Sucker Punch (2011)

Por André Dick

Sucker Punch

Há alguns filmes que não recebem a merecida atenção quando são lançados e outros que, comemorados à primeira vista, alguns anos depois são quase esquecidos. Por vezes, um determinado diretor é visto como apenas um burocrata da indústria, a serviço de grandes estúdios, e faz um material a princípio superficial, que se pode esquecer o quanto é possível que ele traga algo verdadeiramente novo, mesmo que não aparente como a crítica exige. Nesse sentido, é tão evidente o talento de Zack Snyder para compor imagens impressionantes que se lamenta o quanto se diz que ele só faz CGI. Se o seu filme 300 era ainda prejudicado por uma excessiva fidelidade aos quadrinhos, sem que ele pudesse movimentar suas ideias, o mesmo não pode ser dito dos seus projetos seguintes: Watchmen era uma peça de inegável originalidade dentro do universo dos super-heróis, uma espécie de referência potencial para qualquer filme que mesclasse diferentes personagens. Em seguida a ele, havia o projeto pessoal de Snyder, Sucker Punch (sem Mundo surreal, o dispensável subtítulo em português), escrito em parceria com Steve Shibuya, que acabou se transformando num fracasso de bilheteria (renda de 89 milhões de dólares para um orçamento de 82) e de crítica.
Este conto ultramoderno, passado nos anos 1960, mostra uma menina, Babydoll (Emily Browning), que sofre nas mãos de um padrasto abusivo (Gerard Plunkett), depois da morte da mãe, e é levada para um sanatório, a Casa Lennox, sendo entregue a Blue Jones (Oscar Isaac) e à psiquiatra Vera Gorski (Carla Gugino).

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Imediatamente, num procedimento de lobotomia, a menina passa a imaginar outra vida no lugar: para ela, o cenário não é de um hospital psiquiátrico e sim uma espécie de cabaret, nos moldes daquele de Bob Fosse. “Where is my mind” é a música do Pixies que soa ao fundo, mostrando que a mente pode vagar entre lugares e realidades paralelas. A cada vez que ela dança (e o espectador nunca a vê de fato dançando), para contentar o patrão, que pretende vender a sua virgindade e é o mesmo Blue Jones, mas com um estilo gângster, e a professora de dança, que é a psiquiatra, ela passa a conviver, na verdade, por meio de sua imaginação, com cenas de batalha, ao lado de suas amigas, Amber (Jamie Chung), Blondie (Vanessa Hudgens), Rocket (Jena Malone), e sua irmã, Sweet Pea (Abbie Cornish).
Se o início é bastante intrigante, aos poucos, a história passa a integrar simbologias interessantes, como do enfrentamento aos samurais, a passagem pela Segunda Guerra e o combate a um dragão. É como se o mundo fantasioso pudesse salvar Babydoll de uma realidade difícil de ser enfrentada. No entanto, mesmo nesse mundo, sob as ordens de um guardião (Scott Glenn), ela atravessa o risco de morrer a cada vez que precisa enfrentar uma missão, a fim de coletar cinco itens:  um mapa, fogo, uma faca, uma chave e um “sacrifício profundo”.  Percebe-se que Babydoll e suas amigas se tornam peças-chave em universos diferentes e nos quais o homem é sempre visto como o principal combatente, principalmente quando enfrentam soldados de guerra, ou, especificamente a personagem central, um trio de samurais gigante. Snyder mostra essas imagens como um delírio visual, e apenas se lamenta o quanto elas possuem um ritmo determinado, sem grandes sobressaltos.

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Em meio a tudo, Azul informa Babydoll que sua virgindade será vendido a um cliente conhecido como o High Roller (Jon Hamm), exatamente o homem que faz a lobotomia no início do filme. Nessas idas e vindas, entre a realidade encenada – a dança – e a fantasia buscada – por meio da qual se descobrem armas para obter a liberdade –, Sucker Punch se constrói como um dos filmes mais estranhos dessa década. Sua reconstrução dos anos 60, especificamente, é fabulosa, com um cuidado extremo com os figurinos e cenários. Esse design de produção esplendoroso (alguns gráficos são como molduras e o trabalho de cores é destacado) e a fotografia de Larry Fong, além das ótimas atuações de Emily Browning, Carla Gugino, Abbie Cornish e Oscar Isaac, levam o filme a um patamar de cult, rejeitado em seu tempo e aos poucos reconhecido. A passagem de Snyder de 300 para Watchmen e em seguida para este Sucker Punch anunciam a Batman vs Superman. Se Sucker Punch, como em geral a obra de Snyder, é visto como estilo sobre substância, é feito com rara dedicação.
Mas não apenas isso. É natural que se diga que ele se apoia na misoginia, que explora as atrizes em trajes mínimos e tudo não passa de uma espécie de painel da Comic-Con, fazendo alusão a uma variedade de estilos, uma espécie de Kill Bill agitado dentro de um videogame, buscando diálogo ainda com a franquia Matrix. Invariavelmente, Snyder pretende apenas mostrar uma violência desenfreada nas peças de ação e um estilo nos moldes de uma animação para adultos. Porém, existe, certamente, um outro caminho para que se entenda a narrativa: diante do abuso do padrasto e da situação de estar sendo lobotomizada, a menina se impõe – e imagina as amigas do mesmo modo – como um grupo a ser temido e cuja natureza se afasta da frieza e distanciamento do mundo em que ela se coloca. O filme é uma vingança das mulheres por meio da imagem que certo universo masculino faz delas.

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A personagem se imagina como alguém que realmente pode dar fim àquele espaço em que se encontra. Ela, então, imagina não apenas uma figura paterna (representada por Scott Glenn), como aquele que oferece os desafios de sua jornada, como repudia aquela figura que lembra seu padrasto e se reproduz exatamente na figura do Dr. High Roller. Snyder consegue contar uma história em camadas diferentes tanto de pensamento quanto de cenários, com uma grande eficácia: ele não entrega o roteiro de forma linear ou coloca imagens em sequência sem nenhum atrito, mas tenta fazer com que o espectador reflita sobre a dualidade em que vive a personagem.
Nesse sentido, como em Watchmen e Batman vs Superman, ele aborda de forma muito sutil os temas da solidão e do confronto entre pessoas num determinado ambiente, um confronto que não visa apenas a uma reunião de amigos e sim a um atrito existencial. A ameaça da morte pode ser presente e não sentimos que a personagem central está segura, como não estão nunca seus heróis de Watchmen ou Batman vs Superman. Se (a partir daqui spoilers) Sucker Punch se abre com a morte e se encerra, em parte, com a morte (mas não completa, porque há a libertação de uma personagem-chave e Babydoll sorri), pode-se dizer que é o mesmo movimento de Snyder em Batman vs Superman: começa com a morte dos pais de Batman e se encerra com a de Superman, com um prenúncio de que ela pode não ser definitiva (para não falar em Watchmen, cujo início acontece depois da morte do Comediante para se descobrir, ao final, que o grupo pode não voltar à ativa de qualquer modo). Para Snyder, são seus personagens, vivos ou não, que colocam tudo em movimento. No entanto, mais do que a trama em si, seus personagens vivem num universo em que tentam reconstruir, mesmo que arrisquem a vida, um novo caminho. Para Snyder, se não morrer a imaginação, eles continuam vivos. É isto mais exatamente que diferencia o diretor de outros que lidam com blockbusters: tudo neste universo é instável e agradar ou não ao espectador depende apenas do que este quer (ou imagina) receber.

Sucker Punch, EUA, 2011 Diretor: Zack Snyder Elenco: Emily Browning, Abbie Cornish, Jena Malone, Vanessa Hudgens, Jamie Chung, Carla Gugino, Oscar Isaac, Jon Hamm, Scott Glenn Roteiro: Steve Shibuya, Zack Snyder Fotografia: Larry Fong Trilha Sonora: Marius De Vries, Tyler Bates Produção: Deborah Snyder, Zack Snyder  Distribuidora: Warner Bros Estúdio: Cruel & Unusual Films / Legendary Pictures / Lennox House Films / Warner Bros

Cotação 4 estrelas

 

Rua Cloverfield, 10 (2016)

Por André Dick

Rua Cloverfield, 10.16

Filmes imaginando um futuro sem saída, em que os seres humanos são colocados numa situação-limite, nunca saem de moda, pois parecem sempre mexer com o inconsciente coletivo, de receio quanto às novas gerações e de como o planeta será habitado daqui a alguns anos. Do mesmo modo, obras envolvendo uma ameaça à própria sobrevivência se proliferam com o toque de Hollywood. A continuação (pelo menos é o que subentende o título) do cult Cloverfield recebeu a mesma produção de J.J. Abrams, o diretor que estreou no cinema com a terceira parte de Missão impossível e vem atraindo atenção por ajudar a revitalizar outras séries, como as de Star Trek e Star Wars, com um breve intervalo autoral – apesar de suas claras influências – no nostálgico e expressivamente bem-sucedido Super 8 (isso sem lembrar de seu grande acerto televisivo: Lost).
A narrativa se passa não em Nova York e sim num abrigo da Louisiana, com cenário claustrofóbico, em que um homem, Howard (John Goodman) diz cuidar de uma jovem, Michelle (Mary Elizabeth Winstead), após um acidente bastante suspeito, e de um rapaz, Emmett (John Gallagher Jr.), de uma ameaça externa que é colocada sempre em dúvida pelo espectador. Escrito por Josh Campbell, Matthew Stuecken, e Damien Chazelle (diretor de Whiplash), esta continuação tem a estreia de Dan Trachtenberg atrás das câmeras. E, se a obra tenta estabelecer uma ponte com Cloverfield, seu cartaz e marketing promocional que antecedeu seu lançamento parecem os de Super 8.

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Eu poderia dizer que o filme apresenta algumas obsessões de Abrams, a começar por exatamente por algo estranho acontecendo e colocando a humanidade em polvorosa, mas seu principal traço é a relação forçada entre essas figuras diferentes. A princípio, Howard tem dúvidas quanto à Michelle, mas, aos poucos, parece que há uma aproximação familiar. Toda a ambientação para que esses três pareçam enclausurados funciona plenamente durante a narrativa. Mais uma amostra de como o cinema norte-americano tem talento para criar um cenário restrito com grande design de produção e muitos detalhes (a sensação é de que, com seus neons, jukebox, mesa de sinuca, jogos e filmes, o abrigo é uma espécie de cenário atemporal da própria cultura norte-americana), Rua Cloverfield, 10 se baseia numa espécie de nostalgia que Abrams deve conservar de séries fantásticas. Assim como Steven Spielberg se baseou em No limite da imaginação para compor sua ótima série dos anos 80 (infelizmente pouco lembrada) chamada Histórias maravilhosas, J.J. Abrams tenta recuperar essa sensação pelo olhar contemporâneo, em que as ameaças estrangeiras parecem se proliferar dentro dos Estados Unidos, com uma sensação de pouca liberdade para seus cidadãos. Isso já estava claro em Super 8, quando a serenidade dos extraterrestres dos filmes de Spielberg (excluindo Guerra dos mundos) é substituída por uma cidade em polvorosa depois de um estranho acidente de trem, do qual um grupo de crianças é testemunha.

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Que tipo de acontecimento estaria deixando os personagens nesse abrigo? Seria uma invasão russa, para lembrar um dos receios que existiam na Guerra Fria (resultando em um filme, dos anos 80, chamado Amanhecer violento)? Ou alguma praga capaz de contaminar, como diz Howard? Temas como esse são bem trabalhados pelo roteiro de Campbell, Stuecken e Chazelle, apontando para os meios culturais, e dialogam principalmente com a versão já referida de Guerra dos mundos feita por Spielberg.
Os personagens de Michelle e Emmett possuem uma simpatia inerente graças a seus intérpretes, sobretudo Winstead, presença de destaque desde Scott Pilgrim, mas sem se menosprezar a ótima participação de Gallagher Jr., visto ao lado de Brie Larson no sensível Temporário 12. É Winstead que dá verossimilhança ao comportamento da personagem central, desconfiada do fato de estar naquele abrigo. Ainda assim, quem rouba a cena é John Goodman, numa atuação capaz de lembrar seus melhores momentos – um estranho assustador (como, especialmente, em Barton Fink) – e cujo passado pode ser a verdadeira ameaça existente aqui se não fosse diluída em meio aos contornos gerais. Isso poderia ser, caso se explorasse melhor, um novo The fog – A bruma assassina ou O enigma de outro mundo, ambos de John Carpenter, no entanto ele tem pressa, a pressa dos blockbusters.

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Há algumas tentativas do diretor em surpreender, e as surpresas podem não se resolver da melhor maneira, dando uma sensação de algo feito às pressas para se acomodar à história e sem aproveitar, por exemplo, exatamente esse passado do personagem de Goodman. É como se o roteiro quisesse esconder o que verdadeiramente sugere: um lado encoberto da América, e o diretor, de modo evidente, mostra sua inexperiência até então atrás das câmeras, querendo buscar atalhos para não tratar de temas que deixa em suspenso no ar.
Inevitável dizer que ao longo da história há algumas surpresas, o que não impede de o clímax ser inevitavelmente óbvio diante do potencial. O primeiro era um legítimo found footage, com algumas boas saídas e efeitos visuais decentes, mas carecia de alguma força que reunisse seus pedaços. Este tem uma força na reunião desses personagens, no ritmo e no suspense de muitas cenas – e deixando a sensação de que falta algo, ou seja, que não estamos vendo mais do que uma determinada cena de Guerra dos mundos mais extensa. Há alguns diálogos que poderiam ser mais desenvolvidos, não fosse a preferência, claro, de Trachtenberg, certamente influenciado por Abrams, de sintetizar tudo por meio de uma explicação definida. Tudo no cinema de Abrams (e digo isso porque sua produção se estende sobre o estilo de todo o filme, assim como Spielberg em Poltergeist – O fenômeno, não assinado por ele e sim por Tobe Hooper, mas tão dele quanto), no bom e mau sentido, deve ser explicado quase didaticamente ao espectador. Em muitos momentos ele acerta; em outros, como aqui, o que seria um grande suspense se torna apenas num filme competente e com ótimas atuações.

10 Cloverfield lane, EUA, 2016 Diretor: Dan Trachtenberg Elenco: Mary Elizabeth Winstead, John Goodman, John Gallagher Jr. Roteiro: Damien Chazelle, Josh Campbell, Matthew Stuecken Fotografia: Jeff Cutter Trilha Sonora: Bear McCreary Produção: J.J. Abrams, Lindsey Weber Duração: 103 min. Distribuidora: Paramount Pictures Brasil Estúdio: Bad Robot / Paramount Pictures / Spectrum Effects

Cotação 3 estrelas e meia

 

A juventude (2015)

Por André Dick

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O cineasta italiano Paolo Sorrentino conseguiu chegar a Hollywood depois da recepção que teve seu A grande beleza em 2013, vencedor do Oscar de filme estrangeiro. Não era admirador do filme e achei o prêmio dado bastante injusto, pois parecia que ele desejava emular Fellini de um modo excêntrico e com uma carga emulando excessivamente cartões postais e linguagem facilitada. Em 2015, ele parece estrear (embora o filme não seja norte-americano) em Hollywood, com um grande elenco e num filme considerado menor, principalmente pelos admiradores de A grande beleza. É interessante a perspectiva que se tem sobre determinados trabalhos, pois A juventude me deixou muito mais receptivo, não apenas porque Sorrentino diminui consideravelmente os maneirismos que via no outro filme como consegue, por meio de um equilíbrio maior, fazer uma composição muito emotiva sobre os conflitos e sensações despertados pela velhice e pela juventude.
Michael Caine está especialmente excelente como Fred Ballinger, que passa férias num resort luxuoso nos Alpes suíços, ao lado do grande amigo Mick Boyle (interpretado por um Harvey Keitel fantástico, e se pergunta como ele não estava entre os principais indicados à categoria de ator coadjuvante neste início de ano), que deseja fazer um novo filme, depois de determinados fracassos e está reunido com um grupo de roteiristas. Fred é procurado por um emissário (Alex Macqueen) da Rainha Elizabeth II (para tocar sua obra popular “Canções simples”), mas ele não deseja aceitar o convite. Também no resort estão o ator Jimmy Tree (Paul Dano, em outra grande atuação depois da que apresenta, como Brian Wilson, em Love & Mercy), preparando-se para um novo papel, Maradona (Roly Serrano), cujo nome não é mencionado, mas tem todas as características do futebolista, a nova Miss Universo (Madalina Diana Ghenea) e a figura mais enigmática, uma jovem prostituta (Gabriella Belisario), além de uma jovem massagista (Luna Mijovic Zimic).

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Há não apenas a relação de Fred com Mick e com Jimmy – todas extremamente humanas –, como sua relação com a filha Lena (Rachel Weisz), casada com o filho de Mick, Julian (Ed Stoppard). Obviamente, é uma relação repleta de culpa, à medida que Fred não teria tratado sua esposa da maneira mais aceitável.
Como em A grande beleza e filmes anteriores de Sorrentino, há um cuidado visual muito grande, e pode-se dizer que ele emula uma certa linguagem publicitária. A diferença é que esta linguagem parece mais orgânica e conectada aos personagens que ele está mostrando, ou seja, não parece que ela é o principal elemento e sim um acréscimo. Como consequência, A juventude é uma obra simples, mas sem ser simplista, e não acentua passagens que poderiam lembrar mais um desfile de moda (embora algumas pareçam). O mais interessante na narrativa são os passeios dos personagens pelos Alpes, o que concede ao diretor de fotografia Luca Bigazzi um trabalho excepcional no sentido de sintetizar os enquadramentos e os atores de maneira mais eficientes para o andamento da narrativa. Como o filme anterior de Sorrentino, A juventude é também metalinguístico, mas esse traço é humanizado pela amizade entre os personagens Fred e Mick (que, ao final, se intensifica com uma emoção provocada certamente por influências fellinianas). Eles relembram antigas conquistas e a antiga forma que possuíam, além da influência no mundo das artes (Fred foi amigo de Stravinsky, por exemplo).

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Este é um filme que não se vê mais com tanta frequência: é essencialmente sobre como uma amizade pode persistir no tempo e os sonhos e realizações sempre se anunciam quando o ser humano se depara com seu limite. Os amigos fazem competições curiosas entre si, observam os outros hóspedes do lugar– e a conclusão é sempre a mesma: o tempo nunca conseguiria aproximá-los de alguma definição existencial ou servir como solução para atenuar seus problemas. Essa amizade é comparada às notas de uma música, seja pela maneira como Sorrentino capta a paisagem – com uma notável tranquilidade e, ao mesmo tempo, agilidade – e ao tempo. Em intensidade igual, o corpo, em A juventude, representa o desejo e a sensibilidade de se saber efêmero. Mesmo as lições de moral que se espalham ao longo da narrativa se manifestam como uma espécie de olhar sobre o círculo de situações humanas.
Há também um extremo bom gosto na escolha do design de produção e de figurinos, assim como algumas saídas interessantes para a história, como as apresentações feitas no pátio do resort todas as noites – sem, a meu ver, uma excentricidade nas imagens, mas uma composição muito sensível. Sorrentino lida com o contraste entre belas paisagens e a dificuldade de pessoas que caminham ali, no entanto parece mostrar mais: como a arte se confunde com a vida, sobretudo quando Lena acusa seu pai de ter se dedicado apenas à música, e ele usa, em determinado momento, um papel de bala para tentar compor uma sinfonia diante de uma paisagem pastoril. Do mesmo modo, ele vai sobrepondo os diálogos como camadas de memória, principalmente no encontro entre Mikey e sua atriz mais conhecida, Brenda Morel (Jane Fonda, numa participação memorável). Sorrentino está manipulando o espectador em muitos pontos, mas Caine, Keitel, Dano e Fonda realmente entregam o melhor de sua arte. Este filme é sobre a arte, com virtudes e falhas. Um filme realmente de grande beleza.

Youth, FRA/ITA/SUI/Reino Unido, 2015 Diretor Paolo Sorrentino Elenco:Michael Caine, Harvey Keitel, Rachel Weisz, Paul Dano, Jane Fonda, Alex Macqueen, Roly Serrano, Madalina Diana Ghenea, Paloma Faith, Ed Stoppard Roteiro: Paolo Sorrentino Fotografia: Luca Bigazzi Trilha Sonora: David Lang Produção: Carlotta Calori, Francesca Cima, Nicola Giuliano Duração: 124 min. Distribuidora: Fênix Filmes Estúdio: Indigo Film

Cotação 5 estrelas

Duna (1984)

Por André Dick

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Este texto é dedicado à minha mãe, Cenira Dias Dick, admiradora da obra de David Lynch

Dino de Laurentiis e sua filha Raffaella produziram este filme, baseado no romance de Frank Herbert, que vinha de uma sucessão de projetos não concluídos (Ridley Scott dirigiria o filme em determinado momento, além de Jodorowsky, o que rendeu um documentário recente sobre como seria sua versão). Anos atrás, o diretor Peter Berg (de Hancock, Battleship…) teria desistido de uma nova versão, considerando uma obra infilmável, mesmo avaliando que a versão de Lynch não tinha a ação que ele imaginava quando leu Duna, o que é estranho, já que o romance de ficção científica de Herbert pode ser considerado mais psicológico do que propriamente de aventura – e é difícil pensar que Berg conseguiria realizar um trabalho como o de Lynch.
Superprodução de 40 milhões de dólares que não encontrou muito público nas bilheterias, embora tenha se tornado, com o passar dos anos, cult movie, Duna tem uma versão estendida (de 177 minutos) feita para a TV, acompanhada, ainda, por algumas cenas deletadas (que somam em torno de 10 minutos) que Lynch não assina, mas é melhor o filme ser visto na versão de cinema, mais curta (137 minutos), em DVD e Blu-Ray (neste formato, temos a melhor apresentação, assim como algumas cenas deletadas que não estão nos demais meios).
A introdução da versão oficial, por exemplo, é muito superior, pois não menospreza o entendimento do espectador, enquanto a versão mais extensa tem uma narração entre os blocos e a eliminação de uma ou outra cena mais pesada para o meio televisivo, além de cenas repetidas e o aspecto inacabado das imagens que não entraram na versão lançada nos cinemas, apesar de ter novas cenas-chave (interessantes para compreender melhor a relação entre alguns personagens). Ou seja, é difícil ter uma ideia exata do que Lynch queria, pois nenhuma das versões é aquela que gostaria de ter feito efetivamente, mas o que existe em Duna mostra seu brilhantismo como cineasta.
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Cheguei ao romance por meio do filme e é comum se dizer que Lynch não explica nada. Esqueçamos, inicialmente, a montagem imposta pelos De Laurentiis. Em parte, o filme não consegue a expansão dos detalhes de Herbert, entretanto a tentativa é válida, pois Lynch respeita o material de origem, assim como acrescenta seu estilo, tratando com respeito a opulência visual que desperta o romance – não parece por acaso que o próprio Herbert diz ter gostado da adaptação.
A história se passa em 10.191 e remete ao povo do planeta Arrakis – completamente deserto –, chamado Fremen, que aguarda a chegada de um Messias, que seria Paul Atreides (Kyle MacLachlan, muito bem, com sua frieza, misturada com ingenuidade, característica), do planeta Caladan, cheio de mares – e sua água terá papel decisivo no filme. Porém, a família precisa agir sob as ordens do imperador do universo, Shaddam IV, que, querendo dar o poder de Arrakis aos Harkonnens, do Planeta Gide Prime, trai os pais do messias: o Duque Leto Atreides (Jürgen Prochnow) possui um anel de poder cobiçado, e Lady Jessica (Francesca Annis), sua mulher, é uma Bene Gesserit, linhagem de sacerdotistas que tenta impedir a chegada desse messias, querendo sempre resguardar uma magia estranha. A Madre Reverenda (Sian Phillips), que serve ao Imperador, lembra que Jessica não podia ter gerado um filho, pois ele pode ser o Kwisatz Haderach, aquele que pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. “O adormecido deve despertar”, diz Duque Leto ao filho, que vive cercado por professores, de Gurney Halleck (Patrick Stewart), passando por Wellington Yueh (Dean Stockwell), até Thufir Hawat (Freddie Jones). É justamente o que teme a Guild Navigator, que deseja destruir os Atreides.
O vilão é o Barão Vladimir Harkonnen (Kenneth McMillan, excelente), que tem dois seguidores, Rabban e Feyd Rautha (Paul Smith e Sting, muito bem) a seu lado – com comportamento pervertido – e outros ajudantes estranhos (entre as quais, Brad Dourif e Jack Nance), todos interessados na especiaria existente em Arrakis, que ajuda na locomoção das naves no espaço e pode representar o domínio do universo.

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Comenta-se que o filme é confuso por já começar explicando o que acontecerá dali em diante. Se formos ao livro de Frank Herbert, veremos, ao longo dele, trechos do diário da Princesa Irulan (Virginia Madsen), que conta o que acontece com os personagens. Lynch acerdatamente começa com essa narração e, mesmo seguindo quase fielmente as sequências do livro, reordena de forma com que o filme vá ganhando um tom crescente (não por acaso, a câmera se afastando do olhar de Irulan para mostrá-la contra o espaço sideral cria um contraponto ao final com a câmera se aproximando dos olhos de Paul Atreides), Herbert tem um estilo interessante de apresentar os personagens, mas o filme não pode entrar no universo sem antes tentar explicá-lo.
Identifica-se também como um problema os pensamentos em off dos personagens. Lynch não é Malick, contudo o fato é que aqui também ele é fiel ao livro. Os pensamentos parecem óbvios, mas tanto no livro quanto no filme criam um elemento de onirismo (os personagens não estão completamente acordados).
Ao mesmo tempo, o vocabulário seria complicadíssimo (quando passou nos cinemas dos Estados Unidos, parece que os espectadores recebiam uma espécie de manual para acompanhar a história!). Tratando-se de uma ficção científica mitológica, não parece haver obrigação de Lynch explicar o sentido de cada termo dado por Herbert, nem de, por respeito aos fãs do livro, escondê-lo.

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E os personagens, também no livro, são diversificados, surgem e desaparecem em alguns casos, ou seja, algumas vezes não desenvolvidos suficientemente. Quase não há ação ou humor – costuma-se comparar O senhor dos anéis com Duna, mas são, afora o universo mitológico, muito distintos, cada um possui qualidades específicas –, e sim muitos diálogos sobre intrigas de poder e política, com um tom, ao mesmo tempo, ecológico e religioso, quase teatral e profético. Há uma espécie de tensão de domínio entre os personagens (o Barão cujo destino está nas mãos das reverendas; o adolescente que precisa despertar para seu destino e salvar seu pai; a relação estranha entre o Barão e seu sobrinho; a tentativa de subjugar o povo Fremen). Além disso, no filme, Lynch tenta equilibrar, levantando uma tensão a respeito do anel que carrega o Duque Leto e é cobiçado pelo Barão Harkonnen, assim como guarda um mistério sobre quem pode ser o traidor infiltrado entre os Atreides (algo que se revela de início no livro). Alguns personagens de destaque no livro, como Dr. Kynes, Guy Halleck, Shadout Mapes e pai de Paul Atreides, aparecem mais na versão do filme feita para a TV. Outros, como o Imperador Shadam IV e a reverenda que o acompanha, pouco aparecem no livro, entretanto Lynch tenta destacá-los nas versões existentes do filme.
Já  alguns personagens têm suas características acentuadas, como o do próprio Barão, que no livro não parece ter toda a perversidade imaginada por Lynch.
Talvez Lynch tenha se equivocado com a inserção dos módulos de destruição, efetuados por meio da sonoridade da voz, o que é elementar em seu cinema (o poder do som), mas não existe no livro e não encaixa bem na história, sobretudo sem mostrar como são construídos, mesmo Paul Atreides tendo sua planta. Ainda assim, esses módulos de voz têm a ver com sua obra cinematográfica, em que o som humano sempre exerce um poder (não por acaso, a ação de Veludo azul é desencadeada depois da descoberta de uma orelha num capinzal).

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A maior falha do filme Duna, porém, é que depois de 90 minutos de filme (na versão mais curta; quase duas horas depois na versão estendida), a trama passa a ganhar um ritmo mais intenso, impedindo que conheçamos melhor os personagens. Muitos acontecimentos se sucedem em poucos minutos (por isso, a versão estendida é curiosa). Na parte que precede seu final, está a maioria das cenas deletadas de Duna (o duelo entre Paul Atreides e um fremen; a conversão de um corpo em líquido; o nascimento da irmã de Paul; a perseguição de Rabban aos fremen no deserto; a descoberta de como é produzida a Água da Vida). Raffaella De Laurentiis, filha de Dino, acrescenta que isso se deu, também, porque foi pedido a Lynch que fizesse sete cenas em apenas uma, o que prejudicaria um projeto como este, elaborado em três anos e meio. Também, claro, porque a montagem final não foi a desejada por Lynch. Raffaella explica que a Universal, depois, tentou fazer uma versão estendida, embora Lynch não tenha participado, sem explicar se era opção do diretor, dela ou da Universal. O fato é que até hoje Lynch se nega a falar do filme, e a revisitá-lo, sobretudo porque foi feita essa versão de três horas para a TV sem a sua autorização.
De qualquer modo, Duna é – com ou sem falhas – fascinante, o que o torna um grande filme. Não há a confusão sugerida pela crítica à época, ainda menos uma alegada falta de produção (direção de arte, figurino, fotografia) caso o espectador se deixe levar pelas imagens já oníricas aqui do diretor, misturando água, fogo, terra e ar, mas sobretudo as dunas do planeta. Da metade para o final, é certo que estamos diante de um sonho de Paul Atreides – como os personagens de vários filmes de Lynch (no roteiro original de Duna, lá está, em determinada parte: “O sonho continua”). Por isso, os filmes posteriores do cineasta parecem explicar melhor Duna, e mesmo o contrário. Já no início, Paul Atreides sonha com o que irá acontecer a ele: a mulher que irá conhecer e o corpo flutuando no espaço – depois da experiência que terá com a Água da Vida –, a risada de Feyd Rautha (Sting). Em outro momento, depois da queda de sua nave no deserto, antes de conhecer os Fremen, Paul terá um sonho acordado (e numa das cenas da versão estendida há outro momento em que ele visualiza a lua, que determina seu destino). Ele pode ser Muad’ib ou o Kwisatz Haderach, aquele adormecido que deve despertar.

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Nesse sentido, Lynch também é fiel, aqui, a Herbert, que explora vários diálogos sobre o sonho. As cenas de imagens esfumaçadas remetem a O homem elefante e Cidade dos sonhos, assim como a caixa da Bene Gesserit – em que Paul precisa colocar sua mão, a fim de passar por um teste – tem muito da caixa da atriz Rita, de Cidade dos sonhos, e o anel ducal que carrega o pai de Paul influenciaria, certamente, o anel com que Laura Palmer sonha na versão cinematográfica de Twin Peaks (aliás, na primeira cena de sonho de Twin Peaks, temos Jürgen Prochnow, o ator que faz o Duque Leto, num canto da sala). Isso sem falar na óbvia ligação com Eraserhead, primeiro filme de Lynch – a tomada de um verme se abrindo é idêntica à deste filme (o nascimento de Alia lembra o bebê de Spencer).
O elenco, apesar de a maioria ter participações rápidas, é muito bem escolhido, sobretudo Jürgen Prochonow e Francesca Annis, como os pais de Paul Atreides, Max von Sydow, na pele de um Fremen, Sian Phillips, no papel da reverenda ameaçadora, Brad Dourif e Kenneth McMillan – como harkonnens – e Sting (numa participação curta e eficiente). A atriz Sean Young, como Chani, namorada de Atreides, acaba tendo uma boa presença plástica, embora o roteiro não permita mais participação, e a meia hora final é muito bem pensada – com uma cena surpreendente, que suplanta alguns efeitos especiais mais precários (não se sabe se as naves são mais estáticas para ser uma contraposição à movimentação de Star Wars, pois Lynch pediu a todos que não queria um ar de ficção científica em sua obra, preferindo um futurismo passadista, e já que Duna é mais uma ficção psicológica, entretanto na maior parte das vezes não convencem, servindo mais como imagens pictóricas). Nesse sentido, o filme consegue retratar melhor as batalhas na areia e dos vermes do que revelar imagens de naves espaciais, ainda mais diante das ficções científicas de destaque feitas anteriormente (como 2001, Star wars e Blade Runner) e, sobretudo, posteriormente – embora sua direção de arte de Anthony Masters (de Lawrence da Arábia e 2001), as maquetes perfeitas de Emilio Ruiz del Río, e as imagens dos vermes (criados por Carlos Rambaldi, o mesmo responsável pela concepção de E.T. e do King Kong de 1976) compensem isso, criando um universo muito mais amplo do que 2001 e Blade Runner, situados em lugares definidos.

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Nesse sentido, há boas cenas de ação (como aquelas que mostram os vermes gigantes) e, no plano técnico, direção de arte, maquiagem e figurino notáveis, além da fotografia do mesmo Freddie Francis de O homem elefante. Destaque-se que Duna concorreu apenas ao Oscar de melhor som. Nessas categorias referidas, talvez ele tivesse como concorrente, em 1984, apenas Amadeus e 2010 – sendo, a meu ver, superior em todas essas categorias em relação a esses dois, sobretudo por criar um universo, e não simplesmente recriar um já existente. No prêmio Saturn Awards, mais importante da ficção científica, ele foi reconhecido com indicações (melhor filme, melhor maquiagem, melhores efeitos especiais) e recebeu um (melhor figurino, Idade Média e futurismo, foi feito de forma notável por Bob Ringwood (responsável pelos figurinos de Excalibur, Império do sol e Batman).
Impressiona como Lynch, reunindo uma grande equipe em estúdios do México, em 1983, conseguiu reproduzir o universo imaginado por Herbert, sobretudo nas cavernas e palácios, inclusive porque o romance não descreve detalhadamente os cenários, preferindo concentrar-se nos personagens. Esses cenários como que simbolizam os personagens, frios e simétricos, esperando um sentido para a Água da Vida. Consequentemente, cada planeta de Duna corresponde a uma concepção visual: Caladan tem mares e chuva, com plantas, vento e umidade; Gied Prime tem um ambiente de máquinas, correntes, fios e iluminações futuristas, além de uma cor verde doentia nas paredes; Arrakis tem o clima de deserto, com coloração amarela, e cavernas escuras; e Kaitain, onde fica a sede do imperador, tem edifícios tecnológicos.

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Não há dúvida de que a concepção de Masters, baseada em muitos desenhos de Lynch, cria um universo magnífico.Eu diria que vale a pena conhecê-lo, pois tem imagens notáveis, que lembram pinturas – sua força é, sem dúvida, pictórica e sonora –, explicando o fato de Lynch ter preferido fazer este filme a dirigir O retorno de Jedi, fazendo com que não desenvolva alguns aspectos, que soariam repetitivos, e o cineasta não queira mais, hoje, falar do filme em entrevistas. Além disso, tenho especial apreciação pela trilha de Toto, misturando um tom épico com algumas sonoridades dos anos 80, mas sem ficar datado. Lynch construiu a maior ficção científica com elementos do rock no figurino e na música.
Duna e a obra de Herbert certamente influenciariam Lynch para toda sua carreira, sendo uma pena que ele não reconheça mais o filme. Mesmo com o desinteresse da Universal, é certo que os admiradores da obra gostaria de ver um dia seu corte final. E parece algo espantoso, embora reserve-se o direito, que, mesmo com esse desejo, Lynch pareça não dar importância – apenas pareça, pois ele produz diálogos com Duna em outras obras suas. Nesse sentido, não se trata de uma obra aprovada plenamente por ele, mas o que conhecemos, ainda assim, forma uma peça única de ficção científica, que parece sempre melhorar numa releitura, além de sua fascinação.

Dune, EUA, 1984 Diretor: David Lynch Elenco: Kyle MacLachlan, Kenneth McMillan, Jürgen Prochnow, Sean Young, Francesca Annis, Leo Cimino, Brad Dourif, José Ferrer, Linda Hunt, Freddie Jones, Max von Sydow, Virginia Madsen, Richard Jordan, Patrick Stewart, Sting Produção: Raffaella de Laurentiis Roteiro: Eric Bergren, Christopher de Vore, David Lynch, Rudolph Wurlitzer Fotografia: Freddie Francis Trilha Sonora: Toto Duração: 137 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: De Laurentiis

Cotação 5 estrelas

Memórias secretas (2015)

Por André Dick

Memórias secretas

O diretor Atom Egoyan, nascido no Egito e naturalizado canadense, tem tido dificuldades de se afastar dos seus sucessos de crítica dos anos 90, como O doce amanhã, pelo qual recebeu uma indicação ao Oscar de diretor, e Exótica. O resultado é que seus últimos filmes são recepcionados como notórias decepções, mesmo sendo de qualidade às vezes muito acima da média. Nos anos 2000, embora Ararat tenha a trama mais conturbada, foi o que melhor foi recebido, quando suas outras obras, como Verdade nua, Adoração e Chloe – O preço da traição são interessantes, com tramas realmente envolventes para quem se afasta um pouco da ideia de cinema mais efetivamente hollywoodiano. Mais recentemente, em 2014, ele apresentou os subestimados Sem evidências e À procura, este um exemplo de como Ryan Reynolds poderia aparecer de forma dramática numa narrativa de sequestro.
Como À procura em Cannes, Memórias secretas teve uma recepção bastante fria no Festival de Veneza, sem receber especial atenção. Cristopher Plummer vem à frente do elenco, numa atuação extraordinária (a melhor desde Beginners), que o faz ser cotado para as próximas premiações. Ele interpreta Zev Gutman, um senhor de idade, com quase 90 anos, que mora num asilo, com demência, caracterizada pelos esquecimentos (entre os quais, de que sua esposa faleceu). Esse início mantém suas bases numa espécie de realismo com um toque surpreendente de suspense.

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Lá, ele é amigo de Max Rosenbaum (Martin Landau, quase irreconhecível), que foi seu companheiro de prisão em Auschwitz e escreve uma carta-guia para que possa procurar o homem que matou sua família e que teria se mudado para os Estados Unidos, com o nome Rudy Kolander. Zev, então, mesmo com todos os lapsos de memória, vai atrás de sua vingança particular, dele e em nome do amigo que está impossibilitado de sair do asilo – e, para isso, precisa comprar uma arma. Ao mesmo tempo, deixa seu filho, Charles (Henry Czerny), preocupado com o que pode lhe ocorrer.
Com uma fotografia muito bela de Paul Sarossy, iluminando os cenários quase naturalmente e com movimentos de câmera claramente inspirados por Emmanuel Lubezki, sobretudo em sua parceria com Malick, Memórias secretas, como outras peças de Egoyan, guarda alguns temas em comum: o conflito entre o presente e o passado, a busca por vingança (explicada quase sempre em bases históricas e culturais, como no quase esquecido e belo Adoração) e a exasperante solidão de um homem. Todos lidam essencialmente com o tema da memória, o quanto ele influencia no presente momento em que vivem os personagem e o quanto ele ressoa numa distância de anos. O pano de fundo de filmes quase ignorados do diretor, como Adoração, Verdade nua e o recente À procura, é este, compondo uma obra autoral e instigante. Zev é um personagem já visto em na trajetória de Egoyan, com um grito de dor quase sufocado, ainda despreparado para seu presente e em relação a seu futuro. Ele faz a narrativa andar de ponta a ponta, em razão da competência de Plummer para compor gestos mínimos e profundos. Para ajudar a compor seu drama, é fundamental, além do roteiro de Benjamin August, bastante contido e com diálogos apenas quando estritamente necessário, a trilha sonora de outro habitual colaborador de Egoyan, Mychael Danna. Ele lança as notas a cada passo dado pelo personagem, como se compusesse uma atmosfera de jornada pessoal, dramática, ao lado de um tom soturno e problemático.

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Impressiona como Egoyan consegue partir de um drama pessoal – de um homem de idade sufocado pelas memórias – para uma espécie de road movie de investigação e perseguição. Alguns classificam o filme como thriller, mas talvez não o seja exatamente: ele se sustenta mais na base dramática que evoca o drama da Segunda Guerra que não pode ser esquecido. Há uma passagem que mostra um determinado personagem capaz de remeter o espectador aos conflitos provocados pelo nazismo (na figura de Dean Norris, ator conhecido por Breaking Bad) e cenas capazes de remeter ao melhor Egoyan, com uma plasticidade raramente encontrada e uma determinada sensação de desgaste que contempla as decisões de seus personagens. Podem ser feitas, também, comparações com Amnésia, de Cristopher Nolan, e talvez haja algumas semelhanças, principalmente porque o personagem está sempre preso a hotéis em sua viagem e em embate com sua memória. No entanto, parece que Plummer, nessa viagem para vingar os familiares, parece estar em um drama profundo sobre a busca pela identidade que se perdeu. Diante do que podemos ver de seu comportamento, ela dificilmente irá voltar, mas o espectador deseja que ele consiga acertar as contas com seu passado. Egoyan mostra essa difícil trajetória não sem uma certa dose de humor corrosiva e estranha, para um filme em que as pessoas estão sobrecarregadas pelo que aconteceu décadas antes. Tudo parece se mover de maneira muito tranquila, e quando Zev precisa estabelecer cada quadro de sua missão é mais natural que estejamos preparados para um grande drama. E, apesar de considerar o final do terceiro ato um tanto apressado e expositivo em excesso, fica difícil negar que Egoyan novamente conseguiu um belo acerto.

Remember, CAN, 2015 Direção: Atom Egoyan Elenco: Christopher Plummer, Dean Norris, Martin Landau, Jurgen Prochnow, Bruno Ganz, Henry Czerny Roteiro: Benjamin August Fotografia: Paul Sarossy Trilha Sonora: Mychael Danna Produção: Ari Lantos, Robert Lantos Duração: 94 min. Distribuidora: Diamond Films Estúdio: Egoli Tossell Film / Serendipity Point Films

Cotação 4 estrelas

Capitão América – Guerra Civil (2016)

Por André Dick

Capitão América 3

Se o primeiro filme da nova fase de Capitão América era dirigido pelo competente Joe Johnston, um especialista em obras de fantasia, com uma ótima ambientação e uma atuação excelente de Stanley Tucci, a sua continuação, Capitão América 2 – O soldado invernal, parecia indicar realmente uma narrativa diferenciada, com toques de thriller de espionagem e uma cena de luta coreografada num elevador. Chris Evans se tornou uma boa referência para o personagem depois do primeiro filme de Joe Johnston – em que o destaque era o início, mostrando o surgimento do personagem – e Scarlett Johansson novamente tinha boa presença.
Apesar de ótimas cenas de ação, há uma sensação incômoda de que o visual da segunda parte de Capitão América tende a lembrar mais a de um telefilme do que a imaginação do primeiro, claramente causado pela mudança de cenário; no entanto, ela é brusca e o design de produção não é atraente para os olhos, assim como a fotografia. Ao final, os efeitos especiais e as cenas de ação lembravam Os vingadores de forma demasiada para dar a sensação de que havia realmente algo original a ser visto nele – embora tivéssemos a atuação de Robert Redford e Samuel L. Jackson cumprindo bem o seu papel.

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No entanto, o que realmente decepciona no segundo filme é a direção dos irmãos Joe e Anthony Russo, mais interessada em seguir o roteiro da Marvel do que investir naquele caminho que apresentam na primeira hora – quando há até um pouco de elementos autorais. Nesta terceira parte, Capitão América – Guerra Civil, novamente dirigida por eles, temos já desenhado o duelo – demarcado principalmente por certa cota da crítica – entre o que seria o estilo da Marvel e o da DC Comics. Mesmo com os três Homem de Ferro, os dois Hulk e Thor, é este o momento em que Batman enfrenta Superman no cinema e as comparações passam a ser do filme de Snyder com a obra dos irmãos Russo. E um fato notável: cada peça lançada de super-heróis da Marvel passa a ser a maior já feita no gênero, parecendo ignorar o que já fizeram cineastas como Tim Burton, Richard Donner, Richard Lester, Ang Lee, Edgar Wright, Jon Favreau, Kenneth Branagh, Sam Raimi, Cristopher Nolan e aquele ao qual foi entregue, inadvertidamente, a placa de prepotência desse universo: Zack Snyder. Não passa a ser desconhecimento, e sim uma consciente e infeliz falta de memória.
Nos dois primeiros Capitão América, faltava uma ligação mais interessante do personagem com os outros; ele se sentia sempre isolado, em conflito, mesmo como Steve Rogers, afora seu interessante contato com o criador feito por Stanley Tucci – e a série passa de uma quase fantasia do primeiro para um thriller no segundo. É um personagem sem o carisma dos outros, principalmente Stark, embora Evans faça o possível para tornar seus diálogos ágeis e seja, digamos, a parte mais melancólica do grupo, devido a ser alguém do passado vivendo numa época turbulenta.

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Capitão América

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Aqui os irmãos Russo colocam o personagem numa situação delicada: ele quer defender seu amigo de longa data, Bucky Barnes (Sebastian Stan), o soldado invernal, capturado e transformado pela Hydra em assassino, do que ele imagina ser uma conspiração. Para complicar, houve um problema num país no Quênia, África do Sul, provocado tanto pelo Capitão América quanto pelo Falcão (Anthony Mackie), Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen) e a Viúva Negra (Scarlett Johansson).  Causam um certo alvoroço e o governo dos Estados Unidos, pela figura do secretário de Estado Thaddeus Ross (William Hurt), ex-general e inimigo de Hulk, deseja enquadrar os vingadores. A partir daí, o mote é a lembrança do que eles já fizeram nos filmes anteriores – sobretudo em Nova York e em Sarkovia. Stark se encontra num momento particularmente difícil e parece longe seu desafio às autoridades sobretudo de Homem do ferro 2, quando ele pretende privatizar a paz mundial. Aqui, ele parece mais preocupado em acertar um determinado acordo com a ONU e convencer o Capitão América – com quem se desentende desde o primeiro Os vingadores – que surge principalmente nas figuras de T’Chaka (John Kani) e seu filho T’Challa (Chadwick Boseman). Em meio a tudo, surge uma figura chamada Helmut Zemo (o talentoso Daniel Brühl, inevitavelmente desperdiçado).
Os irmãos Russo, como no segundo filme, apresentam uma primeira hora de grande qualidade, com uma colocação acertada dos personagens e uma trama misteriosa que está no nível dos bons thrillers. Eles sabem fazer cenas de contato físico aproximado, o que não é uma especialidade de Joss Whedon, mais interessado na grandiosidade dos cenários, principalmente nas batalhas finais dos dois Os vingadores. Os irmãos Russo também possuem um bom ouvido para o diálogo; ele não soa forçado, mesmo que as situações pareçam excessivamente implausíveis. Porém, eles não apresentam o que seria um diferencial no gênero da fantasia: a ambientação.

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Tudo neste Capitão América, como no anterior, se passa em cenários duramente reais, sem um design de produção atraente. Por isso, a comparação deste estilo com o de Zack Snyder – o diretor que, junto a Nolan, projetou o visual dos filmes da DC Comics –, um criador com toque visual delirante, é improvável e deslocada. O que eles mostram aqui é uma deliberada ponte entre o humor e a ação, a especialidade de Joss Whedon, ou seja, não há evolução aqui como deseja parte da crítica e do público, aceitem ou não seus críticos, e um interesse em tratar da política e do modo como a segurança é vista – ou deve ser vista – em relação ao ser humano, embora esse tema não chegue a ser original.
Por estarem incumbidos de apresentar um filme com uma quantidade insuspeita de heróis – e talvez falar neles possa remeter a spoilers –, eles tentam facilitar as coisas assumindo tudo numa única sequência que surpreende pela coreografia impecável das lutas e por um efeito visual específico, mesmo que sem nenhum tom de ameaça (pelo contrário, os personagens parecem apenas se apresentar para o próximo episódio) e cujo cenário é absolutamente comum, sem nenhuma criatividade. Se é isso que certa crítica aponta como sendo o problema de Snyder (o CGI), pode-se dizer que estamos falando de outra coisa: a decisão da Marvel de fazer uma ambientação seca, sem, inclusive, o que víamos nos dois Thor, torna suas produções visualmente muito limitadas. Tanto que, quando em determinado momento (spoiler), surge uma prisão marítima espetacular, parece que o espectador adentra em outro filme (se fosse em Snyder, certamente a concepção da prisão seria excessivamente dark).

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Em termos de simbologia, também não há qualquer semelhança dos irmãos Russo com Snyder. Capitão América é um personagem envolvido com corporações, mas sua dedicação à amizade coloca em xeque sua amizade exatamente com alguns companheiros de batalha. No entanto, enquanto Snyder aprofunda o fato de que os heróis não são assim porque querem, a alegria dos heróis da Marvel é justamente serem o que são. Não ver essas diferenças é uma desonestidade consciente, quando Capitão América, em seus melhores momentos, entrega um ritmo não no nível de Whedon ou mesmo do Homem-formiga – particularmente o maior acerto da companhia –, mas de um filme de ação muito bem feito. Ainda assim, faltam motivações claras por parte do vilão, além de ele se distanciar da narrativa com um tempo considerável para quase ser esquecido, e nenhum até agora conseguiu se equivaler ou superar o Loki de Tom Hiddleston – e William Hurt, com sua habitual competência, acaba assumindo às vezes o posto de forma involuntária. Isso é contrabalançado por Chris Evans e por um ótimo Robert Downey Jr., em participação superior às que apresenta no terceiro Homem de Ferro e no segundo Os vingadores – e o ator aparece no início do filme em versão jovem revolucionária, como se estivesse em De volta às aulas ou Mulher nota mil.
Embora Capitão América – Guerra Civil sobreviva muito bem às duas primeiras partes, sendo o melhor por diferença considerável, há alguns elementos que poderiam ser melhor trabalhados no sentido, principalmente, psicológico. A maneira como Stark se aprofunda em sua memória poderia ser melhor trabalhada, em relação como a maneira que o Capitão América tenta proteger um amigo por ser, na verdade, seu único elo vivo com o passado. Stark é o homem da modernidade e o Capitão América se conserva com certo classicismo. A Viúva Negra fica procurando por uma conciliação, mas é difícil quando os comportamentos são opostos. Isso não fica empregado do melhor modo pelos irmãos Russo, pela necessidade de incluir tantos super-heróis, embora eles consigam delinear as relações entre os personagens com desenvoltura, tudo acaba parecendo disperso, mesmo que em ritmo adequado (poucas vezes se repara na excessiva metragem) e com um final realmente surpreendente e que costura algumas tramas paralelas do melhor modo. No entanto, o que é um filme divertido não significa ser de fato superior aos outros, mesmo aos da Marvel, apenas para os que não viram (realmente) os de Whedon, Branagh, Ang Lee: como a presença de Stan Lee, as cartas estão sempre marcadas.

Captain America: War civil, EUA, 2016 Diretores: Anthony Russo, Joe Russo Elenco: Chris Evans, Robert Downey Jr., Scarlett Johansson, Sebastian Stan, Anthony Mackie, Don Cheadle, Jeremy Renner, Chadwick Boseman, Elizabeth Olsen, Paul Bettany, Daniel Brühl, Paul Rudd, William Hurt  Roteiro: Christopher Markus, Jack Kirby, Joe Simon, Stephen McFeely Fotografia: Trent Opaloch Trilha Sonora: Henry Jackman Produção: Kevin Feige Duração: 146 min. Distribuidora: Walt Disney Pictures Estúdio: Marvel Entertainment / Marvel Studios

Cotação 3 estrelas