O último mestre do ar (2010)

Por André Dick

A produção mais polêmica do início da década passada possivelmente tenha sido O último mestre do ar. Baseado numa animação conhecida da Nicklodeon, ele foi adaptado por M. Nioht Shyamalan, que já vinha de uma sequência de obras criticadas, Fim dos tempos e A dama na água, e, muito em razão do orçamento de seu filme, teve uma bilheteria longe do esperado. Recentemente circulou um vídeo de 2015 em que  Dev Patel, pedia desculpas a alguns fãs pela existência dele.
Bem, é verdade que Shyamalan nunca regressou a este universo por causa da soma de problemas. Mas está longe de ser um desastre – pelo contrário, dentro de sua abordagem é um dos filmes equilibrados a tratar de uma influência espiritual no cinema. Ele lida de maneira competente com a direção de arte, com o figurino (bem trabalhado) e os efeitos especiais (da Industrial Light & Magic, de George Lucas).

Basicamente, é uma adaptação do personagem da Nicklodeon, um menino, Aang (Noah Ringer), que está num iceberg e é libertado por Sokka (Jacjson Rathbone) e sua irmã Katar (Nicola Peltz), que pertencem à Tribo da Água do Sul. Podendo ser o Avatar, ou o último mestre do ar, Aang tem um bisonte voador, Appa, que pode levar o espectador a se lembrar do cão gigante voador de A história sem fim e pretende impedir o crescimento da opressão da Nação do Fogo sobre as outras três nações, do Ar, Terra e Água.
O príncipe da Nação do Fogo, Zuko (Patel), identifica que a libertação de Aang aconteceu e vai atrás para que os moradores da Água do Sul o entreguem. No entanto, Aang consegue escapar com seus novos amigos montado no Appa, para o Templo do Ar do Sul – onde vai se encontrar com seu eu espiritual, seu modo Avatar. Numa vila do Reino da Terra, o menino diz a Katara e Sokka que só domina o elemento do ar e precisa dominar os outros – e pretende ir para a Tribo da Água do Norte, onde os mestres podem lhe ensinar a lidar com a água. Em meio à sua jornada, Aang é traído e precisa enfrentar o comandante dos arqueiros da Nação do Fogo, Zhao (Cliff Curtis).

O roteiro de Shyamalan. baseado nos personagens de Michael Dante DiMartino e Bryan Konietzko, encadeia essa história com certa antilinearidade, dispondo as sequências como em camadas separadas, interligadas apenas pelos personagens e por suas sensações. É como se eles estivessem desprendidos de uma real aventura, no entanto isso não evita que o filme tenha exatamente um espírito de humanidade, que alcança todos os personagens. Há uma certa paz e tranquilidade na abordagem que alcança um sentimento de busca pela espiritualidade, que é do próprio personagem, interpretado com perspicácia por Ringer, que depois só atuaria em Cowboys & aliens. Há uma certa influência de O pequeno Buda, de Bernardo Bertolucci, em algumas cenas de meditação, além de estabelecer um contato com fantasias dos anos 80 na projeção de montanhas gélidas, como em Willow, e navios em alto-mar, remetendo a Troia. Com a trilha sonora de James Newton Howard e a fotografia de Andrew Lesnie, que trabalharam com Peter Jackson em O senhor dos anéis e King Kong, O último mestre do ar se constrói tecnicamente de maneira muito interessante, com grandes cenários e uma sensação de grandiosidade. Fala-se que a narrativa teria sido encurtada em meia hora pela Paramount e talvez em alguns momentos haja sobressaltos desnecessários, no entanto quando há o enfrentamento final tudo parece ter se encaminhado para que ocorresse de maneira interessante.

É Aang o responsável por dar a chave de interesse a O último mestre do ar, com um misto entre sabedoria e humildade, contrapondo-se ao vilão feito por Patel com um certo ar soturno que funciona de maneira geral, em parceria, algumas vezes, com Curtis. Shyamalan também consegue situar o filme de maneira geográfica, expondo o espectador a um universo fantasioso com diversas localidades, sem nunca lotar as cenas de ação com peso demais, até o terço final com uma ótima variedade de imagens envolvendo a água e que transcorre dentro de um plano mesmo poético e contrário muitas vezes à intenção da animação – talvez sua maior crítica. Shyamalan, como em toda sua obra, cerca O último mestre do ar de elementos dos seus demais projetos, principalmente na construção do personagem central, com um figurino que remete à jovem cega de A vila ou ao segurança feito por Bruce Willis em Corpo fechado. Shyamalan também tenta dialogar com a fantasia de filmes de Spielberg e Lucas, tornando a sequência final em algo mais épico e imprevisto do que o restante da trama, no entanto sem deslizar as cenas para um blockbuster genérico.

The last airbender, EUA, 2010 Diretor: M. Night Shyamalan Elenco: Noah Ringer, Dev Patel, Nicola Peltz, Jackson Rathbone, Shaun Toub, Aasif Mandvi, Cliff Curtis Roteiro: M. Night Shyamalan Fotografia: Andrew Lesnie Trilha Sonora: James Newton Howard Produção: M. Night Shyamalan, Sam Mercer, Frank Marshall Duração: 103 min. Estúdio: Nickelodeon Movies, Blinding Edge Pictures, The Kennedy/Marshall Company Distribuidora: Paramount Pictures

Central do Brasil (1998)

Por André Dick

Um dos grande feitos dos anos 90 do cinema brasileiro foi ter ganho o Festival de Berlim com Central do Brasil, de Walter Salles Jr., cineasta de raro talento, como já havia demonstrado em A grande arte (1991), seu primeiro e interessante trabalho, e Terra estrangeira (1995), com fotografia em preto e branco, ao lado da codiretora Daniela Thomas.
Esses dois primeiros filmes indicavam que os elementos da cinematografia de Walter Salles amadureciam e o resultou foi Central do Brasil  (1998) que possui um tom documental, inspirado em parte no cinema de Nelson Pereira dos Santos, elemento acentuado pela crítica. Não chegando ao limite de violência de Pixote, de Hector Babenco, um filme brasileiro igualmente extraordinário, com contornos trágicos, Central do Brasil tem um roteiro propositadamente simples, assinado por João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein, mas universal. Isso talvez explique não apenas o Urso de Ouro em Berlim, como também o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro e a indicação ao Oscar nessa mesma categoria.

Tendo à frente Fernanda Montenegro, escolhida como a melhor atriz em Berlim, e Vinícius de Oliveira, garoto de 11 anos selecionado por Walter no aeroporto Santos Dumont, onde trabalhava  engraxando sapatos, Central do Brasil tem elementos caros a nosso cinema, vindo de uma tradição reafirmada por Cacá Diegues em Bye Bye Brazil, e por Glauber Rocha em O dragão da maldade contra o santo guerreiro.
A ligação entre Dora (Fernanda Montenegro, indicada ao Oscar, que foi injustamente para Gwyneth Paltrow, de Shakespeare apaixonado), uma escrevedora de cartas na Central do Brasil, e o menino Josué (Vinícius de Oliveira), que tem um problema incontornável com a mãe Ana (Sôia Lira)  e quer conhecer o pai, é, no fundo, a descoberta de dois órfãos, tanto de pais quanto da pátria, sobre a realidade que os cerca. Amiga de Irene (Marília Pêra, excelente), Dora, a princípio, fica em dúvida sobre o que deve fazer; quando descobre, resolve descobrir junto o que a trouxe até ali também. Não à toa o filme de Salles é quase um filme de estrada, como Paris, Texas, de Wim Wenders, ou Bagdad Café, de Percy Adlon.

É nesse tipo de filme, afinal, que os personagens vão crescendo na medida em que viajam para longe de seus lares, encontrando a alma perdida em algum ponto de referência na estrada que os aguarda. No caso de Central do Brasil é a estrada brasileira, com alguns tipos inconfundíveis. O exemplo mais bem acabado é o do caminhoneiro (Othon Bastos, muito eficiente), que dá carona a Dora e Josué quando ambos já não tem como comer e viajar para onde querem.
Fugindo do exílio solitário imposto pela vida, atrás de descobertas, Dora e Josué descobrem não só a si mesmos, no fim da jornada, mas também o país, habitado por pessoas sempre em trânsito – elemento de destaque ainda quando a história transcorre na Central do Brasil, quando o movimento da multidão se dirigindo aos trens não arranca Dora e Josué da solidão onde estão exilados –, estradas desertas, povoados escondidos, procissões de fé, famílias desintegradas. País em parte conhecido – fotografado com raro talento por Walter Carvalho – e, ao mesmo tempo, afastado, desconhecido. Esse traço ecoa o cinema de Glauber Rocha principalmente, no seu interesse em filmar lugares despovoados, longos trechos de estrada apontados para o nada. E Salles visualiza isso de modo humano, não apenas estético.

Com trilha musical comovente de Jaques Morelenbaum, Central do Brasil se desenrola num cenário de feiras, reuniões espirituais, agrupamentos, por meio, é claro, da amizade entre a escrevedora de cartas e o garoto. Na época de seu lançamento, o filme de Salles foi uma espécie de coroamento para uma indústria que vinha com uma lista diversificada de filmes, a exemplo de Os matadores, A ostra e o vento e Guerra de Canudos, entre outros. Seu enfoque principal, contudo, é o de figuras solitárias, com as quais Salles trabalha em A grande arte (como a do fotógrafo vivido por Peter Coyote, cujas relações femininas vão desaparecendo no decorrer da história), Terra estrangeira (os brasileiros que, no exterior, buscam espaço), além de – num escopo  mais abrangente na filmografia do diretor –, a mãe recém-separada feita por Jennifer Connelly em Água negra, o menino que sonha em ser jogador de futebol em Linha de passe e a amizade entre Jack Kerouac e Sal Cassidy de Na estrada. O olhar de Josué, numa grande atuação de Oliveira, ao final de Central do Brasil, certamente é um olhar para um país sempre em autodescoberta. É genuíno e de forte impacto.

Central do Brasil, BRA/FRA, 1998 Diretor: Walter Salles Elenco: Fernanda Montenegro, Marília Pêra, Vinícius de Oliveira, Othon Bastos, Otávio Augusto, Matheus Nachtergaele, Sôia Lira Roteiro: Marcos Bernstein, João Emanuel Carneiro Fotografia: Walter Carvalho Trilha Sonora: Jacques Morelembaum, Antonio Pinto Produção: Martine de Clermont-Tonnerre, Arthur Cohn, Robert Redford, Walter Salles Duração: 113 min. Estúdio: VideoFilmes Distribuidora: Europa Filmes/Sony Pictures Classics 

Cisne negro (2010)

Por André Dick

No final dos anos 90, Darren Aronofsky foi uma revelação do cinema independente com o experimental Pi, seguido por Réquiem para um sonho, um dos melhores momentos de Jared Leto. Depois do grande sucesso de Fonte da vida e O lutador (este indicado ao Oscar de melhor filme), Aronofsky faria sua obra talvez mais conhecida e bem-sucedida até agora em sua filmografia: Cisne negro.  Nathalie Portman interpreta Nina, uma bailarina que quer estrelar “O lago dos cisnes”, no entanto para isso precisa enfrentar alguns percalços: o professor, Thomas Leroy (Vincent Cassel), que não deseja escolhê-la, por considerar que ela não conseguirá se dividir entre os dois cisnes (o branco e o negro) exigidos para a encenação; a amiga que parece querer seu lugar, Lily (Mila Kunis); e ainda a sua mãe, Erica (a excelente Barbara Hershey), que não foi a bailarina que gostaria de ter sido e exige dela um comportamento exemplar no que se refere a ensaios exaustivos – mesmo que ela machuque os pés.
Num clima de conto de fadas de terror, relembrando momentos de Pi e Réquiem para um sonho,  o diretor mostra talento na condução das cenas, alternando cenas que parecem reais com outras surrealistas, mas sempre trabalhando com a psicologia das personagens, com o objetivo de revelar que o mundo da dança pode enlouquecer – e de fato enlouquece essa personagem.
O diretor da adaptação deseja extrair o que não vê em Nina: o cisne negro, e Aronofsky quer dar essa amplitude por meio de reflexos de espelhos, e na imaginaçsurão dela luzes são desligadas antes de se terminar o ensaio para prejudicar seu ensaio. Esses reflexos podem estar presentes em frente ao espelho de uma festa, ou no metrô, ou mesmo na passagem, por uma passarela, ao lado de alguém que parece uma réplica.

Ao  mesmo tempo, a fotografia de Matthew Libatique mostra uma Nova York tenebrosa, sempre acompanhando os passos de Nina, seja à sua frente, seja pelas costas, revelando a opressão do mundo em que ela se insere (difícil imaginar outro desconforto maior do que a escolha de Thomas de suas bailarinas. Nina não conhece sua sexualidade e, para Aronofsky, isso a impede de desenvolver seu lado mais obscuro. Trata-se de uma narrativa que busca a transição da adolescência para a vida adulta, o que, para alguns, significa a morte – e o sexo, o prazer, está sempre associado a algo mórbido ou que pode afastar da visão idílica que se tenta ter das coisas. Não se trata exatamente de uma abordagem sutil, e Aronofsky não a tem como objetivo. Sua meta é, por meio da figura da bailarina, suscitar uma coleção de metáforas.
E como a mulher, aqui, é vista de forma infantil: Nina substitui a bailarina Beth (Winona Ryder), mas é como se uma roubasse o doce da outra. A cena da festa, em que Thomas apresenta Nina a todos os convidados para o novo espetáculo da companhia, mostra esta tentativa de exercer um poder que, na verdade, inexiste. Não há densidade para elas, e a dança é apenas uma maneira de realizar as fantasias da caixinha de música encostada na cama. Na saída do evento, Nina precisa enfrentar Beth (ao lado de uma estátua, que Aronofsky deseja transformar em movimento).

Ela também precisa enfrentar a mãe, que lhe traz um bolo e, repreendida pelo fato de que o doce pode engordar, fica perturbada – certamente a figura mais caricata, contudo pode ser também proposital –, e mais adiante precisa sair à noite para uma boate. Quebrar regras, aqui, é um clichê, e por isso cada cena soa como uma ópera desencontrada de realidade.
Mila Kunis (em momento raro, indicada a melhor atriz coadjuvante) representa esta passagem para um universo desconhecido – ela poderia representar melhor o cisne negro, talvez. Ela também é apreciada por Thomas por sua dança espontânea e não calculada, segundo ele, como a de Nina (um de seus primeiros conselhos é que Nina descubra o próprio corpo, mas o faz com a mesma falta de sutileza de alguém que oprime). Esta, na contramão de sua própria personalidade, precisa, a fim de interpretar o cisne negro, cobri-la com outra personalidade, fantasiosa e capaz de colocá-la num ponto de enfrentamento com a realidade à sua volta – e surge, em sua pele, algo que lembra não mais um humano. No entanto não apenas Nina. Thomas também não parece tão humano (e num filme em que Portman certamente brilha com intensidade, a primeira vez realmente depois de O profissional, e V de vingança, Cassel não fica para trás, com uma composição excelente da petulância contida).

O diretor está interessado por esse universo da dança como poucos antes no cinema (obras sobre dança costumam ser apenas dramáticos ou fantasiosos), fazendo um bom trabalho casado de fotografia, direção de arte e efeitos sonoros, pois a sonoridade quer marcar presença mais do que a trilha sonora de Clint Mansell. E os efeitos, muitas vezes, são assustadores.
Diante disso, estamos também lançados num filme sem gênero demarcado. O que Cisne negro poderia ser? Um drama? Um suspense? Um terror? Certamente, um híbrido de todos esses elementos. E Cisne negro, com seu psicologismo falho e irregular, porém ainda interessante, ainda consegue ser um filme pop, ou seja, acessível, ao mesmo tempo que exerce um magnetismo próprio de cult movie.
Uma visita de Nina ao hospital, a fim de ver Beth, apresenta uma das sequências mais assustadoras da narrativa. Quando Nina percebe que pode ficar como Beth, só resta a ela fugir na noite. E, como bailarina, ela, na verdade, deseja ser uma boneca, então não há nada de anormal no fato de que ela pode, de alguma maneira, quebrar. O filme, com isso, trata também do receio da personagem em voltar a ser esquecida, em ficar isolada num hospital ou numa cama de quarto.

O que ela precisa fazer – e Aronofsky tenta conduzir – é escapar da trajetória linear que sua vida seguia até então, nem que para isso precise encarar uma semirrealidae, capaz de trazê-la cada vez mais para baixo (aonde ela é conduzida, em meio a luzes da discoteca ou dos ensaios, que acontecem entre subidas e descidas de longas escadarias).
Para isso, o diretor mostra fragmentos de narrativa, a revolta da personagem com a vida real, e desenhos se movimentado, algo digno de O iluminado. Nina não quer se entregar a seu outro lado – que pode representar um pesadelo –, entretanto o fato de não conseguir, ou seja, fracassar em seu intento, parece ser pior: toda a carga de repressão sexual poderia vir de uma vez só à tona, sufocando a personagem. Desse modo, ela fica num meio termo entre conseguir ou não sua libertação – o caminho para isso é tortuoso, mas, de algum modo, ainda neste cenário de pesadelo, mais confortador do que voltar atrás. É nisto que parece se concentrar Cisne negro: que se deve aguardar o acender das luzes e ver se a plumagem cobriu o que realmente faltava. 

Black swan, EUA, 2010 Diretor: Darren Aronofsky Elenco: Natalie Portman, Mila Kunis, Vincent Cassel, Barbara Hershey, Winona Ryder Roteiro: Mark Heyman, John McLaughlin, Andres Heinz Fotografia: Matthew Libatique Trilha Sonora: Clint Mansell Produção: Scott Franklin, Mike Medavoy, Arnold Messer, Brian Oliver Duração: 108 min. Distribuidora: Fox Film Estúdio: Phoenix Pictures / Fox Searchlight Pictures / Protozoa Pictures

Nascido para matar (1987)

Por André Dick

Este texto contém spoilers

Em 1986, foi premiado pelo Oscar um filme marcante sobre a Guerra do Vietnã, Platoon, com direção de Oliver Stone e ótimos atores (destaques para Tom Berenger e Willem Dafoe). Pouco fica a dever para Apocalypse now, de Coppola. Stone serviu de fato na guerra (ele faz uma ponta no filme) e seu retrato é bastante realista, sem discursos patrióticos ou cenas piegas. Há sequências fortes, como a dos soldados colocando fogo numa vila, sob o olhar de um jovem, Chris (Charlie Scheen), que se alista para ir ao Vietnã, pois seu avô e seu pai também serviram na guerra. No front, depara-se com um comandante bom, Elias (Dafoe), em que encontra a figura de sua infância, e um paranoico (Berenger, com maquiagem pesada), além da presença de amigos (como aquele feito por Forest Whitaker. Depois de Platoon, gostando-se ou não da visão de Stone, seria difícil tratar novamente da guerra sob um enfoque original.

A forma com que Kubrick conduz a história e a falta de emoção talvez, sob certo ponto de vista, poderiam prejudicar Nascido para matar, justamente depois de Platoon (lançado apenas um ano antes). Mas, o que é impressionante, não o diminui em relação à obra de Stone e a Apocalypse now – um filme de ruptura. Quanto às imagens, por exemplo, o diretor de 2001 e Laranja mecânica continua especial. Ele adapta, em parceria com Michael Herr, um conto de Gustav Haford para mostrar, em sua primeira parte, um pelotão de fuzileiros sendo treinado por um sargento sádico, Hartman (R. Lee Ermey), tendo um dos jovens como algoz para seu trato mais do que rígido. Trata-se de um soldado, Leonard “Pyle” Lawrence (Vincent D’Onofrio), que sempre fica para trás nos exercícios e costuma fazer várias ações de guerra de modo equivocado, tornando-se odiado pelos colegas (há uma cena noturna de vingança coletiva).
No entanto, como se vivesse uma espécie de reação inconsciente, ele passa a demonstrar competência com armas e se torna um atirador ágil. Ao mesmo tempo, isso vai despertando a loucura, como se estivesse no hotel abandonado de Jack Torrance, em O iluminado. Esta primeira parte do filme tem uma carga de tensão muito grande, mesmo com as várias músicas de corrida entoadas por Hartman e sua implicância com Pyle ser tão exagerada que parece até às vezes caricata, e encerra-se de forma trágica, depois de Hartman distribuir as funções para cada um e gritar com Joker(Matthew Modine (um ator bastante frio, o que prejudica a empatia do espectador),: “Você é um assassino, não um escritor”, quando ele é destacado para trabalhar na área jornalística da guerra. Kubrick, no entanto, neste treinamento, quer mostrar, como em outros filmes seus – a começar pelo principal, 2001 –, a solidão do ser humano, sobretudo quando diante de situações adversas e num lugar desconhecido e árido. Além disso, as atuações de Ermey (única indicação do filme ao Oscar, como atriz coadjuvante) e D’Onofrio são extraordinárias.
Na segunda parte, integrantes do pelotão treinado por ele, tendo à frente o personagem Joker, que fazia parte da tropa de Hartman e de Pyle e agora está no front da batalha do Vietnã, trabalhando como jornalista no periódico Stars and Stripes, ao lado do fotógrafo Rafterman (Kevyn Major Howard). No entanto, ele é chamado para o campo de batalha, onde poderá reencontrar seu amigo Cowboy (Arliss Howard).

Tendo no capacete o dizer “Born to kill” e um símbolo da paz grudado no colete, ele é advertido a responder se ele leva a sério aquilo. Ele diz se tratar do retrato da dualidade humana, de acordo com as teorias junguianas. Ele também é obrigado a conviver finalmente com a loucura que chegou a Pyle antes do ingresso na guerra e passa a integrar a tropa a partir de determinado momento coordenada pelo amigo Cowboy, na qual há o provocador Animal Mother (Adam Baldwin), que chega a uma cidade em ruínas, onde os soldados estão sendo mortos por um atirador isolado.
Apesar da falta de ação no entreato do filme – em que se mistura uma narração jornalística, com pelo menos uma sequência que lembra M.A.S.H., de Robert Altman, mostrando o absurdo da guerra –, a meia hora final possui certo suspense, que o torna brilhante – com uma feroz ironia na canção lembrada pelos soldados sobre as ruínas vietnamitas. Além de cenas de impacto (como a invasão de um homem-bomba em determinado momento, ou um soldado norte-americano que mata vietnamitas a esmo em um helicóptero e ainda quer matéria da revista). Síntese de um diretor que realiza imagens emocionantes e opta muitas vezes, pela falta de diálogos – o que ajudaria num filme de guerra como este. Pauline Kael falou que o espectador não fica estupefato com a visão de Kubrick sobre a guerra,  mas com o vazio dessa visão, e ela tem razão nesse sentido em alguns momentos (embora no mesmo ano ela elogiasse Esperança e glória, interessante, destituído de ritmo). Parece não haver, a princípio, uma clara ponte de ligação entre a primeira e a segunda partes. No entanto existe. Hartman, no início, debocha de seus novos soldados, com referências depreciativas à figura da mulher e a atiradora que encurrala a tropa de Cowboy e mata dezenas de soldados norte-americanos não deixa de ser uma resposta, para Kubrick, à linguagem de Hartman e, posteriormente, dos soldados.

Do mesmo modo, Joker é obrigado, como no momento em que Pyle toma a atitude no fim da primeira parte, a encarar a morte de frente, em outra situação, e ouvir uma pergunta que não conseguiu fazer quando ameaçado por aquele que o via como amigo. A direção de arte é outro elemento que ao mesmo tempo aproxima e afasta as duas partes. Se a primeira parte tem ambientes simétricos, como o local em que ficam os soldados, com as camas armadas paralelamente, e os lençóis devem ser alinhados perfeitamente, a dispersão e o caos sobrepujam qualquer outra coisa. Também não parece deliberado que Kubrick coloque a única cena em que os personagens estão reunidos, demonstrando alguma emoção, mesmo que seja de raiva, ao final, diante da atiradora vietnamita. O que eles aprendem no quartel é justamente esquecerem qualquer emoção – no entanto, a morte impede que isso aconteça.
Kubrick é um hábil artesão e ele não dispõe as peças dessa forma sem um motivo considerável. Seus personagens são arquétipos de uma guerra enlouquecedora, e o vazio que se abate sobre eles é a representação mais contundente da falta de escape daquele universo, no qual podem para sempre se perder.

Full metal jacket, EUA, 1987 Diretor: Stanley Kubrick Elenco: Matthew Modine, Adam Baldwin, Vincent D’Onofrio, R. Lee Ermey, Dorian Harewood, Arliss Howard, Kevyn Major Howard, Ed O’Ross, John Terry, Kieron Kecchinis, Kirk Taylor, Jon Stafford, Ian Tyler, Papillon Soo, Bruce Boa Roteiro: Gustav Hasford, Michael Herr, Stanley Kubrik Fotografia: Douglas Milsome Trilha Sonora: Vivian Kubrik Produção: Jan Harlan, Michael Herr Duração: 117 min. Estúdio: Natant e Harrier Films Distribuidora: Warner Bros.