Por André Dick
Desde que seu diretor Amat Escalante foi escolhido como o melhor no Festival de Cannes de 2013, o filme mexicano Heli tem sido comentado – às vezes unicamente – por suas cenas de violência. A questão seria saber se esta consideração seria exagerada, e se consegue superar Martin Scorsese ou Abel Ferrara dentro dos parâmetros permitidos de cenas fortes, ou tornar O ato de matar um documentário menos repulsivo. Além disso, no mesmo Festival de Cannes, tivemos Um toque de pecado, de Jia Zhangke, e Apenas Deus perdoa, de Refn, mas por talvez contarem com uma violência mais estilizada, aos moldes de Tarantino, nunca chegaram a ser apontados por esta recepção. Para quem está atrás desta característica definida como aquilo que define Heli não irá se decepcionar com seus minutos iniciais, de uma grande crueza, quando uma caminhonete segue pela estrada e para ao lado de um viaduto; em seguida, aparecem homens carregando um corpo.
O que se segue a esta sequência não chega, na maior parte do tempo, a ter esta crueza, mas Escalante trabalha com seus personagens de um modo estranhamento direto, mas cercado de subjetividade. Passamos a acompanhar uma família dessa cidadezinha mexicana: Heli (Armando Espitia) e o pai (Ramón Álvarez) trabalham numa fábrica de automóveis, enquanto Estela (Andrea Vergara), com 12 anos, namora Beto (Juan Eduardo Palacios), que treina para ser recruta da polícia. Por fim, Heli tem um nenê, Santiago (Agustín Salazar Hernández), com a esposa, Sabrina (Linda González), que não tem interesse mais por sua aproximação. Esses elementos são dispostos por Escalante de uma maneira discreta, mas ao mesmo tempo contundente, ao mostrar, por exemplo, o treinamento de Beto, assim como coloca Heli no papel de cuidar da sua irmã. Escalante compõe, de modo interessante, o cuidado que Heli tem com ela e seus estudos, como se tivesse de ocupar o lugar do pai ausente, assim como dispõe o papel do significado de uma paixão deslocada da menina pelo recruta.
Essas são peças reunidas de maneira aparentemente solta, mas sempre com um domínio narrativo bastante impressionante. Percebe-se, no filme, elementos dos filmes de outro mexicano, Carlos Reygadas. Ele é um dos produtores associados de Heli, assim como Escalante trabalhou como diretor de segunda unidade de Batalha no céu, um dos filmes com o estilo cru de Reygadas, ao lado de Japón, que dialoga diretamente com este Heli. Se Reygadas deixou a crueza um pouco de lado em suas maravilhas Luz silenciosa e Luz depois das trevas (este, infelizmente, ainda inédito nos cinemas brasileiros), parece que Escalante consegue algo mais interessante: ele mistura a primeira fase do cinema de Reygadas com sua fase de cuidado mais fotográfico. Heli tem a fotografia de Lorenzo Hagerman e o filme todo, mesmo mostrando uma cidade incrustada no deserto, nunca tem um visual menos do que imersivo. Apesar de seu tema lidar também com a questão das drogas, Heli está muito longe de ser uma versão mexicana do Traffic de Soderbergh.
Não existe aqui a filmagem mais exótica de Soderbergh nem a fotografia com filtros para dar a sensação de um calor constante. Escalante procura mostrar seus personagens como se estivessem num ambiente inóspito e fora de lugar e de tempo. Às vezes, tem-se a impressão de que, em outros moldes, ele faz o que Sam Peckinpah tentava em Os implacáveis, sobre o assalto a banco de Steve McQueen e Ali McGraw, assim como os irmãos Coen no sempre interessante Onde os fracos não têm vez: o cenário é contemporâneo, mas o comportamento remete mais ao faroeste. Comenta-se que Heli criou grande desconforto no México justamente por causa disso, desse olhar violento, sem reparos de Escalante, mas, independente disso, a impressão que se tem é estarmos em frente a um cinema autoral de grande qualidade e risco. Assim como ele consegue dispor cenas com impacto natural, consegue apoio de um elenco quase todo não profissional, a começar por Espitia e Vergara, em atuações simples, mas vigorosas.
A atmosfera de Heli é, sem dúvida, sua maior qualidade, pois o espectador se sente inserido no cenário de terra, chão batido, montanhas perdidas, um barranco com um boi perdido logo abaixo, cactos, poucas árvores. Heli apresenta um cenário tão árido quanto, ao que parece, seus personagens. Mas aqui Escalante consegue um diferencial, por exemplo, em relação ao que David Michôd mostra no recente The Rover – A caçada. É impactante que, quanto mais pareça mostrar a desintegração dos personagens nesse cenário onde nada parece trazer esperança, em que há uma confusão entre bandidos e policiais, Escalante destaque a figura sempre constante da mulher como uma continuidade humana contra toda a violência revelada. Não apenas Estela, irmã de Heli, precisa se mostrar contra esta tradição, como também Sabrina.
Num filme tão imersivo, mesmo o que poderia ser uma cena banal da tentativa de uma detetive, Maribel (Reina Torres), assediar um dos personagens se torna como uma única possibilidade de haver uma aproximação feminina num cenário mais tendente ao horror ou ao afastamento. Este cenário também contrasta com a fábrica de automóveis, onde tudo é simétrico e acompanhado pelos auxiliares, quando a desordem que ocorre fora dali não tem nenhuma consequência a não ser exigir que se tenha de suportá-la. São destruídas toneladas de drogas e uma autoridade pronuncia uma ordem das coisas; enquanto ele fala as labaredas da droga sendo queimada estão atrás, quase consumindo todo o espaço.
Heli tem várias cenas em que há uma opressão, tanto aquelas que se passam na fábrica quanto aquelas na casa ou mesmo numa planície deserta, levando o espectador a um lugar desconhecido, também para os personagens. Não apenas essa opressão – a das inter-relações que parecem cada vez mais vagas –, como também a suspensão de qualquer confiança no aparato policial que serviria normalmente de ajuda para superar o desastre existencial pelo qual os personagens passam marca Heli de ponta a ponta, mas tudo isso pode escapar à rotina se há um parque de diversões ou se finalmente as crianças da casa podem dormir abraçadas diante de uma cortina aberta. Para esses personagens, o governo só significa uma funcionária querendo fazer uma pesquisa familiar. Em Heli, Escalante mostra que, apesar da ameaça externa (e o momento em que uma caminhonete da polícia para em frente ao personagem principal e depois some na estrada, deixando apenas poeira) e da possibilidade de vingança contra quem deturpa a ordem das coisas, mesmo sob um céu azul, há um amor escondido e que pode ser visto como a continuidade de todas as coisas que parecem a princípio esquecidas. É esta força que compreende este belíssimo e notavelmente injustiçado filme de Escalante.
Heli, MEX/ALE/FRA/HOL, 2013 Diretor: Amat Escalante Elenco: Armando Espitia, Ramón Álvarez, Andrea Vergara, Juan Eduardo Palacios, Linda González, Reina Torres, Agustín Salazar Hernández Roteiro: Amat Escalante, Ayhan Ergürsel, Gabriel Reyes, Zümrüt Çavusoglu Fotografia: Lorenzo Hagerman Trilha Sonora: Lasse Marhaug Produção: Amat Escalante, Carlos Reygadas, Nicolás Celis Duração: 105 min. Distribuidora: Zeta Filmes Estúdio: Mantarraya Producciones / No Dream Cinema / Tres Tunas