Resultados do Oscar 2013

Por André Dick

Django livre.Paisagem 2

A hora mais escura.Filme 6

Argo.Filme 7

Não se trata de dar importância extra à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, mas o Oscar costuma ser uma concentração interessante de produções de destaque, sobretudo nos últimos anos, em que parece ter se aberto mais para premiar estrangeiros. Por outro lado, ao mesmo tempo em que pode dar destaque a um filme merecedor, é capaz de esconder algumas obras que poderiam ser, por meio dele, conhecidas em melhor escala. Uma premiação que concedeu, nos últimos anos, o Oscar principal a filmes como Quem quer ser um milionário? e O discurso do rei também não pode exatamente ser vista como pontual. Este ano, o mesmo se repete – as indicações principais foram melhores do que o resultado delas (embora se estranhe com o fato de que, num ano cheio de opções, tenham sido indicados 9 e não 10 filmes). Um dos problemas, já de edições anteriores, é filmes concorrerem em várias categorias porque também são indicados a melhor filme, não necessariamente sendo os melhores em categorias técnicas. Isso acaba prejudicando uma maior variedade nas indicações, restrita a alguns poucos títulos. Fala-se na influência de Harvey Weinstein nas indicações de Django livre e O lado bom da vida, por exemplo, e isso vale sobretudo para o segundo, que não merecia ser indicado a todas as categorias principais. Enquanto Django recebeu dois Oscars (roteiro original e ator coadjuvante), justos, embora alguns concorrentes fossem melhores, O lado bom da vida conseguiu o prêmio de melhor atriz, bastante precipitado, para Jennifer Lawrence.
Premiou-se como melhor filme Argo, um filme com contexto político, mas na verdade uma homenagem à Hollywood dos anos 1970, que conseguiu, na última hora, não se envolver em polêmicas como A hora mais escura, um filme muito superior. Há admiradores do filme, e pode-se conferir isso pelo número de prêmios que recebeu. De qualquer modo, um ano em que a injustiça passa a ser a não indicação de Ben Affleck para melhor diretor – o que se percebeu no agradecimento final – oferece o escopo necessário para se saber que alguma coisa se perdeu. Ang Lee, apesar de não ser o melhor entre os concorrentes por este trabalho (o melhor era Haneke, de Amor, vencedor do Oscar de filme estrangeiro), como cineasta é muito melhor do que Affleck e As aventuras de Pi um filme superior a Argo. As aventuras de Pi saiu da premiação com 4 Oscars: além do de diretor, para trilha musical, efeitos visuais e fotografia. O caso se repetiu quando Lee ganhou Oscar por O segredo de Brokeback Mountain e perdeu o Oscar principal para Crash, em 2006 (vencedor, como Argo, de três Oscars apenas, naquela oportunidade). Lincoln recebeu 2 Oscars (melhor ator e melhor desenho de produção), assim como 007 – Operação Skyfall (melhor canção e edição de som, empatado, aqui, curiosamente, com A hora mais escura). O belo Os miseráveis – cujo conjunto é melhor do que as partes – conseguiu sair vencedor em três categorias: maquiagem, mixagem de som e atriz coadjuvante (Anne Hathaway), sem, no entanto, ser o melhor nessas categorias, o que não deixa de ser um feito. O belo Anna Karenina sai apenas com o Oscar de figurino.
Argo pode vir a ser reconhecido como uma referência, mas, a meu ver, será lembrado apenas como um dos filmes vencedores do Oscar que não mereceram o prêmio, quando outras obras concorrentes ou não concorrentes se sobressairão. Este, na verdade, é um dos elementos mais importantes do Oscar: ver o quanto a Academia passou perto, muitas vezes, de um acerto, e o quanto os espectadores, como o tempo, fizeram por bem colocar as coisas, afinal, em seu devido lugar, ajudando a reconhecer muitos outros filmes esquecidos.

* Não são comentadas as indicações de Documentários e das Animações, por não ter visto todos. Na categoria de Filme estrangeiro, apenas comento sobre os que vi, mas não qual seria o melhor, em minha opinião, justamente por não ter visto todos.

Os miseráveis.Oscar 2013

Amor.Casal

Lincoln 3

Melhor filme

A hora mais escura

Os miseráveis

O lado bom da vida

Indomável sonhadora

Amor
Argo

As aventuras de Pi

Lincoln

Django livre

Indomável sonhadora.Oscar 2

As aventuras de pi.Oscar 2

O lado bom da vida.Oscar 2

Alguns filmes foram ignorados (em todas as categorias ou apenas nas principais): Moonrise Kingdom, O mestre, Cloud Atlas, As vantagens de ser invisível, As sessões, Na estrada, Anna Karenina e O hobbit são melhores, mais completos, a meu ver, do que alguns indicados, como Lincoln, O lado bom da vida e, sobretudo, Argo e Indomável sonhadora (o mais fraco de todos). Embora Lincoln e O lado bom da vida tenham méritos evidentes, poderiam ter ficado nas indicações para elenco e técnicas (aqui no caso do filme de Spielberg). Em A hora mais escura, Bigelow se mostrou, pela primeira vez, o que falavam dela em alguns filmes anteriores. Não gostei de Guerra ao terror, mas este novo filme impressiona. Ela conseguiu fazer um filme sobre a perseguição da CIA a Osama bin Laden sem cair no patriotismo, pelo contrário, investigando o sistema utilizado e fazendo críticas (mesmo que discretas, pois seu enfoque se perderia) ao governo norte-americano. No entanto, não se costuma gostar desse tratamento nos Estados Unidos, a exemplo de Todos os homens do presidente, de Alan J. Pakula, em 1977, e JFK, de Oliver Stone, em 1992.
As diferenças entre Tony Mendez e a personagem Maya também parecem evidentes: enquanto o primeiro representa o herói de Hollywood, a segunda não pode aparecer, ou seja, precisa ficar na sombra, na escuridão da qual faz parte. Ver semelhanças de uma ode ao patriotismo (colocando, além disso, os canadenses como coadjuvantes da própria história), como acontece em Argo, também em A hora mais escura, parece-me inevitavelmente falho. Bigelow, dentro do campo em que transitou, mais delicado do que Argo, não se curvou a ideias políticas – tendo sido bastante criticada. A hora mais escura começou a perder quando iniciou a polêmica das cenas de tortura, o que trouxe à discussão parlamentares e o governo dos Estados Unidos.
A Academia nunca deseja se posicionar, portanto Argo entrou neste espaço deixado, passando-se por uma diversão ingênua (o que não deixa de ser, em parte, embora apresente os iranianos de forma mais unidimensional do que os árabes em A hora mais escura). Isso não repercutiu apenas na categoria de melhor filme e direção, mas na categoria de atriz. Chastain é uma atriz muito melhor do que Jennifer Lawrence, pelo menos no momento, entretanto interpreta uma agente politicamente incorreta. Desse modo, com toda a polêmica em torno do filme, ela nunca ganharia. Repercutiu também na categoria do roteiro de Boal, questionado por políticos, embora ele não fosse o melhor concorrente.
Lincoln também é um filme politicamente pesado, com vários diálogos específicos do campo, mas é mais interessante do que Argo. Django livre, mesmo com suas liberdades, é historicamente muito interessante.
Havia opções de filmes parecidos, como Os miseráveis e Anna Karenina, sobretudo pelo visual, optando-se por um no momento das indicações e das premiações; a pouca empatia da Academia em relação a Wes Anderson fez com que Moonrise Kingdom perdesse espaço para Indomável sonhadora. Tenho apreciação especial por Django livre, Os miseráveis e As aventuras de Pi, mas meus favoritos são A hora mais escura e o arrebatador Amor. São filmes, cada qual, memoráveis, seja na contenção dramática (em Amor), seja no suspense e no drama (A hora mais escura). O grande filme esquecido de 2012, a meu ver, é O mestre – embora Moonrise Kingdom tenha minha admiração especial –, com sua direção irretocável, fotografia e elenco primorosos. De qualquer modo, o cinema esteve representado nesta edição mais do que em alguns dos anteriores. E chama a atenção a metragem de alguns indicados: Lincoln (150 minutos), A hora mais escura (157), Os miseráveis (158) e Django livre (165), num ano que também teve O hobbit – Uma jornada inesperada (169), Batman – O cavaleiro das trevas ressurge (165) e Cloud Atlas (172), os dois últimos notórios esquecidos nas indicações. A parte técnica de ambos, especialmente, para além de suas qualidades gerais em outras categorias principais, deveria ter recebido várias indicações. O primeiro teve uma pressão contrária, desde a não indicação do segundo, e Cloud Atlas só não esteve em várias categorias por ter sido feito mais por europeus. Já O hobbit sofreu uma espécie de preconceito por ser a segunda franquia do mesmo universo e do mesmo diretor que ganhou tudo por O senhor dos anéis.

Escolhido: Argo

Argo.Filme 9

Deveria ganhar:

Dos indicados: A hora mais escura

A hora mais escura.Jessica Chastain.Oscar

Dos não indicados: O mestre

O mestre.Filme 6

Melhor Diretor

Steven Spielberg (Lincoln)
David O. Russell (O lado bom da vida)
Ang Lee (As aventuras de Pi)
Michael Haneke (Amor)
Benh Zeitlin (Indomável sonhadora)

Alguns dos melhores diretores do ano passado não estavam na lista: Kathryn Bigelow (A hora mais escura), Wes Anderson (Moonrise Kingdom), Paul Thomas Anderson (O mestre), Quentin Tarantino (Django livre), os irmãos Andy e Lana Wachawski e Tony Kwyer (Cloud Atlas), Stephen Chbosky (As vantagens de ser invisível), Walter Salles (Na estrada) e David Cronenberg (Cosmópolis). Benh Zeitlin não convence à frente de Indomável sonhadora, e David O. Russell e sua psiquiatria reconfortante é talentoso no manejo com os atores, um pouco menos no roteiro, e ainda assim não tão competente quanto estes citados. Ang Lee e Steven Spielberg confirmam o talento artesão que possuem, mas Lee se sai melhor na experimentação: seu As aventuras de Pi é um trabalho de sensibilidade, enquanto Lincoln não chega a ser uma exceção na carreira de Spielberg. Kathryn Bigelow é uma das explicações para A hora mais escura ser um filme tão impactante, mas talvez quem merecesse seria Michael Haneke. Sua direção em Amor é discreta e efetiva, conseguindo controlar de maneira irretocável dois atores veteranos e o cenário do apartamento em todos seus detalhes. No entanto, Lee ter saído vencedor não é absurdo.

Escolhido: Ang Lee (As aventuras de Pi)

As aventuras de Pi.Ang Lee

Deveria ganhar:

Dos indicados: Michael Haneke (Amor)

Amor.Diretor

Dos não indicados: Paul Thomas Anderson (O mestre)

O mestre.Diretor

Melhor ator

Daniel Day-Lewis (Lincoln)
Joaquin Phoenix (O mestre)
Bradley Cooper (O lado bom da vida)
Denzel Washington (O voo)
Hugh Jackman (Os miseráveis)

Joaquin Phoenix teve a melhor atuação do ano, como Freddie Quell, cheio de maneirismos corporais, seguido por Daniel Day-Lewis, o vencedor, segurando cada fala como se fosse implosiva. Difícil Phoenix repetir as atuações que mostrou em Johnny & June, Amantes e neste. Bradley Cooper mostrou-se também um bom ator, embora não sei se, também representando alguém com problemas psiquiátricos, Logan Lerman (de As vantagens de ser invisível), não tenha sido melhor, mesmo sendo mais jovem. Hugh Jackman está bem em Os miseráveis, embora, ao final, se veja que não tem a mesma intensidade do início e se desdobre em encobrir os saltos da montagem e acompanhar a maquiagem da velhice. Por sua vez, Denzel Washington está ótimo no subestimado O voo, de Robert Zemeckis, pelo menos melhor do que Cooper e Jackman. Não merecia ficar de fora. Notáveis as atuações, esquecidas em quase todas as premiações, de Suraj Sharma (As aventuras de Pi) e de Jean-Louis Trintignant (Amor). Não vi a atuação elogiada de Jack Black em Bernie. Por outro lado, John Hawkes encontra-se notável em As sessões; sua ausência foi incompreensível.

Escolhido: Daniel Day-Lewis (Lincoln)

Lincoln 2

Deveria ganhar:

Dos indicados: Joaquin Phoenix (O mestre)

O mestre.Joaquin Phoenix

Dos não indicados: John Hawkes (As sessões)

As sessões

Melhor atriz

Jennifer Lawrence (O lado bom da vida)
Quvenzhané Wallis (Indomável sonhadora)
Jessica Chastain (A hora mais escura)
Naomi Watts (O impossível)
Emmanuelle Riva (Amor)

Emmanuela Riva está memorável, com seu gestual que representa a doença pela qual passa, mas Jessica Chastain confirma ser uma das melhores atrizes a surgirem nos últimos anos e sustenta a maior parte de A hora mais escura. Naomi Watts também é um ponto de destaque em O impossível (ela deveria ter ganho por Cidade dos sonhos, mesmo que sequer tenha sido indicada naquela oportunidade). Não fui convencido pela atuação premiada pelo Oscar de Jennifer Lawrence, uma atriz ainda a ser lapidada, que oferece carisma a O lado bom da vida, e apenas isso. A menina Quvenzhané Wallis é uma surpresa, também sua interpretação, porém é prejudicada pela narrativa falha de Indomável sonhadora. Depois da fraca participação no terceiro Batman, Marion Cotillard mostra novamente seu talento reconhecido e já premiado por Piaf em Ferrugem e osso, pelo qual deveria ter sido indicada.

Escolhida: Jennifer Lawrence (O lado bom da vida)

Jennifer-Lawrence

Deveria ganhar:

Das indicadas: Jessica Chastain (A hora mais escura)

A hora mais escura.Quadro

Das não indicadas: Marion Cottilard (Ferrugem e osso)

Marion Cotillard

Melhor ator coadjuvante

Alan Arkin (Argo)
Philip Seymour Hoffman (O mestre)
Christoph Waltz (Django livre)
Tommy Lee Jones (Lincoln)
Robert DeNiro (O lado bom da vida)

Esta foi a premiação mais difícil. A meu ver, merecia Phillip Seymour Hoffman, seguido por Cristoph Waltz (que, de fato, venceu). Robert De Niro está bem, mas nada fora do comum dentro dos parâmetros de sua trajetória brilhante. Tommy Lee Jones faz um papel normal: está melhor em Um divã para dois. Alan Arkin não deveria ser indicado, apesar de ser ótimo ator. A questão é que eu muitas atuações melhores do que as de pelo menos três não estavam indicadas à categoria: Leonardo DiCaprio e Samuel L. Jackson (Django livre), Ezra Miller (As vantagens de ser invisível), Bernard Shaw e Jim Broadment (Cloud Atlas), William H. Macy (As sessões), Javier Bardem (007 – Operação Skyfall), Michael Fassbender (Prometheus), Edward Norton e Bruce Willis (Moonrise Kingdom), Jude Law (Anna Karenina) e Garret Hedlund (Na estrada). Talvez seja a categoria com mais concorrentes do ano. E a melhor atuação é a de Garrett Hedlund, anteriormente subaproveitado em Tron – O legado, como o Dean Moriarty melancólico.

Escolhido: Cristoph Waltz (Django livre)

Cristoph Waltz

Deveria ganhar:

Dos indicados: Phillip Seymour Hoffman (O mestre)

Phillip Seymour Hoffman.O mestre

Dos não indicados: Garrett Hedlund (Na estrada)

Na estrada.Garrett Hedlund

Melhor atriz coadjuvante

Amy Adams (O mestre)
Sally Field (Lincoln)
Anne Hathaway (Os miseráveis)
Helen Hunt (As sessões)
Jacki Weaver (O lado bom da vida)

Amy Adams e Sally Field estão excelentes; a única que parece destoar aqui é Jacki Weaver, num papel sem muita participação, apesar de seu rosto ser realista e convencer na pele da mãe de Pat. Embora Anne Hathaway, a vencedora da categoria, tenha méritos pelos raros minutos em que aparece em Os miseráveis, eu considero Helen Hunt de volta à grande forma em As sessões. Sua atuação é comovente. Mas uma indicação justa seria para Sarah Gadon, a esposa com desejos de ser poeta do milionário Erik Packer. É um dos pontos altos de Cosmópolis.

Escolhida: Anne Hathaway (Os miseráveis)

Anne Hathaway

Deveria ganhar

Das indicadas: Helen Hunt (As sessões)

Helen Hunt.As sessões.Imagem

Das não indicadas: Sarah Gadon (Cosmópolis)

Cosmópolis.Sarah Gadon

Melhor filme estrangeiro

Amor (Áustria)
O Amante da Rainha (Dinamarca)
No (Chile)
Kon-Tiki (Noruega)
War Witch (Canadá)

Só vi Amor, O amante da rainha e No. Desses três, o melhor parece ser Amor, embora eu ache a reconstituição de época de O amante da rainha notável e a montagem acelerada com imagens propositalmente mal gravadas de No interessante, além da atuação de García Bernal. No entanto, Amor me parece um filme completo.

Escolhido: Amor

Amor.Haneke

Melhor animação

Melhor animação

Valente
Frankenweenie
Detona Ralph
ParaNorman
Piratas Pirados!

Escolhido: Valente

Valente.Filme

Melhor roteiro original

Michael Haneke (Amor)
Quentin Tarantino (Django livre)
Mark Boal (A hora mais escura)
Wes Anderson, Roman Coppola (Moonrise Kingdom)
John Gatins (O voo)

O melhor roteiro de todos, na estrutura e na montagem, é o de Moonrise Kingdom. No entanto, Django livre, o premiado, tem diálogos mais fortes, circunstancialmente, do que os demais, embora tenha partes sobrando (prejudicado pela montagem) na metade e no final. O roteiro de A hora mais escura tem bastante qualidade, com sua narrativa repleta de cortes, e o de Amor, a despeito de sua aparente facilidade, é notável, sem excessos. Apesar de não trazer grandes novidades, os diálogos de O voo são muito bem construídos e não há excessos no filme (apesar do final forçado). Mas fica difícil entender a não indicação para Paul Thomas Anderson pelo roteiro de O mestre.

Escolhido: Quentin Tarantino (Django livre)

Django livre.Filme 4

Deveria ganhar:

Dos indicados: Wes Anderson e Roman Coppola (Moonrise Kingdom)

Moonrise Kingdom 9

Dos não indicados: Paul Thomas Anderson (O mestre)

O mestre.Filme 4

Melhor roteiro adaptado

Tony Kushner (Lincoln)
Chris Terrio (Argo)
David O. Russell e Matthew Quick (O lado bom da vida)
Lucy Alibar e Benh Zeitlin (Indomável sonhadora)
David Magee (As aventuras de Pi)

O roteiro de Lincoln, apesar de complexo, é, em termos de diálogos, muito convincente, ao contrário dos de Argo (que saiu vencedor), de O lado bom da vida (com algumas falas divertidas, entretanto) e Indomável sonhadora (o menos interessante). Não li o material de origem em que se basearam, mas a qualidade da adaptação, a meu ver, deve ser independente dele. O vencedor deveria ter sido o de As aventuras de Pi. Os roteiros de As vantagens de ser invisível (da obra do próprio diretor, Stephen Chobsky) e Na estrada (adaptação de Jose Rivera) poderiam ter sido indicados.

Escolhido: Chris Terrio (Argo)

Argo.Filme 4

Deveria ganhar:

Dos indicados: David Magee (As aventuras de Pi)

As aventuras de Pi

Dos não indicados: Stephen Chbosky (As vantagens de ser invisível)

As vantagens de ser invisível 5

Melhor fotografia

Roger Deakins (007 – Operação Skyfall)
Claudio Miranda (As aventuras de Pi)
Robert Richardson (Django livre)
Janusz Kaminski (Lincoln)
Seamus McGarvey (Anna Karenina)

Há esquecidos aqui de todos os tipos: Eric Gautier (Na estrada), Robert D. Yeoman (Moonrise Kingdom), Greig Fraser (A hora mais escura), Danny Cohen (Os miseráveis), Frank Griebe e John Toll (Cloud Atlas), Wally Pfister (Batman – O cavaleiro das trevas ressurge) e Mihai Malaimaire Jr. (O mestre). Ainda assim, como não indicar esses filmes nomeados, todos com belíssimas fotografias?  A fotografia de Claudio Miranda para As aventuras de Pi é extraordinária, sobretudo nas cenas em que o personagem está em alto-mar (sua premiação não é injusta), e a de Lincoln, idem, com suas molduras de interiores; Django livre tem belas paisagens de inverno e dos interiores de mansões, do mestre Richardson, de JFK, e 007 – Operação Skyfall traz a competência do habitual colaborador dos Coen, Deakins. A questão é que o trabalho de Seamus McGarvey para Anna Karenina é um feito de luminosidade. Uma saída seria aumentar o número de indicados desta categoria, assim como o de melhor diretor (acompanhando o número de indicações para o prêmio de melhor filme).

Escolhido: Claudio Miranda (As aventuras de Pi)

As aventuras de Pi.Fotografia

Deveria ganhar:

Dos indicados: Seamus McGarvey (Anna Karenina)

Anna Karenina.Imagem 2

Dos não indicados: Frank Griebe e John Toll (Cloud Atlas)

Cloud Atlas.2012

Melhor trilha sonora

Mychael Danna (As aventuras de Pi)
Alexandre Desplat (Argo)
John Williams (Lincoln)
Dario Marianelli (Anna Karenina)
Thomas Newman (007 – Operação Skyfall)

Acredito que as melhores trilhas do ano não estavam indicadas: as de Alexandre Desplat (Moonrise Kingdom e A hora mais escura), Tom Tykwer, Reinhold Heil e Johnny Klimek (Cloud Atlas), Jonny Greenwood (O mestre), Gustavo Santaolalla (Na estrada) e Hans Zimmer (Batman – O cavaleiro das trevas ressurge). Desplat foi indicado pela sua trilha mais fraca (de Argo) e John Williams não se renova, infelizmente, apesar da qualidade, além de ter se transformado num concorrente obrigatório, o que tira parte da graça. A trilha de Mychael Danna (As aventuras de Pi), com sua discrição, é bela, ou seja, dos concorrentes, mereceu o Oscar.

Escolhido: Mychael Danna (As aventuras de Pi)

As aventuras de Pi.Fotografia 2

Deveria ganhar: Mychael Danna (As aventuras de Pi)

As aventuras de Pi.Filme

Dos não indicados: Tom Tykwer, Reinhold Heil e Johnny Klimek (Cloud Atlas)

Cloud Atlas.Música

Melhor canção original

Before My Time (Chasing Ice)
Skyfall (007 – Operação Skyfall)
Suddenly (Os miseráveis)
Pi’s Lullaby (As aventuras de Pi)
Everybody Needs A Best Friend (Ted)

Escolhido: Skyfall (007 – Operação Skyfall)

Operação Skyfall 9

Deveria ganhar:

Dos indicados: Everybody Needs A Best Friend (Ted)

Ted.Filme 3

Melhor montagem

William Goldenberg (Argo)
Michael Kahn (Lincoln)
William Goldenberg e Dylan Tichenor (A hora mais escura)
Tim Squyres (As aventuras de Pi)
Jay Cassidy e Crispin Struthers (O lado bom da vida)

A melhor montagem é, a meu ver, de A hora mais escura. Há alguns excessos em Lincoln e As aventuras de Pi. Considero a montagem de Argo, a vencedora, pouco orgânica: ela é feita para tentar encobrir as falhas da narrativa e os tropeços na direção de Affleck e no roteiro, embora seja feita por William Goldenberg, um dos que fizeram a de A hora mais escura. O lado bom da vida não tem como destaque sua montagem (sua indicação é um mistério). Mas o vencedor, se indicado, deveria ser Alexander Berner (Cloud Atlas). Aprecio muito também a montagem de Mary Jo Markey (de vários filmes de J.J. Abrams e de Lost) para As vantagens de ser invisível, com suas passagens de tempo, de época e de um ambiente para outro, e de Lee Smith para Batman – O cavaleiro das trevas ressurge (mesmo com seus cortes abruptos).

Escolhido: William Goldenberg (Argo)

Argo

Deveria ganhar:

Dos indicados: William Goldenberg e Dylan Tichenor (A hora mais escura)

A hora mais escura

Dos não indicados: Alexander Berner (Cloud Atlas)

Cloud Atlas.Imagem 2

Melhor desenho de produção

Sarah Greenwood e Katie Spencer (Anna Karenina)
Eve Stewart (Os miseráveis)
Rick Carter, Jim Erickson e Peter T. Frank (Lincoln)
David Gropman e Anna Pinnock (As aventuras de Pi)
Dan Hennah (O hobbit: uma jornada inesperada)

Todos trabalhos de exceção, sobretudo os de Eve Stewart (Os miseráveis) e de Dan Hennah (O hobbit), no entanto o trabalho de Sarah Greenwood e Katie Spencer em Anna Karenina é brilhante. De qualquer modo, o trabalho de Hugh Bateup e Uli Hanish por Cloud Atlas deveria ter sido lembrado, assim como o de Adam Stockhausen, Gerard Sullivan e Chris Molan, por Moonrise Kingdom, o de David Crank e Jack Fisk, por O mestre, e o de Rick Heinrichs, por Sombras da noite, mais criativos do que o de Lincoln (vencedor do prêmio).

Escolhido: Rick Carter, Jim Erickson e Peter T. Frank (Lincoln)

Spielberg

Deveria ganhar:

Dos indicados: Sarah Greenwood e Katie Spencer (Anna Karenina)

Anna Karenina

Dos não indicados: Adam Stockhausen, Gerard Sullivan e Chris Molan (Moonrise Kingdom)

Moonrise Kindgom 4

Melhor figurino

Paco Delgado (Os miseráveis)
Jacqueline Durran (Anna Karenina)
Eiko Ishioka (Espelho, espelho Meu)
Joanna Johnston (Lincoln)
Colleen Atwood (Branca de Neve e o caçador)

São trabalhos competentes de figurino, sobretudo o de Jacqueline Durran (Anna Karenina), que, afinal, venceu na categoria. Ainda assim, acredito que poderiam ser lembrados os trabalhos de O mestre (Mark Bridges), Cloud Atlas (Kym Barrett e Pierre-Yves Gayraud), O amante da rainha (Manon Rasmussen), Sombras da noite (Coleen Atwood) e O hobbit (Bob Buck, Ann Maskrey e Richard Taylor) O trabalho de Espelho, espelho meu, estilizado, como os cenários de estúdio, tem belas cores. Como se vê, Coleen Atwood foi indicada pelo competente figurino de Branca de Neve e o caçador, mas inferior, em matéria de criatividade, ao de Sombras da noite.

Escolhido: Jacqueline Durran (Anna Karenina)

Anna Karenina.Imagem

Deveria ganhar:

Dos indicados: Jacqueline Durran (Anna Karenina)

Still from Anna Karenina

Dos não indicados: Coleen Atwood (Sombras da noite)

Sombras da noite.Figurino

Melhores efeitos visuais

As aventuras de Pi
O hobbit: uma jornada inesperada
Os vingadores
Prometheus
Branca de Neve e o caçador

No mínimo, quatro indicados impressionantes. Faltam, entretanto, Cloud Atlas e Batman – O cavaleiro das trevas ressurge. Os melhores efeitos são de O hobbit, seguido pelos de Os vingadores e As aventuras de Pi (que venceu na categoria) embora a meia hora final de Prometheus seja impressionante neste quesito (e talvez a mais realista). Branca de Neve e o caçador tem boa direção de arte, excelente fotografia e bons figurinos, mas talvez os efeitos especiais não sejam seu destaque.

Escolhido: As aventuras de Pi

As aventuras de Pi.Efeitos especiais

Deveria ganhar:

Dos indicados: O hobbit

HBT_fs_200495.dng

Dos não indicados: Cloud Atlas

Cloud Atlas.Efeitos especiais

Melhor mixagem de som

007 – Operação Skyfall
Os miseráveis
Lincoln
As aventuras de Pi
Argo

Lincoln, Os miseráveis e Argo não apresentam melhor mixagem de som do que os de Cloud Atlas, Branca de Neve e o caçador (nas cenas do pântano, por exemplo), Os vingadores ou Batman – O cavaleiro das trevas ressurge. Ou seja, a Academia se equivocou bastante aqui. A partir disso, o prêmio para Os miseráveis, apesar de ser musical, passa a ser inexplicável.

Escolhido: Os miseráveis

Les Miserables

Deveria ganhar:

Dos indicados: As aventuras de Pi

As aventuras de Pi 3

Dos não indicados: Cloud Atlas

Cloud Atlas.Imagem 3

Melhor edição de som

007 – Operação Skyfall
A hora mais escura
Django livre
As aventuras de Pi
Argo

A melhor edição de som é a de 007 – Operação Skyfall (que dividiu o prêmio com A hora mais escura), embora a de As aventuras de Pi seja também notável. Se indicados, Cloud Atlas, Prometheus e Batman – O cavaleiro das trevas ressurge mereceriam.

Escolhidos: oo7 – Operação Skyfall e A hora mais escura

Operação Skyfall 4

A hora mais escura.Imagem.Filme

Deveria ganhar:

Dos indicados: 007 – Operação Skyfall

Operação Skyfall 3

Dos não indicados: Prometheus

Prometheus 3

Melhor maquiagem

O hobbit: uma jornada inesperada
Os miseráveis
Hitchcock

A categoria que não indicou Cloud Atlas – cuja maquiagem é impressionante – não merece muita atenção. O hobbit apresenta o melhor trabalho e é difícil pensar as justificativas para a premiação de Os miseráveis.

Escolhido: Os miseráveis

Os miseráveis.Maquiagem

Deveria ganhar:

Dos indicados: O hobbit

O hobbit 3

Dos não indicados: Cloud Atlas

Cloud Atlas.Imagem 4

Melhor Curta-Metragem (Animação): Paperman * Melhor Curta-Metragem:
Curfew * Melhor Documentário em longa-metragem: Searching For Sugar Man * Melhor Documentário em curta-metragem: Inocente

Amor (2012)

Por André Dick

Amor

O tema do amor é um dos mais difíceis de ser tratados não apenas na literatura, como também no cinema, apesar da sequência de obras que parecem remeter a ele, muitas vezes de maneira considerada profunda. O diretor austríaco Michael Haneke não tem uma obra exatamente voltada a um olhar agradável sobre determinadas situações. Seus filmes, como A professora de piano,  abrigam uma espécie de violência moral que às vezes acaba destoando do próprio enfoque que ele oferece. Tratar de um casal consciente da repetição das coisas e das ações, por anos e anos, não era o material, portanto, mais adequado ao diretor. Por outro lado, se a idade em que o amor pode ser reencontrado de várias formas (como vemos na faceta positiva e idealizada, sobretudo em O exótico Hotel Marigold) é também aquela que proporciona uma lembrança  do tempo passado, temos em Amor, de Haneke, que recebeu a Palma de Ouro em Cannes e foi indicado a vários Oscars, inclusive de melhor filme, um exemplo para avaliarmos o que pode ser visto como amor e como ele já foi tratado.
Pode ser que o início (daqui em diante, spoilers) transpareça algo do Haneke anterior, sobretudo com uma porta sendo arrombada e o corte de um homem sentindo um cheiro incômodo ao atravessar a porta de um quarto, mas logo em seguida somos colocados diante de uma plateia. Estamos olhando para ela e ela nos olhando (nos moldes do início de Holy Motors), quando inicia um concerto de piano. Em seguida, vemos Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva) Laurent cumprimentando o jovem pianista e voltando para casa de ônibus. Certamente, nessa sequência, Haneke define a passagem dos personagens da multidão para a solidão, quando chegam a seu apartamento, cuja porta tem sinais de que alguém esteve ali na ausência deles. O cuidado com que o diretor demonstra isso leva a crer, em certo momento, se é tudo excessivamente calculado ou se mesmo as atuações são excessivamente frias e autossuficientes. Acontece justamente o contrário: é difícil lembrar outro filme que consiga elaborar a descoberta de um casal de idade dos problemas de saúde que acometem o homem e a mulher. No caso de Amor, quem adoece é Anne. Há uma longa sequência em que eles tomam café, Anne fica paralisada, dando a impressão de não ouvir mais nada, e parece voltar ao normal em seguida, porém anuncia a interrupção daquela convivência natural. A filha do casal, Eva (Isabelle Huppert, sempre marcante), aparece para conversar com o pai e Haneke registra de forma seca o aviso de Georges de que Anne será submetida a uma cirurgia, sem que Eva esboce qualquer reação de interesse.

Amor.Filme 2

Haneke irá estabelecer cortes temporais e de sequência para dar uma agilidade ao filme, embora ele pareça ficar sempre no mesmo lugar, como os personagens de Georges e Anne. É apenas aparente, pois na ausência percebida de ação está o que movimenta Amor: Georges quer ser atencioso com Anne, é solidário, faz compras, deixa que ela leia seu livro sozinha no quarto. No entanto, também há uma cobrança. Neste meio termo, Haneke estabelece sua concepção de amor, situado entre a espera do homem ou da mulher pela palavra alheia e da amargura que causa uma possível ausência de cada um numa relação. Inevitável, nisso, uma sequência de sonho, em que o personagem abre a porta, remetendo a seu medo de bandidos no apartamento, e se depara com uma obra e, em seguida, um corredor. Não querer que a vida se transforme, entre em reforma, e ao mesmo tempo a fuga por um corredor que pode afastar do apartamento, agora dedicado à saúde da esposa, leva o corpo a prender o grito e a água da torneira que sua mulher pode ter aberto (e não lembra direito) a seus pés. Haneke insere, em seu roteiro, a ideia de que o ser humano pode ser incapaz de sustentar uma relação em que a palavra necessitada fica ausente.
O personagem do pai é a representação evidente disso, e quando ele diz à filha que não se interessa pela preocupação dela pois já tem problemas demais em que pensar Haneke o faz de maneira ao mesmo tempo próxima e distante. É o que ele mais desenha em seu filme: personagens que olham para os outros de maneira tão próxima que acaba se criando um afastamento. Porém, nesse afastamento, e a relação entre Georges e Anne e destes com um pianista, Alexandre (Alexandre Tharaud, pianista na vida real), que foi aluno dela, e com a filha acaba criando um enigma sobre a própria condição de cada personagem. Notável a sequência da visita do pianista, quando Anne não deseja mais a harmonia da música que a acompanhou e também não deseja falar de suas sequelas. Estamos diante de uma visão artística, em que o pássaro que entra na janela fica melhor no desenho da prateleira. Ou quando, num jantar, ela apanha um álbum, sob o olhar atônito de George, e passa a folheá-lo na mesa, prendendo-se a um passado que não deseja abandonar. A sensação é de que passa a ser inevitável investigar Amor como não simplesmente um retrato de como o ser humano vai se extinguindo, sem conseguir ser plenamente deixado para trás, porque seria impossível se livrar das próprias lembranças. Por isso, avaliar que Haneke faz simplesmente um retrato frio e soturno desse desprendimento existencial soa apressado; o que ele faz, por meio de cada móvel disposto no apartamento, nas trocas de cama, na personagem de Anne sendo lavada por uma enfermeira, é justamente um ingresso na confidência e na solidariedade e no desespero contido e assustador de poder perder o outro.

Amor.Filme

Daí as atuações de Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva serem primordiais para que o diretor consiga estabelecer, mesmo que não pareça, por todo o enfoque do amor ser destinado a uma facilitação entre pares, na maioria dos filmes, uma espécie de ingresso no ambiente perturbador da solidão e da insegurança. Para Georges, um pássaro pode tanto representar a prisão, o apego, e daí ele não deve voar, como sua própria libertação, do mesmo modo que um gole-d’água para quem evita em demonstrar sede. Assim acontece também para cada um dos personagem: do marido que não consegue se libertar do acampamento dos 10 anos de idade, da filha que, longe e sentindo-se culpada, quer espiar o que pode estar acontecendo do outro lado da porta do quarto. Os reflexos se espalham ao longo do filme: as enfermeiras, o ajudante do hotel, assim como as flores na pia, o soro, os lençóis da cama, os abajures iluminando a sala.
Belíssima a cena em que Anne toca piano na sala do apartamento. Ela estará lembrando do seu passado, de algum ponto da cama em que está deitada? Haneke surpreende, voltando sua câmera para Georges, abrigado pela memória no sofá. É, além de melancólico, denso e verdadeiramente profundo. Afinal, para Haneke, cada pessoa é feita de lembranças. Como o personagem pode deixá-las para trás? Ele, certamente, não pode: o casaco ainda pode trazer abrigo, embora não haja mais a saída pela porta. Não há, em algum momento, exploração gratuita da condição da personagem de Anne. Pelo contrário, Haneke consegue sintetizar a materialidade e a despedida dela de maneira estritamente sensível, mesmo que soe mesmo desalentador e questionável (ao final). Não pode haver exploração demasiada da realidade da personagem se é nela que se concentra todo o amor e o desprendimento. Emmanuelle Riva, neste caso, é memorável.
Para Haneke, e seu casal de atores, o amor só pode ser sublinhado sem a ausência de uma das partes, pela fuga em direção a uma imaterialidade que possa junto trazer a memória de algo que escapou ou que nunca veio à tona. Raras vezes, no cinema, um apartamento conseguiu transpirar toda uma condição existencial, de vida, morte, luto e retomada do voo pela janela. A Amor se deve inúmeras sensações: a própria visão do sentido do amor e de que a necessidade de mantê-lo por perto pode resultar na ausência e na tentativa de se afastar da dor, reservando apenas as lembranças e a perturbação do abandono anunciado, é uma delas.

Amour, Áustria/ALE/FRA, 2012 Diretor: Michael Haneke Elenco: Jean-Louis Trintignant, Emmanuelle Riva, Isabelle Huppert, Alexandre Tharaud, William Shimell, Ramón Agirre, Rita Blanco, Carole Franck, Dinara Drukarova, Laurent Capelluto, Jean-Michel Monroc, Suzanne Schmidt, Damien Jouillero, Walid Afkir Produção: Stefan Arndt, Margaret Ménégoz Roteiro: Michael Haneke Fotografia: Darius Khondji Duração: 127 min. Ano: 2012 Distribuidora: Imovision Estúdio: Les Films du Losange / X-Filme Creative Pool / Wega Film

Cotação 5 estrelas

Indomável sonhadora (2012)

Por André Dick

Indomável sonhadora.Oscar 2013

Desde o início de Indomável sonhadora, percebe-se a tentativa de o diretor estreante Benh Zeitlin filmar uma história num cenário capaz de trazer realismo. Este lugar é chamado de a Banheira, uma ilha em Nova Orleans, onde moram Hushpuppy (Quvenzhané Wallis) e seu pai, Wink (Dwight Henry), entre várias famílias. Zeitlin corre com sua câmera atrás da personagem, antecipando uma espécie de magia da infância, cercada pela necessidade de sonhar principalmente na volta da mãe. O pai alimenta a filha com frangos que vai matando um a um, enquanto ela dá de comer aos porcos e às galinhas, com as quais conversa por códigos, e descobre que as calotas polares podem derreter. Os dois também desbravam as águas, com um navio feito de pedaços de caminhão e barris de petróleo para sustentá-lo, para ver as refinarias ao longe, da cidade de onde estão afastados. Zeitlin, em poucos momentos, especifica do que tratará Indomável sonhadora (outro título nacional, a exemplo de A viagem para Cloud Atlas, pouco exitoso). No entanto, pelos fogos de artifício de determinado momento, iluminando a noite, não se esperava que ele justamente optasse num tratamento tão distante da situação retratada e dos personagens. Esse maravilhamento da menina diante do cenário no qual vive é apenas inicial: o filme não corresponde a ele.
Acontece uma tempestade devastadora e a Banheira fica submersa. A menina, assustada com o comportamento paterno, o acompanha na tentativa de encontrar alguns conhecidos e amigos. É então que este filme, cuja campanha o levou a ser candidato ao Oscar, sustentado por participações em festivais, sofre uma espécie de bloqueio: do que Zeitlin irá tratar? Da situação dos personagens, dos efeitos da tempestade, da menina sonhadora (segundo o título nacional)? Ele pretende, de forma consciente, tratar de todos esses elementos e, mesmo que não haja nada documental em sua obra, apenas aparente, pelo estilo de filmagem, o espectador acaba sendo atraído para lacunas inevitáveis. Em sua necessidade de expor e localizar a dificuldade, por meio da situação dos personagens, Indomável sonhadora parece não lhes conceder a voz necessária. Todos agem de modo apenas instintivo e visando à sobrevivência, a exemplo do momento em que o pai ensina a filha a destrinchar caranguejos sobre a mesa. No entanto, nesse realismo com todas as condições de ser explorado, Zeitlin não estabelece um vínculo entre os personagens e, se tenta estabelecer, acaba pendendo para maneirismos, junto com seu estilo no movimento de câmera, que, ao contrário de outros diretores, soa cansativo, apesar de a fotografia de Ben Richardson ter uma iluminação interessante.

Indomável sonhadora.Filme 2

As autoridades podem surgir para tentar resgatar os habitantes do lugar, mas o que eles desejam é se manter na Banheira, aparentando não demonstrar nenhum interesse pelos acontecimentos à sua volta, apenas com problemas relativos ao álcool, inevitavelmente um estereótipo. Todos parecem guiados por uma espécie de autossatisfação em pertencerem à Banheira, e não há nenhum diálogo sobre o real estado de coisas. Ao mesmo tempo, é como se o problema, sobretudo real, a que Zeitlin se refere por meio de sua história, e podemos entender como sendo aquele causado pelo Katrina, dependesse apenas da boa vontade das pessoas envolvidas e prejudicadas diretamente, pois a ajuda existe, e as ações dessa comunidade fossem identificadas como um modo estabelecido de vida, pois não adiantaria receber colaboração de quem antes ignorou seus problemas, designada pelo modo como Hank ensina à filha a pegar peixes ou coloca na mente dela que, em sua ausência, ela poderá até mesmo comer os animais de estimação.
Quaisquer sensações não são demonstradas por diálogos, pelo estreitamento humano; ao espectador é oferecida apenas a situação. Zeitlin, parecendo expor de modo visceral esta situação, acaba incorrendo justamente no contrário: ele torna a calamidade num simples encontro entre pessoas sem expectativa, certas de que sua fantasia maior e sua verdadeira origem, conscientemente à parte da sociedade, habita aquelas condições, pelas quais têm um afeto. Nesse ponto, a menina Hushpuppy, mesmo aparentando ser a personagem principal, torna-se coadjuvante de sua história, e seu pai, Wink, desejando salvá-la, querendo que ela tenha sentimentos de força, como um homem teria, dificilmente estabelece uma relação com ela ou com o espectador. Quando isso parece acontecer, o registro é demasiadamente cru não para emocionar, mas simplesmente estabelecer uma proximidade.

Indomável sonhadora

Zeitlin procura repor falhas claras na narrativa com pensamentos de Hushpuppy, nome que ecoa Humpty Dumpty, de Alice no país das maravilhas, principalmente sobre javalis gigantes que podem surgir para comer os mais fracos (em momentos nos quais Indomável sonhadora apresenta o que poderia ter sido), mas, inegavelmente, escolhe o caminho do isolamento, injustificado, pelo início, para guiá-la. Ao deixar sua personagem principal encoberta, trazendo ao centro da cena a figura do seu pai, Indomável sonhadora incorre em reflexões em off, muitas dela cansativas. É uma pena: Quvenzhané Wallis, a mais jovem a concorrer ao Oscar de melhor atriz, parece possuir talento para ter mais diálogos e não apenas, em grande parte, reflexões em off e olhares. Percebe-se, em muitos momentos, sua expressividade e mesmo consternação diante dos acontecimentos, além da magnífica tomada em seu rosto. Sua busca pela mãe é notável justamente por isso: é o elo humano estabelecido pela trama de Zeitlin. Determina-se a presença materna por meio tanto de lembranças (a referência ao crocodilo, e a memória que seu pai tem dela é interessante) quanto por meio de uma luz piscando em alto-mar. E a menina, inserida neste cosmos, acredita em sua futura lembrança, pois ela, acima de tudo, é irrepetível, e para isso desenha figuras numa caixa de papelão num momento de perigo, numa das boas cenas do filme, como se desenhasse figuras rupestres.
No entanto, para a narrativa proposta, isso acaba sendo pouco. O filme de Zeitlin é perpassado por uma melancolia angustiante e mal resolvida, e torna-se estranho não que o filme tenha um público apreciador, cujo olhar para a obra acolhe as ideias de modo distinto, e sim que seja apresentado como uma obra fantasiosa e alegre, com um “realismo mágico”. A impressão dada é a respeito do instinto de sobrevivência: ele só seria realmente forte se acompanhado pelo sonho. Trata-se de uma bela ideia. Mas Zeitlin, e talvez esteja aí sua ambiguidade em relação a Hushpuppy, esquece que é justamente não apenas o sonho, mas a consciência sobre o real estado de coisas, o indicativo para a saída, intensificando, consequentemente, a partir daí, qualquer fantasia, cuja importância não pode ficar simplesmente ligada a uma fuga da realidade. Pelo início promissor, a obra de Zeitlin, em seu final conformista, não retribui essa ideia da maneira mais interessante. Pelo contrário: a coragem parece ser bloquear a fantasia e continuar a ver a sociedade como uma representação voraz, que engoliria qualquer autencidade existencial e contato com a verdade da natureza.

Beasts of the Southern Wild, EUA, 2012 Diretor: Benh Zeitlin Elenco: Quvenzhané Wallis, Dwight Henry, Levy Easterly, Lowell Landes, Pamela Harper, Gina Montana, Amber Henry, Jonshel Alexander, Nicholas Clark, Joseph Brown, Henry D. Coleman, Kaliana Brower, Philip Lawrence, Hannah Holby, Jimmy Lee Moore, Jovan Hathaway, Kendra Harris, Roxanna Francis, Jay Oliver Produção: Michael Gottwald, Dan Janvey, Josh Penn Roteiro: Lucy Alibar, Benh Zeitlin Fotografia: Ben Richardson Trilha Sonora: Dan Romer, Benh Zeitlin Duração: 93 min. Distribuidora: Imagem Filmes Estúdio: Journeyman Pictures / Cinereach / Court 13 Pictures

2  estrelas

O amante da rainha (2012)

Por André Dick

O amante da rainha.Filme 2

Há todo um contexto histórico em O amante da rainha, com os elementos que cercam um rei, Christian VII (Mikkel Boe Følsgaard), cujo casamento com a prima, Caroline Mathilde (Alicia Vikander), é um aceno de combinação entre seus países e suas famílias: ele, representando a Dinamarca; ela, a Inglaterra. Sem nunca ter visto o homem com quem irá conviver, ela o encontra primeiro escondido atrás de uma árvore, como se fosse uma criança incapaz de saber o que está se passando, com um certo ar cômico de desprezo. Chegando à Dinamarca, ela é de fato a esposa, anunciada num jantar para convidados. Quando toca piano, e todos a elogiam, ele manda interromper, pretendendo, ainda assim, encontrá-la. Sem sustentação emocional, o principal passatempo do Rei é passar as noites ao lado de prostitutas, no palácio ou em tavernas. Estamos em 1766, e as ruas de Copenhague estão infestadas de mau cheiro e com doenças, mas ele só pensa em aproveitar sua vida cartunesca. No nascimento de seu filho, ele decide fazer uma viagem de um ano pela Europa.
As ordens e sutilezas forçadas de um ambiente real já estavam explícitas num filme definitivo para o gênero, com toda sua carga pop, Maria Antonieta, de Sofia Coppola. O amante da rainha é muito mais intimista e talvez mais suntuoso, com sua reconstituição de época fabulosa, uma espécie de combinação entre Amadeus (em jantares e festas) e Barry Lindon (os campos esverdeados que, para Caroline, podem lembrar a Inglaterra). O diretor Nicolaj Arcel assinala uma discrição inicial para enfatizar em seguida uma montagem elíptica. A rainha engravida e aguarda a continuação de sua rotina.
Isso até a entrada de um médico, Johann Struensee (Mads Mikkelsen),  que passa a cuidar do rei, tratado como um louco pelos conselheiros. Com ideias iluministas, ele tentará dar um novo caminho à Dinamarca, procurando influenciar Christian VII e, ao mesmo tempo, envolvendo-se com Caroline. Identificada com ele por ter tido alguns de seus livros recolhidos e encontrar um livro de Jean-Jacques Rousseau em sua biblioteca, o conceito de liberdade para Caroline ganha um novo significado. Não fogem do roteiro os impulsos para a narrativa de conflitos: há um relacionamento escondido, um rei sendo manipulado pelos súditos e um homem por trás desejando iluminar essa sociedade que parece fadada ao esquecimento e mesmo a presença, por carta, de Voltaire. Há, também, uma madastra e alguns conselheiros cujo atraso é definitivo para manter a Dinamarca estagnada. Mas o romance é o tópico central, e ele surge aos poucos, em encontros no campo ou no quarto, longe dos empregados, sem que o Rei evidentemente saiba.

O amante da rainha.Filme 3

O amante da rainha.Filme 4

No entanto, logo o tópico do romance e da traição, nunca avaliadas de forma culposa, mas simplesmente por condição do destino e de cada personagem, cede espaço ao ambiente político e a ideias filosóficas inseridas dentro de um contexto político comprometido em todas as suas camadas. Arcel não consegue estabelecer, neste caso, uma relação clara entre os personagens e suas ideias, facilmente entregando os atores a sequências imediatas, curtas, e outras mais extensas, e um tanto cansativas, pois não conectadas da forma mais ágil umas com as outras. Os últimos 40 minutos, pelo menos, são excessivamente lentos e soturnos, trazendo uma contenção extrema, o que não vemos no restante da metragem.
Principalmente a primeira hora de O amante da rainha é bastante agradável, quando os personagens estão se apresentando e as ações de cada um se constituem em um breve conhecimento a respeito de como agem. Inevitável refletir sobre a importância fundamental do elenco para a história ter um rendimento nesses trechos: se Mikkel Boe Følsgaard, como o Rei, evocando uma risada capaz de lembrar Tom Hulce como Mozart em Amadeus, é divertido, dentro dos limites de sua loucura calculada, o par central, em certos momentos, destoa. Alicia Vikander, embora pareça, não é apática, pela medida de que o filme perde um pouco seu brilho quando sua participação diminui, mas pode-se considerar Mads Mikkelsen excessivamente frio (ele é conhecido também por seu papel como vilão em 007 – Cassino Royale). Talvez, por outro lado, não seja exatamente culpa do elenco, e sim de Arcel, preferindo por um certo tom suntuoso ao gravar cada cena, querendo conceder um ambiente histórico capaz de proporcionar um clima geral de austeridade, e a fotografia de Rasmus Videbæk, mesmo com toda sua excelência, contribui para este resultado.
O amante da rainha não se ressente de querer encarnar um clássico, nem mesmo em seu relato inicial, com preenchimento no final, com uma espécie de padronização antecipada para a falta de participação de alguns personagens, optando por se circunscrever dentro do relato histórico. Nem mesmo a admiração do Rei pelo teatro, indo sempre a peças, e não raramente interrompendo com seus comentários, e sua potência para a encenação substituir sua falta de habilidade política, consegue ganhar espaço num filme como este, em que todos os elementos são excessivamente calculados e seguem uma espécie de roteiro em comum com outras obras.
Ainda assim, trata-se de uma obra capaz de despertar um interesse para a história da Dinamarca e da própria participação filosófica na Europa dentro da política e de personagens que, mesmo não atuando com vigor no presente, podem representar mais do que um alento para o futuro. Que o filme não consiga desenvolver isso da melhor maneira, apenas se lamenta, não tirando, entretanto, a sua importância.

En Kongelig Affære/A Royal Affair, Dinamarca, Suécia, República Tcheca, 2012 Diretor: Nicolaj Arcel Elenco: Alicia Vikander, Mads Mikkelsen, Mikkel Boe Følsgaard, David Dencik, Trine Dyrholm Produção: Meta Louise Foldager Sisse Graum Jørgensen Louise Vesth Fotografia: Rasmus Videbæk Trilha Sonora: Cyrille Aufort, Gabriel Yared Duração: 137 min. Distribuidora: Europa Filmes, Mares Filmes Estúdio: Zentropa Entertainments / Trollhättan Film AB / Film i Väst / Sveriges Television (SVT) / DR TV / Sirena Film

Cotação 3 estrelas

A hora mais escura (2012)

Por André Dick

A hora mais escura.Filme.Jessica Chastain

Antes de Guerra ao terror, que lhe rendeu o Oscar de melhor diretora e o de melhor filme, a cineasta Kathryn Bigelow nunca havia recebido grande atenção, mesmo tendo uma obra de terror comentada nos anos 80 (Quando chega a escuridão) e outra de ação no início dos anos 90 (Caçadores de emoções). A sua competência como diretora começou a ser reconhecida sobretudo por lidar com um sentimento norte-americano que passou a vigorar depois do terrível atentado às duas torres do World Trade Center, em 2001: o receio de novos ataques. Se Guerra ao terror não era um grande filme, era de se esperar que A hora mais escura viesse no mesmo rumo, pois é quase uma continuação daquele, no sentido de ser semidocumental, embora situado dentro do universo investigativo da CIA. Este é um dos motivos pelo qual o filme vem gerando grande polêmica nos Estados Unidos. Discute-se que Bigelow e seu roteirista, Mark Boal, tiveram acesso a informações confidenciais sobre a operação militar que levou a Osama bin Laden. Associado a isso, sofrem críticas as cenas de tortura que introduzem o filme, logo depois de vozes do 11 de setembro, que lembram o documentário Fahrenheit 11/9, de Michael Moore.
É difícil assistir a essas cenas, que transcorrem, com algumas pausas, durante a primeira meia hora. Ou seja, se havia uma possibilidade de se atenuar as tentativas de descobrir onde Bin Laden estava, ela logo desaparece, para dar entrada ao torturador, Dan (Jason Clarke), capaz, mais adiante, até de compartilhar um cigarro com uma de suas vítimas, Ammar (Reda Kateb, em interpretação impressionante). A maneira como Bigelow filma essas sequências, alternando a escuridão do ambiente, com a luz da porta que se abre, ou do teto, e mesmo das luzes acesas no rosto do torturado, conduzem o espectador a um universo que não gostaria certamente de conhecer – universo repleto de black sites, tendo num deles jaulas de prisioneiros dividindo espaço com uma de macacos.
Dito isso, A hora mais escura, embora em nenhum momento se constitua em diversão de Hollywood, não se concentra em tais cenas – mais um retrato desalentador dos fatos do que uma condescendência –, preferindo mostrar os passos da agente Maya (Jessica Chastain) atrás do homem que pode ser o informante de Bin Laden. Ela chega a um escritório coordenado por Joseph Bradley (Kyle Chandler, parecendo fazer quase o mesmo papel de Argo) e faz amizade com Jessica (Jennifer Ehle, parecida com Meryl Streep, mais jovem), sendo assessorada também por Jack (Harold Perrineau). Maya assiste às primeiras cenas de tortura incólume, inclusive pesquisando-as em seu escritório, e mais adiante participa diretamente de outra. Com isso, Bigelow tem a pretensão de considerá-la como parte direta daquele universo, no sentido de tomada de ações, fator para que o filme se torne mais real. A hora mais escura é também a hora da personagem: ela não coloca obstáculos para sua perseguição ter êxito. Do mesmo modo, ela é identificada por Bradley como “assassina”, quando Dan diz que ela parece muito nova para a função. Para Maya, os obstáculos são os outros, e talvez esta parte seja a menos verossímil de A hora mais escura. Sabe-se da tentativa, por anos, de se encontrar Bin Laden, mas no filme, em muitos momentos, tem-se a impressão de que Maya estava agindo quase sozinha, ou assessorada por poucas pessoas, além de receber a desconfiança de um superior decisivo – Leon Panetta (James Gandolfini) – e de George (Mark Strong), diretor de divisão da CIA, para que a ação tenha uma finalidade. De certa forma, esta escolha pela descontextualização atinge a questão ligada aos árabes. A política nunca é suscitada explicitamente, permanecendo nas entrelinhas, assim como a tensão real pode não se dissipar simplesmente com o fato de haver o intermédio de um Lamborguini.

A hora mais escura.Jessica Chastain.Filme 2

A hora mais escura.Imagem.Filme

De qualquer modo, seja pela captura de imagens, por meio da fotografia notável de Greig Fraser, Bigelow nunca faz a narrativa descansar. Ela mostra alguns atentados ocorridos desde o 11 de setembro com realismo, mesclando-os com imagens reais. Ou seja, aqui a Guerra ao terror se espalha justificadamente pelo mundo (e temos locações na Polônia, no Paquistão, no Iraque, na Inglaterra). As tomadas do filme são impressionantes, sobretudo quando a câmera é colocada à distância de pontos-chave, mostrando um céu azul que cria uma ligação com as cores das frutas de beira de estrada, no momento da procura ao esconderijo de Bin Laden, mas contrasta com tudo que cerca a narrativa. Nesse sentido, temos o centro de observação da casa onde Bin Laden estaria escondido com a mesma estrutura de uma equipe de observação de alguma pesquisa espacial, com o objetivo de colher detalhes, a fim de se ter um olhar mais adequado sobre a ação a ser desencadeada e sobre desvendar o que realmente abriga o local, no entanto já sem nenhuma sensação de conquista. Tudo vai da imensidão dos cenários e do barulho das ruas à restrição e ao silêncio de salas, interrompido por chamadas telefônicas.
Por meio de uma montagem que remete a um thriller, Bigelow obtém a pressão de escritórios, reuniões, discussões, dúvidas e brigas e perseguições cegas, por exemplo, no momento da tentativa de se rastrear ligações públicas em meio a um mercado público, com a participação decisiva de dois investigadores, Larry (Édgar Ramírez) e Hakim (Fares Fares), no que é diametralmente o oposto de Argo, cuja narrativa não trazia quase nenhum conflito entre os personagens e o que havia era propositadamente calculado e pouco efetivo. Em relação a Argo, deve-se dizer também que Maya é uma representação mais próxima da realidade, por isso menos admirável se comparada à postura de Tony Mendez naquele filme, apesar, também, de suas ações serem diferentes. Nesse sentido, Argo é patriótico no sentido de que não há falhas a serem vistas, enquanto A hora mais escura mostra não apenas as falhas, a moralidade ambígua, como também a tentativa de apaziguar um sofrimento inerente a cada uma daquelas figuras que o filme mostra de forma tão realista. Do mesmo modo, enquanto o filme anterior de Bigelow, Guerra ao terror, apresentava uma realidade da forma devastadora possível, A hora mais escura faz o mesmo, mas com uma intensidade maior no sentido existencial – a dor do sofrimento e da perda, do conflito pressionado pela política e por ataques, poucas vezes foi registrado de maneira tão explícita.

A hora mais escura.James Gandolfini

A hora mais escura.Quadro

Isso se deve tanto à presença de um elenco memorável quanto à atuação de Jessica Chastain, atriz que apareceu em três filmes de destaque em 2011, A árvore da vida, Histórias cruzadas e O abrigo. É ela, cuja fisionomia vai da preocupação à indiferença, diante de vários acontecimentos, passando por uma espécie de maldade contida (seu olhar diante de uma explosão vista pela tela do computador), ou de indignação, quando confronta Bradley, colocando ou não o véu para esconder o rosto e se mesclar a uma cultura da qual, indiretamente, faz parte, que traz para A hora mais escura um elemento mais humano, perigoso e próximo para espectador compartilhar suas dúvidas e ressalvas sobre o que está vendo. Em meio a uma cena ao afastamento, ela apoia um All Star sobre a mesa para lembrar algo mais remoto. Mais adiante, o olhar dos fuzileiros para ela, que contrasta com sua importância para o ato final, não é diferente daquela situação que precisa vivenciar para passar despercebida. Quando ouve o elogio de um assistente de que Maya é inteligente, o chefe da CIA diz: “Todos nós somos inteligentes”. Mesmo porque a personagem age num plano em que o político, se existe, nunca revela diretamente sua influência (o filme evita mencionar os nomes de Bush e de Obama, embora se mostre a imagem de ambos pela televisão, em diferentes momentos). Não havendo o político, a sua importância, segundo Bigelow, passa a ser quase nula. Não precisamos saber seu passado, nem se ela tem uma família ou teve interesse em se casar e ter filhos: Maya é um protótipo de isolamento autoimposto, pois ela, para o filme, só possui uma finalidade, a de estabelecer a ligação entre as imagens iniciais e a perseguição capaz de conduzir a um final. E, embora sem retórica, é por meio da presença dela diante do líder da CIA, com sua sombra projetada num quadro com a bandeira norte-americana (com a qual muitos personagens, afinal, contracenam), que se constitui uma voz ausente e presente. Mesmo sendo vital para a operação, ela, na verdade, se constitui numa espécie de distância calculada das autoridades. Percebe-se, no final, que Maya está sempre surgindo da escuridão ou sendo encoberta por ela: suas ações são secretas, não podem ganhar um corpo familiar. Perguntada pela amiga se tem amigos ou namorados ou por Panetta sobre qual é seu passado, Maya entrega apenas o silêncio.
À frente das câmeras de Bigelow, Chastain consegue traduzir o que a diretora trabalha em cada sequência. Se a piada do Globo de Ouro em relação a James Cameron foi mordaz, é verdade que Bigelow conseguiu extrair de Cameron o drama pré-resolução, o nervosismo transmitido pelas hélices de um helicóptero sendo ligadas e um grupo de fuzileiros adentrando o recinto para que se constitua uma missão, ao som, aqui, de mais uma trilha sonora primorosa de Alexandre Desplat. E, ao mesmo tempo em que a última meia hora constitui uma das sequências mais elaboradas do cinema recente, com uma impressionante reconstituição dos fatos relatados superficialmente (mesmo em razão da falta de informações detalhadas) pela imprensa, ela também é das mais melancólicas – e evita, a todo custo, qualquer ação ou elemento patriótico. Neste ponto, tanto Bigelow e Chastain conseguem concentrar, na tomada final, tudo aquilo que A hora mais escura apresenta: a solidão do ser humano, sobretudo diante dos fatos e das primeiras falas ecoando no início, assim como das cenas da tortura. Como, depois disso, apagar o início? Como apagar todas as vozes? Não há como, e é justamente nesse olhar da personagem, de uma memória que persistirá, portanto nunca entrará em descanso pleno, que se baseia, a meu ver, a visão de Bigelow. Depois de tudo, a questão lançada seria o que se ganha, na verdade, com todos os acontecimentos anteriores. Se este filme excepcional deixa perguntas soltas no ar, sem querer decisivamente respondê-las, é justamente porque, como o espectador, dificilmente se conhecerá as verdadeiras respostas.

Zero dark thirty, EUA, 2012 Diretor: Kathryn Bigelow Elenco: Jessica Chastain, Mark Strong, Jennifer Ehle, Chris Pratt, Taylor Kinney, Kyle Chandler, Édgar Ramírez, Reda Kateb, Harold Perrineau, James Gandolfini, Frank Grillo, Fares Fares, Mark Duplass, Stephen Dillane, Jason Clarke Produção: Kathryn Bigelow, Mark Boal, Megan Ellison Roteiro: Mark Boal  Fotografia: Greig Fraser Trilha Sonora: Alexandre Desplat Duração: 157 min. Distribuidora: Imagem Filmes Estúdio: Annapurna Pictures

Cotação 5 estrelas

As vantagens de ser invisível (2012)

Por André Dick

As vantagens de ser invisível 8

Os filmes de universo adolescente com um acento dramático e cômico próprio tiveram uma queda muito grande de qualidade depois da ausência de John Hughes, conhecido por filmes como A garota de rosa shocking e O clube dos cinco. Independente ou não de seus atores terem feito carreira, são filmes que marcaram um período nos anos 1980, identificando o comportamento juvenil com a música. Por isso, é uma grata surpresa assistir As vantagens de ser invisível, desde já uma da obras mais interessantes dos últimos anos.
O diretor de As vantagens, Stephen Chbosky, também escreveu o romance em que o filme se baseia. Daí sua proximidade dos personagens e do clima da história. Charlie (Logan Lerman) acaba de iniciar o ensino médio em sua escola de Pittsburgh, por volta do início dos anos 90, tendo o intuito de fazer amizades, a fim de não voltarem problemas psicológicos relativos a um amigo que se suicidou e à morte de uma tia, ajudado pelos pais (Kate Walsh e Dylan McDermott), pela irmã, Candace (Nina Dobrev) e pelas músicas dos Smiths. Logo ele faz amizade com um professor de inglês, Sr. Anderson (Paul Rudd), que o incentiva a ler romances, e se aproxima de Patrick (Ezra Miller) e Sam (Emma Watson), meio-irmãos, num jogo de futebol americano, de uma turma mais adiantada. A sequência em que Chbosky filma Sam num túnel ouvindo “Heroes” e Charlie falando da infinitude é a síntese inicial deste filme, cercado de quase todos os clichês do gênero (festas, experimentos com drogas, fitas de música, pôsteres de ídolos no quarto) para realçar uma improvável solidão, dificilmente tão bem focada em outros filmes, daquilo que cerca a adolescência.

As vantagens de ser invisível 11

As vantagens de ser invisível.Filme

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O principal elemento de As vantagens é justamente mostrar essa solidão do personagem em meio à multidão (em festas concentradas numa casa ou em festas e refeitórios da escola), assim como sua necessidade de dialogar por cartas com o amigo que se foi. Chbosky o filma contra a parede do salão de festas, enquanto Sam e Patrick aceleram ao ritmo de “Come on Eileen”, dos Dexys Midnight Runners. Ele também quer acelerar os mais de mil dias que precisa ficar na escola: deseja ser escritor e passa a gostar de Sam, protagonista, com Patrick, de uma adaptação de “The Rock Horror Picture Show”, além de esconder o segredo de seu novo amigo ser gay. A eles se juntam a budista e punk, com admiração por filmes estrangeiros, Mary Elizabeth (Mae Whitman), a cleptomaníaca Alice (Erin Wilhelmi), e Bob Stoner (Adam Hagenbuch). Não sabemos se Sam irá corresponder a ele, nem se a namorada que ele passa a ter em determinada altura criará uma reviravolta em sua vida. A sequência na qual Charlie acompanha os amigos à primeira festa, e pede à Sam para que ela prepare um milkshake, quando ele começa a caminhar pelos corredores vazios da casa, parece mostrar, ao mesmo tempo, não apenas a solidão do personagem principal, como Chbosky deseja, como também a do próprio grupo que ali se insere. Ali, parece acontecer apenas uma festa – no entanto, a diferença é justamente cada um dos que levantam o brinde.
O seu deslocamento e a necessidade ou não de ser invisível é o mote para que o diretor consiga dosar tanto elementos pop, na conformidade reconhecida, quanto alguns experimentos com a direção de arte: As vantagens de ser invisível lembra, às vezes, pela iluminação quase atemporal de Andrew Dunn, um filme clássico, dos anos 70. Talvez porque ele consiga falar realmente para todas as gerações. Há lotes e cargas de sensações aqui, mesmo em lugares-comuns a todos, mesmo se esperando justamente que um amigo defenderá o outro, seja qual for a circunstância, ou o ato de ser surpreendido pela pessoa de quem se gosta. Demarcando as sequências, existe uma trilha sonora quase sempre afeita ao gosto dos personagens, e as experiências que podem resultar de ouvi-la seguem de acordo com cada personagem. Há  previsíveis viagens psicodélicas (um rótulo adolescente), alguns personagens um tanto mal desenvolvidos, mas, ao mesmo tempo, há uma dolorosa passagem de tempo, seja quando se vai para as férias, seja quando se é preciso seguir o ritual da escola. Escolher entre um relógio acertado e outro nem tanto: eis as escolhas do diretor, evidenciadas pela impressão de estarmos vendo um panorama abrangente na pele de cada um desses personagens. Embora em alguns momentos a narrativa apresente repetições, é com olhar melancólico que acompanhamos a trajetória dos personagens, na contagem regressiva para a despedida ou reencontro do túnel da adolescência.

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As vantagens de ser invisível emprega para os adolescentes o que Na estrada insere em jovens que desejam transgredir. Mas há uma separação evidente aqui: enquanto os beats significavam um pedaço da América que queria fugir ao establishment (e certamente, no futuro, não fugiriam), os personagens de As vantagens de ser invisível desejam constituir o que eles chamam de plano de vida perfeito, sobretudo serem aceitos numa universidade. A personagem de Sam não é Marylou, porém existe uma antecipação nela dos períodos afetivos que a Charlie chegam de modo diferente. E é nisso que, ao final descobrimos, os aproxima tanto, também pelas falhas e feridas que cada um proporciona ao outro. Notável, também, quando Charlie e Patrick saem à noite, de carro, e se deparam com o tentativa de contornar uma separação por meio da amizade e do afeto incalculado. Daí, o diretor Chbosky conseguir reproduzir as reminiscências de forma tão dolorosa, sem, em nenhum momento, recorrer a alguma manipulação gratuita, capaz de afetar os personagens, nem mesmo com o acento psicológico da parte final.
Em sua segunda experiência na direção, Chbosky alcança isso em razão de um elenco escolhido minuciosamente: é difícil imaginar um ator tão exato para o papel principal quanto Logan Lerman, a despeito de, na maioria das vezes, ele ter a necessidade de se mostrar introspectivo, e Watson consegue demonstrar uma fragilidade emocional quase desconhecida em sua participação na série Harry Potter. Já Ezra Miller foi o ator principal de um dos filmes que menos apreciei no ano passado (Precisamos falar sobre o Kevin). Sua participação em As vantagens mostra, no entanto, que ele é um ator diferenciado, capaz de demonstrar nuances na sua interpretação, a meu ver ausentes no personagem de Kevin.
São atores e personagens em ponto de conversação constante, e o diretor consegue expandir cada um de modo inspirador. Em nenhum momento, e isto é especialmente destacável, As vantagens de ser invisível parece a adaptação de uma história, mas a história em si, ou seja, ela consegue, de modo natural, trazer as situações para perto, de modo que não conseguimos distinguir mais sua própria ambientação daquela que costumamos imaginar em alguma fita perdida com inúmeras músicas de bandas recém-descobertas ou mesmo da luminosidade de lâmpadas e estrelas quando se precisa sair de um ambiente coberto para finalmente tentar entender o que se passa do lado de fora.

The Perks of Being a Wallflower, EUA, 2012 Diretor: Stephen Chbosky Elenco: Logan Lerman, Ezra Miller, Emma Watson, Nina Dobrev, Paul Rudd, Mae Whitman, Melanie Lynskey, Kate Walsh, Dylan McDermott, Johnny Simmons, Nicholas Braun Produção: Lianne Halfon, John Malkovich, Russell Smith Roteiro: Stephen Chbosky Fotografia: Andrew Dunn Trilha Sonora: Michael Brook Duração: 103 min. Distribuidora: Paris Filmes Estúdio: Summit Entertainment / Mr. Mudd

Cotação 5 estrelas

Os miseráveis (2012)

Por André Dick

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O fato de Tom Hooper ter recebido um Oscar precipitado de melhor diretor por O discurso do rei, com um dos filmes menos merecedores do prêmio principal, pode trazer uma desconfiança inicial para Os miseráveis. Em segundo, o fato de o gênero musical sofrer um declínio desde os anos 1970, quando foram feitos Um violinista no telhado e Hair, nos quais a história e as canções envolviam o espectador de forma inegável, e se pode ouvir as trilhas de forma quase independente, tamanho o seu alcance. No entanto, recentemente, torna-se difícil não lembrar da experiência desgastante que Baz Luhrmann nos proporcionou em Moulin Rouge, com sua montanha-russa de imagens, Rob Marshall, em Chicago, apesar dos bons atores, e Tim Burton, no excessivamente soturno Sweeney Todd. Além disso, os atores selecionados para Os miseráveis estavam prontos para entregar uma atuação dramática de ponta, capaz de ser credenciada para o Oscar, e isso, muitas vezes, compromete o resultado, pois soa artifical.
Tom Hooper por trás das câmeras, Anne Hathaway em lágrimas, Russell Crowe tentando cantar e Hugh Jackman na pele de um homem frágil e perseguido: eis os quesitos que podiam ter aniquilado Os miseráveis, baseado não apenas no histórico romance de Victor Hugo, de 1862, mas na adaptação feita inicialmente para a Broadway por Alain Boublil, Claude-Michel Schönberg e Herbert Kretzmer. Não se sabe exatamente, ao final, a contribuição de cada um para o resultado, mas é inegável dizer que Os miseráveis é um alento (incapaz de agradar a todos), podendo ser identificado como espetáculo teatral traduzido para o cinema. Close-ups no rosto dos artistas, câmeras em movimento constante, e ainda assim Hooper foi um dos poucos diretores a traduzir para o cinema uma encenação musical e tornar canções que poderiam simplesmente soar piegas (algumas o são) em algo que merece ser visto e apreciado. A sensação é de que estamos diante de um palco, mas um palco não estável, que nos permite nos aproximarmos das feições e gestos mais imperceptíveis dos atores, tentando vê-los cantar com a própria voz, nem que às vezes isso não aconteça (um tratamento depois da filmagem é visível), os acordes soem imperfeitos e os movimentos, frenéticos. Mas há certamente um propósito: Hooper não conseguiria captar o movimento dos personagens e encobrir o fato de que eles cantam (muito), e não dançam, com planos estáticos ou afastados dos personagens, à medida que cada canto se constitui numa espécie de monólogo e substitui, quase sempre, a sua parte falada.

Les Miserables

Os miseráveis.Filme 4

Desde o início, Os miseráveis impressiona por sua qualidade justamente na direção de Hooper, quando, com um movimento espetacular de câmera, ele mostra um grupo de prisioneiros, em meio à chuva e às ondas do mar, condenado a trabalhar em embarcações (que à época era a condenação por crimes contra a igreja), fazendo um trabalho braçal, sob o olhar de Javert (Russell Crowe). Ele ordena um dos homens, Jean Valjean (Hugh Jackman), preso por 19 anos por ter roubado um pedaço de pão, a erguer um mastro de navio e, em seguida, entrega sua liberdade condicional. Crowe, obviamente, não sabe cantar, mas Os miseráveis consegue justamente por isso (pelo menos na maior parte das vezes, os atores não parecem ter um canto aperfeiçoado depois em estúdio) transparecer a encenação teatral de cada situação. Em contrapartida, Jackman apresenta-se como um ator que consegue se desvencilhar de seus papéis anteriores, e sua peregrinação até ser acolhido numa igreja acontece em poucos minutos, nos quais Hooper emprega uma estética de videoclipe,  sem cair numa superficialidade, ou seja, as imagens continuam parecendo de um filme histórico. Ao roubar algumas pratarias do padre que o acolhe, ele é preso, mas, ao ser entregue por policiais, o religioso o protege. Prepara-se para se transformar em outro homem. E, com a câmera seguindo os olhos de Valjean, somos transportados para anos depois, quando ele já se transformou em dono de uma fábrica e prefeito de uma cidezinha. Uma de suas empregadas, Fantine (Anne Hathaway), precisa ser ajudada, depois de atravessar a prostituição, levando-o à sua filha, Cosette (primeiro, Isabelle Allen, depois Amanda Seyfried, de Mamma mia), e a um casal de oportunistas, os Thénardier (Sasha Bara Cohen e Helena Bonham Carter), a porção Sweeney Todd desta adaptação, sempre perseguido, noite adentro, por Javert. Cada um dos personagens é um símbolo sem dúvida, mas Fantine alcança um poder emocional maior quando canta de “I Dreamed a Dream”. De modo geral, esta é a história de Os miseráveis, e ela se passa, a partir de determinado momento, durante a Revolução dos estudantes contra a monarquia, em Paris, em que se insere o personagem do revolucionário Marius (Eddie Redmayne, de Sete Dias com Marilyn), Gavroche (a revelação Daniel Huttlestone) e Éponine, filha dos Thénardier (Samantha Barks).

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Trata-se, desse modo, ao mesmo tempo, um filme com uma reconstituição de época impressionante, desde a fotografia, passando pelo desenho de produção até o figurino, que soam em harmonia o tempo todo. Destaca-se a mescla do azul (como no teto da Igreja do início do filme, das roupas de vários personagens) com o branco da neve e o escuro da noite, o amarelo das velas e o vermelho das bandeiras e uniformes, iluminados por velas ou candelabros (veja Delacroix).
Particularmente, embora o poder vocal de cada ator varie em intensidade, há exatamente em Os miseráveis, com sua impressionante reconstituição de época e com a direção ousada de Hooper (como Bigelow, Wes e Paul Thomas Anderson, Peter Jackson, os irmãos Wachowski e Tom Tykwer, ele foi desta vez esquecido pelo Oscar), sustentado pela fotografia de Danny Cohen (parceiro do diretor na série John Adams e em O discurso do rei) e uma seleção de músicas que ora conseguem traduzir a experiência de cada personagem, ora simplesmente soam exageradas aos ouvidos, uma ausência de artificialidade, exatamente aquilo que costuma relegar muitos musicais ao esquecimento. Por mais que haja uma quantidade de câmeras em dispersão, em momento algum isso incomoda a ponto de diminuir a obra; pelo contrário, é a partir dessa maneira de registro que o filme ganha uma potência inesperada e realça o pano de fundo dos personagens de Os miseráveis: a miséria do povo, o trabalho escravo, o sofrimento. Não se pode esquecer que Victor Hugo é um autor romântico, e muitas de suas ideias, nesse sentido, realçam o sublime, o contato fervoroso com uma imagem divina. Não por acaso, o personagem Valjean está sempre cercado por imagens religiosas ou de crucifixos, e os cenários parecem sempre assustadores e grandiosos, tornando menor a presença do homem neles – Javert, em específico, está sempre andando em coberturas de prédios, como se fosse quase cair. É, sem dúvida, um elemento básico para a compreensão do filme, ou seja, suas especificações narrativas também pertencem a um determinado período, que o diretor Hooper consegue traduzir para a vertente contemporânea, sem apagar seu elemento histórico.
É bem verdade que exatamente este romantismo exacerbado acaba diminuindo a intensidade da segunda metade, quando Cosette e Marius se apaixonam e, em meio à Revolução de 1832, cantam declarações de amor, enquanto Varjean se conscientiza de que poderá perder sua filha adotiva para outro homem. Nesses momentos, Hooper não consegue contrabalançar da maneira mais coesa o canto de amor com as cenas de revolução (aliás, apesar de apressadas, muito bem feitas), tirando um pouco Os miseráveis do caminho que adotara até então, assinalado ainda por um final um tanto abrupto, embora o filme tenha 158 minutos. Mas não se trata de um equívoco capaz de atrapalhar o filme, pois não se percebe a duração. Pelo contrário: como poucos musicais desde os anos 70, Os miseráveis convida a um novo olhar.

Les misérables, Reino Unido, 2012 Diretor: Tom Hooper  Elenco: Hugh Jackman, Russell Crowe, Anne Hathaway, Amanda Seyfried, Sacha Baron Cohen, Helena Bonham Carter, Eddie Redmayne, Samantha Barks, Aaron Tveit, Colm Wilkinson Roteiro: William Nicholson, baseado na obra de Victor Hugo Fotografia: Danny Cohen Trilha Sonora: Claude-Michel Schönberg Duração: 158 min. Distribuidora: Paramount Pictures Brasil Estúdio: Working Title Films / Cameron Mackintosh Ltd.

Cotação 4 estrelas

O lado bom da vida (2012)

Por André Dick

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A comédia indicada ao Oscar de melhor filme este ano foi O lado bom da vida, baseado em romance de Mattew Quick. Na verdade, trata-se de uma comédia com elementos dramáticos, ao gosto da Academia de Hollywood, com um elenco de atores que mescla o anteriormente desacreditado Bradley Cooper (mais conhecido pela série Se beber, não case) e a promessa Jennifer Lawrence, além de um belo elenco de apoio.
Com um talento insuspeito em outros papéis, Cooper interpreta Pat Solitano Jr., um professor de História que, depois de flagrar a esposa com um colega de trabalho no chuveiro, é internado para tratamento. Depois de oito meses, diagnosticado com transtorno bipolar, e ainda sem estar totalmente bem, sua mãe, Dolores (Jacki Weaver), vai apanhá-lo, a fim de que consiga, aos poucos, voltar à sua vida. Mas Pat não consegue esquecer da esposa que o traiu, Nikki, enquanto seu pai (De Niro), só deseja assistir futebol norte-americano, obcecado pelo Philadelphia Eagles, e realizar apostas, além de ter manias supersticiosas com a mão no controle remoto.
Desde o momento inicial, quando a mãe reencontra Pat, o filme não esclarece totalmente esta ligação dele com os pais, mas o diretor David O. Russell, que escreveu e dirigiu filmes interessantes (como Três reis e O vencedor), consegue fazer o espectador adentrar na bipolaridade de Pat, acompanhando-o numa visita a pessoas do bairro, depois numa noite movimentada de Halloween e a seu terapeuta, o Dr. Patel (Anupam Kher), que deverá frequentar como parte da reabilitação, além de ter uma ordem de restrição em relação à esposa.

O lado bom da vida

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Quando ele conhece Tiffany (Lawrence), irmã de Veronica (Julia Stiles), casada com seu amigo Ronnie (John Ortiz), uma jovem que acabou de perder o marido, um policial, é como se pudesse também haver uma reabilitação amorosa. Cada momento é bem compassado, os diálogos correm num fluxo e Russell permite que nos aproximemos rapidamente dos personagens, por meio de uma conversa sobre comprimidos antidepressivos, o que oferece a eles não exatamente intimismo, mas provocação mútua. Se Pat é o sujeito que ficou perturbado – mas com atenuantes –, e para o filme isso não resulta em nenhum momento de grande melancolia, nem mesmo nos conflitos familiares ou na suposição de que o personagem foi deixado de lado em prol do irmão, Tiffany não pode ser também a mulher perfeita: ela precisa estar em conflito e pode ter tido problemas por depressão em razão da morte do marido. E sabemos que ela pode recuperá-lo do estado em que se encontra, no primeiro encontro. A química dá certo. Há um enlace interessante quando o par protagoniza diálogos mais extensos e Lawrence tem carisma, além de uma tristeza permanente no olhar, embora, no geral, seja ainda uma atriz sendo lapidada (é notável que ela seja apontada como favorita ao Oscar de atriz, à frente das excelentes Emmanuelle Riva e Jessica Chastain).
Basicamente, depois desse encontro, tudo se constrói a partir de uma carta que Pat deseja mandar à ex-esposa por meio de Tiffany, afinal existe a ordem de restrição. É, então, que o filme sofre uma espécie de ruptura, e o personagem Pat, que se desenhava de maneira irônica e mordaz, com sua bipolaridade, atenuada pelo visual e trilha de qualidade, que o filme transpira – e dificilmente um bairro pareceu tão vivo quanto aqui – acaba se inserindo naquele ideal do início, anti-Hemingway, ao ritmo de Cantando na chuva.
Por exemplo, a conturbada relação com o pai, com a boa interpretação de De Niro, revela, em meio a correrias, muita gente discutindo dentro da sala dos Solitano, e as coisas complicam quando o filho é tratado como uma espécie de amuleto para as vitórias do time. Em alguns momentos, parece haver mais agitação do que algo a dizer. Mas Russell, aqui, é ainda anti-Hemingway, embora seus personagens sejam, como o escritor, igualmente atraídos por uma briga: uma sequência mais ao final do filme criará um enlace com o clímax, em que surge uma série de exemplos baseados em jogos para que a loucura de Pat não tenha nada a ver com sua nova paixão.

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Surge daí uma tentativa de convencimento, de que tudo o que foge à conveniência é comum, e não é preciso ir muito longe para que percebamos que a estranheza é habitual a todos, mesmo para o terapeuta. No mesmo sentido, temos a presença de Danny (Chris Tucker), que aparece e desaparece sem que seja melhor elaborado, além de participar de um momento previsível, mas com uma comicidade agradável. Pat acaba sendo sempre perseguido por uma torrente de falas dos outros, como se ele não fosse a pessoa mais problemática (naquele bairro do filme, certamente ele não é). Russell enfatiza a necessidade de apresentá-lo como ameaçador aos outros vizinhos, como se ele, ao se revoltar, criasse uma espécie de sistema que não pode ser entendido por ninguém, apenas pela pessoa que pode se apaixonar também por sua bipolaridade. Ou melhor, como se todos no bairro fossem pessoas contrárias a Pat, que nunca tivessem tido nenhum problema, nem com eles, nem com sua família. No entanto, e isso transparece em muitos diálogos, a conveniência não é uma fuga simples à ruptura; pode ser apenas uma restrição.
É interessante perceber como O lado bom da vida tem elementos diferenciados guardados em sua premissa, e como se apresenta, ao contrário de muitas comédias, muito bem cuidado esteticamente, com uma fotografia que remete, em seu jogo de lâmpadas natalinos, a De olhos bem fechados, de Kubrick, e de câmera, a Scorsese. Tudo isso faz ainda mais com que se crie um ânimo quando Russell alça as atuações do elenco – e não há dúvida de que elas alcançam ótimos momentos – a uma escala capaz de sustentar uma história que desperte o interesse, mesmo recorrendo a alguns artifícios previsíveis, sem ser exatamente uma comédia original. Deve-se considerar, afinal, que Russell não desejava criar nenhuma ruptura com o gênero em que o filme se insere, e sim tornar uma história a princípio mais dramática com tons mais acessíveis para enfrentar a realidade, sem o objetivo de prescrever receituários científicos sobre um determinado problema, como costuma ser acusado, nem escondê-los. Mesmo porque Pat não depende apenas do seu alto astral e da própria autoajuda que se concede para visualizar a revitalização de seu pensamento. A vida dele recomeça justamente quando passa a ter consciência sobre as pessoas à sua volta. Depois disso, não há mais retorno. Nisso, O lado bom da vida consegue atrair o espectador para dentro de sua narrativa e do seu fundo prateado.

Silver Linings Playbook, EUA, 2012 Diretor: David O. Russell Elenco: Bradley Cooper, Jennifer Lawrence, Robert De Niro, Julia Stiles, Chris Tucker, John Ortiz, Jacki Weaver, Montana Marks, Anupam Kher, Brea Bee Produção: Bruce Cohen, Donna Gigliott, Jonathan Gordon Roteiro: David O. Russell, baseado na obra de Matthew Quick Fotografia: Masanobu Takayanagi Trilha Sonora: Danny Elfman Duração: 122 min. Distribuidora: Paris Filmes Estúdio: Mirage Enterprises / The Weinstein Company

Cotação 4 estrelas