Coringa (2019)

Por André Dick

Há uma década, Todd Phillips realizou uma das comédias mais interessantes do cinema deste século, Se beber, não case!, muitas vezes subestimada, que ganhou duas sequências, a terceira parte com menos qualidade, igual à outra empreitada de sua autoria, Um parto de viagem. Em 2016, ele lançou Cães de guerra, uma espécie de sátira à política da era George W. Bush, com dois amigos lucrando com a venda de armas para territórios em combate. Sem exatamente ser associado a temas sérios, Phillips tinha como projeto antigo fazer uma adaptação da origem do Coringa para o cinema. Ela se tornou real com a atuação de Joaquin Phoenix, um dos atores mais brilhantes de sua geração, que apenas nesta década atuou em obras notáveis como O mestre, Ela, Vício inerente e Você nunca esteve realmente aqui.

Com um roteiro apresentando elementos de dois filmes de Scorsese – O rei da comédia e Taxi Driver –, Coringa mostra Arthur Fleck (Phoenix), que trabalha como palhaço nas ruas de Gotham City, em 1981, e em casa cuida de sua mãe Penny (Frances Conroy). A cidade está passando por um momento conturbado, com muitos desempregados e lixo nas ruas, atraindo, inclusive, uma invasão de ratos. Arthur sofre de problemas neurológicos, um deles rir compulsivamente quando em estado de ansiedade. Ele tem uma boa relação com a mãe, com quem costuma assistir ao programa de Murray Franklin (Robert De Niro), um talk show, no entanto precisa tomar muitos medicamentos, para que suas crises não piorem. Também tem interesse por uma vizinha, Sophie Dumond (Zazie Beetz), que encontra certo dia no elevador, com a sua filha – numa cena capaz de transferir o espectador para algo de Drive. Todos os problemas de Fleck são acentuados pelo fato de não ser bem aceito em seu ambiente de trabalho, apesar do apoio de Gary (Leigh Gill) e da “amizade” de Randall (Glenn Fleshler), e os rumos da política na cidade, com a candidatura de Thomas Wayne (Brett Cullen).

Phillips costura os rumos da vida de Fleck, que, em meio a tudo, sonha em fazer um show de comédia stand-up , com uma visão sombria sobre o comportamento humano. Seu roteiro, apesar de tomar como referência as obras de Scorsese, como já fazia em Cães de guerra – com seus elementos visuais e narrativos de O lobo de Wall Street –, vai muito além e considerá-lo um simples apêndice dessas obras mostra um desentendimento da proposta de Phillips: não estamos diante de um taxista que detesta o cheiro das ruas nem de um stalker em busca da amizade de seu comediante favorito. Sem se basear exatamente no cânone de histórias em quadrinhos do Coringa, o diretor desenha uma figura da qual o espectador se aproxima aos poucos como de um personagem a ser estudado. É exposta a relação dos cenários nos quais Fleck perambula com seu comportamento, e a maneira como ele projeta a realidade se confronta com sua visão sobre construção familiar, a partir da figura emblemática da mãe, feita com sensibilidade por Conroy, e, fantasiosamente, de Murray, em bela atuação de De Niro. A maneira como ela espera dele um comportamento feliz e como ele visualiza o apresentador Murray Franklin como uma espécie de pai artístico é entrelaçada com outra subtrama definidora de que aqui está uma adaptação dos quadrinhos realmente psicológica, escolhida como melhor filme no Festival de Veneza.

Phoenix, com uma atuação extraordinária, vai modulando nuances e mudando seus trejeitos a cada vez que vai descobrindo mais sobre si mesmo (e se autodescobrir, em seu  caso, não é exatamente um mérito) e Phillips não o visualiza, embora pareça, como uma vítima da sociedade, e sim como o resultado de escolhas passadas feitas por outras pessoas, traduzidas no que ele tenta ser e não consegue, pois os limites entre o certo e o errado já se perderam em sua mente e não são simples ou firmados.
Com uma trilha sonora incessante de Hildur Guðnadóttir, retratando o descompasso do personagem central, e uma fotografia exímia de Lawrence Sher, com o qual Phillips habitualmente trabalha e que se inspira na de Emmanuel Lubezki de Birdman, em alguns momentos, Coringa revela um universo no qual a piada feita em cadernos borrados de pensamentos nunca consegue realmente se manifestar – apenas uma risada compulsiva. Fleck é uma espécie de travessia da tentativa de se adaptar e o resultado da inadaptação, e os passos dados por Phoenix na construção de seu personagem são marcantes porque se situam num espaço em que a clareza não se manifesta nunca. Isso porque não sabemos o que nele é humano e desumano, pois ambas as facetas algumas vezes parecem existir nele em diferentes etapas da narrativa e Gotham City e seus habitantes são a projeção de como ele se sente em relação às pessoas.

Por isso, a tentativa de se aproximar amorosamente da vizinha Sophie se mostra tão dolorosa e Phillips consegue extrair uma sensação de solidão inabalável do apartamento em que Fleck vive com sua mãe, com uma densidade singular. São raríssimas as obras capazes de lidar com temas delicados de maneira tão ampla e, principalmente, acompanhar a progressão de um indivíduo em suas complicações antissociais. Se este é visto como uma saída para a sociedade em ruínas? Só o espectador mais desavisado entenderia assim. Coringa provoca o espectador a pensar sobre o que constitui um indivíduo, no caso de Fleck os problemas neurológicos e o que isso é usado em nome de um combate ao sistema – Phillips não está interessado nisso em nenhum momento, como se predispõe a dizer, uma vez que ele enxerga o sistema como parte da própria desculpa para um ser humano com elementos psicóticos se manifestar. Kubrick já usou esses temas em Laranja mecânica, mas Phillips faz em seu filme mais do que uma releitura: ele faz uma leitura da sociedade contemporânea por meio da entrada de um homem na insanidade completa. Desde o início, o filme não está tentando ser bem-humorado; ele pesa. Não serve para indicar exemplos, a não ser de como o cinema pode fazer um registro de impacto quando conta uma história com maestria.

Joker, EUA, 2019 Diretor: Todd Phillips Elenco: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroy, Brett Cullen, Shea Whigham, Bill Camp, Glenn Fleshler, Leigh Gill, Douglas Hodge Roteiro: Todd Phillips e Scott Silver Fotografia: Lawrence Sher Trilha Sonora: Hildur Guðnadótti Produção: Todd Phillips, Bradley Cooper, Emma Tillinger Koskoff Duração: 121 min. Estúdio: DC Films, Village Roadshow Pictures, Bron Creative, Joint Effort Distribuidora: Warner Bros. Pictures

Death note (2017)

Por André Dick

O diretor Adam Wingard tem feito alguns filmes interessantes e até subestimados, a exemplo de O hóspede e a refilmagem de A bruxa de Blair, esta especialmente criticada em seu lançamento e muito superior à versão dos anos 90, a começar por seu terceiro ato claustrofóbico. Aqui ele parte de um mangá criado por Tsugumi Ohba e Takeshi Obata para desenhar a vida de um adolescente de Seattle, Light (Nat Wolff). Depois de se mostrar interessado pela líder de torcida Mia (Margaret Qualley), em meio a uma tempestade, ele se depara com um caderno que cai do céu, cuja inscrição na capa é Death Note. Por meio do caderno, ele entra em contato com a figura assustadora de Ryuk (Willem Dafoe), o deus da morte. Detalhe: se ele escrever o nome de uma pessoa no caderno traçando seu destino e imaginar seu rosto, pode eliminá-la. Rapidamente, ele já tem alguém em vista, e o destino da vítima é doloroso de assistir. A meia hora inicial de Death note é instigante, e temos ainda a relação entre Light e seu pai, o detetive James Turner (Shea Whigham), além de cenas que remetem a um clima de terror que verdadeiramente assusta.

No entanto, quando surge o investigador L (Lakieth Stanfield), acompanhado por seu pai e assistente Watari (Paul Nakauchi), e a química entre Light e Mia começa a soar forçada, o roteiro vai se perdendo aos poucos, apesar de o visual continuar interessante, um dos méritos da filmografia de Wingard, com a ótima fotografia climática de David Tattersall, o mesmo de Speed Racer, inspirada em Demônio de neon e Enter the void (nas cenas passadas em Tóquio). O problema é a tentativa de transformar o conceito original, mais reflexivo, em algo muito popular e apressado, e não se pode imaginar que Nat Wolff tenha sido escolhido por outro motivo. Muito bem em A culpa é das estrelas, Palo Alto e Cidades de papel, ele tem uma atuação bastante limitada, talvez pelo roteiro e pela direção. Ele acaba sendo sobrepujado por Qualley, sua parceira, que deseja agir em conjunto para enfrentar o mal do mundo usando um caderno que serve a uma figura maligna com o intuito de ser “mais do que uma líder de torcida”.
Se eles chegam a uma festa de colégio em que está tocando “Don’t change”, do INXS, é exatamente o contrário do que acontece com ela, justamente porque passa a ter mais ideias sobre o que deve ser feito, e aos poucos o conjunto de mortes em escala universal atinge uma escala de autoperturbação e desejo de domínio sobre o outro. Trata-se de uma ideia aparentemente simples, mas que pode ganhar um significado se o diretor estivesse disposto a colocar a discussão por trás dela realmente em prática; isso fica apenas na aparência e em cenas violentas. A montagem ágil acaba não dando peso às sequências, ou seja, se o filme não cansa, ele dificilmente convida a olhar os personagens além da maneira como aparecem na tela. A simbologia que os cerca se perde.

Em O hóspede, Wingard já lidava com um personagem que se situava entre o bem e o mal, ambíguo, e Light não é diferente. No entanto, falta uma certa densidade a alguns conflitos enfrentados por ele, sobretudo quando Ryuk sugere que a autoria das mortes seja assinada pelo codinome Kira. A seu lado, Stanfield (que aparece bem em Corra! e War machine) tem uma atuação equivocada, tentando repetir certos maneirismos do personagem original, mas logo caindo mais numa espécie de caricatura. Shea Whigham e Willem Dafoe, por sua vez, aparecem muito bem e dão respaldo às suas cenas. Longe de ser o desastre como está sendo apontado, haveria espaço para um desenvolvimento melhor de personagens. Há assuntos delicados aqui (querer fazer justiça em cima de criminosos por meio de uma figura maligna), no entanto as coisas se perdem em determinado momento, recuperando-se apenas mais ao final, com uma ótima sequência de ação, uma das especialidades de Wingard. É preciso dizer que esta sequência tem um trabalho visual principalmente com as cores poucas vezes visto no cinema blockbuster e o rumo dos personagens lembra um episódio de Além da imaginação.

Talvez se Wingard também tivesse delimitado melhor seus objetivos – ele se situa entre uma tentativa de reproduzir outros filmes de adolescentes já citados com o próprio Wolff e um terror lado B, nos moldes de Creepshow, inclusive utilizando um trabalho de câmera semelhante –, aproveitando melhor a trilha sonora de Atticus e Leopold Ross (vencedores do Oscar por A rede social), inspirada claramente naquelas que Cliff Martinez compôs para as obras mais recentes de Refn, poderia ter realizado um filme realmente marcante. É claro que ele tinha um potencial narrativo a ser explorado com mais detalhes, à medida que tinha um elenco de ponta em suas mãos. Preferiu o caminho de apelo mais pop, e é justamente nesse terreno que ele vem sendo tão criticado. Para uma obra desse estilo, ele precisaria ter levado mais em conta os pressupostos originais, mesmo que quisesse, como fez, realizar uma adaptação mais livre. Fazer uma versão nos Estados Unidos requisita outro estilo, como o mostrado, com uma atmosfera bastante atraente, mas é preciso manter certo jogo de ideias, como, aliás, acontece em outras adaptações de mangás. Ainda assim, Death note tem suas qualidades e merece ser visto.

Death note, EUA, 2017 Diretor: Adam Wingard Elenco: Nat Wolff, Lakeith Stanfield, Margaret Qualley, Shea Whigham, Paul Nakauchi, Jason Liles, Willem Dafoe Roteiro: Charles Parlapanides, Vlas Parlapanides, Jeremy Slater Fotografia: David Tattersall Trilha Sonora: Atticus Ross, Leopold Ross Produção: Roy Lee, Dan Lin, Masi Oka, Jason Hoffs, Ted Sarandos Duração: 100 min. Estúdio: LP Entertainment, Vertigo Entertainment, Lin Pictures Distribuidora: Netflix

Kong – A Ilha da Caveira (2017)

Por André Dick

O clássico King Kong de 1933 marcou não apenas sua época, como a história do cinema, e quando Dino De Laurentiis produziu uma refilmagem em 1976 foram poucos os que se atreveram a elogiá-la ou traçar comparações dela com o original. Obviamente, uma falha gigantesca: o King Kong dos anos 70, com sua crítica à indústria petrolífera, é, como diz Pauline Kael, um filme muito divertido. Em 2005, Peter Jackson fez a segunda refilmagem, numa obra grandiosa e com vigor incomum. O interessante é que as duas refilmagens ganharam o Oscar de efeitos visuais. Em Kong – A Ilha da Caveira não temos exatamente uma nova versão da mesma história. Pelo contrário.
Desde o início, quando se mostra uma queda em 1944 durante a Segunda Guerra Mundial de dois caças numa ilha do Pacífico Sul, temos uma liberdade histórica mais abrangente para a figura central.  Em 1973, James Conrad (Tom Hiddleston) é selecionado por um agente do governo norte-americano, Bill Randa (John Goodman), para ser guia de uma expedição exatamente a essa Ilha da Cavaleira, recém-localizada e que desperta o interesse governamental. Para a missão, também é chamado o Coronel Preston Packard (Samuel L. Jackson), com seu esquadrão Sky Devils, constituído por combatentes da Guerra do Vietnã, tendo como braço direito o major Chapman (Toby Kebbell). Junta-se ao grupo também Mason Weaver (Brie Larson), uma fotógrafa pacifista.

A chegada a ilha marca uma situação até então prevista, quando os personagens são lançados em meio a uma espécie de Apocalypse now, como muitos têm falado sobre o filme. Mas, desde o recrutamento de Conrad, num local conturbado, passando pelo soldado Reg Slivko (Thomas Mann), que usa uma bandana vermelha como Christopher Walken em O franco-atirador, este Kong é um subtexto do filme de Michael Cimino vencedor do Oscar principal em 1978. Com suas menções históricas a Richard Nixon, a história do monstro se confunde com a da própria América. A Ilha concentra não apenas King Kong, como também outros animais pré-históricos gigantes e muitas, muitas ossadas de animais já mortos, o que concede uma grande variedade de efeitos visuais e uma fotografia esplêndida de Larry Fong, habitual colaborador de Zack Snyder, com suas colorações destacando o criativo design de produção.
Na jornada, seguem Conrad, Weaver, os biólogos San Lin (Jing Tian), Houston Brooks (Corey Hawkins), os soldados Slivko e Cole (Shea Whigham) o empregado Victor Nieves (John Ortiz), entre outros, que encontram os indígenas do local – como de praxe nos outros da série – e a figura de Hank Marlow (John C. Reilly), um combatente de guerra que vive ali há anos com um aspecto de Capitão Ahab de Moby Dick.

O lugar onde eles vivem remetem claramente à aldeia administrada pelo personagem de Marlon Brando em Apocalypse now, e Marlow se torna a figura mais significativa e interessante da narrativa, graças à boa atuação de Reilly. Ele é como se fosse um elo de ligação entre a época das versões passadas nos anos 30 com a dos anos 70 – e mesmo a tribo não é mostrada como ameaçadora e sim pacífica, tanto que em certo momento se brinca com o lema “Paz e amor”, típico da década de 1970. É uma pena que, em meio a cenas realmente atrativas de ação e um fantástico arsenal de efeitos, os personagens de Conrad e Weaver se sintam tão fracos – ao contrário de Jeff Bridges e Jessica Lange no filme de 76 e de Naomi Watts e Adrien Brody no de 2005. Não porque Hiddleston e Larson não atuem bem, mas porque o arco deles não é suficientemente desenhado e deixe dois dos melhores nomes da atualidade com uma participação excessivamente discreta. Nesse sentido, esta nova obra envolvendo King Kong não prima exatamente pela faceta dramática ou elegância na construção dos personagens – como era o de Jackson principalmente –, sendo muito mais um blockbuster real e de peso, literalmente, o que não tira seus méritos, sobretudo aqueles que envolvem escolhas pessoais do diretor Jordan Vogt-Roberts em relação ao material de origem.

O filme cresce mais em sua analogia da Ilha da Caveira com a Guerra do Vietnã e o roteiro, escrito por Dan Gilroy, o diretor de O abutre, Max Borenstein, que escreveu o Godzilla de 2014, e Derek Connolly, responsável pela narrativa de Jurassic World, nunca deixa de encadear sequências com grande agilidade e ainda assim com lógica, sem quedas abruptas ou mudanças de rumo inaceitáveis. Quando Marlow faz um discurso sobre a onipresença de King Kong na ilha, ele parece estar se referindo ao que o exército dos Estados Unidos achou ser no Vietnã e, quando ele se refere aos pais mortos da criatura, parece delimitar uma época: algo aqui se perdeu. O exército de Packard chega à ilha com helicópteros e bombas, mas este é um novo lugar onde eles não conseguirão mudar o rumo da história. Tudo se sente como um início de franquia, o que, se por um lado incomoda quem gosta do personagem na roupagem mais clássica, por outro promete novos embates. Esses são claramente inspirados pela versão de Peter Jackson e, onde eram comparáveis quase a um video game de destruição, não deixam de ter uma textura verdadeira e até ameaçadora. Ou seja, o filme consegue lidar melhor com seus elementos de origem do que, por exemplo, Jurassic World em relação ao clássico de Spielberg. Quando vemos King Kong em ação, ele parece realmente uma figura em movimento, não um mero produto de efeitos visuais e CGI. É o que concede emoção particular a esta obra de Vogt-Roberts.

Kong: Skull Island, EUA, 2017 Direção: Jordan Vogt-Roberts Elenco: Tom Hiddleston, Samuel L. Jackson, John Goodman, Brie Larson, Jing Tian, ​​Toby Kebbell, Corey Hawkins, Shea Whigham, Jason Mitchell Roteiro: Dan Gilroy, Max Borenstein, Derek Connolly Fotografia: Larry Fong Trilha Sonora: Henry Jackman Produção: Jon Jashni, Mary Parent, Thomas Tull, Alex Garcia Duração: 118 min. Distribuidora: Warner Bros. Estúdio: Legendary Pictures / Warner Bros.