentos de alimentação. Algumas esculturas em forma de foguetes ao longo deste cenário lembram uma já longínqua corrida espacial. É um grande passo na carreira de Sean Baker e dos atores aqui envolvidos. Não se sente nunca como um semidocumentário, problema em que poderia ter incorrido, e sim num retrato de um cotidiano que se movimenta como as corridas de um lado para o outro em busca de descoberta. Por isso, Projeto Flórida se destaca como um dos filmes mais belos do ano, com um aspecto humano comovente que poucas vezes se vê retratado com tanta ênfase.
Como diretor, além da atuação com mais nuances do que a de Kris Kristofferson, da versão dos anos 70, fazendo deste o seu melhor trabalho desde O lado bom da vida, Bradley Cooper compõe vinte minutos finais especialmente belos, reunindo sentimentos e conflitos que não podem ser sintetizados por palavras, apenas por imagens. Vem dessa parte final a grandeza desta versão de Nasce uma estrela: em seu tempo de viagem, conta mais o que percebemos no interior dos personagens e o que permanecem são os momentos mais afastados do grande público e que impulsionam esse casal atrás de um sonho, como na melhor canção do filme, “Shallow”. Temos aqui um exemplo de filme que capta parte da vida e de sentimentos ligados a ela muitas vezes esquecidos e que permanecem fortes independente do que aconteça.
Greta Gerwig insere seus personagens num equilíbrio entre a transgressão (querer ser rebelde) e a permanência (a tradição da família), não sem uma boa porção de gags, visuais sobretudo, em peças de teatro exageradas. No roteiro, há um humor agridoce que Gerwig traz também de Mulheres do século 20, no qual faz uma jovem também de cabelo tingido, como Lady Bird, ajudando uma amiga a criar seu filho adolescente. Com uma mescla de nuances e sobreposições de tempos que remetem aos melhores momentos recentes de Malick (quando várias festas de fim de ano passam e Lady Bird procura emprego), sem o uso de voice overs, por outro lado, a narrativa se constrói de maneira interessante e sem, embora aparente, um elemento pop. Para um olhar superficial, trata-se apenas de um filme sobre a vinda da adolescência, como se costuma falar. É muito mais.
Em Trama fantasma, nunca vemos ninguém exatamente despido. Paul Thomas Anderson também não evoca carícias entre o casal. Tudo é deixado como sugestão, contudo também porque o corpo é inalcançável: a roupa deve cobrir o corpo, assim como os sentimentos inconfessáveis. Em um momento discreto, ele tira o batom dos lábios de Alma para que finalmente possa vê-la – mas ele não deseja realmente isso, pois seria não ver apenas a si próprio. Se havia uma profusão de diálogos em Vício inerente, Anderson se concentra aqui em diálogos mínimos, pausados, e alguns inesperadamente engraçados (sobretudo quando Reynolds, numa atuação fora de série de Daniel Day-Lewis, se sente perturbado por alguma conversa ao café da manhã). E ele aprimora momentos sutis, como aquele em que o designer está numa situação delicada e um vestido sendo refeito representa ele mesmo se refazendo.