Pobres criaturas (2023)

Crítica sobre “Pobres criaturas”, de Yorgos Lanthimos, no canal do YouTube.

O homem do norte (2022)

Por André Dick

O homem do norte é exemplo de como um cineasta que surgiu no cinema mais underground pode fazer um blockbuster, no caso Robert Eggers, acompanhado pela fotografia brilhante de Jarin Blaschke, seu colaborador em A bruxa e O farol. Impressiona como o filme reúne o impacto brutal de passagens de Ran, de Kurosawa, com uma série de pinturas em movimento, pois às vezes é filmado com a simetria de Wes Anderson. Nesse sentido Eggers havia conseguido, no ótimo O farol, concentrar a ação numa ilha em que apenas dois homens pareciam à espera de algo acontecer, também fazendo uso de certa arquitetura na narrativa, como se ela se assemelhasse a uma lenda.
Em O homem do norte, o roteiro do diretor com Sjón é uma sucessão de referências literárias, sempre com um andamento poético, com muita simbologia. Acompanhamos a figura de Amleth desde menino (Oscar Novak), que se alegra inicialmente com a volta do pai, o rei Aurvandil (Ethan Hawke), de uma guerra. No entanto, Aurvandil, depois de participar de uma cerimônia com Heimir, o Louco (Willem Dafoe), é morto pelo irmão Fjölnir (Claes Bang), que sequestra a mãe de Amleth, a rainha Gudrún (Nicole Kidman). Isso é o estopim para uma história nos moldes shakesperianos de vingança. Mais velho, Amleth (agora Alexander Skarsgård) busca quem matou seu pai, lutando ao lado dos vikings. Ele vai se deparar com o filho de Thórir (Gustav Lindh) e com uma escrava, Olga (Anya Taylor-Joy), além de uma profetisa, Seeress (Björk).

Taylor-Joy faz a personagem que representa a faceta simbólica de O homem do norte, com uma performance forte, uma de suas melhores e, se fosse imaginar um motivo para a bilheteria fraca da obra, seria sua visão brutal e nenhuma necessidade de fazer humor, quase obrigação, hoje em dia, para uma obra de grande circuito. Batman conseguiu fazer isso; o filme de Eggers também, não se importando com a recepção. O ritmo, muitas vezes, é extremamente lento, fazendo uso mais do impacto que as imagens proporcionam do que exatamente dos diálogos. E os momentos de rituais que evocam principalmente Midsommar, de Ari Aster, com uma mescla entre magia e pesadelo. Há também sequências que remetem a O regresso, com certa movimentação de câmera que dialoga com aquela de Emmanuel Lubezki.
Por vezes, O homem do norte lembra uma fantasia dos anos 80 (é possível lembrar das paisagens montanhosas de Krull), no entanto com influência do cinema mais impactante dos anos 2000-2010. Há sequências belíssimas e nenhuma necessidade de evocar O senhor dos anéis ou algo com que pudesse dialogar mais facilmente. Ele guarda diálogo com as obras anteriores de Eggers, sobretudo os vilarejos de A bruxa e as paisagens marítimas de O farol. Mas é sobretudo nas boas atuações de Skarsgård e Kidman – assim como em O farol eram aquelas de Pattinson e Dafoe – que o filme se sustenta em boa parte dos seus momentos mais impactantes.

Há uma certa dureza na maneira como Eggers mostra o universo viking, nórdico, no sentido de sensibilidade, e ainda assim o filme adquire uma certa emoção com seu vislumbre de imagens, algumas até poéticas, como aquelas em que o céu vira uma passagem para um cavaleiro ou uma árvore se apresenta literalmente como a genealogia, no que lembra Fonte da vida, de Darren Aronofsky. Em O farol, o diretor utilizava figuras taciturnas para desenvolver uma espécie de simbologia ligada ao oceano, com influência da mitologia grega. Ephraim (Pattinson) começa a ver imagens oníricas ligadas justamente à figura de uma sereia (Valeriia Karamän), depois de encontrar uma pequena estatueta desse ser, despertando nele também desejos que desconhece. Ele também passa a se deparar com uma gaivota perturbadora, sendo avisado por Wake (Dafoe) de que matá-la pode trazer problemas para ambos. Trata-se de uma espécie de Ulisses, aquele homem que ouve encantado o canto das sereias e precisa ser amarrado (embora isso não necessariamente aconteça no filme, o diálogo é explícito). Em O homem do norte, o ponto que remete a Homero está exatamente na embarcação em que Amleth segue, e nele os corvos tomam o lugar das gaivotas – corvos que remetem também a uma mitologia nórdica e, ao mesmo tempo, a algo soturno da literatura poética de Poe.

E, claro, O homem do norte guarda vínculos com o recente A lenda do cavaleiro verde, principalmente na atmosfera misteriosa e nos personagens que são mais símbolos do que parte de uma narrativa repleta de subtramas, atuando desse modo com grande êxito, com o auxílio de uma trilha sonora discreta e eficiente de Robin Carolan e Sebastian Gainsborough, pontuando principalmente as sequências de tensão. Embora não haja muitos diálogos, o filme se mantém de maneira muito forte, densa, no terceiro ato, quando eclodem as principais motivações e se instaura uma espécie de melancolia sobre os personagens, o que se assemelha a outros momentos da até agora curta filmografia do diretor. Depois do extraordinário O farol, esta é outra obra-prima de Eggers.

The northman, EUA, 2022 Diretor: Robert Eggers Elenco: Alexander Skarsgård, Nicole Kidman, Claes Bang, Anya Taylor-Joy, Ethan Hawke, Björk, Willem Dafoe Roteiro: Sjón e Robert Eggers Fotografia: Jarin Blaschke Trilha Sonora: Robin Carolan e Sebastian Gainsborough Produção: Mark Huffam, Lars Knudsen, Robert Eggers, Alexander Skarsgård, Arnon Milchan Duração: 137 min. Estúdio: Regency Enterprises, New Regency, Square Peg, Perfect World Pictures Distribuidora: Focus Features (Estados Unidos), Universal Pictures (Internacional)

O beco do pesadelo (2021)

Por André Dick

O mexicano Guillermo del Toro se mostrou capaz de se adequar ao que Hollywood espera de um diretor sem perder sua característica autoral. Desde seu início de trajetória, ele vem mostrando uma regularidade também no trato da fantasia num contexto capaz de dialogar com a história, como em O labirinto do fauno e no oscarizado A forma da água. No entanto, é A colina escarlate, um terror de origem gótica, que assinalou uma mudança na trajetória de Del Toro: a incorporação de um terror clássico no cenário mais popular de Hollywood.
Em O beco do pesadelo, nova versão de um filme de 1947 baseado no romance de William Lindsay Gresham, ele retoma elementos deste filme de 2015, mas com uma maturidade trazida por A forma da água. Passado nos anos 40, inicia acompanhando Stanton “Stan” Carlisle (Bradley Coooper), que, depois de incendiar sua casa com um corpo debaixo do assoalho, encontra um circo. O seu dono, Clem (Willem Dafoe), pede a sua ajuda para se livrar de um homem, que passou a agir como uma aberração, em prol de um determinado objetivo, depois de se viciar em ópio.

No lugar – uma maravilha visual que remete a trabalhos de Tim Burton, sobretudo Peixe grande e Dumbo, e de Jean-Pierre Jeunet, de forma mais destacada Ladrão de sonhos –, trabalham uma clarividente, Madame Zeena (Toni Collette), e seu marido, Pete (David Strathairn), que usam uma série de recursos para convencer a plateia sobre suas habilidades. Apesar de se aproximar de Zeena, Stan, no entanto, se sente mais atraído por uma outra colega, Molly (Rooney Mara), cujo protetor (Ron Perlman) a acompanha. É com ela que ele vai traçar um caminho que vai levá-lo a conhecer a Dra. Lilith Ritter (Cate Blanchett), com interesse em suas apresentações. Ele é abordado pelo juiz Kimball (Richard Jenkins), interessado em fazer com que ele e sua esposa possam ter contato com o filho morto. Esta parte de O beco do pesadelo parece remeter a O mestre, obra-prima de Paul Thomas Anderson, no qual o criador de uma seita tentava levar um pupilo a seguir seu caminho.

O beco do pesadelo tem muito do estilo de Del Toro: a riqueza visual, o design de produção exuberante e os figurinos magníficos. Soma-se a ele um grande diálogo com o noir dos anos 40 e 50, principalmente. A fotografia de Dan Laustsen e os próprios personagens dialogam muito com outra homenagem ao gênero deste século: Dália negra, de Brian De Palma. Nesse sentido, embora os temas se relacionem ao mistério da clarividência, O beco do pesadelo lida mais com o suspense, o horror e com o mistério que ronda um bom policial e suas referências discretas à história nunca sobrepujam a narrativa. Não apenas Blanchett consegue empregar de maneira exitosa uma personagem que deriva para a psicologia, como o relacionamento que ela desperta remete à femme fatale do cinema mais clássico possível – e Del Toro a coloca em cenários enigmáticos, cercados por cortinas. Ela está especialmente bem, uma atriz que melhorou muito depois das atuações em dois filmes de Terrence Malick, Cavaleiro de copas e De canção em canção. Sua interação com Bradley Cooper, outro ator que se tornou grande depois de O lado bom da vida, é oportuna para tornar O beco do pesadelo num acerto concreto em todos os níveis. Enquanto isso, Rooney Mara é adequadamente delicada e um tanto ingênua, situando-se entre dois extremos.

Se a narrativa na primeira parte mostra essencialmente um homem estranho num ambiente excêntrico, na segunda, quando ele tenta adequar seu interesse a uma realização pessoal, Del Toro amplia o entendimento da obra de maneira mais ampla, mostrando como o homem pode se tornar uma aberração por si próprio. Os homens, aqui, são a ameaça e as atrações não tão belas de um circo humano. Os cenários e figurinos belíssimos parecem sempre esconder algo mais obscuro, o que se percebia em A colina escarlate, outra obra subestimada do diretor. A atuação de Cooper conduz o personagem a um extremo em que o espectador não tem exatamente simpatia, mas interesse por seu projeto. Del Toro mostra uma evolução principalmente ao tratar da maneira como se investiga a capacidade de esse homem de ter determinadas habilidades vistas com desconfiança. Ele nunca resvala para algo mais popular, como fazia até mesmo em A forma da água, do mesmo modo que mostra a violência sem o seu exagero habitual, quase parte de seu estilo, mas de forma mais realista, o que também não é comum num filme distribuído pelos estúdios Disney. Desse modo, O beco do pesadelo se insere naquele grupo de filmes que apresentam uma curiosa inclinação para o retrato histórico que ganha muito com elementos fantásticos. Gostando-se ou não da narrativa, apresenta cinema de verdade.

Nightmare alley, EUA, 2021 Direção: Guillermo del Toro Elenco: Bradley Cooper, Cate Blanchett, Toni Collette, Willem Dafoe, Richard Jenkins, Rooney Mara, Ron Perlman, Mary Steenburgen, David Strathairn Roteiro: Guillermo del Toro e Kim Morgan Fotografia: Dan Laustsen Trilha Sonora: Nathan Johnson Produção: J. Miles Dale, Guillermo del Toro, Bradley Cooper Estúdio: Searchlight Pictures, TSG Entertainment, Double Dare You Productions Distribuidora: Walt Disney Studios

Liga da Justiça de Zack Snyder (2021)

Por André Dick

Em 2017, o diretor Zack Snyder passou por um problema pessoal trágico, o suicídio de sua filha Autumn. Na época, ele continuou filmando Liga da Justiça, mas, quando o filme foi para a pós-produção, acabou se afastando justamente pela questão familiar. A Warner Bros, então, contratou Joss Whedon, diretor dos dois primeiros Vingadores, para finalizar a produção. Isto, no entanto, envolveu refilmagens extensas e uma nova edição. Snyder acabou assinando, mas o estilo parecia, para muitos, apenas de Whedon, sobretudo pelo bom humor de muitas cenas.
Não estou entre os que consideram o filme de 2017 fraco, pelo contrário: creio que Whedon utilizou os personagens a partir de uma base sólida deixada por Snyder, prejudicada, no entanto, por uma edição apressada, que subtraía visivelmente pelo menos meia hora de filme, no desenvolvimento dos personagens do Ciborgue, do Flash e do Aquaman. Por alguns anos, Snyder disse possuir uma versão de diretor, com 219 minutos, uma das que foram descartadas pela Warner. Em 2017, o receio fazia mais sentido do ponto de vista comercial, embora não artístico: um ano antes, Batman vs Superman havia descontentado boa parte da crítica e feito sucesso, mas não o esperado. Era preciso equivaler, para os produtores, as bilheterias bilionárias de Os vingadores – o que, claro, não aconteceu, devido ao fato de os rumores das filmagens prejudicarem também a recepção. E assim se fez que essa versão de Snyder fosse protelada e virasse um movimento de internet, de fãs e admiradores em geral, pedindo por seu corte final (ReleaseTheSnyderCut).

Quando a Warner lançou a HBO Max, parecia a plataforma adequada para abrigar um projeto cheio de percalços, e o estúdio ofereceu a Snyder 70 milhões de dólares para concluir a sua versão tecnicamente. Hoje, 18 de março, ela é finalmente lançada, com o nome Liga da Justiça de Zack Snyder.
Snyder, como se sabe, é um diretor que divide opiniões: quem gosta costuma gostar muito de seu estilo e quem desgosta tem uma reação proporcional. É um dos principais nomes do cinema blockbuster, principalmente na área de HQs, mas com aquilo que já chamei de estilo delirante. Ele não se encaixa muito bem na linha tradicional de diretores que trabalham com orçamentos milionários, que normalmente não lidam com temas polêmicos. Diga-se o que quiser de Watchmen – O filme ou Sucker Punch, e mesmo O homem de aço e Batman vs Superman: são filmes com uma visão autoral, mexendo com temas que trazem, principalmente, a ligação entre figuras que se equivalem a deuses e sua origem (paterna e materna). Isto está na base de toda a sua filmografia, começando por 300 e sua iconografia grega, estendida às conversas de Lex Luthor em Batman vs Superman sobre deuses, no caso deles ameaçadores à medida que podem conduzi-lo ao Asilo Arkham. No entanto, é também um diretor que faz uma animação sobre corujas, A lenda dos guardiões, bastante original, e uma refilmagem de George Romero em Madrugada dos mortos.

O novo Liga da Justiça, com suas 4 horas, um dos filmes mais longos da história, faz jus a este estilo. Tudo nele é construído sob o ponto de vista de que os personagens se ligam a figuras primordiais, mais exatamente o pai e a mãe. Por isso, ao começar a nova versão com um grito de Superman (Henry Cavill) morrendo em Batman vs Superman, que ecoa no horizonte mais longínquo, mexendo com as Caixas Maternas que serão o ponto-chave da narrativa, Snyder logo vai tecer que ele tem ligação com o passado, mais exatamente com o povo de Atlântida e com as Amazonas de Themyscira e suas batalhas seculares. Isto é muito importante para começar a construir a narrativa. Bruce Wayne (Ben Affleck), em seguida, está em busca de Arthur Curry (Jason Momoa), o Aquaman, e a Mulher-Maravilha (Gal Gadot) enfrenta terroristas num banco. Tais passagens na versão de 2017 eram rápidas, mas aqui Snyder dá uma cadência apropriada a elas, como se fossem pequenos elementos que vão formando um todo maior. Ao mesmo tempo, o Lobo da Estepe (Ciáran Hinds) – desta vez com uma armadura de grande projeção visual de Snyder – está atrás das Caixas Maternas, que podem fornecer o poder a Darkseid (Ray Porter), um terrível vilão, dominar a Terra. Sua ida à ilha de Themyscira na versão de 2017 era rápida. Já aqui a construção de suspense e o encadeamento da ação é particularmente impressionante.

Dividindo seu novo Liga da Justiça em capítulos bem definidos, Snyder retoma a imagem de Silas Stone (Joe Morton) como o pai que quis salvar o filho, Victor (Ray Fisher), de um desastre maior e o transformou em Ciborgue. O passado dele, negado na versão anterior, amplia o entendimento de sua ligação familiar e é um dos momentos mais ressonantes na obra de Snyder, fazendo lembrar muito Watchmen – O filme, a figura conturbada do Dr. Manhattan, nas imagens e na condução. Suas cenas jogando futebol americano são plasticamente algumas das mais notáveis. Snyder também faz uma introdução mais detalhada de Barry Allen (Ezra Miller), o Flash, sobretudo numa cena em que salva uma personagem-chave e seu encontro mais minucioso com o pai, Henry (Bill Crudrup), na cadeia. Tais figuras, para Snyder, estão em busca de solucionar suas questões familiares, contudo estão em busca, ao mesmo tempo, de algo que possa fazê-los transcender. Enquanto Victor não aceita aquilo em que se transformou, Allen não consegue ter o emprego desejado para seu pai ficar tranquilo, e Wayne vê em Alfred (Jeremy Irons) um substituto para sua tragédia familiar, como já era bem elaborado em Batman vs Superman.

Isso ficava subentendido na obra concluída por Whedon, entretanto não como aqui, com esses personagens sendo comparados a Aquaman visitando uma figura imponente no fundo do oceano, como se sentisse falta do pai (presente em seu filme solo, de James Wan) e Mulher-Maravilha tentando seguir o alerta das Amazonas para o perigo iminente – e as recordações que ela traz da origem da batalha pelas Caixas Maternas, com deuses do Olimpo, o povo de Atlântida e os Lanternas Verdes, guarda ecos de O senhor dos anéis e 300 e foram completamente picotadas na versão do cinema (há um estilo épico nessas passagens bastante satisfatório). Do mesmo modo, o Flash não tem uma função predominantemente cômica, mas contribui com observações científicas interessantes. Também vemos rapidamente Mera (Amber Heard) e Vulko (Willem Dafoe) em Atlântida, e Hippolyta (Connie Nielsen) na ilha das Amazonas.
Em meio a isso, o espectador acompanha o sentimento de solidão que se abate sobre Lois Lane (Amy Adams) e a mãe de Clark Kent, Martha (Diane Lane). Esse drama pessoal projeta todos os outros, dos filhos numa tentativa de ligação com os pais e na ausência deles, para Clark do pai, e para Bruce de ambos.

Com o roteiro de Chris Terrio, o mesmo de Batman vs Superman, Snyder desenha um painel bastante amplo. Se este era o filme que ele lançaria originalmente, certamente que não, pois há acréscimos. No entanto, esses acréscimos (com novas filmagens) são quase imperceptíveis na ordem em que foram editados, ou seja, este parece sim trazer em maior parte alguma versão descartada pelo estúdio em 2017, com mais desenvolvimento, efeitos visuais mais bem acabados, um vilão menos previsível (com traços de submissão a um poder maior) e uma paleta de cores soturna no estilo de Snyder.
O diretor de fotografia Fabian Wagner, de Game of thrones, havia reclamado da versão de Whedon, e, apesar de eu gostar da paleta de cores do filme que foi aos cinemas – e que na época era ainda dos trailers quando Snyder estava à frente do projeto, ou seja, ele pode também ter modificado no todo para esta –, com seu alaranjado de pôr do sol melancólico em muitas cenas, a versão de Snyder corresponde ao que ele mostrou antes em O homem de aço e Batman vs Superman, ou seja, tem uma real ligação com o universo que ele pretendia desenhar e depois, principalmente a partir do sucesso de Mulher-Maravilha, foi bastante modificado. E tem a ver com o tom de sua obra, agora, inclusive, com o formato 4:3 da tela, buscando uma certa compactação das cenas de ação, fazendo com que o espectador centralize seu olhar num determinado foco. E Snyder utiliza este recurso muito bem, sobretudo numa sequência em câmera lenta do Flash quando ele observa uma pessoa antes de salvá-la, com um compasso exato. Ou quando Clark observa por uma janela o balanço em que brincava quando criança em O homem de aço, numa bela homenagem de Snyder ao início desta jornada fantástica.

O filme finalizado por Whedon funciona, para mim, dentro do seu tom; o de Snyder funciona muito melhor, com outro estilo, mas trazendo várias cenas que muitos achavam que não eram dele, e de fato eram – e não sem um certo humor bastante eficiente em alguns pontos, menos expositivo do que o de Whedon, como aquele do personagem Alfred, por meio de uma atuação precisa do grande Jeremy Irons. O que Whedon fez, em 2017, foi regravar passagens muito soturnas em ambientes mais claros e acrescentar um certo humor desbragado, mais na linha dos filmes de Richard Donner dos anos 70 e 80, embora os de Donner fossem mais profundos e bem acabados, porém a partir da mesma estrutura-base de roteiro. Whedon tentava tornar didáticas algumas cenas que aqui ficam mais subentendidas; estabelecer pontes no roteiro para facilitar o entendimento, o que, por outro lado, quando se vê a versão de Snyder, tornam-se escolhas de um projeto visando principalmente o resultado comercial, e não o envolvimento crescente com uma trama e com seus personagens. Não havia nada na versão de 2017, em termos criativos ou de estrutura, que fosse realmente de Whedon, a não ser a parte inicial e a transformação da obra de Snyder numa espécie de trailer para esta nova versão.
Como legado para o cinema, são dois exemplos de como enxergar um filme de super-heróis, e leve-se em conta que o de Whedon era também aquele que os produtores esperavam, embora as notícias de seus bastidores posteriormente tenham resultado em problemas para a Warner Bros.
Os produtores estavam equivocados: a versão de Snyder é muito superior na elaboração de personagens, temas, diálogos e numa cadência própria de filme de 4 horas, mas sem, surpreendentemente, cansar o espectador. Claro que quem não aprecia em hipótese alguma seu estilo não vai comprar a ideia, mas é muito clara a paixão dele pelo projeto, fazendo um filme do mesmo nível dos seus melhores, talvez até o seu melhor, em novas visualizações.

Ele também se equipara ao que melhor foi feito em termos de adaptações de HQs, não apenas de filmes de super-heróis. A trilha sonora de Junkie XL, assinando como Tom Holkenborg – que fez a de Batman vs Superman com Hans Zimmer e que substitui a de Danny Elfman – é impecável e não se mostra intrusiva e sua perícia para cenas de ação impactantes se mostra novamente ótima, o que é um problema em determinadas obras da DC. Os efeitos visuais são notáveis, principalmente os do Lobo da Estepe, que eram falhos no original, e os do The Flash, assim como aqueles embaixo d’água, muito mais realistas do que os do filme Aquaman. O CGI é atenuado no terceiro ato em relação à versão do cinema, com cores mais soturnas, sem uma coloração vermelha exagerada sobre as imagens escolhida por Whedon. O design de produção também cresce em Liga da Justiça de Zack Snyder, junto com a melhor utilização de vários cenários, em Gotham City, Metropolis, Central City, Atlântida, ilha de Themyscira etc.
As atuações igualmente não destoam, embora me pareça que Gal Gadot tenha feito esta versão original de Liga da Justiça quando ainda não havia feito seu filme solo e as cenas que refez na versão de Whedon, em certa parte, já a traziam depois de sua atuação no filme de Jenkins, mais confortável no papel, mas pode ser apenas impressão, pois não há como ter certeza quanto aos períodos de filmagens. E a Mulher-Maravilha de Snyder é, sem dúvida, um tanto mais violenta do que aquela de Jenkins, o que fica claro principalmente ao final. Fisher é surpreendente como o Ciborgue, Miller consegue equilibrar humor e certo apelo dramático e Momoa e Affleck fazem seus personagens desprendidos em meio a uma luta pela existência na terra, no entanto com competência. E chama a atenção o quanto, em breves diálogos, a atuação de Heard é muito superior àquela problemática que exibe em Aquaman, de Wan, assim como a de Hiands para Lobo da Estepe e Morton como o pai do Ciborgue, especialmente bem numa cena emocional mais perto dos atos finais. (Em seguida, spoiler). Já a participação surpresa de Jared Leto como Coringa mostra não apenas seu talento como ator, como também o fato de que foi desperdiçado em Esquadrão suicida com maneirismos e pouco roteiro. Aqui o ator, mesmo que brevemente, é promissor para futuros projetos.

Em termos de acréscimos, das cenas que foram filmadas para o projeto, percebe-se claramente uma sequência, mas outras, se foram, estão bem disfarçadas em meio às que já existiam, e destaca-se o quanto há de cenas completas que já tinham recortes nos trailers originais de Liga da Justiça, ou seja, é muito provável que o filme a ser lançado era muito parecido com este – com exceção feita à divisão, que possivelmente foi uma ideia posterior, para comportar melhor as 4 horas. Independente de qualquer coisa, Liga da Justiça de Zack Snyder é um dos grandes acontecimentos do ano e um verdadeiro feito diante de tantos percalços. Ele tem uma aura suficientemente distinta para se comparar com Watchmen – O filme, talvez o filme mais arriscado de Snyder, e com Batman vs Superman, seu momento mais subestimado. Para os fãs de quadrinhos e de Snyder é impecável, mesmo que o cineasta atenue seu estilo, empregando poucas canções e pouca câmera lenta, apesar de usá-la bem em momentos específicos. Pessoalmente, é desde já uma das melhores obras de super-heróis já feitas. Em certos momentos, isso é como o reinício da “era dos heróis” – e um reinício com uma visão completamente própria e ainda muito humana. Extraordinário se fosse sintetizar, como tanto queriam os produtores em 2017.

Zack Snyder’s Justice League, EUA, 2021 Diretor: Zack Snyder Elenco: Ben Affleck, Henry Cavill, Amy Adams, Gal Gadot, Ray Fisher, Jason Momoa, Ezra Miller, Willem Dafoe, Jesse Eisenberg, Jeremy Irons, Diane Lane, Connie Nielsen, J. K. Simmons, Ciáran Hinds Roteiro:  Chris Terrio Fotografia: Fabian Wagner Trilha Sonora: Tom Holkenborg Produção: Deborah Snyder e Charles Roven Duração: 242 min. Estúdio: Warner Bros. Pictures, HBO Max, DC Films Distribibuidora: HBO Max

O farol (2019)

Por André Dick

Em 2015, quando surgiu à frente de A bruxa, filme de terror bastante elogiado, Robert Eggers tornou-se um dos cineastas a se acompanhar. Particularmente, não apreciei sua estreia, mas era inegável que ele conseguia construir uma atmosfera e, se tivesse às mãos uma história superior, poderia lidar melhor com elementos que já demonstrava. Isso acontece justamente em O farol, cuja estreia aconteceu no Festival de Cannes do ano passado com grande recepção, escrito por ele e seu irmão Max.
Ele acompanha a trajetória de Ephraim Winslow (Robert Pattinson), que vai parar numa ilha da Nova Inglaterra, a fim de guardar um antigo farol, no século XIX, ao lado do estranho Thomas Wake (Willem Dafoe). A premissa é bastante curta, quase desinteressante, ecoando, por exemplo, A luz entre oceanos e o brasileiro A ostra e o vento, mas a diferença é que Eggers entrega aqui um duo espetacular de Pattinson e Dafoe, ambos, talvez, em seus melhores momentos na década passada, o que não é pouco, pois ambos fizeram grandes filmes (para citar apenas um de cada, Cosmópolis e Projeto Flórida).

Eggers utiliza essas figuras taciturnas para desenvolver uma espécie de simbologia ligada ao oceano, com influência da mitologia grega. Ephraim começa a ver imagens oníricas ligadas justamente à figura de uma sereia (Valeriia Karamän), depois de encontrar uma pequena estatueta desse ser, despertando nele também desejos que desconhece. Ele também passa a se deparar com uma gaivota perturbadora, sendo avisado por Wake de que matá-la pode trazer problemas para ambos. Trata-se de uma espécie de Ulisses, aquele homem que ouve encantado o canto das sereias e precisa ser amarrado (embora isso não necessariamente aconteça no filme, o diálogo é explícito).
A chuva incessante sobre a ilha parece levar esses personagens a criar uma redoma em torno concentrada por lances de loucura. Pattinson, para desenvolver seu personagem, recorre certamente a atuações de Von Sydow na fase bergmaniana de loucura particular ou coletiva, principalmente em A hora do lobo e Shame. São esses dois filmes que Eggers incorpora em seu roteiro de maneira acertada, focando a loucura como um símbolo da própria vida que esses personagens passam a levar. Em entrevistas, Pattinson tem dito o quanto teve dificuldades com o diretor: o que transparece, no entanto, por meio de expressões, é uma das atuações mais surpreendentes dos últimos anos, original e impactante.

O personagem de Thomas Wake, além de guardar um segredo, tenta impedir que Ephraim tenha uma autonomia, tentando atraí-lo para sua rotina, incluindo doses etílicas consideráveis. Em algumas sequências, ele lembra um Ahab sem uma obsessão em mente, com a longa barba e a performance enlouquecedora de Dafoe, indo na mesma linha de seu companheiro de elenco. Em determinado momento, o tom conflituoso é tamanho que o espectador parece acompanhar uma espécie de pesadelo kafkiano (nesse sentido, há algo nele também do experimento de Steven Soderbergh do início dos anos 90, com Jeremy Irons no papel do escritor). O cenário da ilha e do vazio que cerca o farol, além da presença da estranha gaivota, colabora decisivamente para isso. Além disso, a fotografia em preto e branco de Jarin Blaschke, em tamanho de tela 1,19: 1 (típico na era do cinema mudo), dialoga com a filmografia de Bergman, incluindo aí outras obras-primas, como O sétimo selo.
Eggers também não utiliza apenas referências esparsas ao clássico diretor sueco: a maneira como ele movimenta a câmera tem muita semelhança, além da necessidade de mesclar um cenário real, dramático, a elementos de terror. Isso era muito presente em A hora do lobo, já referido, no qual um casal morava numa ilha atormentada por estranhas figuras de uma mansão. Também é visível a influência do cinema de Béla Tarr, sobretudo O cavalo de Tuim, com a presença considerável de efeitos sonoros do vento e dos pássaros, além das ondas do mar batendo nos rochedos da ilha, inserindo o espectado no centro da situação que vivem os personagens. Por isso, a partir do terceiro ato e, principalmente, a conclusão tornam a história ainda mais notável, por toda a ousadia e o cuidado em retratar a época. A última cena é tão pictórica que poderia, como outras passagens do filme, ser emoldurada. Poderia ser apenas estilo sobre substância, sem nenhuma história verdadeira a ser contada: não é. Este é um tipo de cinema cada vez mais raro e é preciso dedicar toda a atenção quando ele surge, com alguém disposto a bancá-lo, sem fazer concessões.

The lighthouse, EUA, 2019 Diretor: Robert Eggers Elenco: Willem Dafoe, Robert Pattinson, Valeriia Karamän  Roteiro: Robert Eggers e Max Eggers Fotografia: Jarin Blaschke Trilha Sonora: Mark Korven Produção: Rodrigo Teixeira, Jay Van Hoy, Robert Eggers, Lourenço Sant’Anna, Youree Henley Duração: 110 min. Estúdio: A24, Regency Enterprises, RT Features Distribuidora: A24 (Estados Unidos) e Focus Features (Internacional)

 

No portal da eternidade (2018)

Por André Dick

In memoriam Eva Dias Pereira

O diretor Julian Schnabel é conhecido principalmente por O escafandro e a borboleta, sobre Jean-Dominique Bauby, considerado um dos melhores filmes da década passada. Ele já havia se aventurado antes em algumas cinebiografias, como Antes do anoitecer, sobre o poeta Reinaldo Arenas e sua vida em Cuba, e Basquiat, sobre o pintor contemporâneo, logo em sua obra de estreia. De maneira geral, Schnabel sempre se mostrou um cineasta interessado em trabalhar com diferentes tipos de fotografia e enquadramentos diferenciados, sendo de fato um pintor em sua origem. Em O escafandro, por exemplo, em boa parte do filme tínhamos a visão do protagonista numa situação delicada e essa estranheza concedia à história uma espécie de segunda camada sobre os dados reais fornecidos por cada personagem.

Desta vez, em No portal da eternidade, ele mostra parte da trajetória de Vincent van Gogh, vivido com grande perspicácia por Willem Dafoe (indicado ao Oscar), que, não vendendo suas obras, recebe a ajuda de seu irmão Theo (Rupert Friend) e tem como amigo Paul Gauguin (Oscar Isaac). Ao se deslocar para o sul da França, para a pequena cidade de Arles (onde fez mais de 70 pinturas), ele fica numa paragem onde conhece Madame Ginoux (Emmanuelle Seigner). Um crítico, Albert Aurier (Alan Aubert), recebe suas obras muito bem, mas o mesmo não se pode dizer de alguns mais próximos, que visualizam seu trabalho como precário. Isso o faz ficar com distúrbios, sendo levado para o asilo Saint-Paul em Saint-Rémy-de-Provence. Em outros momentos, há conversas sobre arte e religiosidade com um padre (Madds Mikkelsen). Schnabel, como em O escafandro e a borboleta, traz reflexões sobre a criação artística e os elos com uma divindade interna ou localizada na natureza, na mudança de percepções sobre a própria condição humana. Com a ajuda exitosa de Dafoe, o diretor lida com diversos temas em pequenos lances de subjetividade e diálogos até comuns. Van Gogh estava com em torno de 36, 37 anos anos no auge de sua obra, e Dafoe o interpreta com 63 anos. Trata-se de uma figura que se veste de maneira comum e usa um chapéu de palha que contrasta com o céu azul.

Com belo roteiro assinado por Schnabel com Jean-Claude Carrière, conhecido romancista e corroteirista, por exemplo, de O discreto charme da burguesia, e Louise Kugelberg, o filme possui uma fotografia tremida de Benoît Delhomme, parecendo até uma peça de Von Trier. No entanto, é como se o espectador visse as paisagens do modo que Van Gogh as vê, com sua proliferação de amarelos e desvios da realidade para contemplações próximas da eternidade, como ele diz em determinado momento. Tudo vai se configurando como se um pintor fosse lançando as cores na tela, na composição de uma obra. Van Gogh, deste modo, é um personagem muito disponível para se lidar com uma faceta quase poética de uma realização cinematográfica. Alguns cineastas já trabalharam sobre sua obra com destaque, com destaque para Robert Altman em Vincent & Theo, a animação Com amor, Van Gogh e o episódio de Sonhos, de Akira Kurosawa, que mostrava o pintor, interpretado por Martin Scorsese, caminhando dentro de algumas de suas obras.

No portal da eternidade parece confuso em seu início, contudo vai se estabelecendo, sobretudo com a exitosa parceria entre Dafoe e Isaac, que poderia durar mais tempo, e a reconstituição dos lugares enfocados. Tudo é muito minucioso, e a maneira como Schnabel filma os diálogos torna as conversas mais marcantes, tendo sido baseado nas cartas do pintor a seu irmão. Há uma sensação sempre de que o personagem está deslocado, tanto de sua realidade quanto o universo que ele habita, onírico e pictórico. Sua ligação familiar, por meio de Theo, cria bases sólidas para que ele continue sendo pintor, embora ainda duvide de seu talento, já que suas obras não são vendidas como espera. Há, aqui, um discurso implícito sobre a liberdade de criação do artista e a expectativa que ele gera quando se vislumbra real talento em suas tentativas de mostrar algo novo. É por meio dessas qualidades que Schnabel ergue sua versão de um dos maiores gênios da pintura. Talvez ele mesmo esteja projetando sua paixão por compor imagens no personagens, o que poderia, em parte, ser autoindulgente. O que permanece, porém, é uma sóbria delicadeza em cada um dos gestos efetuados por Van Gogh ao longo da narrativa e que não necessariamente o explicam, como uma pintura de alto nível e cuja composição pode estar tanto em se sentar frente a uma paisagem magnífica quanto encontrar uma pessoa que posa para um quadro sem saber que, por meio dele, irá atingir a eternidade de maneira incontornável.

At eternity’s gate, FRA/ING/EUA, 2018 Diretor: Julian Schnabel Elenco: Willem Dafoe, Rupert Friend, Mads Mikkelsen, Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Oscar Isaac Roteiro: Jean-Claude Carrière, Julian Schnabel, Louise Kugelberg Fotografia: Benoît Delhomme Trilha Sonora: Tatiana Lisovskaya Produção: Jon Kilik Duração: 110 min. Estúdio: Riverstone Pictures, SPK Pictures, Rocket Science, Rahway Road, Iconoclast Distribuidora: Netflix (França), Curzon Artificial Eye (Inglaterra), CBS Films (Estados Unidos)

Aquaman (2018)

Por André Dick

Não é preciso fazer um prólogo para concluir que hoje as adaptações de HQs se transformaram num grande duelo entre duas companhias, acarretando fãs de um lado ou de outro, ou de admiradores de ambos os trabalhos. A sucessão de lançamentos de filmes do gênero não deixa mais órfãos admiradores de inúmeros personagens, que antes só possuíam os quadrinhos de fato ou as animações televisivas para apreciá-los em movimento. E, cada vez mais, se espera que um filme consiga superar o outro, não tanto em termos de qualidade, mas de bilheteria. Aguardado e divulgado há muitos meses, Aquaman é lançado num ano em que a Marvel teve duas bilheterias bilionárias, com Pantera Negra e Vingadores – Guerra infinita, e ainda surge depois de uma obra polêmica da DC, Liga da Justiça.

O roteiro de David Leslie Johnson-McGoldrick e Will Beall, baseado em história de Geoff Johns, James Wan e Beall, mostra um homem que cuida de um farol, no Maine, Thomas Curry (Temuera Morrison), que salva Atlanna (Nicole Kidman), princesa de Atlantis, de uma tempestade. Ambos se apaixonam e ela dá à luz Arthur Curry. Feito de idas e vindas, Arthur, já adulto (Jason Momoa), tenta salvar um submarino nuclear de piratas, liderados por Jesse Kane (Michael Beach), pai de David, o Arraia Negra (Yahya Abdul-Mateen II), que deseja vingá-lo. Esse ataque ao submarino é pretexto para Orm (Patrick Wilson), meio-irmão de Artur e rei de Atlântida, invocar uma guerra contra os humanos. Rei Nereus de Xebel (Dolph Lundgren) tenta seguir Orm, e sua filha prometida a ele, Mera (Amber Heard), pede ajuda a Arthur. Em seguida, ambos vão encontrar Vulko (Willem Dafoe), que treinou Arthur em sua infância e juventude (quando ele é interpretado por Kaan Guldur e Otis Dhanji, respectivamente) em passagens que remetem a Mulher-Maravilha (há cenas claramente feitas antes e outras depois do filme de Jenkins).

O roteiro lida com o fato de o herói, nomeado Aquaman, uma criação de Mort Weisinger, ser filho de um humano e uma deusa como um decréscimo dele, principalmente em suas conversas com Orm, e isso se revela interessante principalmente em como Arthur se junta a Mera, indo ambos parar no Saara, em que Wan homenageia O céu que nos protege, fazendo uso da cor do cabelo de Mera para criar um diálogo com a luz solar, e depois na Sicília, aqui evocando a ilha de Themyscira, das amazonas, atrás do tridente que pode dar o poder sobre Atlântida a Curry. Nesses momentos, o diretor de fotografia Don Burgess comprova seu talento, exibido já em obras como Contato, Forrest Gump e Náufrago, além de Os Muppets. E, se as gags não funcionam, pois na verdade não se encaixam tão bem no universo da DC, a bela trilha sonora de Rupert Gregson-Williams faz esquecer algumas canções mal selecionadas. Talvez a montagem até a primeira metade seja o maior problema, de qualquer modo, da obra da Wan, com excessiva exposição e flashbacks desnecessários, fazendo a metragem ultrapassar pelo menos 15 minutos.

E, apesar da assinatura de Wan e da concepção menos sombria, Aquaman, de modo geral, apresenta o estilo delirante de Snyder, capaz de transitar por batalhas gregas com uma atmosfera de Olimpo (300), mostrar um Superman com questionamentos existenciais (O homem de aço), encadear uma sequência de imaginações de uma menina num hospício (Sucker Punch) e apresentar uma animação em que duas corujas irmãs entram em conflito (A lenda dos guardiões), além de um épico sobre um grupo de super-heróis perseguido (Watchmen), trazendo a paleta de variação de cores já vista em Liga da Justiça. Reúna tubarões montados por seres aquáticos e leões-marinhos prontos para uma batalha que se terá, no mínimo, cenas inusitadas. Foi Snyder quem criou os elementos para esse personagem ter sua estreia solo no cinema, depois da boa participação em Liga da Justiça, com um estilo roqueiro, trabalho de pescador e tendência a doses etílicas em algum bar na costa marítima. E, se Clark Kent tem o pai Jonathan (Kevin Costner), em seus sonhos, e Martha (Diane Lane) sob ameaça de Zod e Luthor, além de sua fuga da realidade de Metrópolis para o Kansas, Arthur também precisa lidar com a dualidade e com o passado: seus pais e o comportamento humano, literalmente, representam seu porto. Apenas se lamenta que, mesmo com mais tempo, o personagem não se mostre tão eficaz quanto em Liga da Justiça.

Momoa é um ator limitado dramaticamente, no entanto entrega bem seu personagem, enquanto Heard está um pouco deslocada, sem prejudicar, e Kidman sempre talentosa, independente do papel, além de Dafoe estar discreto e Wilson, apesar do rosto computadorizado, efetivo. O melhor, porém, é Morrison, numa breve participação como o pai. Aquaman, além disso, é visualmente fantástico, com ótimos efeitos especiais, prejudicados apenas pelo CGI excessivo de algumas linhas do horizonte, sendo, no entanto, a batalha final um grande momento, misturando em suas referências imagens tanto de O segredo do abismo quanto o recente Valerian e a cidade dos mil planetas e Star Wars – A vingança dos Sith, no trabalho de uma cor alaranjada, simbolizando a guerra no fundo do mar. Há cenas plásticas especialmente belas, como aquela em que o menino Arthur fica à frente de um aquário em que os peixes visualizam as demais crianças. Sem tentativa de ser épico ou revolucionar as adaptações de quadrinhos, Aquaman se caracteriza pelo interesse com que dispõe suas ideias.

Aquaman, EUA, 2018 Diretor: James Wan Elenco: Jason Momoa, Amber Heard, Willem Dafoe, Patrick Wilson, Dolph Lundgren, Yahya Abdul-Mateen II, Nicole Kidman, Kaan Guldur, Otis Dhanji Roteiro: David Leslie Johnson-McGoldrick, Will Beall Fotografia: Don Burgess Trilha Sonora: Rupert Gregson-Williams Produção: Peter Safran, Rob Cowan Duração: 143 min. Estúdio: Warner Bros. Pictures, DC Films, The Safran Company, Cruel and Unusual Films, Mad Ghost Productions Distribuidora: Warner Bros. Pictures

Projeto Flórida (2017)

Por André Dick

Se o filme anterior de Sean Baker, Tangerine, teve grande aceitação, com seus elementos de estilo indie, Projeto Flórida tem conseguido uma aceitação popular e de crítica maior ainda. No entanto, depois de iniciar a temporada de premiações, embora indicado a algumas, foi quase que esquecido (no Oscar, obteve apenas a de ator coadjuvante). Isso se torna especialmente decepcionante porque se trata de uma obra que foge ao mainstrem com um cuidado cenográfico inusual no seu gênero.
Nas férias de escola, Moonee (Brooklynn Prince), de seis anos, vive com sua mãe Halley (Bria Vinaite) no Magic Castle, motel na Flórida, pintado de púrpura, muito perto do parque Disney World. O gerente do local se chama Bobby Hicks (Willem Dafoe), pai de Jack (Caleb Landry Jones, de Três anúncios para um crime, Corra!, Twin Peaks – O retorno…).

Moonee passa o dia em companhia de Scooty (Christopher Rivera), filho de Ashley (Mela Murder), e Dicky (Aiden Malik). Certo dia, depois de uma breve confusão, eles fazem amizade com Jancey (Valeria Cotto), criada pela avó Gloria (Sandy Kane).
A fotografia esplendorosa do filme é de Alexis Zabe, habitual parceiro de Carlos Reygadas em Luz silenciosa e Luz depois das trevas. Grande parte da atmosfera de Projeto Flórida – com o céu quase sempre azul, repleto de nuvens que fazem lembrar uma espécie de éden infantil – existe por causa de seu trabalho, que influenciou o de Emmanuel Lubezki, com uma movimentação elegante de câmera. Não por acaso, há cenas despretensiosas que lembram os movimentos estabelecidos por Terrence Malick para o universo infantojuvenil em A árvore da vida, com crianças correndo pela grama ou pela vizinhança atrás de casa abandonadas com vidraças para quebrar. O design de produção, inspirado em parte em Wes Anderson, traz cenários que fazem o espectador se inserir neste universo.
No entanto, o roteiro de Sean Baker e Chris Bergoch é o grande atrativo, com uma trama fina e sólida, costurando as relações entre as crianças e dessas com Halley e Bobby. Quase não se percebe a construção da trama e ela existe, o que lembra American honey, de Andrea Arnold, com seus personagens à margem e vendendo assinaturas de revistas de porta em porta no interior dos Estados Unidos. Personagens na mesma linha já apareciam em Tangerine, filme anterior de Baker, mas se fazem verdadeiramente envolventes aqui.

Não apenas a atuação elogiada de Dafoe é ótima, mas sobretudo da menina Brooklynn Prince e de Vinaite, perspicaz nos momentos certos. A presença de Prince é tão destacada que poderíamos imaginar o que faria Meryl Streep indicada a alguma premiação por The Post. Há um afeto intangível entre os personagens, mesmo que não se esclareça, e o filme possui um ambiente de solidão e, ao mesmo tempo, de acolhimento. Bobby tenta organizar o local, tentando impedir o topless de uma moradora, Gloria (Sandy Kane), ou consertando a eletricidade que as crianças ajudaram a estragar, e Dafoe entrega um papel verdadeiramente humano. Os momentos em que ele briga com Halley, por causa de aluguéis atrasados, ou com as crianças é com a necessidade e o dever de precisar manter tudo organizado, não dentro de um sistema, contudo para sua compreensão existencial, representada pela sequência em que ele precisa agir de forma vigorosa com um intruso (Carl Bradfield), que ameaça este éden infantil. A sequência em que ele espanta alguns flamingos caminhando nas redondezas do motel expõe o realismo do personagem: aquela cena é quase paradisíaca, lembrando muito as obras do mexicano Reygadas, e parecem não se inserir nessa realidade de famílias que se hospedam em lugares simples, que podem pagar com muita dificuldade.

De modo original, Projeto Flórida (nome anterior ao de Disney World) descortina um universo expondo certas dificuldades, mas extremamente otimista em sua profusão de cores e contato com o imaginário infantil proporcionado por Baker e Zabe. Em seus momentos mais profundos, a obra de Baker mostra como os adultos podem servir de espelho para as ações de uma criança, no entanto não o faz de um ponto de vista moralista: apenas mostra essa interação que se confunde com o movimento da vida e da existência das relações. É curioso que o nome da personagem principal seja Moonee, lembrando a sonoridade de Monet, e o filme se passe muitas vezes numa espécie de pintura viva, pois os figurinos parecem, por exemplo, rimar com a cor do hotel. Mesmo as tatuagens (em forma de flores) e o boné da mãe de Moonee dialogam com o cenário em torno. Baker distribui essas cores em camadas ao longo da narrativa, influenciado por peças recentes (a exemplo de Moonlight), no entanto sem nunca perder a originalidade.

De qualquer modo, embora esse cenário esteja à margem de um grande parque de diversões ela se destaca por seus elementos naturais. Há uma cena em que Moonee e sua amiga brincam diante de um campo rural com vacas que parece extraída do início de Luz depois das trevas, de Reygadas: é como se esse universo campestre representasse o verdadeiro ingresso num mundo fantasioso coberto de nuvens que dialoga com os estabelecimentos de alimentação. Algumas esculturas em forma de foguetes ao longo deste cenário lembram uma já longínqua corrida espacial. É um grande passo na carreira de Baker e dos atores aqui envolvidos. Não se sente nunca como um semidocumentário, problema em que poderia ter incorrido, e sim num retrato de um cotidiano que se movimenta como as corridas de um lado para o outro em busca de descoberta. Por isso, Projeto Flórida se destaca como um dos filmes mais belos do ano, com um aspecto humano comovente que poucas vezes se vê retratado com tanta ênfase.

The Florida Project, EUA, 2017 Diretor: Sean Baker Elenco: Willem Dafoe, Brooklynn Prince, Bria Vinaite, Valeria Cotto, Christopher Rivera, Caleb Landry Jones Roteiro: Sean Baker e Chris Bergoch Fotografia: Alexis Zabe Trilha Sonora: Lorne Balfe Produção: Sean Baker, Chris Bergoch, Kevin Chinoy, Andrew Duncan, Alex Saks, Francesca Silvestri, Shih-Ching Tsou Duração: 111 min. Estúdio: Cre Film, Freestyle Picture Company, Cinereach, June Pictures Distribuidora: A24 Release date

Death note (2017)

Por André Dick

O diretor Adam Wingard tem feito alguns filmes interessantes e até subestimados, a exemplo de O hóspede e a refilmagem de A bruxa de Blair, esta especialmente criticada em seu lançamento e muito superior à versão dos anos 90, a começar por seu terceiro ato claustrofóbico. Aqui ele parte de um mangá criado por Tsugumi Ohba e Takeshi Obata para desenhar a vida de um adolescente de Seattle, Light (Nat Wolff). Depois de se mostrar interessado pela líder de torcida Mia (Margaret Qualley), em meio a uma tempestade, ele se depara com um caderno que cai do céu, cuja inscrição na capa é Death Note. Por meio do caderno, ele entra em contato com a figura assustadora de Ryuk (Willem Dafoe), o deus da morte. Detalhe: se ele escrever o nome de uma pessoa no caderno traçando seu destino e imaginar seu rosto, pode eliminá-la. Rapidamente, ele já tem alguém em vista, e o destino da vítima é doloroso de assistir. A meia hora inicial de Death note é instigante, e temos ainda a relação entre Light e seu pai, o detetive James Turner (Shea Whigham), além de cenas que remetem a um clima de terror que verdadeiramente assusta.

No entanto, quando surge o investigador L (Lakieth Stanfield), acompanhado por seu pai e assistente Watari (Paul Nakauchi), e a química entre Light e Mia começa a soar forçada, o roteiro vai se perdendo aos poucos, apesar de o visual continuar interessante, um dos méritos da filmografia de Wingard, com a ótima fotografia climática de David Tattersall, o mesmo de Speed Racer, inspirada em Demônio de neon e Enter the void (nas cenas passadas em Tóquio). O problema é a tentativa de transformar o conceito original, mais reflexivo, em algo muito popular e apressado, e não se pode imaginar que Nat Wolff tenha sido escolhido por outro motivo. Muito bem em A culpa é das estrelas, Palo Alto e Cidades de papel, ele tem uma atuação bastante limitada, talvez pelo roteiro e pela direção. Ele acaba sendo sobrepujado por Qualley, sua parceira, que deseja agir em conjunto para enfrentar o mal do mundo usando um caderno que serve a uma figura maligna com o intuito de ser “mais do que uma líder de torcida”.
Se eles chegam a uma festa de colégio em que está tocando “Don’t change”, do INXS, é exatamente o contrário do que acontece com ela, justamente porque passa a ter mais ideias sobre o que deve ser feito, e aos poucos o conjunto de mortes em escala universal atinge uma escala de autoperturbação e desejo de domínio sobre o outro. Trata-se de uma ideia aparentemente simples, mas que pode ganhar um significado se o diretor estivesse disposto a colocar a discussão por trás dela realmente em prática; isso fica apenas na aparência e em cenas violentas. A montagem ágil acaba não dando peso às sequências, ou seja, se o filme não cansa, ele dificilmente convida a olhar os personagens além da maneira como aparecem na tela. A simbologia que os cerca se perde.

Em O hóspede, Wingard já lidava com um personagem que se situava entre o bem e o mal, ambíguo, e Light não é diferente. No entanto, falta uma certa densidade a alguns conflitos enfrentados por ele, sobretudo quando Ryuk sugere que a autoria das mortes seja assinada pelo codinome Kira. A seu lado, Stanfield (que aparece bem em Corra! e War machine) tem uma atuação equivocada, tentando repetir certos maneirismos do personagem original, mas logo caindo mais numa espécie de caricatura. Shea Whigham e Willem Dafoe, por sua vez, aparecem muito bem e dão respaldo às suas cenas. Longe de ser o desastre como está sendo apontado, haveria espaço para um desenvolvimento melhor de personagens. Há assuntos delicados aqui (querer fazer justiça em cima de criminosos por meio de uma figura maligna), no entanto as coisas se perdem em determinado momento, recuperando-se apenas mais ao final, com uma ótima sequência de ação, uma das especialidades de Wingard. É preciso dizer que esta sequência tem um trabalho visual principalmente com as cores poucas vezes visto no cinema blockbuster e o rumo dos personagens lembra um episódio de Além da imaginação.

Talvez se Wingard também tivesse delimitado melhor seus objetivos – ele se situa entre uma tentativa de reproduzir outros filmes de adolescentes já citados com o próprio Wolff e um terror lado B, nos moldes de Creepshow, inclusive utilizando um trabalho de câmera semelhante –, aproveitando melhor a trilha sonora de Atticus e Leopold Ross (vencedores do Oscar por A rede social), inspirada claramente naquelas que Cliff Martinez compôs para as obras mais recentes de Refn, poderia ter realizado um filme realmente marcante. É claro que ele tinha um potencial narrativo a ser explorado com mais detalhes, à medida que tinha um elenco de ponta em suas mãos. Preferiu o caminho de apelo mais pop, e é justamente nesse terreno que ele vem sendo tão criticado. Para uma obra desse estilo, ele precisaria ter levado mais em conta os pressupostos originais, mesmo que quisesse, como fez, realizar uma adaptação mais livre. Fazer uma versão nos Estados Unidos requisita outro estilo, como o mostrado, com uma atmosfera bastante atraente, mas é preciso manter certo jogo de ideias, como, aliás, acontece em outras adaptações de mangás. Ainda assim, Death note tem suas qualidades e merece ser visto.

Death note, EUA, 2017 Diretor: Adam Wingard Elenco: Nat Wolff, Lakeith Stanfield, Margaret Qualley, Shea Whigham, Paul Nakauchi, Jason Liles, Willem Dafoe Roteiro: Charles Parlapanides, Vlas Parlapanides, Jeremy Slater Fotografia: David Tattersall Trilha Sonora: Atticus Ross, Leopold Ross Produção: Roy Lee, Dan Lin, Masi Oka, Jason Hoffs, Ted Sarandos Duração: 100 min. Estúdio: LP Entertainment, Vertigo Entertainment, Lin Pictures Distribuidora: Netflix

A grande muralha (2017)

Por André Dick

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Para os fãs mais puristas do diretor chinês Zhang Yimou, A grande muralha deve soar como um diretor de arte se vendendo para o sistema de blockbusters norte-americano. Seu ritmo não tem nenhuma relação, além do visual espetacular, com Lanternas vermelhas, Herói ou O clã das adagas voadoras, mas esta é a primeira real colaboração do cinema norte-americano e do cinema chinês, numa época em que o universo da história se mescla com o da fantasia.
O filme se passa durante a dinastia Song, quando William Garin (Matt Damon), Pero Tovar (Pedro Pascal) e outros sobreviventes de um grupo de mercenários europeus estão à procura de uma determinada relíquia para defesa, um pó escuro (que muitos vão chamar de pólvora). Depois de enfrentarem um monstro, eles chegam no dia seguinte à muralha da China, onde são levados como prisioneiros por uma Ordem sem Nome, representada pelo general Shao (Zhang Hanyu), pela comandante Lin Mae (Jing Tian) e pelo estrategista Wang (Andy Lau). Eles se preparam para uma invasão que acontece a cada sessenta anos de monstros chamados Taotie, e Garin pode se mostrar muito útil, devido a ser um exímio arqueiro. A dupla central acaba por conhecer Sir Ballard (Willem Dafoe), europeu que também está atrás do pó escuro que os demais procuram.

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Resultado de um Yimou em início de carreira, Lanternas vermelhas, indicado ao Oscar de filme estrangeiro e incluído na lista de melhores da década de 1990, é um referencial com o qual A grande muralha dialoga. Grande parte da crítica surpreendeu-se com o trabalho fotográfico de Zhao Fei, que aprisiona os personagens num castelo dominado por túneis, descidas, curvas, de atmosfera fria, onde moram quatro mulheres, casadas com o dono do local. Quando solicitadas por ele, seus respectivos quartos são preenchidos por lanternas vermelhas, penduradas nas paredes. Isto cria uma rivalidade para ver quem mais satisfaz o amante. Em A grande muralha, temos a mesma sensação transmitida pela fotografia: os personagens se esgueiram em túneis, salas isoladas, ou lugares para banquetes grandiosos.
Se em Lanternas vermelhas, as lentes privilegiam a beleza plástica de Gong Li, na figura da mocinha Songlian, ex-estudante de faculdade e obrigada a abandonar a família e virar concubina, em A grande muralha isso passa a ser mérito da comandante Lin Mae. Em ambos os filmes Yimou trabalha com a representação feminina, mas em Lanternas vermelhas o papel da mulher não muda, sendo um ciclo, como as estações que demarcam as passagens de tempo do filme; neste novo filme, ela se transforma numa guerreira e numa referência para combate.

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Depois de se notabilizar por fazer grandes sequências de ação de forma artística em Herói e O clã das adagas voadoras, que influenciaram diretamente Wong Kar-Wai em O grande mestre e Hsien em A assassina, Zhimou se encaminha para o que pode ser visto como uma mistura entre O senhor dos anéis, Warcraft, Círculo de fogo e, pela quantidade de flechas e catapultas, o épico Cruzada, de Scott. Não há mais os cenários mais fechados de Herói, que evocavam uma claustrofobia e uma produção mais precária em termos de interiores, e sim um fantástico diálogo visual da grande muralha com as montanhas e vales que a cercam. A fotografia de Stuart Dryburgh é impecável no uso de cores e movimentação, como já havia acontecido em A vida secreta de Walter Mitty e Alice através do espelho. O tratamento no contraste das cores, por outro lado, é acertado e vai do vermelho (as flechas do arqueiro) e azul (os uniformes das guerreiras) até as cores mais gélidas (cinza, verde apagado), como se cada cenário representasse o desenvolvimento da ação.
Yimou, de certa maneira, aprisiona os personagens numa redoma de vidro, a muralha, e depois lhe proporciona balões fantásticos como numa obra de Terry Gilliam, na qual o filme certamente se inspira também, e salões luxuosos como em A maldição da flor dourada. O interessante, diante dos pressupostos para a aceitação ou não desta obra de Yimou, é sua qualidade ou não de roteiro, quando ele apresenta tão poucos diálogos e tramas quanto um Herói ou A assassina, mas, por ser blockbuster, passa a ser por isso menos reverenciado (e, mesmo que a obra de Hsien seja superior, não é por causa disso que essa fantasia seja menos importante).

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Enquanto em Lanternas vermelhas, a jovem caminhava num pátio de pedra iluminado por elas, relacionando os enquadramentos a pinturas chinesas antigas, aqui Yimou contempla cada sequência de maneira que lembra seus melhores momentos como diretor, mas com senso de ritmo próximos dos cineastas norte-americanos de fantasia, a exemplo de Peter Jackson. Os monstros do filmes são resultado de efeitos visuais de impacto, mas também com um design que lembra o trabalho artesanal de Emilio Ruiz del Río, que trabalhou em Conan, o destruidor, Duna e O labirinto do fauno. Perceba-se também o uso dos figurinos espetaculares de Mayes C. Rubeo (Avatar, John Carter, Apocalpypto) e a atuação discreta de Damon, que, após Jason Bourne, redescobre outra opção no campo da aventura, sem ficar com um tom excessivamente calculado como poderia. Essa é a mais custosa produção feita na China (150 milhões), que nos poucos países em que estreou até agora está fazendo valer o investimento. O que é merecido: trata-se de um filme que evoca épicos da sessão da tarde com um grande senso de magnitude.

The great wall/長城, EUA/China, 2017 Diretor: Zhang Yimou Elenco: Matt Damon, Jing Tian, Willem Dafoe, Andy Lau, Pedro Pascal, Zhang Hanyu, Lu Han, Lin de Kenny, Eddie Peng, Huang Xuan, Ryan Zheng, Karry Wang Roteiro: Carlo Bernard, Doug Miro, Tony GilroyFotografia: Stuart Dryburgh Trilha Sonora: Ramin Djawadi Produção: Jon Jashni, Peter Loehr, Thomas Tull Duração: 104 min. Distribuidora: Universal Pictures Estúdio: Atlas Entertainment / Kava Productions / Le Vision Pictures / Legendary East / Legendary Pictures

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