A visão de Napoleão de Ridley Scott

Por André Dick

O mais recente filme de Ridley Scott, Napoleão, é um épico nos moldes que o diretor costuma apresentar desde Gladiador, passando por Cruzada, até Êxodo – Deuses e reis. Com uma duração determinada para o cinema de 158 minutos, já se anuncia uma versão de 4 horas a ser exibida no streaming da Apple TV+, que produziu o filme. A princípio, é muito tentador entrar na polêmica entre o diretor e historiadores, que contestam algumas informações do filme, que não corresponderiam ao que aconteceu, mas se vê que isso é apenas uma isca para tentar capturar o espectador e o público pelo que não importa tanto aqui. Tentador, como se diz.
Ridley Scott inicia o filme tecendo uma crítica virulenta contra a Revolução Francesa – é o pontapé inicial dele contra o próprio status com que se vê a cultura francesa, sem ter aqui nenhum demérito, porque ele é coerente com as ações desses personagens que expõe. Seria difícil que isso contentasse a historiadores e a críticos em geral; é justamente contra eles que Scott coloca sua visão para mostrar por que é, desde os anos 70, um dos maiores cineastas em atividade e certamente um dos mais subestimados. O requinte visual e narrativo de Scott é tão superior quanto à maior parte dos pares de sua geração e de gerações mais novas que soa como uma falta de generosidade explícita o que fazem com muitos de seus filmes, para selecionar apenas alguns Prometheus, O último duelo e Casa Gucci, nos últimos 10 anos. Geralmente, tirando talvez Thelma & Louise, nunca se interessou por subtextos políticos, embora os apresente muito bem algumas vezes, como em Gladiador, Falcão negro em perigo Cruzada.
Napoleão mostra a trajetória do conhecido líder francês (Joaquin Phoenix mais uma vez excelente, alternando melancolia, um humor involuntário e insegurança) que durante um certo período estabeleceu um grande número de vitórias em batalhas contra vários países. Ele alterna paisagens da França, Egito, Rússia, mas o que menos interessa aqui a Scott é como se dão os efeitos da Revolução Francesa, tendo a figura de Paul Barras (Tahar Rahim, eficiente) como proeminente na era napoleônica. Os efeitos dela se dão como qualquer outra: são incorporados ao sistema (em determinado momento uma autoridade diz que é só misturar os ideais da revolução com o que eles, políticos, sempre faziam) e passam a fazer parte dele. Ridley Scott distribui isso numa sequência de reuniões, conversas sem uma solidez aparente, para exatamente comunicar o que permite ao espectador entender o que seria a História com letra maiúscula: é aquela que se passa longe do burburinho e do campo de batalha.

A maior História é a que se trava nos bastidores, com a própria miséria do personagem diante principalmente da sua amada Josephine (uma excepcional atuação de Vanessa Kirby), e a luta para ter um filho e herdeiro quando já está num posto de muito maior respeito. Por isso, não é surpreendente que o filme seja tomado por muitos como uma comédia, porque isso dá uma premissa exata para descredenciar o que Scott está expondo principalmente por imagens e negar essas relações internas e interiores faz com que apenas uma História dita pública e verdadeira se sobressaia e seja realmente importante. Ao se anular a história mais subjetiva de Napoleão e Josephine, tenta-se anular a história do indivíduo em prol da coletividade que Ridley Scott começa por acusar na primeira frase do seu filme. Ou seja, o que deveria importar são as manifestações públicas, as ações que movimentam para esses críticos o povo nas ruas, quando à parcela deles o que menos importa (nunca importou) é a condição de olhar que se dá a esse povo ou sua condição de subsistência. O povo continua miserável, mas como Scott não tentou pelo menos atenuar isso? Ele discretamente expõe a relação entre Josephine e Napoleão por cartas em alguns momentos, evitando o discurso expositivo capaz de levar o espectador a pensar de um determinado modo. Nesse ponto, o roteiro de David Scarpa é muito exitoso ao mesclar uma série de informações sem perder de vista esta relação. Destaque-se a fluidez das passagens do roteiro de Scarpa nesta versão, independente daquela ainda desconhecida de 4 horas (para a qual aparecerão admiradores posteriores do que já estava aqui) e a maneira como ele conduz a ideia de uma personagem a princípio supérflua no tratamento, como Josephine, a uma visão feminina realmente em camadas. Certamente ela é outro motivo para as críticas, pois Scott não segue também o previsível: Josephine começa se apresentando a Napoleão como Sharon Stone a Michael Douglas em Instinto selvagem. Não há em nenhum momento uma indicação de que ela o impeliu a fazer isso ou aquilo em sua trajetória – isso é indesculpável, mas, mesmo não tendo existido, não estando na história “verdadeira”, certamente seria muito bem-vindo para alguns que lidam com a história, entre aspas, exata.

Napoleão, nesse sentido, é uma espécie de retrato de sua época: ao não abraçar o coletivismo e sim a individualidade, ele está simplesmente indo contra os manuais que se apresentam para aquilo “tudo” que está em “todo o lugar ao mesmo tempo”; e ao enaltecer a individualidade (nisso se expondo a falta de certeza em relação a qualquer manobra de existência) ele está buscando seu calabouço e sua ilha de exílio. Mas é para isso que Ridley Scott jogou seu filme e jogou com todas as suas fichas. Sua postura em relação a declarações de historiadores pode ser precipitada e pouco calibrada, mas ele sabe que muito mais do que o relato da história há a “perspectiva do relato” da história, ou seja, esta é às vezes muito mutável, dependendo de quem a conta, que pode ressaltar episódios nem tão importantes como destacáveis e ignorar outros muito mais necessários para o entendimento da própria história. Será, nesse sentido, um erro histórico colocar Napoleão assistindo à cena da guilhotina de Maria Antonieta? Não seria apenas uma liberdade criativa, fílmica? Para o filósofo Gianni Vattimo, a história é sempre contada do ponto de vista do vencedor. Teria sido Napoleão um vencedor? As batalhas de Toulon e Austerlitz, por exemplo, são filmadas por uma larga escala de homens aglomerados ou em marcha e, consequentemente, com o destino deles inserido no cenário que os cerca, mas será que Ridley não está usando essas batalhas para contar exatamente algo que escapa ao movimento ininterrupto. Ora, Ridley está claramente falando, do início até o fim da narrativa, da solidão de Napoleão Bonaparte, em sua complexidade de atingir a grandeza como político ou estrategista, daí, em determinado momento, Josephine se referir a ele como amigo mostra a lacuna do que ele nunca parece ter encontrado exatamente na maneira como dispôs a sua existência.
Em se tratando de opulência visual, não há nada no cinema na última década em termos de filme de guerra que se compare a Napoleão: ele tanto lembra Barry Lindon e Maria Antonieta no trabalho de design de produção e figurinos, com a fotografia irretocável de Dariusz Wolski, quanto lembra Mistérios de Lisboa e outros filmes de Manoel de Oliveira, que capturam uma atmosfera europeia que apenas Scott e Malick, e antes David Lynch, entre os cineastas que produziram a partir dos anos 70, conseguem reverter para o cinema norte-americano.
Por isso, deve-se destacar que a escala de Napoleão é épica e dramática, com design de produção e figurinos simplesmente levando o espectador para o período enfocado. Também a fotografia lembra uma sequência de pinturas e a trilha sonora pontua com eficácia toda a narrativa. Como é de se esperar em Ridley Scott, as cenas de batalha impressionam, são ainda mais impactantes do que as de Gladiador e Cruzada, fazendo com que os 158 minutos transcorram parecendo menos, conduzindo tudo a uma ilha ou a um sonho de tudo ser revivido ou não, porque, afinal, é preciso passar pela experiência que move toda a história. Nenhuma crítica, boa ou negativa, será lembrada futuramente mais do que o próprio filme de Scott, que fez este épico com 85 anos em apenas dois meses e ainda precisa ouvir lições de como se deve dirigir um filme de críticos imberbes e outros já muito sábios que acham que Cahiers du Cinéma é uma marca de caderno.

Napoleon, EUA/ING, 2023 Direção: Ridley Scott Elenco: Joaquin Phoenix, Vanessa Kirby, Tahar Raim Roteiro: David Scarpa Fotografia: Dariusz Wolski Trilha Sonora: Martin Phipps Produção: Ridley Scott, Kevin J. Walsh, Mark Huffam, Joaquin Phoenix Duração: 158 min. Estúdio: Apple Studios Scott Free Productions Distribuidora: Columbia Pictures

Napoleão (2023)

Crítica sobre Napoleão, de Ridley Scott, com Joaquin Phoenix, no canal do YouTube. Se puder, deixe seu apoio se inscrevendo. Você vai encontrar lá críticas recentes sobre Asteroid city, Assassinos da lua das flores, Beau tem medo, Guardiões da galáxia – Vol. 3, Barbie, Oppenheimer, Besouro Azul, entre outros.

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O assassino (2023)

Crítica sobre “O assassino”, de David Fincher, com Michael Fassbender, no canal do YouTube.