Dumbo (2019)

Por André Dick

A adaptação de Dumbo em live-action segue o cronograma dos estúdios Disney de adaptações com atores ou cenários repletos de CGI das animações clássicas do estúdio. Nos últimos anos, tivemos vários sucessos nesse campo: Malévola, Cinderela, Mogli – O menino lobo, A bela e a fera e neste ano ainda serão lançados Aladdin e O rei leão. Baseado no original de 1941, um dos filmes prediletos de Walt Disney, a nova versão é dirigida por Tim Burton.
O filme começa mostrando Holt Farrier (Colin Farrell), que está voltando da Primeira Guerra Mundial para o circo Medici Bros, coordenado por Max Medici (Danny DeVito). Ele é pai viúvo de Milly (Nico Parker) e Joe (Finley Robbins) e, tendo vindo da guerra sem um braço, é contratado para cuidar de um elefante recém-nascido, com grandes orelhas, o que o torna excêntrico, chamado Dumbo. Isso desperta o interessa de um grande empresário, VA Vandevere (Michael Keaton), que deseja comprar o circo de Medici para obter a atração e levá-la para Dreamland (um equivalente de Tomorrowland), sempre ao lado de Colette Marchant (Eva Green), uma trapezista da França.

Surge também J. Griffin Remington (Alan Arkin), um grande magnata de Wall Street. O original dos anos 40 ainda se mantém como uma animação de qualidade primorosa, mas, como alguns clássicos da Disney, se sente estranhamente incompleto. Essa é a dificuldade que Burton tem, em primeiro lugar: Dumbo não comporta uma história com muitos caminhos, sendo essencialmente a história de um filhote de elefante afastado da mãe, no original com econômicos 64 minutos (pouco menos da metade da sua versão com humanos). Isso estabelece uma emoção que é captada às vezes no original, no entanto nunca trabalhada exemplarmente, como se repete aqui. E Burton se arrisca a criar camadas de diferentes personagens, o que não havia no original, restrito quase totalmente à visão do mundo dos animais (e não há aqui, especialmente, o ratinho amigo de Dumbo) e faz algumas referências curiosas a Santa Sangre, de Jodorowsky, com o auxílio do roteiro de Ehren Kruger, que escreveu Os irmãos Grimm, por exemplo.
Com a fotografia de Ben Davis, que fez trabalhos ótimos em Guardiões da galáxia e Três anúncios para um crime, substituindo Bruno Delbonnel, parceiro de Burton em suas últimas empreitadas, o ótimo e subestimado Sombras da noite e o delicado O lar das crianças peculiares, e a trilha sonora de Danny Elfman, tentando inovar nos acordes, com eficácia, Burton realiza o que pode com o material: Dumbo é uma fantasia com elementos emotivos e de valorização da família, com um personagem marginalizado, como é de praxe na trajetória do diretor, de Batman a Ed Wood e de Edward, mãos de tesoura a Willy Wonka.

Mais: Burton consegue, por meio da figura de Marchant, criar um vínculo materno não apenas dela com as crianças de Farrier, como também com o próprio Dumbo. É Eva Green, possivelmente, o melhor elo de ligação da história com o espectador, embora Farrell também esteja bem e Keaton e DeVito bastante efetivos – principalmente Keaton, parecendo interpretar Will Arnett, de Arrested development. No caso do personagem de Medici, não há como não lembrar de outra participação de DeVito na filmografia de Burton, em Peixe grande e suas histórias maravilhosas, que contém imagens expandidas aqui, sobretudo por causa da imagem do circo no imaginário.
É possível perceber, desde a imagem do trem no início, toda a carga de estilo de Burton, que leva seu filme para pontos familiares do espectador, e fazem lembrar, sobretudo, A fantástica fábrica de chocolate (a imponência de Dreamland), no entanto inicialmente o cineasta está tentando dialogar com o cinema dos anos 40, com referências a Buck Jones por meio de Holt Farrier – ambos passaram por ferimentos na guerra. Também é interessante como Burton consegue criar uma atmosfera inovadora em seu projeto utilizando uma fotografia com cores de pôr do sol, o que remete, em determinado momento, a Cinzas do paraíso, de Terrence Malick, influenciado claramente pelas pinturas de Edward Hopper. A partir do segundo ato, ele, por meio da grandiosidade, retoma um design de produção vital de Rick Heinrichs, que remete a seus projetos desde Batman – O retorno, e Vandere lembra em parte Max Schreck, vilão daquela obra. E, se há algo que aprendemos com a filmografia de Burton, é que não se pode dissociar a narrativa que ele conta da maneira como a conta: fazer isso é simplesmente subvalorizar seu olhar atento para a captura de imagens inesquecíveis, como aquelas dos animais solitários à noite, numa selva enjaulada, em contraposição a outro momento do roteiro.

Se o desenho animado dos anos 40 é muito mais ingênuo e baseado em trapalhadas dos elefantes, assim como se utiliza deles falando, a versão de Burton, como parte de sua trajetória, é mais soturna. Mais ao final, quando os personagens infelizmente ficam em segundo plano, prejudicando Farrell e Green, fica exposta essa grande diferença. O discurso de crítica contra o corporativismo soa quase sempre estranhíssimo num filme dos estúdios Disney (num momento em que compram a Fox), no entanto está de acordo com seus projetos anteriores. Aliás, é curioso que Burton, que saiu da Disney para seguir seu caminho particular nos anos 80 (com Frankenweenie e As aventuras de Pee-Wee), tenha se voltado, desde Alice no país das maravilhas, a conversar com esse imaginário e mesmo a reproduzi-lo para novas gerações. A sua diferença é basicamente autoral: quando vemos Dumbo, sabemos estar diante de uma obra de Burton. De algum modo, mesmo que não pareça, ele nunca coloca seu universo definitivamente à venda. É curioso que neste caso ele lembre essencialmente o criador da Disney.

Dumbo, EUA, 2019 Diretor: Tim Burton Elenco: Colin Farrell, Michael Keaton, Danny DeVito, Eva Green, Alan Arkin, Nico Parker, Finley Robbins Roteiro: Ehren Kruger Fotografia: Ben Davis Trilha Sonora: Danny Elfman Produção: Justin Springer, Ehren Kruger, Katterli Frauenfelder, Derek Frey Duração: 112 min. Estúdio: Walt Disney Pictures, Tim Burton Productions, Infinite Detective Productions, Secret Machine Entertainment Distribuidora: Walt Disney Studios Motion Pictures

cotacao-3-estrelas-e-meia

 

Vox Lux – O preço da fama (2018)

Por André Dick

Em 2017, Natalie Portman perdeu injustamente o Oscar de melhor atriz pelo filme Jackie, que seria o seu segundo, superada por Emma Stone em La La Land (de qualquer modo, uma bela atuação). No Oscar deste ano, é inexplicável que ela não estivesse entre as nomeadas num grupo que incluía atuações de Glenn Close e Olivia Colman, pois ela merecia o prêmio. Ela está um nível acima das demais, em termos de atuação, em Vox Lux – O preço da fama com roteiro estranhíssimo na maneira como se apresenta em blocos e condução diferenciada do jovem diretor e ator Brady Cobert.
Ele começa com duas irmãs na adolescência, Celeste (Raffey Cassidy) e Eleanor “Ellie” Montgomery (Stacy Martin), passando por uma experiência terrível: um tiroteio na escola em 1999, quando um jovem faz  vítimas ao invadir uma sala de aula. Celeste passa a ser trabalhada como uma estrela, uma cantora, em potencial, depois de fazer uma canção sobre o acontecimento, sempre ajudada pela irmã e com o auxílio de um empresário (Jude Law) e Josie (Jennifer Ehle), da área de publicidade.

Ela grava um trabalho na Suécia, com um produtor de hits, e se consagra. O mais interessante é como Cobert mostra esse momento em sua vida, acelerando a narrativa como se fosse exatamente uma espécie de videoclipe. Ela grava um em que está de carona numa moto ao longo de um túnel, que será o símbolo da vida da personagem. Anos mais tarde, em 2017, Celeste tem 31 anos, é interpretada por Portman, e possui uma filha adolescente, Albertine (novamente Cassidy) e está se preparando para a maior turnê de sua trajetória. Também tem problemas com álcool e drogas de outros tipos, fornecidos pelo empresário. No mesmo dia em que ela vai iniciar, um grupo terrorista faz um ataque contra pessoas numa praia da Croácia com máscaras idênticas às que ela usa nesse videoclipe de sua carreira. É uma obra também sobre culpa e como ela se introjeta na personagem.
O filme conta com a narração de Willem Dafoe, que faz lembrar um pouco a obra de Lars von Trier (Cobert atua em Melancolia), e, nessa passagem de tempo (também assinalada pelo ataque às Torres Gêmeas, em 2001, justamente na noite em que conhece um interesse amoroso), o diretor parece mesclar a despretensão e o vazia do universo da música pop com a própria violência surgida de elementos psicóticos. Há um peso inesperado em suas imagens, muito por causa do trabalho de fotografia de Lol Crawley, e na atuação excelente de Portman, que, apesar de aparecer apenas nos dois terços finais da narrativa, a conquista para si e encarna realmente uma estrela pop, fazendo um meio-termo entre estrelas pop do início do século, principalmente Britney Spears, Christina Aguilera e Lady Gaga (referência evidente no terceiro ato).

Do mesmo modo que ela, Cassidy é uma boa revelação, prosseguindo o talento já mostrado em Tomorrowland. A relação entre as duas, como mãe e filha, é plausível, mais ainda a maneira como ela lida com esses acontecimentos-chave e de violência para tentar ignorá-los se mantendo na linha de uma diva pop com mensagens em telões eficientes. O trecho em que ela se desloca do camarim, dos bastidores, para uma conversa ao longo de uma rua de Nova York, até entrar num bar com a filha, e revelar sua insegurança diante do que a cerca, é um triunfo na direção de Cobert, e um exemplo de como Portman é capaz de controlar uma cena. Ela se tornou uma atriz muito superior com as duas experiências que teve na filmografia de Malick (Cavaleiro de copas e De canção em canção), deixando uma certa timidez de lado e partindo para momentos quase improvisados, de uma certa desesperança diante da realidade, e o mesmo se pode dizer de Law, que aqui se mostra numa nova parceria com a atriz já revelada em Closer – Perto demais com uma grande consciência interpretativa, mesmo com poucos diálogos.

Este é um filme sobre a cultura e a política na América, a mania de se tentar esvaziar os temas para preenchê-los com um colorido animador, e como tudo isso não impede uma maldade que se manifesta sempre dos lugares mais inesperados e por pessoas já esvaziadas de qualquer sentimento. Por isso, Vox Lux é um referencial para entender sua própria época. A estrela está chorando pelas perdas que acontecem ao seu redor com toda a sua crise e desorientação pessoal; ela aparenta servir de guia. Não serve, mas ela está lá, tentando resistir, como cada um que se junta a um coro musical ilusório. Para o diretor Cobert, a arte é muito mais; é um retrato da confusão buscando pela tranquilidade, como na cena em que mãe e filha se ajoelham na areia da praia para orar pelas pessoas que se foram. Não importa o passar dos anos, o que importa é a experiência do momento e a carga de aprendizado que ele carrega. Vox Lux leva isso a um ponto em que o espectador tem certeza de que está diante de algo a ser transformado, e simplesmente é aquilo que o público espera atingir por meio dos sonhos fornecidos por outra pessoa. Não deixa de ser uma tentativa de reencontrar um sentimento de otimismo.

Vox Lux, EUA, 2018 Diretor: Brady Corbet Elenco: Natalie Portman, Jude Law, Stacy Martin, Jennifer Ehle, Raffey Cassidy Roteiro: Brady Corbet Fotografia: Lol Crawley Trilha Sonora: Scott Walker Produção: Christine Vachon, D.J. Gugenheim, Brian Young, Michel Litvak, Andrew Lauren Duração: 110 min. Estúdio: Killer Films, Andrew Lauren Productions, Bold Films Distribuidora: Neon

Suspíria – A dança do medo (2018)

Por André Dick

A versão de Luca Guadagnino para Suspiria retoma alguns elementos narrativos do original, mas os reveste com um novo olhar. Ele inicia justamente na Alemanha em 1977 (ano do filme original), quando chega uma norte-americana menonita vinda de Ohio, Susie Bannion (Dakota Johnson), ao Markos Dance Academy, em Berlim. Uma de suas estudantes, Patricia Hingle (Chlöe Grace Moretz), desapareceu, depois de contar ao seu psicoterapeuta Josef Klemperer (Tilda Swinton) que a Academia é coordenada por bruxas, que formariam as Três Mães: Mater TenebrarumMater Lachrymarum e Mother Suspiriorum. Klemperer suspeita que algo acontece de errado na academia depois do desaparecimento dela.
Durante um dos ensaios, a estudante Olga (Elena Fokina) discute com a coreógrafa Madame Blanc (novamente Tilda Swinton) – e isso justamente um pouco antes de Susie começar a se destacar, numa coreografia determinada pelo impulso das mãos de Blanc. Embora Gadagnino não utilize as cores como Argento fazia na versão dos anos 70, pelo contrário compõe uma espécie de extensão do cenário da Segunda Guerra, com uma Alemanha ainda dividida em oriental e ocidental, e ruas e muros que lembram os guetos onde os judeus foram tragicamente assassinados. Embora com um estilo simétrico que às vezes remeta a Nicolas Winding Refn em Demônio de neon, Suspíria – A dança do medo joga com mais nuances, principalmente em seu design de produção e na fotografia repleta de zooms e captação atmosférica de Sayombhu Mukdeeprom.

Por isso, pode-se dizer que esta refilmagem lida com uma camada quase histórica e absolutamente séria e outra camada ligada ao terror mais ostensivo. Quase nunca Suspíria se inclina para o sangue do original – no entanto, quando se inclina, lida com imagens que, embaralhadas, vão formando um sentido metafórico, principalmente no primeiro ensaio de dança, que cria um paralelo com uma situação angustiante e muito bem filmada. Mesmo quando Susie chega à Academia, forma-se a palavra Theathre num letreiro embaralhado a seu fundo; em outros momentos, o espectador vê a capa de uma revista com a palavra Terror, como se estivesse comentando o que acontece, e a gangue Baader-Meinhof, um grupo violento à solta em Berlim e que toma conta dos noticiários.
Na Academia, também há a líder Madre Markos (Swinton novamente), que controla o clã, Miss Tanner (Angela Winkler) e Miss Griffith (Sylvie Testud). Susie, longe da sua rotina, torna-se amiga de Sara (Mia Goth) e passa a ser protegida por Blanc, principalmente para a nova peça que será encenada, “Volk”.

Argento fazia em seu filme uma espécie de diálogo multicolor com o expressionismo alemão: enquanto lá contava o jogo de sombras no preto e branco, em Argento o arsenal de cores trabalha para não identificar seu cenário com o que existe de mais aparentemente assustador, tal como Jodorowsky havia feito em A montanha sagrada, quatro antes, para mostrar uma certa psicodelia visual dos anos 1970. Esta trajetória vivida pela personagem central era típica de um personagem ingênuo de conto de fadas: não por acaso, ela sempre estava à mercê das pessoas a seu redor, fragilizada e assustada. Suzy era uma reprodução de várias mocinhas dos estúdios Disney e o espectador percebia que em algum momento estava vendo uma espécie de Alice no país das maravilhas em formato de terror e sustos. Também podia estar em meio a O mágico de Oz, uma influência declarada para a captação de cores da iluminada fotografia de Tovoli, em que os movimentos das pernas embaixo d’água na piscina adquiriam uma sobreposição com a cena do bosque da abertura do filme e uma ameaça externa, vinda de uma figura ligada à magia.

Na versão de Guadagnino, Suzy é uma personagem muito mais ligada a uma sexualidade não latente, encoberta por sua ligação familiar, pela doença familiar e por sua perturbadora ligação com Madame Blanc, bem delineadas pelas atuações de Dakota e, sobretudo, de Swinton (perfeita no papel e preparada para ele pelo menos desde Amantes eternos). O design de produção do novo Suspiria não se faz exatamente pela linha do onirismo dessa multiplicidade de cores, concentrado mais em cores que remetem à roupa que usavam os judeus nos campos de concentração. A paleta de cores trabalha mais com vidros embaçados, pisos geométricos, salas escondidas por cortinas ou espelhadas. O subsolo da Academia esconde segredos assim como o passado da personagem central e expande o que Guadagnino havia feito em Um sonho de amor e Me chame pelo seu nome.
A trilha de Thom Yorke (Radiohead) substitui a clássica de Globi, muito mais baseada em cordas que evocam uma tensão interna do que uma sinfonia que remete a um filme de terror angustiante. É interessante como Guadagnino a utiliza para tornar sua trama semilenta, baseada em poucos movimentos dos personagens. A trama, não à toa, vai sendo conduzida aos poucos, com cada um mostrando (ou não) suas motivações. Percebe-se que o roteirista David Kagjanich não aprecia realmente o original: sua tentativa é a de desenhar uma obra de terror com um pano de fundo de textura histórica. Klemper é o elo de ligação da narrativa com essa história, culpado de ter perdido sua esposa para os nazistas durante a Segunda Guerra e que sintetiza o paralelismo com a academia de dança: os horrores da guerra se reproduzem disfarçados pela música clássica. E, se os dois primeiros atos possuem uma lentidão europeia que renova o gênero de terror substancialmente, a parte final suscita uma aproximação evidente com experimentos fellinianos: Guadagnino transforma a Academia numa espécie de submundo da versão do diretor italiano para Satyricon. É perturbador e realizado com máxima competência, dando a seu filme uma importância maior do que imaginaria ter.

Suspiria, EUA/ITA, 2018 Diretor: Luca Guadagnino Elenco: Dakota Johnson, Tilda Swinton, Mia Goth, Angela Winkler, Ingrid Caven, Elena Fokina, Sylvie Testud, Renée Soutendijk, Christine LeBoutte, Fabrizia Sacchi, Małgosia Bela, Jessica Harper, Chloë Grace Moretz Roteiro: David Kajganich Fotografia: Sayombhu Mukdeeprom Trilha Sonora: Thom Yorke Produção: Marco Morabito, Brad Fischer, Luca Guadagnino, David Kajganich, Silvia Venturini Fendi, Francesco Melzi d’Eril, William Sherak, Gabriele Moratti Duração: 153 min. Estúdio: K Period Media, Frenesy Film Company, Videa, Mythology Entertainment, First Sun, Memo Films Distribuidora: Amazon Studios (Estados Unidos), Videa (Itália)

Nós (2019)

Por André Dick

O mais difícil para um cineasta talvez não seja sua primeira obra e sim a continuidade que dá à sua carreira. Por meio de Corra!, Jordan Peele conseguiu um feito: além de uma realização original e assustadora, ele teve uma bilheteria extraordinária e chegou a ser indicado ao Oscar de melhor filme, inclusive recebendo a estatueta de melhor roteiro original. Era uma conquista bastante valiosa, principalmente em razão de o gênero de terror não ser levado a sério em premiações.
Estava lançado, também, o grande desafio: Peele, em seu segundo filme, precisaria ao menos manter a qualidade do primeiro. Estamos, agora, diante de Nós. Ele inicia em 1986, quando a menina Adelaide Thomas (Madison Curry) está com seus pais num parque de diversões da praia de Santa Cruz, na Califórnia. Ela se afasta do pai, passa por um homem estranho que traz um aviso bíblico num cartaz que segura (Jeremias 11:11) e acaba chegando, diante de uma praia com trovões perturbadores no horizonte, a uma espécie de casa assombrada, constituída por salões de espelhos. Ali, ela vê algo que a assusta e a deixa até a vida adulta traumatizada. Por motivos explicáveis típicos de um filme de terror, ela volta à mesma praia (interpretada por Lupita Nyong’o), desta vez com seu marido Gabe Wilson (Winston Duke) e seus filhos, Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex).

A visita que eles fazem à praia têm elementos de Tubarão (o filho Jason, inclusive, usa uma camiseta do filme de Spielberg), Os pássaros, Os garotos perdidos (passado na praia de Santa Carla, Califórnia) e ali a família encontra um casal de amigos, Kitty Tyler (Elizabeth Moss) e Josh (Tim Heidecker), que possui filhas gêmeas, Becca (Cali Sheldon) e Lindsey (Noelle Sheldon). À noite, pela janela da casa onde se hospedam, eles veem quatro pessoas paradas na calçada em frente, vestidas com macacões vermelhos. A partir daí, temos a trama central de Nós.
Lupita Nyong’o é a grande estrela da narrativa. Depois de receber o Oscar de melhor atriz coadjuvante por 12 anos de escravidão, ela não teve a mesma oportunidade de mostrar seu talento, sendo, com exceção de Rainha de Katwe, mais utilizada em papéis digitais ou em dublagens de animações. Sua atuação é o melhor que tem a oferecer Nós, verdadeiramente dedicada.
Jordan Peele, inclinado a usar o mesmo humor bem dosado em Corra!, no entanto, não consegue entregar uma atmosfera e um roteiro equilibrados. A fotografia de Mike Gioulakis, que apresentou um trabalho irretocável em Corrente do mal, se sente deslocada do que Peele quer tratar, com tomadas aéreas que querem contrastar com o terror implícito das imagens. Tudo no roteiro se sente, de certo modo, apressado, pouco elaborado e simbolicamente decepcionante. Os primeiros minutos, mostrando Adelaide na infância, não se repetirão mais; figuram como um triunfo à parte, recordando o melhor que o diretor poderia oferecer, trazendo muito do clima exatamente de Corrente do mal.

As referências que Peele tenta fazer à sociedade, bem como em Corra!, são comprometidas por gags fora de hora (aquela que remete a Esqueceram de mim é especialmente assustadora, se é que me faço entender) e uma necessidade de ser profundo, de elaborar temas específicos que não dialogam diretamente com os personagens unidimensionais e sim com uma tentativa de tornar diversos discursos expositivos em algo metafórico, colocando atores de qualidade em segundo plano (Moss é tão subaproveitada quanto em The Square). Há uma necessidade do diretor em fazer de suas imagens um subtexto para algo mais importante, como a máscara de Jason remetendo a Halloween, mas que nunca o roteiro trabalha de maneira adequada, por desinteresse.
Em Corra!, Peele conseguia lidar de maneira exitosa com o humor em um contexto no qual ele pareceria deslocado, por meio da atuação primorosa de LilRel Howery (lembrando Anthony Anderson, de Todo mundo em pânico), que parecia saído de outro filme, e em algumas falas engraçadas, como uma que remetia a De olhos bem fechados, de Stanley Kubrick. Peele dava a impressão de aproveitar elementos do cinema mais previsível com um contexto bem mais delineado do que se espera; ele simplesmente esquece esses elementos em Nós, e torna uma trama que por si soa previsível num encadeamento de cenas sem nenhum elo claro entre si, a não ser sua premissa de parecer assustador – sem nunca de fato ser, lembrando mais um pastiche.

Se Corra! era uma mescla entre uma obra de terror dos anos 80 e a série Histórias maravilhosas, produzida por Spielberg, além de possuir alguns elementos da obra de Richard Kelly, Nós se direciona mais a uma tentativa de replicar Creepshow e A noite dos mortos-vivos, de George A. Romero com referências a M. Night Shyamalan (o figurino vermelho remete ao ótimo A vila) e a algo de O homem de palha.
O resultado é nunca menos do que ineficiente, um verdadeiro indicativo do que não se deve fazer numa peça de terror, com exceção para a parte dramática que Lupita tenta impor mesmo com um roteiro cansativo. Que Peele esteja sendo elogiado por esta falha de ignição mostra que sua carreira pode ser comprometida pelos mesmos que criaram outros diretores que aparentavam ser autorais e apenas replicavam filmes desgastados. Compará-lo a mestres do terror e do suspense pode soar muito bonito no papel – porém não é tão proveitoso para uma carreira que se mostrava talentosa e encontra aqui seu primeiro percalço. Espera-se que sua terceira tentativa volte à qualidade de Corra!, ou seja, que ele perceba o quanto este filme não possui as mesmas qualidades de sua estreia. Não há nada em Nós que constitua sequer um novo campo de ideias para que Peele desenvolva.

Us, EUA, 2019 Diretor: Jordan Peele Elenco: Lupita Nyong’o, Winston Duke, Elisabeth Moss, Tim Heidecker, Shahadi Wright Joseph, Evan Alex, Cali Sheldon, Noelle Sheldon Roteiro: Jordan Peele Fotografia: Mike Gioulakis Trilha Sonora: Michael Abels Produção: Jason Blum, Ian Cooper, Sean McKittrick, Jordan Peele Duração: 116 min. Estúdio: Monkeypaw Productions Distribuidora: Universal Pictures

Tubarão (1975)

Por André Dick

Tubarão.Filme 12

Um dos principais filmes a mesclar suspense e diversão, sob o talento de Steven Spielberg, Tubarão é precursor de uma série de obras, como Orca e Piranha (de Joe Dante, a quem Spielberg entregaria Gremlins), embora seja uma homenagem clara a Hitchcock. Já inicia com um grupo de jovens acampando na beira da praia de Amity, no clima hippie dos anos 70, ao redor de fogueira. Um casal de jovens se dirige ao mar, mas apenas a menina entra, e o tubarão, representado pela câmera, se aproxima. Não há nenhum bote salva-vidas que possa tirá-la de lá, enquanto o parceiro se estira na areia e no dia seguinte acorda sem saber exatamente o que aconteceu. Dias depois, o corpo dela aparece trazido pela maré. Spielberg tem entre as suas pretensões está justamente compor uma espécie de sinfonia do suspense, baseado na trilha antológica de John Williams. Todos os medos da década de 70, de certo modo, estão concentrados em Tubarão, que consegue, ao mesmo tempo, assustar e fazer pensar, o que não é pouco para a tradição que o antecedia.
O xerife, Martin Brody (Roy Scheider) quer fechar a praia, para impedir que os turistas entrem na água, mas o prefeito, Larry Vaughn (Murray Hamilton) não deseja o mesmo, pois a cidade perderia turismo. Trata-se de um personagem-símbolo da carreira de Spielberg: o homem ético que deseja a segurança das pessoas ao invés de ganhos materiais. É um xerife que antecipa, por exemplo, o de Super 8, que, na tentativa de afastar seu filho e seus amigos de uma ameaça, deseja descobrir o que se passa, afinal, quando existe a presença da Nasa em uma cidade pacata. Spielberg mostra sua relação com a família, a esposa Ellen (Lorraine Gary), e os filhos Michael (Chris Rebello) e Sean (Jay Mello), e o faz de modo a tornar o espectador envolvido com aquele ambiente. Estamos mais próximos, aqui, da familiaridade de E.T. do que a de desejo de fuga do pai atormentado em Contatos imediatos do terceiro grau.

Tubarão.Filme 1

Tubarão.Filme 10

Tubarão.Filme 4

No entanto, o tubarão continua a atacar e é chamado um biólogo especialista, Matt Hooper (Richard Dreyfuss). Ao mesmo tempo, surge um pescador, Quint (Robert Shaw), uma espécie de Ahab de Moby Dick, a fim de capturar e matar a ameaça por um bom dinheiro. Quint é um contador de casos do alto-mar, o protótipo da valentia colocada à prova, desde que seja por algum viés financeiro. De qualquer modo, com a partida dos personagens num barco precário, intitulado Orca, Spielberg não visualiza nenhum especial heroísmo neles, apenas o medo de serem mortos em alto-mar. Nem por isso o diretor foge ao elemento do interior norte-americano, em que há um vazio a ser preenchido. Isso fica claro quando homens, mesmo com a ameaça, insistem em pescar, sendo afugentados com a presença do tubarão. Ou quando um grupo de pessoas comemora que ele teria sido pego, depois de ser oferecido um prêmio vantajoso, fotografando-o para espalhar a notícia – e o tamanho do peixe não se aproxima daquele que realmente traz ameaças.
Spielberg, em cada frame, é devedor de Alfred Hitchcock, sobretudo de Os pássaros. de como compor um ambiente de tensão com um roteiro simples. No filme de Hitchcock, quando uma mulher chega a uma cidade, Bodega Bay, para entregar uma encomenda de passarinhos do amor, acaba gostando do morador a quem os entrega. Ela resolve ficar um fim de semana na pacata cidadezinha e começam a aparecer ataques de pássaros, enfurecidos com a visitante.

Tubarão.Filme 11

Tubarão.Filme 8

Tubarão.Filme 14

Vemos, claro, apenas o medo humano e não sabemos da motivação do peixe feroz contra os banhistas. Há, junto com a referência de Hitchcock, na maneira de conduzir a narrativa e provocar o suspense das situações mais tranquilas, um resquício de perseguição do melhor momento de Spielberg anterior a Tubarão, Encurralado, premiado no Festival Fantástico de Avoriaz, que tem cenas de grande tensão. Nele, Dennis Weaver interpreta um homem que viaja pelas estrada principal no interior dos Estados Unidos e começa a ser perseguido por um caminhão gigantesco, que passa a lhe cortar a frente e persegui-lo. Spielberg mexe com o espectador, nunca revelando a face do motorista, num Davi e Golias automobilístico, precedendo o embate em alto-mar de Tubarão, em que a fisionomia do peixe só é mostrada quase ao final, quando, na verdade, o suspense chega a seu limite de composição.

Tubarão é um evento cultural com a mesma proporção de suas qualidades. Temos, aqui, um pedaço do comportamento da América. Os momentos em que Brody está na praia, com sua mulher Ellen, observando a movimentação dos banhistas, conseguem criar uma atmosfera claustrofóbica, sobretudo quando surgem os gritos de que a ameaça ronda a área – e o delegado visualiza a barbatana. Baseado num romance de Peter Benchley, adaptado com muito custo – inclusive com a ajuda de Spielberg, que não assinou a versão final do roteiro, o que o descontentou, fazendo com que quisesse assumir sozinho a autoria de Contatos imediatos do terceiro grau, feito a muitas mãos –, o filme não se ressente nunca de uma montagem ágil. A perseguição final ao tubarão reserva uma sucessão de surpresas, desde o momento em que Quinn conta histórias da Guerra do Vietnã, até o balanço do barco provocado pela proximidade do peixe. Também memorável o momento em que Hooper é colocado numa gaiola, descida até o fundo do mar, a fim de que ele tente apanhar o animal com um arpão. Já aqui Spielberg demonstra sua eficiência características em contrapor o desespero no fundo do mar e a expectativa de quem está no barco, à espera de algum movimento inesperado. Esta sequência se liga àquela em que descobre um navio que naufragou, provocado pelo tubarão. E, de modo geral, as cenas em que esse aparece continuam atuais (o fato de ele aparecer pouco também se deve ao fato de não haver um orçamento adequado quando iniciaram as filmagens). Nesse sentido, lida com os medos primitivos do espectador, e a cada vez que mostra o fundo da água parece que vemos o ponto de vista de um ser que pode trazer à tona o perigo, acentuando o que é aterrador.

Jaws, EUA, 1975 Diretor: Steven Spielberg Elenco: Roy Scheider, Robert Shaw, Richard Dreyfuss, Lorraine Gary, Murray Hamilton, Carl Gottlieb, Jeffrey Kramer, Susan Backlinie, Jonathan Filley, Ted Grossman, Chris Rebello, Jay Mello, Lee Fierro, Jeffrey Voorhees, Craig Kingsbury, Robert Nevin, Peter Benchley Roteiro: Peter Benchley, Carl Gottlieb Fotografia: Bill Butler Trilha Sonora: John Williams Produção: David Brown, Richard D. Zanuck Duração: 123 min. Estúdio: Universal Pictures / Zanuck/Brown Productions Distribuidora: Paramount Pictures

 

Capitã Marvel (2019)

Por André Dick

O mais recente filme do universo MCU, Capitã Marvel, foi lançado sob o manto da polêmica, desde as declarações de Brie Larson, vistas com desconfiança por alguns, até grupos mobilizados para baixar sua nota em sites de média agregadas – comportamento cada vez mais presente numa batalha entre companhias que veem seus super-heróis sustentarem praticamente toda realização cinematográfica que não se alimente de histórias em quadrinhos. Desde o lançamento de Mulher-Maravilha, o grande condutor no cinema da Marvel, Kevin Feige, queria levar a primeira super-heroína do seu grupo já conhecido às telas, sendo que talvez a primeira que suscitasse isso seria a Viúva Negra, de Scarlett Johansson, nunca tendo, porém, seu merecido filme solo.

Quem encarna a Capitã Marvel é Brie Larson, conhecida por projetos de origem indie, como O maravilhoso agora e, principalmente, Temporário 12, mas verdadeiramente reconhecida pelo primeiro Anjos da lei. Depois do Oscar de melhor atriz, merecido, por O quarto de Jack, ela se aventurou em Kong – A Ilha da Caveira, no belo drama O castelo de vidro e agora neste blockbuster, no qual faz Vers, que mora no planeta Kree e tem como mentor Yon-Rogg (Jude Law), enquanto surge em seus sonhos uma misteriosa mulher (Annette Benning). O seu planeta vive em guerra com os Skrulls, uma raça que passa por planetas tentando dizimá-los e determinado dia, numa das batalhas, Vers acaba parando na Terra, onde imediatamente chama a atenção de dois agentes da SHIELD, Nick Fury (Samuel L. Jacjkson) e Phil Coulson (Clark Gregg). A partir daí, ela passa a ter lembranças de quando era uma piloto da Força Aérea desaparecida anos antes, em 1989, num projeto da Dra. Wendy Lawson (novamente Bening). Vers obviamente se junta principalmente a Fury (e a um gato excêntrico), descobrindo ser, na realidade, Carol Danvers. Fury e ela acabam se deparando com Keller (Ben Mendelsohn, cada vez mais repetitivo), também integrante da SHIELD.

Talvez os melhores momentos do filme de Anna Boden e Ryan Fleck, parceiros de direção também em Se enlouquecer, não se apaixone, se concentrem na amizade que Danvers reencontra em Maria Rambeau (Lashana Lynch), uma companheira sua no tempo em que era piloto na Terra. São momentos nos quais Capitã Marvel se sente mais próxima de uma homenagem declarada ao filme Top Gun, dos anos 80, em cenas calcadas para dialogar com o filme estrelado por Tom Cruise, assim como em determinados instantes, por causa de um determinado personagem, lembra Inimigo meu. Ao lado do carisma de Lynch, e também o de Jackson, rejuvenescido digitalmente de forma muito competente (certamente o efeito visual mais interessante do projeto, quase levando-o à época de Pulp Fiction, de 1994, enquanto a narrativa de Capitã Marvel se movimenta em 1995), o filme se sustenta mais em suas tentativas do que numa possível efetividade. A atuação de Larson é muito limitada, assim como já se mostrava em Kong – A Ilha da Caveira, prejudicando a maior parte das sequências. No entanto, isso não se deve apenas a ela, e sim também ao roteiro concentrado em flashbacks, cenas de ação excessivamente apressadas e um elenco de vilões pouco proveitoso. Boden e Fleck haviam demonstrado especial talento em diálogos em Half Nelson – Encurralados, sobre um professor interpretado por Ryan Gosling, e visivelmente não se sentem confortáveis com este universo mais fantástico.

Capitã Marvel tenta se equilibrar entre um universo que remete mais a Guardiões da galáxia, porém não deixa de emular o design de produção de Mudo principalmente na primeira parte, assim como tenta manter um contato com o universo estendido de maneira menos direta, e cenas campestres, como naquele em que Danvers está na casa de Rambeau e vemos um clima quase indie, típico dos diretores. É esta tentativa de trazer elementos novos, mas sem de fato conseguir, que caracteriza em grande parte a produção, com sua trilha sonora curiosa (incluindo até Nirvana, com “Smells like teen spirit”, No Doubt, com “Just a Girl”, e Garbage, com “Special”, cujo videoclipe tem a vocalista numa espaçonave parecida com as desse filme). Mesmo em seus momentos de humor, que remetem a outros personagens da companhia, Capitã Marvel não deixa nunca de carregar um peso, o de não ter exatamente uma linha muito clara do que realmente deseja: como filme de origem, e referências a um objeto que vemos ser seguido desde Os vingadores, ele até funciona em parte, porém, quando precisa atrair o espectador para novos pontos, se compromete quase totalmente. De certo modo, isso se deve a uma narrativa incerta pela pouca afeição de seus diretores a este tipo de material, como também por uma qualificação pouco natural dada aos personagens centrais. É um tanto surpreendente, porém, este filme ser tão mal recebido de certo modo tendo os mesmos problemas de obras recentes do MCU vistas como obras-primas, principalmente ao se apontar seu uso realmente excessivo de CGI, mas que não foge à média do gênero. Trata-se de um universo que precisa se reinventar com diretores mais autorais e não controlados pelo mesmo produtor, que torna cada filme muito parecido um com o outro.

Captain Marvel, EUA, 2019 Diretores: Anna Boden e Ryan Fleck Elenco: Brie Larson, Samuel L. Jackson, Ben Mendelsohn, Djimon Hounsou, Lee Pace, Lashana Lynch, Gemma Chan, Annette Bening, Clark Gregg, Jude Law Roteiro: Anna Boden, Ryan Fleck, Geneva Robertson-Dworet Fotografia: Ben Davis Trilha Sonora: Pinar Toprak Produção: Kevin Feige Duração: 124 min. Estúdio: Marvel Studios Distribuidora: Walt Disney Studios Motion Pictures

Jornada nas estrelas – O filme (1979)

Por André Dick

Jornada nas estrelas.Filme 25

O primeiro filme para o cinema da série Jornada nas estrelas, baseado nos personagens criados por Gene Roddenberry, despertou certa polêmica à época de seu lançamento, dez anos depois de a série de TV ser interrompida (durou de 1966 a 1969). A impressão geral, tanto para o público em geral quanto para os fãs da série, é de que faltava ação e humor à trama. Mesmo na primeira visualização, essa impressão realmente se mostra em parte correta, devido ao roteiro soar um tanto frio, do mesmo modo como surge Spock, depois de uma temporada em Vulcano. À frente da direção, estava o cineasta Robert Wise, que havia ganho Oscars de melhor filme por Amor, sublime, amor e A noviça rebelde, além de ter dirigido O dia em que a terra parou e O enigma de Andrômeda. O estúdio investiu um grande orçamento, de mais de 40 milhões de dólares, consumidos principalmente pela área de efeitos especiais. Para ela, forma convocados os nomes de Douglas Trumbull e John Dykstra; o primeiro, responsável pelos efeitos de 2001, o segundo de Guerra nas estrelas.
O filme, de certo modo, recebe uma nova oportunidade com sua visualização em HD, em sua cópia de Blu-ray. E, depois das duas parcelas da nova geração filmadas por J.J. Abrams com o apuro de um dos melhores diretores de ação do momento atual, talvez não seja o melhor caminho comparar o ritmo – a série antiga, e sobretudo o primeiro episódio para o cinema, soam próprios de seu período, sem nenhum demérito.

Jornada nas estrelas

Jornada nas estrelas.Filme 7

Jornada nas estrelas.Filme 20

Jornada nas estrelas.Filme 14

Com uma etapa inicial marcada pela trilha sonora marcante de Jerry Goldsmith, Wise mostra toda a tripulação do seriado de volta, sob o comando do capitão Kirk (Shatner), que foi promovido a almirante e trabalha em San Francisco como Diretor de Operações da Frota Estelar. Em 2273, ele é convocado depois que uma força estranha composta de energia ameaça se aproximar da terra, depois de se deparar com uma esquadra klingon e detectada pela Frota Estelar estação de monitoramento, Epsilon Nine. No entanto, ele precisa confrontar o atual capitão da nave Enterprise, Willard Decker (Stephen Collins), rebaixando-o de posto. Levado à espaçonave por Scotty (James Doohan), Wise mostra a primeira visão da Enterprise como uma espécie da passagem do osso lançado ao céu para a estação espacial aguardando o ônibus de Floyd em 2001. O tempo longo de execução, por outro lado, se mostra interessante para demarcar este primeiro ingresso cinematográfico dos personagens de Roddenberry. Se as indicações ao Oscar (trilha sonora, direção de arte e efeitos especiais), são justas, parece não ser reduzir este episódio a uma antecipação do que a série ofereceria de melhor, o segundo capítulo, com A ira de Khan, e o sexto, A terra desconhecida, ambos dirigidos por Nicholas Meyer. Kirk se mostra inseguro diante da ameaça de não estar à frente do comando da Enterprise, e para isso ele se cerca dos amigos Dr. McCoy (DeForest Kelley), ou “Bones”, Uhura (Nichelle Nichols), e Sulu (George Takei), o piloto, além de Scotty.
Na ida para a ameaça que vem em direção à Terra, vem a bordo Spock (Leonard Nimoy), a fim de colaborar com a missão. Este reencontro, se não e um dos momentos mais divertidos do filme, é, sem dúvida aquele que melhor demarca a oposição entre Kirk e o vulcano. Spock não se mostra muito interessado em rever os companheiros, ainda mais por causa do curso pelo qual passou Essa linha fina de roteiro, porém, se expande quando uma das passageiras, Ilia (Perris Khambatta), é raptada por V’Ger, a força de energia, e substituída por uma réplica robótica, e regressa afirmando ser mensageira daquilo que se chama V’Ger. O que seria exatamente V’Ger? Para o espectador, fica clara a analogia com o monólito negro de 2001, de Kubrick, e onde este filme parou parece que Wise quer continuar.

Jornada nas estrelas.Filme 12

Jornada nas estrelas.Filme 13

Jornada nas estrelas.Filme 11

Jornada nas estrelas.Filme 9

O roteiro, desse modo, passa a se mostrar mais interessado em traçar o real mistério do que seria o V’Ger, perturbando os tripulantes da Enterprise, sobretudo Spock, que diz ser ele um dos motivos para ter vindo a bordo e que poderá ajuda-lo a completar o que não conseguiu entender em Vulcano. É neste ponto que o roteiro de Alan Dean Foster e Harold Livingston se mostra mais interessante, pois este Jornada nas estrelas – O filme tenta mostrar a Spock o que de fato ele, embora não pareça, quer sensações próximas à humanidade. O mistério do que significa o V’Ger levará Spock a reavaliar sua trajetória até ali. Não apenas isso: Ilia, ligada a Decker, guarda, em sua porção já dominada pelo V’Ger, o resquício de amor que nutria anteriormente por ele. Ou seja, se ela passa a ser quase uma mensageira de um enigma que a partir de determinado momento se confunde com uma máquina, o que certamente tem influência no recente Transcendence.
É interessante como num momento em que a ficção científica Guerra nas estrelas, George Lucas, havia se tornado uma referência, com sua mescla fabulosa entre humor e ação, Wise tenha optado em fazer de Jornada nas estrelas – O filme uma resposta, no imaginário popular, ao cerebral 2001 de Kubrick. Ele consegue, de fato, empregar um conceito por meio de V’Ger bastante instigante, e a maneira como descortina esse cenário do espaço sideral é inquietante, originalíssimo. Os gráficos, tanto de V’Ger quanto da viagem de Spock vestido de astronauta, se dialogam com David Bowman depois de sair da espaçonave, em razão de HAL-9000, antecipam, muito mais, as imagens de outros filmes, como O segredo do abismo, 2010 – O ano em que faremos contato, Tron – Uma odisseia eletrônica, Superman 2Blade Runner e A árvore da vida. Não por acaso, pois Trumbull foi o responsável pelos efeitos especiais dos dois últimos, por exemplo. Ele consegue, em Jornada nas estrelas, compor uma harmonia clássica de imagens com efeitos especiais. Os planetas visualizados por Spock, próximos de uma espiral que se abre e fecha como uma planta, além de formas que lembram a origem do homem, a sua genética, compõem um gráfico fabuloso não apenas para o final dos anos 70, como para a história da ficção científica no cinema. Trata-se de um momento impressionante, não uma tentativa de copiar 2001, e sim uma viagem autêntica ao espaço sideral, em termos de ficção científica.

Jornada nas estrelas.Filme 8

Jornada nas estrelas.Filme 16

Jornada nas estrelas.Filme 15

Jornada nas estrelas.Filme 21

Se o desenho de podução de Harold Michelson da parte interna da Enterprise parece menos futurista do que Alien, do mesmo ano, é certamente por vontade de Wise dialogar com a série de TV dos anos 60 – e, junto a seus figurinos, parece ser a parte mais datada deste filme. Ainda assim, é natural que um filme como Jornada nas estrelas também dialogue com sua época – e a introdução de Spock é um dos indícios desse caminho.
Uma das críticas feitas aos episódios de J.J. Abrams é sua necessidade de colocar seus personagens em tom de aventura e emoção, muitas vezes ignorado o mistério do espaço; isso é bastante flagrante se comparado com este filme, no qual o enigma vale muito mais do que qualquer emoção. Também é notável como Wise não consegue encontrar humor – que seria visível principalmente no quarto episódio, A volta para terra – nesses personagens: é como se ele realmente quisesse rever Kubrick. E é curioso como se veja este Jornada nas estrelas como maçante, quando, na verdade, seu ritmo é muito mais intenso do que o de 2001. Isso se deve, sobretudo, às atuações tanto de Nimoy, como Spock, quanto, principalmente, de William Shatner, talvez em seu melhor momento como o capitão Kirk, praticamente centralizando toda a comunicação entre os personagens – e Stephen Collins se torna um ator efetivo ao não concordar com as ordens de Kirk. Mas é justamente a composição visual em que esses personagens estão, com a trilha vigorosa de Jerry Goldsmith, que fazem este Jornada nas estrelas um belo prenúncio de novas viagens. Há uma ressonância distinta neste filme, capaz de ser percebida apenas com a distância dos anos – e para melhor.

Star Trek – The motion picture, EUA, 1979 Diretor: Robert Wise Elenco: William Shatner, Leonard Nimoy, George Takei, James Doohan, Walter Koenig, Nichelle Nichols, DeForest Kelley, Majel Barrett, Stephen Collins, Persis Khambatta Roteiro: Alan Dean Foster, Harold Livingston Fotografia: Richard H. Kline Trilha Sonora: Jerry Goldsmith Produção: Gene Roddenberry Duração: 132 min.Estúdio: Century Associates / Paramount Pictures

 

No portal da eternidade (2018)

Por André Dick

In memoriam Eva Dias Pereira

O diretor Julian Schnabel é conhecido principalmente por O escafandro e a borboleta, sobre Jean-Dominique Bauby, considerado um dos melhores filmes da década passada. Ele já havia se aventurado antes em algumas cinebiografias, como Antes do anoitecer, sobre o poeta Reinaldo Arenas e sua vida em Cuba, e Basquiat, sobre o pintor contemporâneo, logo em sua obra de estreia. De maneira geral, Schnabel sempre se mostrou um cineasta interessado em trabalhar com diferentes tipos de fotografia e enquadramentos diferenciados, sendo de fato um pintor em sua origem. Em O escafandro, por exemplo, em boa parte do filme tínhamos a visão do protagonista numa situação delicada e essa estranheza concedia à história uma espécie de segunda camada sobre os dados reais fornecidos por cada personagem.

Desta vez, em No portal da eternidade, ele mostra parte da trajetória de Vincent van Gogh, vivido com grande perspicácia por Willem Dafoe (indicado ao Oscar), que, não vendendo suas obras, recebe a ajuda de seu irmão Theo (Rupert Friend) e tem como amigo Paul Gauguin (Oscar Isaac). Ao se deslocar para o sul da França, para a pequena cidade de Arles (onde fez mais de 70 pinturas), ele fica numa paragem onde conhece Madame Ginoux (Emmanuelle Seigner). Um crítico, Albert Aurier (Alan Aubert), recebe suas obras muito bem, mas o mesmo não se pode dizer de alguns mais próximos, que visualizam seu trabalho como precário. Isso o faz ficar com distúrbios, sendo levado para o asilo Saint-Paul em Saint-Rémy-de-Provence. Em outros momentos, há conversas sobre arte e religiosidade com um padre (Madds Mikkelsen). Schnabel, como em O escafandro e a borboleta, traz reflexões sobre a criação artística e os elos com uma divindade interna ou localizada na natureza, na mudança de percepções sobre a própria condição humana. Com a ajuda exitosa de Dafoe, o diretor lida com diversos temas em pequenos lances de subjetividade e diálogos até comuns. Van Gogh estava com em torno de 36, 37 anos anos no auge de sua obra, e Dafoe o interpreta com 63 anos. Trata-se de uma figura que se veste de maneira comum e usa um chapéu de palha que contrasta com o céu azul.

Com belo roteiro assinado por Schnabel com Jean-Claude Carrière, conhecido romancista e corroteirista, por exemplo, de O discreto charme da burguesia, e Louise Kugelberg, o filme possui uma fotografia tremida de Benoît Delhomme, parecendo até uma peça de Von Trier. No entanto, é como se o espectador visse as paisagens do modo que Van Gogh as vê, com sua proliferação de amarelos e desvios da realidade para contemplações próximas da eternidade, como ele diz em determinado momento. Tudo vai se configurando como se um pintor fosse lançando as cores na tela, na composição de uma obra. Van Gogh, deste modo, é um personagem muito disponível para se lidar com uma faceta quase poética de uma realização cinematográfica. Alguns cineastas já trabalharam sobre sua obra com destaque, com destaque para Robert Altman em Vincent & Theo, a animação Com amor, Van Gogh e o episódio de Sonhos, de Akira Kurosawa, que mostrava o pintor, interpretado por Martin Scorsese, caminhando dentro de algumas de suas obras.

No portal da eternidade parece confuso em seu início, contudo vai se estabelecendo, sobretudo com a exitosa parceria entre Dafoe e Isaac, que poderia durar mais tempo, e a reconstituição dos lugares enfocados. Tudo é muito minucioso, e a maneira como Schnabel filma os diálogos torna as conversas mais marcantes, tendo sido baseado nas cartas do pintor a seu irmão. Há uma sensação sempre de que o personagem está deslocado, tanto de sua realidade quanto o universo que ele habita, onírico e pictórico. Sua ligação familiar, por meio de Theo, cria bases sólidas para que ele continue sendo pintor, embora ainda duvide de seu talento, já que suas obras não são vendidas como espera. Há, aqui, um discurso implícito sobre a liberdade de criação do artista e a expectativa que ele gera quando se vislumbra real talento em suas tentativas de mostrar algo novo. É por meio dessas qualidades que Schnabel ergue sua versão de um dos maiores gênios da pintura. Talvez ele mesmo esteja projetando sua paixão por compor imagens no personagens, o que poderia, em parte, ser autoindulgente. O que permanece, porém, é uma sóbria delicadeza em cada um dos gestos efetuados por Van Gogh ao longo da narrativa e que não necessariamente o explicam, como uma pintura de alto nível e cuja composição pode estar tanto em se sentar frente a uma paisagem magnífica quanto encontrar uma pessoa que posa para um quadro sem saber que, por meio dele, irá atingir a eternidade de maneira incontornável.

At eternity’s gate, FRA/ING/EUA, 2018 Diretor: Julian Schnabel Elenco: Willem Dafoe, Rupert Friend, Mads Mikkelsen, Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Oscar Isaac Roteiro: Jean-Claude Carrière, Julian Schnabel, Louise Kugelberg Fotografia: Benoît Delhomme Trilha Sonora: Tatiana Lisovskaya Produção: Jon Kilik Duração: 110 min. Estúdio: Riverstone Pictures, SPK Pictures, Rocket Science, Rahway Road, Iconoclast Distribuidora: Netflix (França), Curzon Artificial Eye (Inglaterra), CBS Films (Estados Unidos)

Melhores filmes de 2010

Por André Dick

A década de 2010 está chegando ao final. Por isso, o Cinematographe irá mostrar sua seleção dos 10 melhores filmes de cada ano. Neste mês, justamente as obras de 2010. Antes, os 15 que formariam um Top 25. Destaca-se que o visual das imagens é baseado naquele utilizado pelo MUBI.

25. Encontro explosivo (James Mangold) 24. Filme socialismo (Jean-Luc Godard) 23. Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas (Apichatpong Weerasethakul) 22. O atalho (Kelly Reichdart) 21. The Runaways – Garotas do rock (Floria Sigismondi) 20. Caminho para o nada (Monte Hellmann) 19. Como você sabe (James L. Brooks) 18. Harry Potter e as relíquias da morte – Parte 1 (David Yates) 17. O escritor fantasma (Roman Polanski) 16. Não me abandone jamais (Mark Romanek) 15. Ventre (Benedek Fliegauf) 14. Greenberg (Noah Baumbach) 13. Scott Pilgrim contra o mundo (Edgar Wright) 12. Um lugar qualquer (Sofia Coppola) 11. Um doce olhar (Semih Kaplanoğlu)