Os fantasmas dos fantasmas: Star Wars – A ascensão Skywalker (2019) e Star Wars – Os últimos Jedi (2017)

Por André Dick

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Depois de alguns anos do reinício de Star Wars, por meio da Walt Disney, com O despertar da força em 2015, é possível calcular melhor qual é a importância desta trilogia que encerrou a saga iniciada por George Lucas no clássico de 1977. Se Os últimos Jedi foi recebido com certa desconfiança, ao contrário do primeiro de Abrams, ele vem alcançando um status de ser não apenas o melhor desta trilogia, como também aquele que melhor rivaliza com O império contra-ataca, considerado o melhor da saga. No Rotten Tomatoes, tem 91% de média de aprovação da crítica, contra 42% do público. E os elogios vêm acompanhados de que seria o único de fato original. Este artigo pretende trabalhar com a ideia de que os filmes de Star Wars se complementam, apesar de alguns serem mais criticados. A ascensão Skywalker é visto como um desastre, um dos piores da saga, que não teria acabado bem o que Rian Johnson começou. O objetivo aqui é mostrar que Abrams não apenas tentou seguir o estilo de Johnson, como também a reparar detalhes não tão bem trabalhados por seu antecessor. Todos os argumentos apontam para o contrário em algumas matérias que simplesmente entendem que o filme não explica seus motivos, como se o universo Star Wars existisse para fazer completo sentido lógico.

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Responsável por um excelente filme de adolescentes em homenagem ao noir, A ponta de um crime, e por uma ficção científica que soava como um quebra-cabeça, Looper, Rian Johnson foi convidado a dirigir e escrever o roteiro de Star Wars – Os últimos Jedi, a continuação de O despertar da força, o reinício da série criada por George Lucas desta vez por meio dos estúdios Disney, que comprou os direitos da franquia. No episódio anterior, dirigido por J.J. Abrams, havia uma necessidade clara de retomar a nostalgia do filme dos anos 70, mas com novos personagens reencontrando alguns dos antigos, Han Solo e Princesa Leia.
Os últimos Jedi mostra a perseguição da Primeira Ordem aos rebeldes liderados pela princesa Leia (Carrie Fischer), entre eles Poe Dameron (Oscar Isaac). O Supremo líder Snoke (Andy Serkis) está raivoso com o general Hux (Domhnall Glesson) por não conseguir impedir a escapada deles do planeta onde foram localizados. Sabe-se o quanto o anterior repetia referenciais de Uma nova esperança, o episódio de 77. Desta vez, as referências são O império contra-ataca e O retorno de Jedi. E não se trata de coibir a nostalgia.

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O episódio derivado da série, Rogue One, de 2016, se fazia em cima disso também, com talento insuspeito por Gareth Edwards. A questão é que aqui Rey (Daisy Ridley) está numa ilha do planeta aquático Ahch-To, onde se esconde Luke Skywalker (Mark Hamill), querendo ser treinada por ele. A aproximação com Yoda em O império contra-ataca não se dá apenas pela argumentação, como por meio de imagens e simbologias: as conversas sobre a individualidade se dão em cavernas e a heroína tem conversas psíquicas com Kylo Ren (Adam Driver), uma interessante opção, mas que tem origem na mesma ligação entre Skywalker e Vader no segundo e terceiro filme da primeira trilogia – com a diferença de que aqui Kylo e Rey se enxergam. Essas conversas psíquicas também evocam o encontro de Luke Skywalker com seu outro eu na viagem a Dagobah, quando adentra numa caverna em que surge Darth Vader, que ele confronta e derrota, arrancando sua cabeça, para ver a máscara dar lugar a seu próprio rosto.

Entre os rebeldes, Poe (Oscar Isaac), Finn (John Boyega), BB-8 e a mecânica Rose Tico (Kelly Marie Tran), envolvidos numa missão para chegar a um rastreador da Primeira Ordem, lembram Leia, Solo e companhia na perseguição à Millenium Falcon de O império contra-ataca, além de um mercenário feito por Benicio del Toro evocar Lando Calrissian. A saga de Star Wars começa a intensificar o que já se percebera em O despertar da força: ela trata dos fantasmas de fantasmas. As aparições de Yoda aqui se estabelecem como uma presença que incorpora o peso da saga de Lucas, e Johnson, ao mesmo tempo, quer tornar locações e personagens, como Abrams no filme de reinício, em extensões de um imaginário já conhecido, já visto, já sentido. Essa diferença se percebe na multiplicação de imagens de Rey na caverna. Tudo é repetição; todo personagem é fantasma de outro personagem, em morte ou em vida. Por isso, falar em originalidade aqui não cabe, pelo menos no seu conceito fundamental. É claro que Os últimos Jedi tem elementos técnicos que o diferenciam e também desenvolve passagens que parecem únicas, no entanto, em seu esqueleto, ele está ligado totalmente a O império contra-ataca e a O retorno de Jedi.

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Johnson tenta retomar elementos de O retorno de Jedi por meio de um cassino no planeta Canto Bight, mas de forma um pouco desajustada e com um tom predominantemente infantojuvenil, mesmo com sua crítica às armas e aos maus tratos a animais (temas que soam deslocados, como muitos outros). Se há algo claro nesta reinicialização de Star Wars é uma obsessão em conversar com o público mais jovem, mais do que os antigos. Johnson está sempre tentando inserir crianças em meio à ação. Edwards conseguiu bom resultado em Rogue One porque era um derivado, com mais liberdade, uma interessante narrativa sobre uma rebelde que quer reencontrar o pai e integra um grupo capaz de arriscar sua vida, porém Os últimos Jedi é uma coleção de frases já ouvidas em outros filmes da saga, com comportamentos e situações idênticas. Por isso, não é frutífera a ideia de que, havendo queixas, é porque se tenta deixar o passado de lado nesses novos Star Wars: o passado está presente o tempo inteiro, só por meio mais de outros personagens.
Adam Driver, apesar de um pouco de dificuldade de desenvolver seu vilão porque seus dilemas apenas repetem os de Darth Vader, tem boa atuação, enquanto Snoke (num CGI desanimador, quando cresceria com uma verdadeira maquiagem) é apenas outro Palpatine, contudo sem nenhum lado verdadeiramente ameaçador. O encontro entre Rey, Snoke e Kylo possui diálogos semelhantes aos que vemos em O retorno de Jedi, com Palpatine, Luke e Darth Vader.

Chega a ser desanimadora esta passagem, apesar de seu brilhantismo visual, porque o roteiro simplesmente submete os personagens aos mesmos conflitos de O retorno de Jedi. Do mesmo modo, os conflitos existentes aqui entre a almirante Amilyn Holdo (Laura Dern, certamente com saudade da peruca que usa em Twin Peaks – O retorno) e Poe Dameron, por exemplo, não apenas soam um tanto distantes, e desperdiçam grandes nomes, como Dern e Isaac, este num personagem que era animado no anterior e aqui se aproxima perigosamente de uma falta de empatia, como parecem apenas uma continuidade, por meio de outros personagens, do mesmo estilo de desentendimento entre a Princesa Leia e Han Solo em O império contra-ataca.
Já a parte final de Os últimos Jedi é uma réplica do início de O império contra-ataca, mas, ao contrário de o planeta ser o gelado Hoth é o áspero Crait. As imagens dizem mais.

Em termos gerais, a conclusão a que chega Os últimos Jedi é muito superficial: Kylo quer se aproximar de Rey para juntos governarem a galáxia, no entanto o que isso se difere de Palpatine querer que Vader se aproxime de Luke para ter o Império triunfante? A pergunta seria o que torna Os últimos Jedi tão original quando se vê a premissa, as imagens e subtramas que dele decorrem.

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Escolhido para dirigir a terceira parte, Colin Trevorrow deu espaço a J.J. Abrams novamente, que coescreveu A ascensão Skywalker com Chris Terrio, vencedor do Oscar de roteiro adaptado por Argo e responsável pela escrita de dois trabalhos polêmicos da DC (Batman vs Superman e Liga da Justiça).

Fala-se que Abrams nega o que Johnson acrescentou à série, mas, desde o início, ele adota uma atmosfera mais soturna, chuvosa e mesmo dark, sem a necessidade de destacar as cores habituais e seus lens flare, tentando se adequar visualmente à proposta visual de Johnson. O início, com Kylo Ren encontrando o vilão Palpatine, em Exegol, ressuscitado em forma de clone (que evoca a HQ Dark empire, ao que parece ignorada por especialistas), é uma visita a um lugar soturno da fantasia de Lucas nunca antes imaginado, só apenas superficialmente em A vingança dos Sith. As frotas do império que surgem sob as mãos de Palpatine são uma tentativa de Abrams retomar um vilão ausente nos dois anteriores e eliminado, na forma de Snoke, no segundo, de forma precipitada, fazendo Kylo se transformar quase numa figura bondosa. Como combater os fantasmas dos fantasmas senão com um clone? E assim Abrams faz. Ou seja, a argumentação recorrente de que Palpatine voltou por acaso em A ascensão Skywalker não é plausível, pois sem ele não haveria de fato vilão – e esta figura ajuda a construir o universo de Star Wars com seu papel de oposição. Palpatine é o símbolo da ameaça ao universo Jedi desde seu início, e a segunda trilogia de Lucas o demonstra bem. Não deveria surpreender sua volta aqui para a tentativa derradeira de derrotar os rebeldes.

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A ascensão Skywalker se afasta em partes definidas do colorido de O despertar da força para acompanhar Rey, Finn (John Boyega), Poe Dameron (Oscar Isaac), BB-8, Chewbacca (Joonas Suotamo) e C-3PO (Anthony Daniels) num encadeamento de cenas de ação, com mudança constante de planetas (trazendo uma sensação novamente de aventura no espaço sideral e um senso de distinção no trabalho de direção de arte). Isso fazia falta nos dois episódios anteriores e era uma característica das duas trilogias de Lucas. Abrams reaproveita o estilo de Johnson e o mescla com sua bateria de subtramas: desta vez, Kylo Ren vai a um planeta distante tomar ordens de uma figura inesperada, e passa a rastrear, com a ajuda dos generais Hux (Domhnall Gleeson) e Pryde (Richard E. Grant), o trio da Aliança Rebelde, coordenado por Leia (Carrie Fisher), numa busca feita a um objeto já cobiçado por Skywalker.
De fato, este terceiro filme acaba negando pontos suscitados por Johnson, como no início apressado, porém ele confere um humor mais natural e próximo das histórias de Lucas. A chegada dos rebeldes a um planeta desértico lembra tanto Tatooine quanto Marte, de John Carter, com um grupo de criaturas estranhas. Há uma perseguição fantástica de stormtroopers, assim como uma sequência que envolve Rey e Kylo que adquire uma grandiosidade, com efeitos visuais extraordinários. E C-3PO tem finalmente chance de brilhar depois da segunda trilogia toda e de estar deslocado nos dois primeiros filmes.

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Abrams se sente à vontade desta vez, construindo uma narrativa menos ligada até determinado ponto aos filmes anteriores, aplicando uma história de investigação, capaz de remeter principalmente à série Indiana Jones (principalmente Indiana Jones e o reino da caveira de cristal), antes, claro, de oferecer vários serviços para fãs. No entanto, antes de chegar lá, ele proporciona uma das melhores cenas de toda a saga Star Wars, além de finalmente notar que o trio principal, Chewbacca e C-3PO funcionam muito bem juntos e mantê-los separados em Os últimos Jedi não foi exatamente o mais acertado, embora ela tenha se dado também como um diálogo novamente com O império contra-ataca, em que havia o núcleo de Skywalker e o outro de seus amigos fugindo do império. Também mostra que Abrams soube avaliar os méritos do spin-off Rogue One, cujo núcleo de rebeldes era um destaque.

Há um descompromisso aqui em certos diálogos, mais ação e menos tentativa de seguir exatamente à risca um plano, como O despertar da força. Há também uma busca de Abrams em retomar temas de linhagens familiares usados em sua retomada de 2015 e um pouco ignorados por Johnson em Os últimos Jedi para dar espaço a discussões sobre falta de combustível numa nave espacial. É visível que Abrams também ignora personagens incluídos pelo sucessor, a exemplo de Rose Tico (Kelly Marie Train) para aplicar suas ideias, o que pode constituir uma estranheza a princípio, mas se torna autoral. Se nos vinte minutos iniciais a edição é tortuosa, com excesso de acontecimentos, sem a necessária ponderação para cada personagem, aos poucos Abrams, mesmo desperdiçando a retomada de uma conhecida figura, sabe como costurar escala e grandiosidade como em seus dois Star Trek, lembrando também um determinado momento de Interestelar. Ele também deixa de lado o tom infantojuvenil de O despertar da força e se guia por algumas pistas deixadas por Johnson, principalmente na ligação entre Rey e Kylo Ren, muito bem explorada em Os últimos Jedi e que aqui toma um ponto de inflexão interessante. Isso se mostra quando Dameron, Finn e Rey param em Kef Bir, onde caíram os destroços da Estrela da Morte em O retorno de Jedi. Uma sucata abandonada em meio a ondas gigantescas: é uma imagem de pesadelo no estilo habitualmente leve de Abrams e quando Rey adentra nela para encontrar o localizador que poderá leva-la a Exegol, a fim de deter Palpatine, ela se depara com um eu mais assustador, seu outro lado, como aquele com que se deparava Luke na caverna de Dagobah.

Rey precisa combatê-la e é um ganho de Johnson que Abrams segue. Do mesmo modo, ao final da luta entre Kylo e Rey, ele retoma a passagem que terminou com certo vínculo dos fãs de Star Wars: a morte de Solo em O despertar da força. Desta vez, Abrams se emociona, fazendo um grande meio de contato com a figura de Leia (o amor vencendo tudo), ao trazer o espírito de Solo (outro fantasma do fantasma em que já se tornara em O despertar da força), e leva Rey de volta ao planeta onde estava Skywalker, para encontrar a sua alma pedindo que ela cuide do sabre como uma jedi – uma referência ao modo como Johnson trata Luke, de forma um pouco humorada, em Os últimos Jedi. Ao tirar sua nave dos fundos da água da ilha, lembrando a tentativa que fez em O império contra-ataca concretizada por Yoda, Abrams costura uma grande nostalgia, contudo sempre com acréscimos, jogando a narrativa para a frente e usando o passado como motivo para uma superação atual.

Abrams se preocupa em justificar o voo no espaço sideral de Leia em Os últimos Jedi com imagens de ela mais jovem sendo treinada por Luke Skywalker. Faz uma ligação também com Rey, que fazia as pedras flutuarem ao final do filme de Johnson com aquelas com que ela treina na floresta. Ao contrário da grandiosidade de Johnson, Abrams se atém a quase uma cena zen budista. Também, ao mostrar que Rey se afasta da sua genealogia de Palpatine, ligando-se à dos Skywalker, ela faz justamente o contrário de Vader, que, como Annakin, se afastava das suas premissas boas, mesmo sendo um escolhido.

O passado de Rey, recuperado por Abrams por meio de flashbacks da infância da personagem, já existentes em O despertador da força, volta com outro direcionamento porque Johnson se recusou a analisá-lo, fazendo com que ela fosse considerada de uma família não ligada exatamente à Força. No entanto, Abrams deixava subentendido um passado enigmático sobre a personagem e precisava desenvolvê-lo no capítulo final. Se a escolha não parece ter sido a mais apropriada, foi um risco e opção interessantes de Abrams. Este está preocupado, sim, com a nostalgia; sua grande busca, porém, é tornar o que eram fantasmas dos fantasmas em O despertar da força e Os últimos Jedi em um novo reinício. Ao encerrar os conflitos entre Rey e Kylo com um beijo – fazendo com que seu destino lembre o de Vader, mas em outro contexto, do perdão do filho em relação ao pai -, ele não está simplificando: está simplesmente dizendo que as coisas em Star Wars são circulares e que George Lucas, embora alguns “fãs” não queiram, ainda é o criador desta saga e desta máquina de nostalgia. Abrams chega a contrariar Johnson, que tenta se entregar ao fato de necessariamente destacar personagens infantis, como subentendia ao final de Os últimos Jedi, com o intuito de agradar à Disney, optando por destacar o pôr do sol de Tatooine sendo observado agora por Rey e não Luke Skywalker. A maioria dos argumentos contrários que o leitor encontrar certamente têm uma ligação com pontos abordados pelo artigo “The Rise Of Skywalker: 5 Things It Got Wrong About Rey’s Origins (& 5 It Got Right)”, da Screen Rant. Nele, podem ser vistos os tópicos que os que contestam A ascensão Skywalker para enaltecer Os últimos Jedi costumam usar, às vezes até sem saber disso, de tanto ser replicado por críticos que querem inventar uma obra clássica no filme de Johnson.

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Pode-se dizer que em nenhum momento esta nova trilogia conseguiu ser original a ponto de se ver como uma obra independente, e também não se pode avaliar que foi um simples exercício de nostalgia. Há pontos interessantes, principalmente quanto a ligações familiares (e nem mesmo uma mais forçada me soou incômoda). A figura de Kylo Ren cresceu muito de O despertar da força para A ascensão Skywalker, também pelo amadurecimento de Driver, ator que foi se tornando um destaque. Ridley aqui se mostra também em seu melhor momento, afastando-se simplesmente da imagem de heroína juvenil e mostrando real conflito interior. Boyega e Isaac, cada um a seu tempo, se mostram também essenciais para a série se consolidar ao final. A morte de Carrie Fisher, por sua vez, fez com que imagens dela já filmadas fossem reaproveitadas em outro contexto, oferecendo uma certa dificuldade de imersão, porém, diante disso, até que suas cenas se encaixam bem.
O roteiro flui, com alguns problemas inevitáveis em certas transições, e, no terceiro ato, apesar de alguns exageros, é possível mesmo se emocionar em alguns pontos, graças à trilha sonora de John Williams.
Muitas pontas são costuradas e poucas ficam soltas, o que não deixa de ser um mérito para uma obra com o objetivo de concluir uma saga iniciada há mais de 40 anos. Considerado de modo geral um dos Star Wars mais fracos, além de menos arriscado do que o segundo (assim como O retorno de Jedi foi considerado em relação a O império contra-ataca nos anos 80), entendo o contrário: A ascensão Skywalker é um filme que pode ser reavaliado com o tempo. Prós ou contras, ele é o que mais se assemelha com a essência de Star Wars desde O retorno de Jedi, usando a nostalgia, no entanto acrescentando ideias. Em relação a esta saga cada espectador, admirador ou fã possui seus requisitos para avaliar a direção dada a cada filme, rendendo muitos debates. A impressão que se tem é que Abrams buscou unir os três filmes de maneira interessante e aberta a reflexões sobre esse universo fantástico. De certo modo, ele foi o primeiro a compreender que Star Wars é feito de um universo amplo e com polêmicas em meio a ele. Não por acaso, ele inclui os ewoks na cena de vitória contra o Império. É como se dissesse que todos os que gostam de algo de Star Wars fazem parte do mesmo time de espectadores.

“Liga da Justiça de Zack Snyder” vs “Vingadores – Ultimato”

Por André Dick

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Na década passada, a principal rivalidade do cinema não foi entre super-heróis ou personagens bons contra maus e sim da DC/Warner em relação à Marvel/Disney, não apenas em questão de bilheteria, como também, principalmente, em estilo de filmes. Os filmes da DC sempre foram mais ligados a algo soturno, introspectivos, sem muito humor, enquanto os da Marvel eram mais vistos como solares, divertidos e com uma bem-vinda superficialidade, talvez mais fiéis aos quadrinhos, como muitos dizem.
Isso se deve a duas visões de cinema: uma é a de Zack Snyder, criador da DC/Warner, que foi incumbido de fazer o que a Marvel estava fazendo não com um criador, e sim um produtor, um coordenador de produções: Kevin Feige. Os filmes da Marvel sempre retornaram mais em público e bilheteria, assim como tiveram uma resposta crítica mais amistosa, mesmo nos momentos menos inspirados. Os filmes do universo DC vieram na esteira dos da Marvel em termos de tentativa de ligar histórias: O homem de aço teve uma recepção irregular, mas boa bilheteria, enquanto Batman vs Superman – A origem da justiça foi bastante avariado pela crítica e, apesar do bom ganho, não alcançou o que se esperava dele: a bilheteria bilionária de Os vingadores, o divisor de águas da Marvel/Disney dirigido por Joss Whedon em 2012. Com essa recepção, e depois de problemas pessoais de Snyder durante as filmagens de Liga da Justiça, a DC/Warner trouxe Whedon para finalizar o filme, regravar cenas e editar sua versão.
Em razão das críticas a Batman vs Superman, a proposta a ser atingida era de um filme mais leve, mais bem-humorado, com o espírito da Liga da Justiça, como entendeu na época um dos produtores, Geoff Johns. A metragem reduzida para duas horas se deveu a uma interferência de Kevin Tsujihara, o CEO da Warner à época, segundo o que se fala. O resultado foi o filme lançado em 2017. Em 2021, finalmente estreou a versão de Zack Snyder para Liga da Justiça, com 242 minutos, mais de duas horas a mais de filme. O que se convenciona dizer (de que o plano de Snyder para a trilogia de Liga da Justiça deve ao Vingadores) pode ser visto sob outro ponto de vista. Deve-se levar em conta que existia esta versão de Zack Snyder em 2017 e era considerada “inassistível”, fazendo com que toda vez em que nos referimos ao filme de 2021 estamos, na verdade, tratando de um filme de uma obra semifinalizada há quatro anos. Vendo o filme em 2021, todas as cenas mostram os atores e atrizes como eram há quatro anos, exceto o epílogo, com cenas filmadas em 2020. Do mesmo modo, para que não haja dúvida, toda decisão criativa do filme de 2017 é, em último caso, colocada a cargo de Joss Whedon, mesmo que tenha havido outros que decidiram nos bastidores em conjunto. Ele foi chamado para ser a referência criativa na finalização e não se deve duvidar de que as escolhas passaram pelo crivo dele.

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As diferenças entre essas versões foram abordadas neste artigo. Desta vez, passaremos a ver como Liga da Justiça de Zack Snyder tem pontos em comum com Vingadores – Ultimato, dos irmãos Russo, mas levando-se em conta que ela originalmente, em sua maior parte, foi feita em 2017, sendo finalizada (principalmente efeitos visuais e seu epílogo) em 2020/2021. Por mais que se reconheça o talento dos diretores neste filme-evento da Marvel, é plausível dizer que ele traz, em termos de imagens, muito mais inventividade do que demonstram ao longo de sua curta trajetória até agora. É notável perceber, inclusive, o quanto Ultimato começa com um sentido de melancolia que inexiste no filme anterior, Vingadores – Guerra infinita, em todos os sentidos, principalmente na fotografia, usando o sentimento de vazio de espaços abertos, e no design de produção, mostrando o Clint Barton/Gavião Arqueiro com sua família num local campestre e depois sem ela. Esta passagem tem muito da ausência que acomete Lois Lane em Batman vs Superman, quando avista o túmulo de Clark Kent a distância.

Em seguida, vemos os personagens ainda abalados pela perda de alguns super-heróis – assim como em Liga da Justiça de Zack Snyder vemos Bruce Wayne, Martha Wayne, Lois Lane e o mundo todo sob o espectro da perda do Superman. Em Ultimato, o Homem de Ferro vai morar numa fazenda com sua filha. O objetivo de reunir os Vingadores é poder reverter o que Thanos fez ao mundo no final de Guerra infinita. O objetivo de Liga da Justiça de Zack Snyder é reverter a perda do Superman. Na versão de Snyder, isso ganha uma ressonância pela maneira como a trama é contada; com a mesma efetividade que os irmãos Russo tiveram em seu Ultimato, principalmente tempo de metragem. O que dois anos antes a WB desconsiderara – um filme de no mínimo três horas, considerando-se que o corte original de Snyder era de 219 minutos – estava sendo adotado pela principal rival: um filme com enorme metragem para um filme de super-heróis e muitas vezes melancólico e soturno, termos e interpretações que se evita usar no caso da Marvel, e para isso basta ver a recepção crítica de seus filmes. Mesmo em seus momentos menos luminosos, como em Thor – O mundo sombrio, Capitão América – O soldado invernal, Capitão América – Guerra civil e Vingadores – Guerra infinita, sempre houve um clima mais de confraternização e menos de embate entre os personagens, mesmo quando levados a um limite, além de nos três últimos, dirigidos pelos irmãos Russo, uma mistura de thriller e ficção científica. A primeira hora, particularmente, de Vingadores – Ultimato poderia ser considerada uma tentativa de adaptar o universo tão criticado até então da DC/Warner, adotando o ponto de vista de Snyder, para a Marvel/Disney.

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A maneira como os irmãos Russo mostram cada personagem depois da hecatombe proporcionada por Thanos é vital para esse sentido de solidão do filme: o Gavião Arqueiro vivendo de vinganças, a Natasha Romanoff/Viúva Negra melancólica, Tony Stark/Homem de Ferro perdido no espaço sideral, Scott Lang/Homem-Formiga descobrindo figuras familiares e amigas em memoriais, assim como Lois visita o Memorial dedicado ao Superman e às vítimas do ataque de Zod em O homem de aço ou Martha Kent o túmulo de Clark. Uma atmosfera que remete a Watchmen – O filme. A Marvel/Disney capta uma melancolia que a DC/Warner negara dois anos antes na visão de Snyder porque quis trazer Joss Whedon a fim de fazer um novo Os vingadores de 2012. O mesmo Whedon dispensado pela Marvel/Disney depois de Era de Ultron.

No filme de Snyder, Arthur Curry/Aquaman não quer assumir seu posto de rei de Atlântida, quase expulsa Bruce Wayne de uma reunião num vilarejo; Flash procura emprego; e Victor Stone/Ciborgue se compadece de seus poderes ainda não descobertos.
Em Ultimato, neste clima pós-apocalíptico, o Capitão América participa de reuniões cujo um dos integrantes é feito por um dos irmãos Russo. Essa reunião tem um clima de melancolia que dialoga com uma sequência de Liga da Justiça de Zack Snyder, em que Lois se encontra com Martha em seu apartamento. A mesma luz soturna, o mesmo clima de frustração. Na versão finalizada por Whedon, o encontro de Lois e Martha acontece numa sala do Daily Planet, num ambiente solar e figurinos alegres, extraindo toda a carga de tensão. Nesse sentido, Snyder sabe que, para acontecer um crescimento de tensão para o desenlace, os personagens, como aparece em Ultimato, devem estar passando por uma fase de superação de perda e de luto.

A Lois Lane visitando o Memorial do Superman ainda lembra uma fagulha da Estátua da Liberdade no início de Ultimato, quando a humanidade tenta se reconstruir depois do que Thanos fez a ela. Na versão de Whedon, as sequências de desolação depois da morte de Superman são atenuadas ou simplesmente descartadas, como se a melancolia não pudesse pertencer a um filme do gênero. Ou seja, em 2017, é curioso entender que, se lançada a versão do filme de Snyder, Liga da Justiça anteciparia o clima melancólico adotado principalmente em Ultimato. Isso não foi feito exatamente porque a DC/Warner queria seguir o padrão de filmes da Marvel. A Marvel sabia que precisaria ingressar nesses elementos para provocar emoção no espectador, levando-o a um sentido épico. Isso só pode ser feito com grandiosidade e trabalho com os personagens, o que a DC/Warner evitou ao aceitar a versão reduzida de Whedon, recheada de gags.

E, como representação da figura do super-herói para a criança, Joss Whedon elimina uma sequência-chave da versão de 2017, quando, depois de a Mulher-Maravilha enfrentar terroristas e salvar um grupo de pessoas, conversa com uma menina dizendo a ela que pode, se quiser, ser como ela. Isso remete à conversa de Tony Stark com sua filha em Ultimato, antes de decidir se juntar novamente aos Vingadores. Não se sabe por que Whedon elimina uma cena tão importante para fazer a Liga da Justiça dialogar com o público infantojuvenil, mas ele o faz.

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Visualmente, as partes em que se mostra o imaginário do Ciborgue em Liga da Justiça de Zack Snyder conversam com a aridez do planeta Vormir, onde Thanos sacrifica a própria filha em Vingadores – Guerra infinita, e para o qual o Gavião Arqueiro e a Viúva Negra voltam em Ultimato. Há um trabalho de CGI muito parecido e um planeta no alto do céu solitário, mas parecendo estar muito próximo, como a Lua no filme Melancolia – e essas imagens já poderiam ser entrevistas em muito material de Watchmen – O filme também, em 2009, principalmente relacionadas ao Dr. Manhattan.

O drama do Ciborgue, aliás, lembra muito o drama inicial do Homem de Ferro em Ultimato, quando ele está fraco e sem energia por causa do próprio maquinário que o impulsiona, com seu coração quase estilhaçado, como se cobrasse por sua energia, o que era entrevisto em Homem de Ferro 2 e Homem de Ferro 3, mas não com o drama que acontece aqui, desde sua solidão no espaço sideral até sua tentativa de readaptação.
Também é possível ver algo do vilarejo de Aquaman naquele onde Thor e sua trupe fazem a nova Asgard. Thor está tão embriagado e barbudo quanto o Aquaman. Bruce Banner/Hulk e o Rocket chegam ao lugar numa caçamba de caminhonete, como Aquaman se despede em Liga da Justiça de Zack Snyder de Mera e Vulko para ir visitar o seu pai. Não são apenas proximidades, mas contextualizações e modos de filmar cada personagem muito parecidos.

No início de Ultimato, Capitão América aparece solitário em frente a um espelho e sobrevive em cenários com Viúva Negra do centro dos Vingadores construído por Tony Stark, desta vez com um design mais soturno que lembra o da aeronave que leva Bruce Wayne em Liga da Justiça de Zack Snyder, assim como o de sua Batcaverna, principalmente na versão de Snyder, já que a de Snyder procura sempre luzes pela janela. Tem também o mesmo sentido de tentar reorganizar a equipe como Bruce Wayne tem de reunir os componentes da Liga da Justiça. Ambos também estão num momento de buscar a serenidade e a reconciliação com antigos companheiros de batalha. São sérios, mas o Bruce Wayne, por ser de Snyder, é visto pela crítica como sisudo. Não por acaso, Whedon foi contratado para inserir falas como, depois de ser jogada pelo Superman do alto: “Tem algo sangrando em mim”, referência satírica a um diálogo entre os dois em Batman vs Superman. Enquanto em Ultimato temos a imponente máquina do tempo na instalação dos Vingadores, na Batcaverna de Liga da Justiça Wayne tenta arrumar sua aeronave.

Esses pontos de construção de cada personagem também são mais elaborados na versão de Snyder – assim como no filme dos Russo – por causa do tempo. Whedon correu contra o tempo nas refilmagens para tirar todo o escopo épico de Snyder, que os Russo irão adotar algum tempo depois em Ultimato.

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Finalmente, por que Joss Whedon finalizou um vilão com tão pouca dedicação como Lobo da Estepe é uma incógnita. Não é este vilão que aparece nos story-boards de Snyder, revelados em Justice League – The art of the film, de Abbie Bernstein. Neles, já aparece Lobo da Estepe com a armadura que seria usada na versão de 2021. É um vilão não com a mesma linha de diálogos de Thanos, mas tão imponente quanto, com, inclusive, um machado. Whedon o torna por vezes risível e sem nenhum traço épico.

Não há ameaça nele, e as suas falas se reduzem a lugares-comuns. Isso afeta o ato final de Ultimato e que em Liga da Justiça de Zack Snyder finalmente vemos de forma completa. O mais curioso é que, na época de lançamento do filme, Whedon curtiu tweets de Joanna Robinson, da revista Vanity Fair, que criticavam justamente o vilão, considerando-o pior do que o de Thor – O mundo sombrio, como se ele, Whedon, não tivesse relação com o resultado, com as escolhas e não tivesse recebido um grande cachê por seus “acréscimos”. Na versão completa de Snyder, Lobo da Estepe recebe a armadura dos story-boards, tornando-se praticamente outro personagem.

No seu filme completo, Snyder mostra a luta das Amazonas e do povo de Atlântida, além de deuses do Olimpo e de um Lanterna Verde, contra o Darkseid. Essa sequência picotada no filme de 2017 para parecer um ligeiro flashback é vista em grande escopo na versão de Snyder, com ecos de O senhor dos anéis e 300 – e vemos nela a mesma iluminação e tom de fotografia de Fabian Wagner que seriam adotados no ato final de Ultimato.
Ao longo do filme de 2017, Whedon também opta por cortar as histórias do Ciborgue e diminuir a do Flash, vitais para o ato final do Liga da Justiça de Zack Snyder. Nele, o Flash, assim como o Homem de Ferro, busca atingir seu limite para salvar o Ciborgue, que está se sacrificando pela humanidade contra o Lobo da Estepe, igual ao Homem de Ferro no filme dos irmãos Russo contra Thanos.
Whedon tira a história do Ciborgue para torná-lo um personagem sem importância, quando já havia um bastante similar na Marvel, com muito sucesso e que, dois anos depois, se sacrifica pelos Vingadores. Principalmente quando ele precisa lidar com a Manopla do Infinito, assim como o Ciborgue lida com as Caixas Maternas. Manopla que em Ultimato quase mata, numa das sequências anteriores, o poderoso Hulk. Cada corte de Whedon interfere não apenas na visão do Liga da Justiça original de Snyder, como é revertido como ponto positivo e peça surpreendente no filme dos super-heróis da Marvel. O Flash jovem e entusiasmado em contribuir com a equipe também funciona como peça emotiva e diálogo com o Superman de 1978, com sua generosidade em tentar salvar o Ciborgue, tentando retroceder no tempo. O tempo que é vital para toda a narrativa de Ultimato, quando os personagens devem viajar no tempo, a fim de conseguir encontrar o ponto inicial em que surgiu cada Joia do Infinito. Sabe-se o quanto história de HQs podem se assemelhar, mas o roteiro de Chris Terrio para Liga da Justiça de Zack Snyder é um verdadeiro tour de force para todos os elementos que não podem faltar num filme de super-heróis.

Outro detalhe envolvendo o Ciborgue é que na versão de Whedon sua ligação com o pai, Silas Stone, é praticamente eliminada. O pai não frequenta os jogos de futebol americano do qual o filho participa, por estar sempre concentrado na ciência. Seu arco o aproxima novamente do Homem de Ferro de Tony Stark. Em Liga da Justiça de Zack Snyder, Silas quer que o filho descubra seus poderes e permite à Liga entrar na nave de Zod, para ressuscitar Superman. Ao final, quando tenta escapar com uma das Caixas Maternas, fugindo do Lobo da Estepe, ele se sacrifica em frente ao filho. Em Ultimato, temos o encontro de Tony Stark com seu pai, Howard, ainda jovem e antes de ele nascer, na sede da SHIELD, em 1970, o que antecede o sacrifício que ele, como Homem de Ferro, faz pela equipe contra Thanos, como se fosse um acerto de contas com seu passado.

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No arco da volta do Superman em Liga da Justiça de Zack Snyder, para o qual Whedon contribuiu com refilmagens desnecessárias, ele também abstrai duas cenas que dialogam diretamente com O homem de aço e ajudam a tornar essa volta à vida do super-herói mais completa, como se um círculo se completasse. Uma é quando Clark Kent olha pela janela de sua casa em Smalville, ao lado de Lois, o balanço onde brincava quando criança. Outra é quando no milharal brinca com um borboleta, da mesma cor de uma que aparecia numa vidraça numa das imagens de sua infância em O homem de aço. Possivelmente, Whedon e os produtores responsáveis pelo corte do filme que foi aos cinemas devem ter imaginado que eram cenas supérfluas e sem significado, colocadas por Snyder sem nenhum sentido especial ou de ligação com seu primeiro filme sobre Superman.

Finalmente, na batalha final, quando se vê atacado pela nave de Batman, o Lobo da Estepe manda os parademônios saírem para o confronto, dialogando com uma das imagens da multiplicação do Doutor Estranho em Guerra infinita. Essas imagens, como as que se refletem também em Thor: Ragnarok, lidam com uma iconografia muito próxima daquela que Snyder apresenta em 300 e Sucker Punch, uma influência de deuses do Olimpo. Whedon talvez esqueça da versão de Pozharnov de Snyder, na qual se dá esses acontecimentos, porque considerava estar em Sokovia de Era de Ultron, substituindo o drama do ciborgue pelo de uma família que estaria morando dentro de um centro radioativo.

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Interessante como em 2017 a DC/Warner queria um produto de 2012 de Joss Whedon, quando Snyder tinha entregue na versão completa algo que rivalizaria e anteciparia elementos de Ultimato, de dois anos depois. Pode-se também avaliar que em Liga da Justiça de Zack Snyder o Ciborgue tem premonições do que acontecerá a seus companheiros, assim como Homem de Ferro em Vingadores – Era de Ultron, e Whedon removeu essas cenas inseridas por Snyder.

Nelas, Ciborgue vê Superman segurando Lois morta, enquanto Darkseid o ameaça, assim como Diana Prince/Mulher-Maravilha sendo velada numa pira de fogo. O epílogo de Liga da Justiça de Zack Snyder também traz o Flash com o mesmo visual que aparece após a sequência do Knightmare dizendo que Lois é a chave. Mas Whedon, quando fez Era de Ultron, já tinha como referência no cinema o próprio O homem de aço, em que o Superman tinha imagens assustadoras sobre ele em cima de ossos terráqueos, com a terra destruída pela passagem de Zod (antes de Snyder ceder à cena de destruição de Metropolis, que remete a Os vingadores).

Além de a fazenda da família do Gavião Arqueiro, onde os Vingadores se escondem em Era de Ultron, lembrar muito a casa do Superman em Smalville em O homem de aço.

Chama a atenção como o tom e a construção de vários personagens de Liga da Justiça de Zack Snyder – um filme que existia em 2017, mas não finalizado – se reproduziriam em Vingadores – Ultimato de forma direta ou indireta. Whedon teria feito essas mudanças por, a princípio, uma escolha criativa pessoal ou tomadas em conjunto com a Warner. O resultado foi o desaparecimento do traço épico e eliminação de possíveis cliffhangers para continuações. Sabe-se que se o filme fosse um sucesso sua sequência seria lançada talvez num dos anos dos Vingadores subsequentes. Comentários indicam que Whedon tinha várias ressalvas ao filme de Zack Snyder. Matt Goldberg, da Collider, teria ouvido de pessoas dos bastidores que ele era inassistível. O que se percebe, depois de ver Liga da Justiça de Zack Snyder, é que, de forma curiosa, Ultimato não teria nenhuma contrariedade ao estilo que Zack Snyder teria empregado na versão original de Liga da Justiça: a mesma melancolia inicial, o Thor/Aquaman como habitantes de um vilarejo na costa e batalhas ferozes contra um vilão com machado implacável, entre outros elementos vistos ao longo deste artigo. Os mesmos elementos que teriam feito o filme de Snyder fracassar, segundo quem tomava a decisão na DC/Warner à época, se tivesse sido lançado de forma completa ou pelo menos na sua versão de 219 minutos em 2017. Uma grande curiosidade para o cinema. Quase como uma provocação a Whedon, Snyder congela a Liga da Justiça antes da batalha contra o Lobo da Estepe, como Whedon fizera com os Vingadores no início de Era de Ultron. Esta sequência já podia estar no corte original de Snyder, mas acho que foi um acréscimo aqui. Fala-se que Snyder nunca viu a versão finalizada por Whedon para Liga da Justiça, aconselhado, entre outros, por Christopher Nolan. Eu cogito que ele tenha visto. Hoje, finalmente pode-se dizer que finalmente todos podemos ver Liga da Justiça de Zack Snyder e o quanto ele foi alterado, subvertido e prejudicado por Joss Whedon.

As ondas (2019)

Por André Dick

A influência do cinema de Terrence Malick é evidente desde o início da década passada, com A árvore da vida. Em seguida, Amor pleno e Cavaleiro de copas foram projetos que intensificaram a estética do ganhador da Palma de Ouro em Cannes em 2011. Seria natural que esse estilo se expandisse para outros cineastas, e Trey Edward Shults o admite desde o seu terror Ao cair da noite. No entanto, foi em As ondas que ele realmente seguiu os passos de Malick na captura de imagens, mais especificamente De canção em canção, mesmo que filtrado já pelo olhar de Barry Jenkins em Moonlight, vencedor do Oscar em 2017, não sem adaptar a um estilo particular.
O filme começa mostrando Tyler Williams (Kelvin Harrison Jr.), que se destaca em luta greco-romana em sua escola, e com isso pode se candidatar a bolsas de estudos para a universidade. Ele mora com seu pai Ronald (Sterling K. Brown) e sua madrasta Catherine (Renée Elise Goldsberry), além de sua irmã Emily (Taylor Russell), numa casa luxuosa do sul da Flórida. Também tem um namoro sólido com Alexis (Alexa Demie).

Acontece um problema: Tyler machuca seu ombro e não conta para a família, prosseguindo nos torneios, o que o prejudica. Como grita seu treinador no vestiário, ele é uma “máquina jovem” e sua autocobrança é visível. As exigências do pai para que ele seja o melhor no seu esporte também parecem pedir demais dele. Ao mesmo tempo, sua namorada lhe conta que está grávida, deixando-o inseguro quanto a ter um filho não planejado e prestes a ingressar na universidade. As ondas é um filme bastante sensorial desde o seu início, quando faz a ligação do espectador com o mundo de Tyler, com rotações de câmera evocando um universo agitado. Também é lírico ao mostrar imagens do seu pai na construção de uma obra e quando ele corre num pôr do sol embaixo de viadutos. A resolução das imagens é tátil como nos filmes de Malick.
A partir da segunda metade, a narrativa se concentra na irmã de Tyler, Emily, que se aproxima de um companheiro da equipe dele,  Luke (Lucas Hedges). A primeira abordagem dele, convidando-a para lanchar perto da escola, é uma aula de contenção e sensibilidade sobre a aproximação de dois jovens que não se conhecem.

Schults faz a ligação entre os personagens de maneira interessante, com conversas sobre a família e o tratamento dado pelas pessoas à família de Emily pela internet. Enquanto Tyler é o jovem com propensão ao caos, a irmã representa a faceta tranquila. Enquanto vemos na primeira parte ele buscando confronto diante das exigências, ela tenta apenas contornar situações delicadas – e perdoar aquilo que está a seu alcance.
As ondas se movimenta neste fluxo que cria uma analogia e diferenciação entre os dois, com uma fluidez que vai da fotografia de Drew Daniels até a trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross. De certo modo, As ondas provoca a sua substância por meio de um estilo às vezes extremado de cores e uso de filtros, principalmente na sequência em que há uma opressão do personagem Tyler pela polícia – e as sirenes conduzem essa movimentação. Esse estilo visual parece dialogar,com aquele de Paul Thomas Anderson em Embriagado de amor, quando usa cores na transição de cenas. A segunda parte do filme é mais natural, com paisagens da Flórida apresentadas de maneira mais melancólica, noturnas, com um brilho distinto, e a rotina tranquila de Emily vivendo uma espécie de luto com o acontecimento que encerra a primeira parte.

Schults traz algumas das melhores atuações: Halrrison, que fez Luce, é muito exitoso como Terry, e seu pai é um Sterling K. Brown em grande momento. Ainda assim, parece ser Russell o esteio para As ondas chegar ao autoperdão e à aceitação dos erros do próximo no terceiro ato, em bom dueto com Hedges. É neste ponto que o filme aceita uma espécie de discurso religioso, como aquele ouvido na igreja que a família frequenta, sobre o perdão a pessoas principalmente. Ele não se baseia, porém, num discurso: sua empatia com o espectador acontece pela humanidade das situações e a delicadeza de algumas cenas do terceiro ato, quando pai e filha conversam à beira de um lago, que transcendem qualquer expectativa depositada no roteiro. Um elo entre as gerações é produzido pela sensação de que se deve reparar o quanto antes sentimentos dispersos para que eles não se reproduzam infinitamente e não sejam acentuados pelo indivíduo de modo a estagná-lo no tempo. Por isso, As ondas se mostra uma obra ao mesmo tempo contida e emancipadora de um sentimento expansivo, direcionado ao outro como poucas.

Waves, EUA, 2019 Diretor: Trey Edward Shult Elenco: Kelvin Harrison Jr., Lucas Hedges, Taylor Russell, Alexa Demie, Renée Elise Goldsberry, Sterling K. Brown Roteiro: Trey Edward Shults Fotografia: Drew Daniels Trilha Sonora:  Trent Reznor e Atticus Ross  Produção: Kevin Turen, Jessica Row, Trey Edward Shults  Duração: 135 min. Estúdio: Guy Grand Productions, JW Films Distribuidora: A24

Os 7 de Chicago (2020)

Por André Dick

Aaron Sorkin ficou mais conhecido como roteirista de Questão de honra nos anos 90 e de dois ótimos projetos sobre competição, na indústria da informática, em A rede social e Steve Jobs, e do mundo esportivo, em O homem que mudou o jogo, além da própria política, na série de TV The west wing. Criador de diálogos ágeis e, apesar de expositivos, eficazes, ele estreou há alguns anos na direção com A grande jogada, no qual Jessica Chastain desempenhava o papel de uma líder de apostas. Ela e Idris Elba conseguiam sustentar uma narrativa recheada de subtramas e muitos personagens.
Agora, com Os 7 de Chicago, Sorkin volta suas baterias para a cena política, mais exatamente os atos antiguerra ocorridos em Chicago em agosto de 1968 durante a Convenção Nacional Democrata.  Ele tenta se restringir, no entanto, ao julgamento de algumas personalidades envolvidas neste acontecimento

Tom Hayden (Eddie Redmayne) e Rennie Davis (Alex Sharp), integrantes da tudents for a Democratic Society (SDS); David Dellinger (John Carroll Lynch); John Froines (Danny Flaherty) e Lee Weiner (Noah Robbins), que não parecem saber exatamente o que fazem envolvidos no processo; Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen) e Jerry Rubin (Jeremy Strong), membros do Partido Internacional da Juventude (Yippies); e oo líder dos Panteras Negras Bobby Seale (Yahya Abdul-Mateen II)
Julgados por Julius Hoffman (Frank Langella), um homem cujas intenções não estão muito claras, Sorkin desenha a situação como fez em Questão de  honra: o dentro e fora do tribunal se coordenam de modo autêntica e sinceramente atraente, com os personagens nunca chamando atenção para si mesmos e sim para a trama.

Quando as figuras a serem julgadas chegam ao tribunal, já sabemos que o acusador será Richard Schulz, que começa o filme se reunindo com o novo Procurador-Geral John Mitchell (John Doman ), nomeado por Richard Nixon, ao lado de Thomas Foran (JC MacKenzie). Gorodon-Levitt é um ator propício para este tipo de embate, com sua tranquilidade e descompromisso, mas aqui ele funciona menos do que poderia, pelo parco roteiro que recebe. Mais eficiente é Mark Rylance como William Kunstler, o que faz a defesa dos sete acusados, mas se nega a defender Seale, que não pode ser representado pelo advogado que quer como gostaria. Rylance tem aqui uma atuação que seria merecedora de um Oscar, ao contrário daquela pelo qual o recebeu, em Ponte dos espiões
Com ambientação de época notável e alguns registros misturados com cenas documentadas (ou seria um efeito de JFK, de Oliver Stone?), Os 7 de Chicago vai se embrenhando na vida dessas figuras. A principal talvez seja a de Abbie Hoffmann, feito com rara eficácia por Sacha Baron Cohen, em sua melhor participação num filme desde A invenção de Hugo Cabret. No papel de um homem com ideais revolucionários, ele não sucumbe demais ao romantismo de suas reflexões, nem adere e a uma postura autocomplacente. Ele tem certo embate com :Tom, feito com talento por Eddie Redmayne. Alguns personagens são mais assessórios da trama de Sorkin, que vai entre idas e vindas nos mesmos moldes de A rede social.

Mas o filme, de qualquer modo, não parece ser tão profundo quanto o seu material de fundo subentende: ele se dispersa em alguns pontos básicos, não desenvolve outros, nem cria uma tensão necessária para que o terceiro ato se mostre impactante o suficiente. Sorkin ainda tateia uma linguagem como diretor. Ainda assim, ele nunca torna os personagens excessivamente facilitados para o paladar do espectador, como fez Spielberg em seu The Post (e o qual seria o diretor de Os 7 de Chicago) que reúne, de certo modo, uma trama política parecida com esta na sua tentativa de mesclar cinema e política. É muito difícil traçar paralelos entre épocas diferentes, embora o filme force isso, como The Post, pois cada período da história tem suas próprias delimitações e desejos, mesmo que as ideias pareçam semelhantes. Nesse sentido, Os 7 de Chicago não é justamente o lugar mais adequado para se ter uma referência do que ocorre hoje em dia. O mundo se transforma em cada atitude, mas elas não são necessariamente iguais. Algumas atitudes e o final são tão inautênticos que fica difícil avaliar onde começa a cinematografia e onde acaba a exposição dos diálogos fascinantes de Sorkin, É quando, enfim, o discurso se estabelece sobre a pretensão do filme e quando Sorkin parece querer convencer o espectador a adotar uma determinada compreensão. Quando foge disso, é cinema de alta qualidade, com atuações que conseguem fazer a trama funcionar de modo exemplar.

The trial of the Chicago 7, EUA, 2020 Diretor: Aaron Sorkin Roteiro: Aaron Sorkin Elenco: Mark Rylance, Eddie Redmayne,  Yahya Abdul-Mateen II, Sacha Baron Cohen, Daniel Flaherty, Joseph Gordon-Levitt, Michael Keaton, Frank Langella, John Carroll Lynch, Noah Robbins, Alex Sharp, Jeremy Strong Fotografia: Phedon Papamichael Trilha Sonora: Daniel Pemberton Produção: Stuart M. Besser, Matt Jackson, Marc Platt, Tyler Thompson Duração: 130 min. Estúdio: Paramount Pictures,  DreamWorks Pictures, Cross Creek Pictures, Marc Platt Productions Distribuidora: Netflix

A visita (2015)

Por André Dick

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Depois de ser muito criticado por A dama na água, O último mestre do ar e Antes da terra, M. Night Shyamalan voltou ao gênero em que se consagrou, com A visita. Enquanto peças como Sinais e Corpo fechado são surpreendentemente valorizadas, Shyamalan parece ter mais acerto em obras consideradas menores, como A vila e Fim dos tempos. Este A visita é uma obra, digamos, menor, feito em estilo found footage.
Levando em conta que não aprecio muitos exemplares de found footage, A visita mostra como o diretor tem talento em filmar, pois, com exceção de poucos momentos, não percebemos que se trata de um filme deste estilo. É uma fotografia, a meu ver, belíssima – assinada por Mayse Alberti (que remete sobretudo à de O iluminado).
Shyamalan acompanha a visita de um casal de irmãos,  Rebecca (Olivia DeJonge) e Tyler (Ed Oxenbould) aos avós, John (Peter McRobbie) e Dora (Deanna Dunagan), enquanto a mãe, Paula (Kathryn Hahn),  partirá com seu namorado para uma viagem de cruzeiro. Sua mãe fugiu de casa cedo e nunca entrou em contato depois com seus pais; dar espaço para que seus filhos possam conhecer os avós parece um pedido de reconciliação. Recebido na estação pelos avós, Rebecca e Tyler partem logo para uma casa distanciada de tudo. Os irmãos vivem filmando todas as situações e pretendem fazer um documentário sobre os avôs, tentando solucionar dívidas sentimentais da família.

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O que encontram no lugar é, a princípio, afeto, acompanhado de algumas ordens, como a de não poderem sair do quarto depois das 9h30 da noite, pois os avós já estarão descansando. A questão é que tanto Rebecca quanto Tyler não estão dispostos a seguir as regras e logo estão visitando lugares que não deveriam. A curiosidade sempre foi um dos conceitos da obra de Shyamalan, assim como a de crianças envolvidas com perigos (basta vermos O sexto sentido e Sinais). Ao mesmo tempo, Shyamalan visualiza sempre a criança como alguém solitário, a exemplo de em O último mestre do ar e Antes da terra, e em A visita não é diferente: por que essas crianças foram deixadas pela mãe a irem para um lugar desconhecido, mesmo que próximo, já que a mãe não os vê seus pais há anos? Como pode ter a confiança de que cuidarão de seus filhos? São questões que não prejudicam a narrativa pelo talento em direcionar tudo a pequenas reviravoltas e surpresas capazes de atrair mesmo o espectador mais desatento.  A atuação de Kathryn Hahn contribui para essa sensação de descompromisso diante do surpreendente, porém são os passeios pela casa e pelos arredores que se assemelham a uma fábula de terror moderno. O comportamento dos irmãos é perfeitamente adequado dentro de cada compasso exigido pela narrativa.

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Nada é muito explicado e há buracos no roteiro, mas A visita fornece um clima interessante de suspense e o casal de irmãos é interpretado por bons atores, além de se fazer bom uso da metalinguagem e referências bem-humoradas a outros filmes do gênero. Especialmente Oxelboud, revelado em Alexandre e o dia terrível, horrível, espantoso e horroroso, é um ator muito convincente. Também é surpreendente a atuação do casal de idosos e a atmosfera que Shyamalan vai criando. Em certo momento, é como se fosse uma fábula às avessas, no qual o final não necessariamente pode ser uma revelação singela e redentora para os personagens. Isso já transparecia no subestimado A vila e ganhava contornos inequívocos em A dama na água e Fim dos tempos. Pode-se entender que é um filme que exige simpatia pelo modo como foi filmado, mas Shyamalan é um dos poucos cineastas talentosos em extrair medo de lugares-comuns, de simples gestos ou silêncios dos personagens.
A maneira como enquadra os personagens também dá espaço para um suspense que acaba por contaminar o espectador, além de seu talento em dar cores aos ambientes e aos figurinos (o casaco verde do menino, as luzes dos abajures). Apenas se lamenta que o final seja pouco elaborado, certamente o mais fraco da carreira de Shyamalan: a narrativa merecia mais. De qualquer modo, a influência de Alfred Hitchcock e de O iluminado, de Kubrick, marcam presença durante toda a narrativa, fazendo com que o pano de fundo sempre deixe espaço para a dúvida do que está acontecendo. São aprimoradas algumas técnicas exibidas em Fim dos tempos, na composição das imagens, por vezes dispersas, por vezes simétricas, ocasionando um estranho conflito dentro do mesmo enquadramento.

The visit, EUA, 2015 Diretor: M. Night Shyamalan Elenco: Olivia DeJonge, Ed Oxenbould, Deanna Dunagan, Peter McRobbie, Kathryn Hahn Roteiro: M. Night Shyamalan Fotografia: Maryse Alberti Produção: M. Night Shyamalan, Jason Blum e Marc Bienstock Duração: 94 min. Estúdio: Blinding Edge Pictures, Blumhouse Productions Distribuidora: Universal Pictures

O último mestre do ar (2010)

Por André Dick

A produção mais polêmica do início da década passada possivelmente tenha sido O último mestre do ar. Baseado numa animação conhecida da Nicklodeon, ele foi adaptado por M. Nioht Shyamalan, que já vinha de uma sequência de obras criticadas, Fim dos tempos e A dama na água, e, muito em razão do orçamento de seu filme, teve uma bilheteria longe do esperado. Recentemente circulou um vídeo de 2015 em que  Dev Patel, pedia desculpas a alguns fãs pela existência dele.
Bem, é verdade que Shyamalan nunca regressou a este universo por causa da soma de problemas. Mas está longe de ser um desastre – pelo contrário, dentro de sua abordagem é um dos filmes equilibrados a tratar de uma influência espiritual no cinema. Ele lida de maneira competente com a direção de arte, com o figurino (bem trabalhado) e os efeitos especiais (da Industrial Light & Magic, de George Lucas).

Basicamente, é uma adaptação do personagem da Nicklodeon, um menino, Aang (Noah Ringer), que está num iceberg e é libertado por Sokka (Jacjson Rathbone) e sua irmã Katar (Nicola Peltz), que pertencem à Tribo da Água do Sul. Podendo ser o Avatar, ou o último mestre do ar, Aang tem um bisonte voador, Appa, que pode levar o espectador a se lembrar do cão gigante voador de A história sem fim e pretende impedir o crescimento da opressão da Nação do Fogo sobre as outras três nações, do Ar, Terra e Água.
O príncipe da Nação do Fogo, Zuko (Patel), identifica que a libertação de Aang aconteceu e vai atrás para que os moradores da Água do Sul o entreguem. No entanto, Aang consegue escapar com seus novos amigos montado no Appa, para o Templo do Ar do Sul – onde vai se encontrar com seu eu espiritual, seu modo Avatar. Numa vila do Reino da Terra, o menino diz a Katara e Sokka que só domina o elemento do ar e precisa dominar os outros – e pretende ir para a Tribo da Água do Norte, onde os mestres podem lhe ensinar a lidar com a água. Em meio à sua jornada, Aang é traído e precisa enfrentar o comandante dos arqueiros da Nação do Fogo, Zhao (Cliff Curtis).

O roteiro de Shyamalan. baseado nos personagens de Michael Dante DiMartino e Bryan Konietzko, encadeia essa história com certa antilinearidade, dispondo as sequências como em camadas separadas, interligadas apenas pelos personagens e por suas sensações. É como se eles estivessem desprendidos de uma real aventura, no entanto isso não evita que o filme tenha exatamente um espírito de humanidade, que alcança todos os personagens. Há uma certa paz e tranquilidade na abordagem que alcança um sentimento de busca pela espiritualidade, que é do próprio personagem, interpretado com perspicácia por Ringer, que depois só atuaria em Cowboys & aliens. Há uma certa influência de O pequeno Buda, de Bernardo Bertolucci, em algumas cenas de meditação, além de estabelecer um contato com fantasias dos anos 80 na projeção de montanhas gélidas, como em Willow, e navios em alto-mar, remetendo a Troia. Com a trilha sonora de James Newton Howard e a fotografia de Andrew Lesnie, que trabalharam com Peter Jackson em O senhor dos anéis e King Kong, O último mestre do ar se constrói tecnicamente de maneira muito interessante, com grandes cenários e uma sensação de grandiosidade. Fala-se que a narrativa teria sido encurtada em meia hora pela Paramount e talvez em alguns momentos haja sobressaltos desnecessários, no entanto quando há o enfrentamento final tudo parece ter se encaminhado para que ocorresse de maneira interessante.

É Aang o responsável por dar a chave de interesse a O último mestre do ar, com um misto entre sabedoria e humildade, contrapondo-se ao vilão feito por Patel com um certo ar soturno que funciona de maneira geral, em parceria, algumas vezes, com Curtis. Shyamalan também consegue situar o filme de maneira geográfica, expondo o espectador a um universo fantasioso com diversas localidades, sem nunca lotar as cenas de ação com peso demais, até o terço final com uma ótima variedade de imagens envolvendo a água e que transcorre dentro de um plano mesmo poético e contrário muitas vezes à intenção da animação – talvez sua maior crítica. Shyamalan, como em toda sua obra, cerca O último mestre do ar de elementos dos seus demais projetos, principalmente na construção do personagem central, com um figurino que remete à jovem cega de A vila ou ao segurança feito por Bruce Willis em Corpo fechado. Shyamalan também tenta dialogar com a fantasia de filmes de Spielberg e Lucas, tornando a sequência final em algo mais épico e imprevisto do que o restante da trama, no entanto sem deslizar as cenas para um blockbuster genérico.

The last airbender, EUA, 2010 Diretor: M. Night Shyamalan Elenco: Noah Ringer, Dev Patel, Nicola Peltz, Jackson Rathbone, Shaun Toub, Aasif Mandvi, Cliff Curtis Roteiro: M. Night Shyamalan Fotografia: Andrew Lesnie Trilha Sonora: James Newton Howard Produção: M. Night Shyamalan, Sam Mercer, Frank Marshall Duração: 103 min. Estúdio: Nickelodeon Movies, Blinding Edge Pictures, The Kennedy/Marshall Company Distribuidora: Paramount Pictures

Cisne negro (2010)

Por André Dick

No final dos anos 90, Darren Aronofsky foi uma revelação do cinema independente com o experimental Pi, seguido por Réquiem para um sonho, um dos melhores momentos de Jared Leto. Depois do grande sucesso de Fonte da vida e O lutador (este indicado ao Oscar de melhor filme), Aronofsky faria sua obra talvez mais conhecida e bem-sucedida até agora em sua filmografia: Cisne negro.  Nathalie Portman interpreta Nina, uma bailarina que quer estrelar “O lago dos cisnes”, no entanto para isso precisa enfrentar alguns percalços: o professor, Thomas Leroy (Vincent Cassel), que não deseja escolhê-la, por considerar que ela não conseguirá se dividir entre os dois cisnes (o branco e o negro) exigidos para a encenação; a amiga que parece querer seu lugar, Lily (Mila Kunis); e ainda a sua mãe, Erica (a excelente Barbara Hershey), que não foi a bailarina que gostaria de ter sido e exige dela um comportamento exemplar no que se refere a ensaios exaustivos – mesmo que ela machuque os pés.
Num clima de conto de fadas de terror, relembrando momentos de Pi e Réquiem para um sonho,  o diretor mostra talento na condução das cenas, alternando cenas que parecem reais com outras surrealistas, mas sempre trabalhando com a psicologia das personagens, com o objetivo de revelar que o mundo da dança pode enlouquecer – e de fato enlouquece essa personagem.
O diretor da adaptação deseja extrair o que não vê em Nina: o cisne negro, e Aronofsky quer dar essa amplitude por meio de reflexos de espelhos, e na imaginaçsurão dela luzes são desligadas antes de se terminar o ensaio para prejudicar seu ensaio. Esses reflexos podem estar presentes em frente ao espelho de uma festa, ou no metrô, ou mesmo na passagem, por uma passarela, ao lado de alguém que parece uma réplica.

Ao  mesmo tempo, a fotografia de Matthew Libatique mostra uma Nova York tenebrosa, sempre acompanhando os passos de Nina, seja à sua frente, seja pelas costas, revelando a opressão do mundo em que ela se insere (difícil imaginar outro desconforto maior do que a escolha de Thomas de suas bailarinas. Nina não conhece sua sexualidade e, para Aronofsky, isso a impede de desenvolver seu lado mais obscuro. Trata-se de uma narrativa que busca a transição da adolescência para a vida adulta, o que, para alguns, significa a morte – e o sexo, o prazer, está sempre associado a algo mórbido ou que pode afastar da visão idílica que se tenta ter das coisas. Não se trata exatamente de uma abordagem sutil, e Aronofsky não a tem como objetivo. Sua meta é, por meio da figura da bailarina, suscitar uma coleção de metáforas.
E como a mulher, aqui, é vista de forma infantil: Nina substitui a bailarina Beth (Winona Ryder), mas é como se uma roubasse o doce da outra. A cena da festa, em que Thomas apresenta Nina a todos os convidados para o novo espetáculo da companhia, mostra esta tentativa de exercer um poder que, na verdade, inexiste. Não há densidade para elas, e a dança é apenas uma maneira de realizar as fantasias da caixinha de música encostada na cama. Na saída do evento, Nina precisa enfrentar Beth (ao lado de uma estátua, que Aronofsky deseja transformar em movimento).

Ela também precisa enfrentar a mãe, que lhe traz um bolo e, repreendida pelo fato de que o doce pode engordar, fica perturbada – certamente a figura mais caricata, contudo pode ser também proposital –, e mais adiante precisa sair à noite para uma boate. Quebrar regras, aqui, é um clichê, e por isso cada cena soa como uma ópera desencontrada de realidade.
Mila Kunis (em momento raro, indicada a melhor atriz coadjuvante) representa esta passagem para um universo desconhecido – ela poderia representar melhor o cisne negro, talvez. Ela também é apreciada por Thomas por sua dança espontânea e não calculada, segundo ele, como a de Nina (um de seus primeiros conselhos é que Nina descubra o próprio corpo, mas o faz com a mesma falta de sutileza de alguém que oprime). Esta, na contramão de sua própria personalidade, precisa, a fim de interpretar o cisne negro, cobri-la com outra personalidade, fantasiosa e capaz de colocá-la num ponto de enfrentamento com a realidade à sua volta – e surge, em sua pele, algo que lembra não mais um humano. No entanto não apenas Nina. Thomas também não parece tão humano (e num filme em que Portman certamente brilha com intensidade, a primeira vez realmente depois de O profissional, e V de vingança, Cassel não fica para trás, com uma composição excelente da petulância contida).

O diretor está interessado por esse universo da dança como poucos antes no cinema (obras sobre dança costumam ser apenas dramáticos ou fantasiosos), fazendo um bom trabalho casado de fotografia, direção de arte e efeitos sonoros, pois a sonoridade quer marcar presença mais do que a trilha sonora de Clint Mansell. E os efeitos, muitas vezes, são assustadores.
Diante disso, estamos também lançados num filme sem gênero demarcado. O que Cisne negro poderia ser? Um drama? Um suspense? Um terror? Certamente, um híbrido de todos esses elementos. E Cisne negro, com seu psicologismo falho e irregular, porém ainda interessante, ainda consegue ser um filme pop, ou seja, acessível, ao mesmo tempo que exerce um magnetismo próprio de cult movie.
Uma visita de Nina ao hospital, a fim de ver Beth, apresenta uma das sequências mais assustadoras da narrativa. Quando Nina percebe que pode ficar como Beth, só resta a ela fugir na noite. E, como bailarina, ela, na verdade, deseja ser uma boneca, então não há nada de anormal no fato de que ela pode, de alguma maneira, quebrar. O filme, com isso, trata também do receio da personagem em voltar a ser esquecida, em ficar isolada num hospital ou numa cama de quarto.

O que ela precisa fazer – e Aronofsky tenta conduzir – é escapar da trajetória linear que sua vida seguia até então, nem que para isso precise encarar uma semirrealidae, capaz de trazê-la cada vez mais para baixo (aonde ela é conduzida, em meio a luzes da discoteca ou dos ensaios, que acontecem entre subidas e descidas de longas escadarias).
Para isso, o diretor mostra fragmentos de narrativa, a revolta da personagem com a vida real, e desenhos se movimentado, algo digno de O iluminado. Nina não quer se entregar a seu outro lado – que pode representar um pesadelo –, entretanto o fato de não conseguir, ou seja, fracassar em seu intento, parece ser pior: toda a carga de repressão sexual poderia vir de uma vez só à tona, sufocando a personagem. Desse modo, ela fica num meio termo entre conseguir ou não sua libertação – o caminho para isso é tortuoso, mas, de algum modo, ainda neste cenário de pesadelo, mais confortador do que voltar atrás. É nisto que parece se concentrar Cisne negro: que se deve aguardar o acender das luzes e ver se a plumagem cobriu o que realmente faltava. 

Black swan, EUA, 2010 Diretor: Darren Aronofsky Elenco: Natalie Portman, Mila Kunis, Vincent Cassel, Barbara Hershey, Winona Ryder Roteiro: Mark Heyman, John McLaughlin, Andres Heinz Fotografia: Matthew Libatique Trilha Sonora: Clint Mansell Produção: Scott Franklin, Mike Medavoy, Arnold Messer, Brian Oliver Duração: 108 min. Distribuidora: Fox Film Estúdio: Phoenix Pictures / Fox Searchlight Pictures / Protozoa Pictures

100 melhores filmes da década 2010-2019

Por André Dick

O Cinematographe apresenta a seguir os 100 melhores filmes da década 2010-2019. Foi uma década com uma quantidade impressionante de ótimos filmes e selecioná-los não foi fácil: era possível fazer uma lista de 200 imprescindíveis. Alguns cineastas têm mais de um filme aqui, o que mostra o trabalho importante que eles apresentaram. Como todas as listas, as escolhas são pessoais. E as preferências tendem, às vezes, a mudar com o tempo. Alguns desses abaixo não estavam entre os principais das minhas listas de melhores de 2010 a 2019. Apenas numa revisão delas, pude separar melhor aqueles que, ao longo da década, foram se tornando mais destacáveis, em várias revisões, inclusive, enquanto outros a princípio mais relevantes foram perdendo um pouco a preferência. Por isso, há filmes mais ao final do ano de 2019; no caso, são ainda muito recentes e não tão vistos ou apreciados quanto os anteriores, embora muitos desse ano já tenham se tornado automaticamente marcantes. O objetivo principal é oferecer um panorama geral e que o leitor possa relembrar ou descobrir algumas dessas obras. É o modo como vejo as listas que contêm filmes dos quais gosto e não gosto. A lista foi publicada anteriormente no Twitter do Cinematographe (e agradeço a quem acompanhou sua publicação nesta plataforma) e os cartazes de cada um dos escolhidos está nesta página do Letterboxd. Agradeço a você por acompanhar o trabalho realizado aqui quase ao longo de toda a década passada, tendo o Cinematographe iniciado em 2012.

 

Uma vida oculta (2019)

Por André Dick

O cineasta Terrence Malick teve um hiato de vinte anos no cinema entre Cinzas no paraíso e Além da linha vermelha. A partir de 2011, mais exatamente depois do lançamento de A árvore da vida, ele se tornou um dos cineastas que mais lançou novas obras na década passada: Amor pleno, Cavaleiro de copas, Voyage of time e De canção em canção compuseram os novos momentos centrados no século XXI, mostrando casais em união ou em separação sob diferentes nuances. Embora esses filmes tenham sido recebidos com certa desconfiança, acredito que sejam, ao lado de A árvore da vida, o grande momento da carreira de Malick. Ele praticamente recriou, ao lado de Emmanuel Lubezki, a maneira de filmar e desenvolver uma narrativa no cinema contemporâneo, sempre com edições antilineares.

Embora seja mais linear do que os anteriores, Uma vida oculta partilha do mesmo estilo. Sua narrativa se localiza na Áustria, em 1939, na vila de St. Radegund. Nela, o camponês Franz Jägerstätter (August Diehl) vive com a esposa Franziska (Fani) (Valerie Pachner) ao lado dos filhos e de sua mãe (Karin Neuhäuser), numa espécie de paraíso sobre a terra, como acontecia em seu segundo filme, de 1978. Também vive com eles a cunhada, Resie (Maria Simon). Nisso, há brincadeiras com as crianças, aproveitando cada estação, enquanto trabalham no campo. O problema é quando a Segunda Guerra Mundial se aproxima com o domínio nazista de Hitler, e Franz é recrutado para treinamento. Extremamente religioso, ele frequenta a igreja, onde tenta se aconselhar com o padre Ferdinand Fürthauer (Tobias Moretti)  e tem discussões com o prefeito (Karl Markovics) sobre a verdadeira intenção do regime de Adolf Hitler. A questão mais grave, para ele, é ter de jurar lealdade ao ditador, que considera uma figura maléfica, ao contrário de muitos dos moradores de Radegund, quando passam a seguir os cumprimentos do nazismo. A palavra e o juramento estão em questão no filme de Malick mais do que em qualquer outro: como pode o indivíduo prestar lealdade a um regime que considera como o contrário do que acredita? Tudo é levado a um ponto extremo, para que o espectador possa raciocinar sobre as premissas de Franz.

Com uma trilha sonora emocional e discreta de James Newton Howard, principalmente a partitura para o casal central, e uma fotografia extraordinária de Jörg Widmer, substituindo Lubezki, mas selecionando algumas características dele (o movimento, o realismo da iluminação, os closes, a sensação de o espectador caminhar com os personagens), Uma vida oculta traz os mesmos elementos do restante da obra de Malick: trata-se de uma jornada de um sujeito tentando descobrir seu mais profundo sentimento, que pode lhe dar como resposta dúvidas que tem sobre a vida – ou simplesmente aumentá-las. É a mesma jornada dos personagens de filmes de época de Malick quanto nos contemporâneos, como o pesquisador feito por Ben Affleck em Amor pleno, ou o roteirista interpretado por Christian Bale em Cavaleiro de copas, ou os casais envolvidos com a música de De canção em canção. Com o acréscimo, aqui, de se tratar de uma história real e situada num momento especialmente trágico para a humanidade.

Se nos filmes mais recentes Malick focava a vida urbana no interior dos Estados Unidos, ou parte da vida rural, de modo passageiro, aqui ele lida com um universo de camponeses de maneira muito efetiva. O espectador parece se inserir no cenário montado por ele nas montanhas austríacas: tudo é arquitetado para que a atmosfera ganhe a tela de maneira abrangente. Os campos de trigo, as plantações, os animais (porcos, galinhas), os moinhos, a igreja do vilarejo e o carteiro que passa cruzando a vila desempenham uma noção fundamental para se entender a luta subjetiva desse homem. Em muitos momentos, Malick recupera uma espécie de cinema que parecia perdido, aquele, por exemplo, de A árvore dos tamancos ou de Os imigrantes, com uma condução do espectador para lugares inóspitos. Malick define a natureza, a rotina, o cotidiano como diametralmente oposto à ideia de guerra e seu caos e destruição. Isso se dá por meio de analogias de imagens e sua competência a colocar vozes de diálogos sobrepostas sobre cenas das quais já não fazem parte, construindo uma arquitetura delicada e humana, deslocando personagens de lugares nas mesmas conversas.

Mais uma vez, Malick coloca o casal como representação de um pedaço de paraíso na terra que pode ser afetado pelo mal, no caso Hitler. As atuações de Diehl e Pachner são notáveis. Diehl é curiosamente bastante conhecido por sua participação como um nazista que provoca uma confusão numa taverna em Bastardos inglórios, de Tarantino, no qual, diga-se de passagem, está também irretocável. Mesmo tendo poucos diálogos, eles conseguem, por meio do olhar e das ações, demonstrar uma grande e notável persuasão junto ao espectador. Todos os coadjuvantes (inclusive alguns atores que vão aparecendo ao longo da narrativa, a exemplo de Jürgen Prochnow e Bruno Ganz, em sua última obra) são nada menos do que excelentes. A temática religiosa de fundo se mostra de grande diálogo principalmente com Amor pleno, nas caminhadas de Franz com o padre da vila – naquele filme de 2012, o padre era interpretado por Javier Bardem. Também há um diálogo de Franz com um homem que faz pinturas religiosas, também ligado a A árvore da vida e a Amor pleno. Ele diz que sobrevive pintando o sofrimento sem saber o que é sofrer – é uma das linhas mais sensíveis de um filme de Malick e coloca a distinção entre teoria e prática do indivíduo. Mais do que em qualquer outro filme seu, a ideia de como as escolhas de um indivíduo afetam os demais ganha um grande espaço. E, em igual escala, como as crianças representam o futuro.

Por isso, Malick constitui uma obra à parte, na qual os filmes vão dialogando e se completando, talvez funcionando mais para o espectador que os conhece de antemão. Ainda assim, quem vai ao cinema sem conhecer o estilo de Malick se depara com uma obra em que a reconstituição de época é brilhante, desde o design de produção até o figurino, e tudo se encaixa dentro da montagem feita de forma proposital mais embaralhada. Essa montagem vai dando cadência às cenas passadas nas montanhas e aquelas em que Franz enfrenta os homens por causa do seu discurso. As paisagens a céu aberto contrastam com os muros e as celas da prisão. É a presença de uma força divina, a partir desse momento, como na obra em geral de Malick, que se manifesta nos cenários, assim como as narrações lembram confissões sobre a eternidade evocada pelos personagens por meio de suas ações.  A maneira como o diretor entrelaça o fim e o início traz uma comoção particular. Como toda a filmografia recente de Malick, Uma vida oculta é uma obra-prima, particularmente o melhor filme de 2019.

A hidden life, EUA/ALE, 2019 Diretor: Terrence Malick Elenco: August Diehl, Valerie Pachner, Matthias Schoenaerts, Tobias Moretti, Karl Markovics, Bruno Ganz, Jürgen Prochnow Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Jörg Widmer Trilha Sonora: James Newton Howard Produção: Elisabeth Bentley, Dario Bergesio, Grant Hill, Josh Jeter Duração: 174 min. Estúdio: Elizabeth Bay Productions, Aceway, Studio Babelsberg Distribuidora: Fox Searchlight Pictures

 

O preço da verdade (2019)

Por André Dick

Um diretor que investiu em filmes com caráter de denúncia é Steven Soderbergh. Embora tenha peças contra a indústria farmacêutica (Distúrbio, Terapia de risco) ou manipulação de contratos no esporte (High flying bird), talvez seu principal filme, nesse sentido, tenha sido aquele que foi lançado no mesmo ano de outro exemplar com essa característica, Traffic: o dramático e, ao mesmo tempo, bem-humorado Erin Brokovich, indicado ao Oscar de melhor filme em 2000, e ganhador do prêmio de melhor atriz (para Julia Roberts).
Ela desempenha com impressionante veracidade Erin Brokovich, uma mulher solteira, com filhos, que tenta descobrir como uma empresa está despejando dejetos tóxicos numa comunidade do interior dos Estados Unidos. Iniciando como secretária, torna-se uma assessora jurídica, tendo sempre desentendimentos engraçados com seu chefe (o ótimo Albert Finney).

Parece que o filme de Soderbergh, em suas aproximações e leves diferenças, é a premissa inspiradora de O preço da verdade, baseado também numa história verdadeira relatada no livro “The Lawyer Who Became DuPont’s Worst Nightmare”, de Nathaniel Rich. Desta vez, acompanhamos um advogado, Robert Bilott (Mark Ruffalo), funcionário daTaft Stettinius & Hollister, em Cincinnati, Ohio, que é procurado por um fazendeiro, Wilbur Tennant (Bill Camp), que mora na cidade de sua tia, Parkersburg, Virgínia Ocidental.
A cidadezinha está às voltas justamente com m problema na água: parece que uma empresa conhecida, DuPont, está derramando substâncias tóxicas nelas, afetando não apenas os moradores, como também os animais da fazenda de Tennant. Quando Robert vai até lá, descobre que quase duzentas vacas morreram devido a complicações de saúde, sem uma explicação evidente. A questão imposta é que o advogado trabalha justamente para empresas que infringem as leis ambientais – o que coloca sua guinada como uma matéria de filme de Hollywood.

O diretor Todd Haynes é muito conhecido por seu apuro visual. Suas obras têm um detalhado rebuscamento, a exemplo de Longe do paraíso, Carol e o recente e belíssimo Sem fôlego, com sua fotografia em preto e branco. Usando novamente o trabalho do diretor de fotografia Edward Lachman, seu colaborador de longa data, Haynes filma esse advogado num universo soturno e praticamente sem vida. Enquanto Erin Brokovich tinha uma temática tão pesada quanto em alguns momentos, era mais solar, O preço da verdade faz a atmosfera se abater sobre o espectador. Em Erin Brokovich, Soderbergh empregava seu estilo documental, o que ocorre mesmo em sua franquia Onze homens e um segredo, mas dava especial atenção à relação entre os personagens. Erin se envolve com um hippie, que passa a cuidar de seus filhos. A claridade dos filmes de Soderbergh parece real, destacando-se nesse um tom dos anos 70 (cores pastéis, horizontes e planícies típicas de filmes dessa década), enquanto o de Haynes, apesar de soturno e parecendo mais próximo da realidade, adquire um formato um pouco mais irrealista. O roteiro de Mario Correa e Matthew Michael Carnahan se desvencilha de muitos diálogos e aprofunda no trabalho dos personagens em sua caracterização visual, a maneira como se comportam diante de um desafio.

O personagem representado por Mark Ruffalo tem um casamento estável com Sarah (Anne Hathaway) e trabalha numa firma de advocacia conhecida, tendo à frente Tom Terp (Tim Robbins). Quando ele se desentende com o advogado advogado da DuPont Phil Donnelly (Victor Garber), um dos homens que têm conhecimento do que faz a indústria na cidade, tudo passa a desencadear uma investigação pessoal em meio a milhares de arquivos. Há um ponto de vista sem dúvida mais romantizado do que o que vemos em Erin Brokovich: o personagem de Ruffalo é visualizado mais como um herói que combate o sistema, ao contrário da personagem de Roberts, mais humana. Isso, de qualquer modo, não diminui o interesse em se saber para onde se mexem as peças de O preço da verdade, um filme consciente dos temas que trata – embora não os leve até seu limite polêmico. Além de Ruffalo atuar muito bem, Hathaway, Garber e Robbins, além de Bill Pullman mais ao final, como um advogado, são ótimos coadjuvantes, concedendo a seus papéis uma credibilidade insuspeita. São eles que tornam O preço da verdade realmente sólido.

Dark waters, EUA, 2019 Diretor: Todd Haynes Elenco: Mark Ruffalo, Anne Hathaway, Tim Robbins, Bill Camp, Victor Garber, Mare Winningham, Bill Pullman Roteiro:  Mario Correa e Matthew Michael Carnahan Fotografia:  Edward Lachman Trilha Sonora: Marcelo Zarvos Produção: Mark Ruffalo, Christine Vachon, Pamela Koffler Duração: 126 min. Estúdio: Killer Films, Amblin Partners Distribuidora  Focus Features