Clube de compras Dallas (2013)

Por André Dick

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Ainda que tenha surgido na década de 80, como uma doença devastadora e ocasionando pouco tempo de vida para seus portadores, a Aids nunca chegou a ser abordada com grande interesse em filmes. Ainda hoje, o filme mais conhecido a tratar dela é Filadélfia, de duas décadas atrás, com a atuação oscarizada de Tom Hanks e que não chega a ser considerado uma referência, apesar da qualidade de seu elenco e da trilha musical com canções de Bruce Springsteen. Em As horas, importante lembrar, também temos o personagem do escritor interpretado por Ed Harris num diálogo com o passado de um dos personagens, enquanto tenta conviver com a doença. No ano passado, quando Clube de compras Dallas foi lançado, surgiram as inevitáveis comparações e a certeza de estarmos diante de um drama sobre a vida ameaçada pela Aids com condições de trazer um amplo debate. Apesar de seu diretor,  o canadense Jean-Marc Vallée (A jovem rainha Vitória), ser pouco conhecido, o filme foi reunindo admiradores, por seu tom independente, com a atuação de Matthew McConaughey como Ron Woodroof, que participa de rodeios, trabalha como eletricicista e determinado dia, ao se ver colocado numa cama de hospital, descobre, depois de fazerem exame de sangue, que contraiu a doença. Com a atitude de um caubói, no entanto, ele irrompe pela porta do quarto na certeza de que não será derrotado – e McConaughey desenha os movimentos do personagem com propriedade, entre o nervoso e o tranquilo, como faz desde seus passeios noturnos em Jovens, loucos e rebeldes.

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Este é o início do filme e contempla boa parte do que veremos ao longo da narrativa, com a ligação de Ron com uma médica deste hospital, Eve Saks (Jennifer Garner, em uma interpretação convincente), que não pode distribuir remédios capazes de ajudar no combate à Aids, ainda não liberados, à época, nos Estados Unidos. Ron precisa tomar uma série de decisões para aquilo que o médico, Dr. Sevard (Denis O’Hare), lhe determina: seu prazo de vida é de 30 dias. Esta contagem inicial dos dias dados pelo médico oferece ao espectador uma espécie de luta contra o tempo, no que o diretor tem uma eficiente saída, intercalando imagens de Ron sendo excluído de determinados convívios sociais, um peso dado ao filme de forma certamente contida, mas ainda assim interessante, além da sua dependência de drogas. Além disso, acostumado ao uso dessas, o personagem principalmente se vê na condição da procura de drogas químicas para impedir a concretização do prognóstico hospitalar, e entra em contato com o AZT. Quando Ron encontra um transexual, Rayon (Jared Leto), a sua vida ingressará numa corrida contra o tempo não apenas para ele, mas para diversas pessoas.
Para quem não acompanhou o início da carreira de McConaughey, talvez tenha sido William Friedkin que o transformou em grande ator com Killer Joe. Mas quem realmente conseguiu aproveitar o ator em seu melhor momento foram Jeff Nichols em Amor bandido e Jean-Marc Vallée em Clube de compras Dallas. Aqui McConaughey tem o papel de sua trajetória, iniciada ainda nos anos 90, quando foi comparado a Paul Newman, em papéis de Contato e Tempo de matar, inclusive com um figurino e o chapéu de caubói que remetem – e Vallée não estava desatento a isso – à figura de Killer Joe, assim como à sua participação em Lone Star – A estrela solitária. Depois de participar de várias comédias românticas, nos últimos anos ele passou a se tornar um ator de papéis mais restritos. Embora McConaughey já inicie o filme bastante magro, sua transformação ao longo dele é bastante plausível, oferecendo ao espectador mais uma condição do que uma atuação modesta. Como este personagem, ele consegue uma empatia com o espectador, mesmo com suas atitudes voltadas a uma certa prepotência e displicência do trato pessoal.
Em nenhum momento, e nisto podem se basear algumas críticas, Clube de compras Dallas se torna pesado a ponto do que seria os efeitos da Aids. Jean-Marc Vallée tem isso como um ponto claro. Isto, na verdade, evita que o filme se transforme em uma exploração gratuita dos danos que ela ocasionou nos anos 80, e continua ocasionando. O filme prefere explorar como uma pessoa pode estar à beira da morte, num contexto sobretudo de a doença ser recente, e não poder se medicar de forma conveniente em razão da indústria farmacêutica vagarosa ao tentar lidar com, senão a cura, paliativos para a doença. Nesse caso, a presença da AFA é vital para se entender este monopólio da indústria e a figura do Dr. Vass (Griffin Dunne, excelente) uma presença interessante.

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Por outro lado, não se eleva o personagem de Ron a um pedestal inalcançável de ajuda humana – o objetivo dele é enfocar como a ajuda pode também estar ligada a um contexto equivocado, mas quando se lida com a morte os limites perdem sua localização. Clube de compras Dallas também lida com o fato de que no início da doença os homossexuais eram vistos como aqueles mais suscetíveis à doença, e o preconceito desencadeado por isso. É interessante, por exemplo, no início do filme Ron satirizar o fato de Rock Hudson, astro de Hollywood, ter morrido por causa da doença, logo revelando a inaceitação, e, ao longo do filme, ter de lidar com o próprio preconceito.
Deste modo, se por um lado o filme trata da história de Ron, a partir de determinado ponto, ficamos diante daquilo que dificilmente pode mudar e atinge diretamente a liberdade e as escolhas do indivíduo, a sua inserção na sociedade e como ela pode excluir o indivíduo quando a vida passa a valer apenas um pote de comprimidos. Todos os personagens acabam precisando atuar dentro de um contexto dito fora da lei para manter a condição diante da vida, e são destacados os trechos em que se busca a saída para o problema. A relação de Ron com o transexual Rayon, no entanto, poderia ter sido mais explorada por Vallée. Jared Leto impressiona no papel, entregando sua melhor atuação depois de Requiém para um sonho, mas lhe falta uma presença maior no filme, como um real acréscimo à narrativa central. Talvez seja este o maior impasse de Clube de compras Dallas, um filme que consegue apresentar uma proposta interessante em seu roteiro, com diálogos verossímeis e ágeis: a presença de Rayon acaba ficando, de certo modo, dispersa depois de um início muito vigoroso e sensível. Em paralelo a isso, o embate entre Ron e a AFA acaba também ficando deslocado, quase que um resquício no roteiro competente de Craig Borten e Melisa Wallack.
No entanto, as qualidades de Clube de compras Dallas são maiores do que seus problemas. Vallée tem um grande talento na montagem do filme (sua primeira hora, especialmente, é muito ágil, com movimentos de câmera interessantes) e consegue compor uma interessante similaridade entre a condição de Ron e o tempo que o caubói de rodeio precisa ficar em cima do touro, como se a vida estivesse por um fio e a exigência pessoal fosse enfrentar a independência da natureza. Se Clube de compras Dallas não tem um êxito completo, pelo menos não deixa de lidar com os conflitos internos e externos de um personagem a ser conhecido e não explora o tema de forma gratuita, beneficiado também pelo excelente elenco.

Dallas buyers club, EUA, 2013 Diretor: Jean-Marc Vallée Elenco: Matthew McConaughey, Jared Leto, Jennifer Garner, Steve Zahn, Griffin Dunne, Denis O’Hare Roteiro: Craig Borten, Melisa Wallack Fotografia: Yves Bélanger Produção: Rachel Rothman, Robbie Brenner Duração: 117 min. Estúdio: Truth Entertainment

Cotação 3 estrelas e meia

Inside Llewyn Davis – Balada de um homem comum (2013)

Por André Dick

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Com o passar dos anos – e na virada dos anos 90 para os anos 2000 –, os irmãos Joel e Ethan Coen passaram a ser, como outros diretores clássicos, referências de filmes no mínimo criativos. E, depois do influente Fargo, uma espécie de filtro do cult noir Gosto de sangue, eles passaram também a ser apreciados pela Academia de Hollywood, mas apenas por seus filmes considerados mais formais, mesmo com estilo próprio. Um deles, Onde os fracos não têm vez, foi o vencedor de 2008. No entanto, talvez ainda melhor do que este são os outros indicados, Um homem sério e Bravura indômita. Ao mesmo tempo em que fazem estas obras mais interessantes, os Coen gostam de alternar com a farsa: algumas vezes eles acertam, como em Arizona nunca mais e O grande Lebowski, em outras eles perdem a mão, como Matadores de velhinha, O amor custa caro e Queime depois de ler. Agora chega aos cinemas o novo filme, Inside Llewyn Davis.
Pela sua parte técnica admirável – sobretudo fotografia e direção de arte –, este novo filme se alinha com peças como E aí, meu irmão, cadê você? e Ajuste final, em que os diretores tentam equilibrar essas qualidades com os personagens e temas abordados. Aqui especialmente a fotografia de Bruno Delbonnel, responsável pelas imagens de O fabuloso destino de Amélie Poulain, é um belo convite a assisti-lo. Como os filmes em que a farsa é predominante, Inside Llewyn Davis tem uma atmosfera um tanto irreal. Os personagens, nessa atmosfera, passam a ser mais símbolos do que verdadeiramente seres humanos. Diante dessa irregularidade e sendo dois criadores, pode-se pensar se há um dos irmãos Coen mais propenso a estes filmes com simbologia e cuidado cenográfico especial. Tais narrativas são radicalmente diferentes de outras, com cenários mais modestos. Mesmo Um homem sério, com sua narrativa centrada numa espécie de sonho do personagem central, o humor que vinha das experiências reais – a separação da mulher, o conflito com colegas da escola – era permeado por uma sensibilidade folclórica.

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O cantor folk Llewyn Davis (Oscar Isaac) se encontra numa fase decisiva de sua vida. Depois de perder o seu parceiro de música, ele faz alguns shows, mas não consegue ser remunerado a ponto de ter um lugar onde ficar, perambulando pelo Greenwich Village de 1961. Tendo como empresário um senhor que fica atrás de uma mesa, como outros personagens dos Coen que tentam satirizar os magnatas, ele fica hospedado na casa dos Gorfeins (Ethan Phillips e Robin Bartlett). Determinado dia, ao deixar o apartamento, um gato vem junto, e Llewyn Davis passa a carregá-lo de um lado para o outro, inclusive quando se hospeda com os amigos Jim (Justin Timberlake, com a disponibilidade de interpretação de quem visitava os bastidores) e Jean (Carey Mulligan), casados. Há uma certa estranheza no início de Inside Llewyn Davis provocada pelos cenários, a exemplo dos corredores apertados, e quando o personagem central vai cantar com Al Cody (Adam Drive) e Jim numa gravação que talvez seja o momento que poderia definir o filme dos Coen. À diferença de Larry Gopnik, o personagem de Um homem sério, apesar de ser parecido em seu desespero pessoal por um reencontro com a família, Llewyn Davis nunca soa, embora aqui os Coen sejam explícitos, mais do que alguém sem empatia. Não parece que Isaac conseguiria fazê-lo diferente, pois já era assim sua atuação em Drive (em que também contracena com Mulligan), ou seja, é uma escolha intencional. E, embora se comente que o filme é baseado na vida de Dave Van Ronk, parece que os irmãos Coen teriam ignorado boa parte de suas referências, inclusive sua simpatia, levando Inside Llewyn Davis a um extremo contrário.
Certamente haveria, aqui, um espaço para a discussão sobre o artista manter-se intacto diante do trabalho comercial ou se deve assumir a paternidade como a caixa de discos antiga. Essa temática, embora apareça em alguns momentos de modo claro, acaba um pouco esquecida, pois os Coen parecem mais interessados no ambiente, certamente bem construído, que cerca esses personagens e há algo conceitual brilhando em alguns pontos sem realmente se traduzirem em envolvimento com o espectador.

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Um exemplo dessa escolha é que, em Inside Llewyn Davis, além do tom soturno, temos uma espécie de entreato com John Goodman e Garrett Hedlund, dois ótimos atores aqui confundidos com o design de interiores. Eles interpretam, respectivamente, Roland Turner, um jazzman, e Johnny Five, que seria um poeta beat, seu motorista, respectivamente, e os Coen tentam interceder por um diálogo com Hopper e a cultura da época. Walter Salles fez isso em Na estrada (também com Hedlund) com mais êxito e não teve uma recepção próxima desta que recebe o filme dos Coen porque também extraía a aura mitológica dos beats; os Coen, pelo contrário, só os consideram figuras em busca desta mitologia, e ela não passaria, para eles, de uma farsa. Neste instante, o filme também passa a lembrar de outra obra, muito superior, Barton Fink – Delírios de Hollywood, em que o personagem central precisa provar seu talento para se manter com chances de ser roteirista de um grande estúdio. Mas Barton Fink, mesmo porque a atuação de John Turturro era superior à de Isaac, era um personagem fascinante porque sua prepotência diante daqueles que considerava inferiores se voltava contra ele mesmo, com um senso de humor trágico. Lewis passa a ser um coadjuvante de Turner, feito por um Goodman bastante interessado numa excentricidade que já mostrou em outros filmes dos Coen. Aqui, por não encontrar auxílio na narrativa proposta, ele se excede.
Entre outros coadjuvantes, Carey Mulligan pouco aparece – e poderia acrescentar, pois se mostra melhor do que em O grande Gatsby –, F. Murray Abraham é apenas uma participação, e o McGuffin é a presença de dois gatos (uma participação levemente forçada, pela ausência de narrativa coerente), com uma citação de Joyce e da mitologia grega, a mesma que havia em E aí, meu irmão, cadê você?. Não se surpreende, por isso, que os irmãos Coen digam que não havia um roteiro definido antes da inserção dos felinos. Isso passa a ser visível na história, pois, na realidade, Inside Llewyn Davis é uma sucessão de acontecimentos, que até dizem respeito às vezes uns aos outros, mas não chegam a formar uma verdadeira unidade. É difícil entender sua recepção, desde Cannes, pois em termos de envolvimento, uma qualidade da filmografia dos Coen, quando acertam, é falho em vários níveis. Quando saem da melancolia, eles tentam algumas piadas engraçadas, como sempre, aqui sem conseguir – e isto é desagradável para quem acompanha a trajetória dos irmãos e sabem do filme que se escondia por trás deste, se eles estivessem em forma. Aqui, coadjuvante ou não de Bob Dylan, metáfora ou não da persona de Joyce, Llewyn Davis nunca consegue ser destaque. Sua frieza (e não melancolia) só consegue criar um diálogo com a própria paisagem fotografada por Delbonell: este é um filme esteticamente lindo, mas uma grande decepção cinematográfica, pelos nomes envolvidos talvez a maior de 2013.

Inside Llewyn Davis, EUA, 2013 Diretores: Ethan Coen, Joel Coen Roteiro: Ethan Coen, Joel Coen Elenco: Oscar Issac, Carey Mulligan, John Goodman, Justin Timberlake, Adam Driver, Ethan Phillips, Robin Bartlett, Garrett Hedlund Fotografia: Bruno Delbonnel Produção: Ethan Coen, Joel Coen, Scott Rudin Duração: 105 min. Distribuidora: Paris Filmes Estúdio: Mike Zoss Productions / Scott Rudin Productions / StudioCanal

Cotação 2 estrelas

RoboCop (2014)

Por André Dick

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Em 1987, o primeiro RoboCop apresentava, mais do que a violência conhecida, uma espécie de imaginação referente ao universo futurista, em que os policiais humanos poderiam começar a ser substituídos por robôs. Mas o que mais chamava a atenção é que o filme do holandês Paul Verhoeven lidava, de forma interessante, com uma linguagem de quadrinhos, influenciando de forma decisiva o Batman de Tim Burton, sobretudo pela inserção de noticiários em meio à trama. E era nisto que morava a sua diversão. No entanto, ninguém falava em RoboCop como ícone de um novo cinema, da corrosão (literal) de Verhoeven, da sátira incrivelmente costurada.
Nisto reside a surpresa de, no novo século, RoboCop ser uma espécie de obra-prima da ficção científica e o remake de José Padilha ser uma espécie de ameaça a esta aura de filme inalcançável. Quando soube dessa refilmagem, a primeira sensação foi de temor. RoboCop figura como um dos melhores filmes dos anos 1980, mas basicamente ele é (e foi) um filme que tentava ser pop – e se transformou em cult justamente por essa mistura entre um lado mais popular e a estranheza, com seu elenco original e cenas de extrema violência, o que Verhoeven usaria novamente em O vingador do futuro. O mesmo Verhoeven praticamente afastado de Hollywood por causa de sua joia menosprezada Showgirls – e mesmo com seu Tropas estelares, visto em seu lançamento como apenas um cinema trash no espaço – hoje é exemplo do que deveria ser um diretor de ficção científica. Verhoeven tinha elementos que nem os diretores de Hollywood do gênero possuíam: uma vontade de misturar elementos de filme B com uma sofisticação. É isto que vemos em vários de seus filmes, mesmo de outros gêneros, como Instinto selvagem. Mas o RoboCop original não tem a dose fora de série de humor pelo qual é conhecido nem esta crítica ferina implacável – ele tem, aqui e ali, elementos de crítica ao sistema, contanto nada extraordinário – e tem um ambiente muito mais perverso, com violência explícita, não necessariamente uma qualidade, e drogas sendo usadas. Ou seja, era uma visão pessoal de Verhoeven.

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Padilha é precedido pelos dois Tropa de elite e teria sugerido assumir a refilmagem de RoboCop a produtores da MGM. Depois de recusar o roteiro da versão de Darren Aronofsky, que se retirou para dirigir Cisne negro, ficou claro que ele próprio tinha uma concepção particular do projeto. A questão passaria a ser as inevitáveis comparações com o filme de Verhoeven. Onde este é mais violento, o novo RoboCop passaria a ser mais asséptico; onde o do diretor holandês era mais bem-humorado e agressivo, mostrando o uso de drogas, o novo seria menos intenso e mais comedido. Quando se inicia o filme com os drones ED-209 nas ruas de Teerã, tentando garantir a segurança da população, com uma equipe de filmagem do programa de Pat Novak (Samuel L. Jackson) a postos, e os olhares de alguns moradores pela janela, fica claro que o novo RoboCop não agradaria quem esperava uma espécie de figura do futuro, mas afastada da política. No entanto, o novo RoboCop não chega a ser um filme estritamente político – como foram os filmes anteriores de Padilha, inclusive Ônibus 174. Nem mesmo quando logo se mostra, em seguida, a inoperância da polícia em perseguir um traficante na Detroit de 2028. O policial Alex Murphy (Joel Kinnaman) se culpa pelo ferimento do parceiro numa cena de guerra e, depois de voltar para casa e reencontrar a mulher, Clara (Abbie Cornish), e o filho, David (John Paul Ruttan). O que acontece daí em diante o levará para a sala de pesquisas do dr. Dennett Norton (Gary Oldman), que está a serviço de Raymond Sellars (Michael Keaton), dono da OmniCorp. O governo americano não quer aprovar uma lei que permita uso de robôs em combate policial, e Sellars pede a Norton um robô com certa percepção humana. Murphy acaba servindo a isso – e é nisto que o novo RoboCop se baseia.
Mais do que um filme de ação ou do que um remake da obra de Verhoeven, o novo RoboCop discute a fusão possível entre o homem e a máquina. Quando Murphy se conhece pela primeira vez com a armadura, há um salto considerável da obra de Verhoeven para a obra de Padilha. Não há, nessa conversão, artifícios de um mero blockbuster, com orçamento milionário. O filme tem, e isso é considerável, uma alma definida. Ele mostra o reconhecimento de um homem diante de sua nova vida, não apenas alguém que é utilizado por uma corporação para se tornar um exemplo de policial do futuro.
Mas Padilha não se concentra especificamente no drama familiar, pois isso tiraria a mitologia do personagem, também ligada à ação. E, se há um equilíbrio bastante claro entre as questões científicas e vilões ambíguos de todos os tipos, temos também um filme de ação vigoroso, cuja montagem (com a presença de Daniel Rezende, que colaborou em Cidade de Deus e A árvore da vida) é não menos do que perfeita. Embora tenham deslizes e um excesso de narração em off, não se pode falar que os dois Tropa de elite sejam filmes sem uma autoria. Em RoboCop, o excesso de diálogos se converte numa síntese, como a armadura do personagem central, e se o poder da versão de Verhoeven era sua autenticidade o de Padilha é justamente um trato emocional. O momento especialmente em que RoboCop surge é simbólico, sobretudo quando ele se encontra, em determinado momento, em meio a um campo de plantações semelhante àqueles do Vietnã, embora na China – não antes sem uma homenagem clara a Avatar, de James Cameron. No futuro, a corporação norte-americana não consegue fugir de seu passado. Nesse sentido, os diálogos sobre salvar vidas humanas ou não, usando robôs sem uma porção emocional ou não, são muito interessantes, e Padilha vai além do que imaginou Verhoeven nos anos 80. Quando se importa em quantos milésimos de segundo alguém será morto, o filme pergunta se a vida de uma criança em cena de guerra será realmente importante para quem fabrica armas – e a relação do RoboCop com o filho estabelece uma ligação direta com o início do filme em Teerã. Padilha trata o personagem não com reverência, mas como parte de um contexto, sem afastá-lo, no entanto, de sua mitologia e da diversão. E talvez toda essa comparação com o anterior e um certo saudosismo ofusque o mais evidente: o novo RoboCop é impressionante.

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Padilha extrai das reações humanas e não dos diálogos a peça para seu filme funcionar, o que não seria possível sem o elenco. Gary Oldman é um excelente Norton, provando novamente ser um grande ator, capaz de extrair emoção de um material que nas mãos comuns se tornaria indefensável, e Joel Kinnaman é uma revelação como RoboCop. Peter Weller, do primeiro, nunca foi grande ator (pelo menos até sua atuação no recente Star Trek). Kinnaman não é apenas mais ator, como também consegue transparecer emoção num roteiro que pode ser considerado, dentro de determinados limites, um clichê (embora quando se ouve falar que Ela, de Spike Jonze, é um filme de clichês, os parâmetros ficam mais delicados). Sua transformação de simples policial no personagem-título é grande. Por sua vez, o até então desaparecido Michael Keaton consegue fazer uma mistura entre Miguel Ferrer e Ronny Cox da primeira versão, assim como Jennifer Ehle consegue desempenhar a assessora do cientista Liz Kline com grande eficácia, e Jackie Earle Haley também consegue boas linhas como Rick Mattox. Samuel L. Jackson, por sua vez, como o Pat Novak, colabora com a porção de crítica, discutindo o militarismo, embora alguns instantes de sua participação soem um pouco artificiais e encaixados de forma mais esquemática diante do restante. Mas a questão está lá: desde Fahrenheit 11/9, a obsessão norte-americana pelo militarismo não era tão criticada e, se Padilha não tem o sarcasmo de Verhoeven, as farpas de seu RoboCop ressoam muito mais do que a Detroit imaginada em 1987.
Todos esses personagens são envolvidos numa narrativa que se costura rapidamente, sem grande complexidade, mas que soa verdadeira e sem deixar pontas soltas, com o auxílio de efeitos visuais preciosos e uma direção de arte urbana alternando com corredores e salas de pesquisa. Há alguns elementos do início do filme que mostram uma certa dificuldade de adaptação ao cenário, uma certa experimentação com a atmosfera (e entre dedilhados de violão e uma música de Frank Sinatra não parecemos estar num filme de ficção científica), mas aos poucos se percebe que este tratamento é proposital, para que Murphy passe de sua forma humana a uma fusão com seu futuro, e tente se adaptar a ela. Em nenhum momento, sente-se o filme como um arremedo solto, tentando agradar infalivelmente a plateia, e mesmo onde há falhas logo a montagem consegue preencher a lacuna. Os sentimentos de Alex Murphy conseguem sustentar com segurança todo o ato final, com uma sequência de cenas de ação compactadas e bem resolvidas, e sentimos que há uma mão coordenando tudo, sem menosprezar o espectador. O mais importante parece ser que este RoboCop não pede desculpas a seu original e tenta seguir seu próprio caminho. O de Verhoeven sempre vai habitar a imaginação como um filme brutalmente original, mas este de Padilha possivelmente será mais reconhecido – não tanto agora, pois é muito recente – por seu impacto em termos de emoção e angústia humanas.

RoboCop, EUA, 2014 Diretor: José Padilha Elenco: Joel Kinnaman, Gary Oldman, Michael Keaton, Samuel L. Jackson, Abbie Cornish, Jackie Earle Haley, Michael K. Williams, Jennifer Ehle, Jay Baruchel, John Paul Ruttan Roteiro: James Vanderbilt, Joshua Zetumer, Nick Schenk Fotografia: Lula Carvalho Trilha Sonora: Pedro Bromfman Produção: Eric Newman, Gary Barber, Marc Abraham, Roger Birnbaum Duração: 117 min. Distribuidora: Sony Pictures Estúdio: Strike Entertainment

Cotação 4 estrelas e meia

12 anos de escravidão (2013)

Por André Dick

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Em razão de sua força histórica, os filmes sobre a escravidão costumam despertar polêmica. No ano passado, por exemplo, regressando a um embate da época de Pulp Fiction, Spike Lee disse que Tarantino desrespeitava a história com seu Django livre. Nele, Jamie Foxx interpretava um ex-escravo que fazia uma visita, com o dr. Schultz, à fazenda de Calvie Candie, na persona de Leonardo DiCaprio, acostumado a cometer os mais diversos tipos de violência contra seus escravos. Este ano o novo filme de Steve McQueen, 12 anos de escravidão, é recebido por alguns como o filme definitivo sobre o tema e como uma resposta inconsciente ao filme de Tarantino, que teria, de certa maneira, atenuado os acontecimentos reais. Tarantino, no entanto, tem um discurso muito mais contundente do que aparenta e não poupa o espectador, inclusive superando, nesse sentido, a abordagem de Bastardos inglórios, sua fascinante viagem pela II Guerra Mundial.
Pode-se desconfiar a abordagem de “filme definitivo” sobre o assunto, no entanto é preciso considerar que realmente o tema da escravidão foi mais abordado como pano de fundo do que como peça central. Mesmo em Lincoln, com seus méritos, ela é apenas um mote para que se falasse dos bastidores da política dos Estados Unidos no período enfocado. De qualquer modo, Spielberg realizou Amistad, filme subestimado, e A cor púrpura, no qual se faziam presentes as reminiscências da escravidão numa comunidade da Geórgia, com grandes atuações de Whoopi Goldberg e Oprah Winfrey. No ano passado ainda, os irmãos Wachawski e Tom Tkywer focaram, numa das histórias de Cloud Atlas, a amizade entre um escravo e um homem cujo ouro interessava a outro passageiro de um navio, entrelaçando a história com a de outros períodos (no presente ou no futuro) em que outros seres humanos viviam situações parecidas em seu cotidiano.

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O diretor inglês é ambicioso ao contar, a partir de 1841, a história de Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), um homem negro que mora com sua família em Saratoga, Nova York, e, ao excursionar com dois homens brancos (Scoot McNairy e Taran Killam) a Washington, imaginando fazer uma tour musical, como violinista, é atraído para uma prisão e vendido como escravo. McQueen, durante a primeira hora de filme, encadeia uma sequência impressionante de cenas em que a submissão forçada recebe um caráter de narrativa crua, contrastando com uma fotografia delicada de Sean Bobbitt, habitual colaborador do cineasta. O momento em que Solomon se vê acorrentado é de uma composição claustrofóbica, tanto pelo cenário reduzido como pela condição do personagem, e McQueen o faz rapidamente depois de um panorama idílico da vida de Solomon para expandir a sensação. Ele vai parar nas plantações de algodão na Louisiana, sendo chamada de Platt e identificado como um escravo que fugiu da Geórgia. A primeira fazenda para a qual Solomon é levado é a de William Ford (Benedict Cumberbatch), interessado em reunir os escravos em seu pátio para ler páginas da Bíblia – não interrompida nem com o choro de uma das escravas, Eliza (Adepero Oduye)  – e que tem como um de seus capatazes John Tibeats (Paul Dano). Mas é quando chega à fazenda de Edwin Epps (Michael Fassbender) que Solomon irá enfrentar não apenas a perseguição, como o sentimento de estar preso indefinidamente na situação. Casado com Mary (Sarah Paulson), Epps tem como amante a escrava Patsy (Lupita Nyong’o), resultando em conflitos.
A saída mais elaborada por McQueen de uma possível dramaticidade forçada é exatamente seu realismo narrativo e montagem trepidante. 12 anos de escravidão é um dos filmes mais bem arquitetados dos últimos anos, no qual não se percebe a passagem do tempo, mas sentimos todo o peso dela nos minutos em que vemos Solomon ficar às voltas com seus algozes. Sua amizade com Patsy é também uma das pontes estabelecidas mais sensíveis, um diálogo direto da amizade entre Celie e Sofia em A cor púrpura. Junto à montagem, a trilha sonora de Hans Zimmer composta para 12 anos de escravidão é esplendorosa. Há trilhas conhecidas pelo lado emotivo, e a de Zimmer é uma delas.
Nesse ponto, não é difícil considerar a obra de McQueen como muito superior àquela anterior, Shame, com o mesmo Michael Fassbender. Não apenas pelo tratamento dado por McQueen aos personagens. Em 12 anos de escravidão, eles não são apenas símbolos do diretor; são densamente humanos, e a solidão que os afeta atinge o espectador da maneira mais forte. Do mesmo modo, neste cenário de desesperança, McQueen concede – e isto ele tem em comum com Spielberg, normalmente acusado, neste ponto, de excessivamente emotivo – um horizonte sempre próximo de saída. Ao mesmo tempo, ele consegue abordar essa história trágica com um olhar, como o de Solomon, voltado para o céu. No entanto, ao contrário de Spielberg, McQueen não esconde a violência mais crua que resultava da escravidão e importante dizer: ela não é moderada, ou apenas assustadora para quem desconhece os fatos históricos. Ele filma algumas das sequências mais fortes já retratadas pelo cinema nesse sentido, assim como encadeia personagens a exemplo de Theophilus Freeman (Paul Giamatti) – no entanto, certamente seria limitador que 12 anos de escravidão ficasse conhecido pela violência histórica que retrata.

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McQueen lida, também, com um embate entre o que seria pecado e as possíveis pragas bíblicas a partir disso, colocando o algodão branco como um exemplo de materialidade desse conceito. E traça com competência a genealogia buscada entre os donos de fazendas e as escravas, trazendo à cena algumas discussões importantes, utilizando a personagem de Harriet Shaw (Alfre Woodard), e o que já explorava em Shame: o castigo imposto ao corpo alheio como uma espécie de perversidade incontrolável. Em 12 anos de escravidão, esse castigo ganha contornos mais históricos e nos confronta com a reflexão social. Ao longo do filme, chama a atenção como McQueen não vê divisão entre a casa e o espaço onde os escravos transitam, como se eles fossem realmente parte de um cenário absolutamente normal, em que aquilo que seria reservado passa a ser aceito como parte de uma amplitude social. Pode haver violência tanto fora quanto dentro da casa, e na mesma intensidade, independente se é por objetos ou chibatadas. As mãos de Solomon alternam entre o castigo e o violino, quando possível, e a infância de Patsy, depois de ser descartada, tenta ser revivida com bonecas feitas artesanalmente por ela mesma. Um pedido fortuito no meio da noite pode também limitar a liberdade ou se negar à entrega.
Menos aflitivo talvez o filme fosse sem as atuações notáveis de todo o elenco, a começar por Chiwetel Ejiofor e Lupita Nyong’o. O poder do olhar de cada um deles marca 12 anos de escravidão de modo irretocável. Há, especialmente, uma cena de canto arrebatadora de Solomon – e só por ela Ejiofor já mereceria ser lembrado. Em seu polo oposto, Michael Fassbender faz um Epps de forma perfeita. Conhecido por seus feitos de interpretação em Shame, Prometheus e Bastardos inglórios, Fassbender traz a revolta. Lamenta-se apenas que alguns coadjuvantes (dos personagens de Giamatti, Dano e Cumberbatch) não sejam explorados – o filme, como referido, tem uma montagem excepcional, e, embora não prejudique o resultado em nenhum momento, pois há as cenas de violência e elas criam uma intensidade que possivelmente traria a exasperação com o tempo, é possível perceber que originalmente deveria ter até 3 horas para desenvolver cada um deles. No entanto, a aposta de fazer com que tudo seja uma experiência de Solomon, criando um isolamento dos outros personagens, ou apenas sua existência em razão do personagem principal, representa também o maior acerto de McQueen, ou seja, nada impede que 12 anos de escravidão continue com seu fluxo capaz de colocar o espectador inserido no período retratado de maneira incontornável.

12 years a slave, ING/EUA, 2013 Direção: Steve McQueen Elenco: Chiwetel Ejiofor, Michael Fassbender, Lupita Nyong’o, Benedict Cumberbatch, Paul Dano, Brad Pitt, Alfre Woodard, Adepero Oduye, Paul Giamatti, Sarah Paulson Roteiro: John Ridley, Steve McQueen Fotografia: Sean Bobbitt Trilha Sonora: Hans Zimmer  Produção: Dede Gardner, Anthony Katagas, Jeremy Kleiner, Steve McQueen, Arnon Milchan, Brad Pitt, Bill Pohlad Duração: 133 min. Distribuidora: Fox Searchlight Pictures Estúdio: New Regency Pictures / Plan B Entertainment / River Road Entertainment

Cotação 5 estrelas 

Nebraska (2013)

Por André Dick

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Com uma filmografia sólida, o diretor Alexander Payne, ao contrário do intervalo de sete anos entre Sideways e Os descendentes, desta vez regressa depois de pequeno período, com Nebraska, indicado novamente aos Oscars principais (filme, direção, ator, atriz coadjuvante, roteiro original e fotografia). Lançado no ano passado no Festival de Cannes, dando a Bruce Dern o prêmio de melhor ator, o filme recebeu a desconfiança no restante do ano, com Payne sendo relativamente esquecido. Alguns diretores costumam não ser reconhecido como autores, mas Payne, desde Ruth em questão e sobretudo em Eleição, que ajudou a definir os anos 90, com sua estética referencial para diretores da nova geração, constrói um perfil definido por meio de suas narrativas, e, ao mesmo tempo em que não abandona características demarcadas, consegue somar novos elementos ao seu estilo.
Payne também é conhecido por extrair grandes atuações, como a de Jack Nicholson em As confissões de Schmidt, de Paul Giamatti em Sideways e de George Clooney em Os descendentes, todos indicados ao Oscar por elas. Não é diferente em Nebraska. O excelente Bruce Dern interpreta Woody Grant, com sintomas de Alzheimer, é encontrado caminhando numa rodovia, o que pode se ver como um diálogo direto com Sideways. Ele está confuso e imagina ter recebido um prêmio de 1 milhão de dólares, desejando ir para Lincoln, no Nebraska, a fim de recebê-lo. Embora tudo indique ser um equívoco, o seu filho, David (Will Forte, mais conhecido como humorista e uma ótima surpresa), decide que esta pode ser uma possibilidade de distração para se pai e resolve seguir a viagem, talvez também para esquecer sua rotina de vendedor de eletrodomésticos e sua dificuldade em estabelecer um vínculo. Entre paisagens e estradas tipicamente norte-americanas, com uma atmosfera melancólica, Nebraska emprega essa viagem como uma tentativa não apenas de manter a ideia de que ele está indo buscar 1 milhão de dólares em Lincoln, mas de que o tempo em que irão passar juntos pode ser uma possibilidade de estabelecer ligações de afeto. No entanto, a estrada de Payne não se configura confortável como aquela de Paris, Texas, por exemplo, com sua estética repleta de cores e contrastes: a sensação é de que existe um país semiabandonado, embora triunfe ainda a ideia de conquista e superação.

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No caminho, eles param na pequena cidade de Hawthorne para visitar familiares, e recebem a companhia materna, Kate (June Squibb), e de Ross (Bob Odenkirk), o outro filho. Recebidos pelo irmão de Woody, Ray (Rance Howard), e sua mulher, Martha (Mary Louise Wilson), cuja atividade é ficar em frente à TV, com dois filhos, Cole (Devin Ratray) e Bart (Tim Driscoll), eles se encontram também numa situação de entender melhor o passado de Woody, embora a notícia mais espetacular seja a de que o parente tenha conseguido um prêmio de 1 milhão de dólares. Não que o passado reserve grandes descobertas, mas, como uma odisseia pessoal, é possível estabelecer uma renovação familiar, sobretudo quando se encontra figuras como a de Peg Nagy (Angela McEwan, uma participação notável), e mesmo quando não existe propriamente um bem-estar, proporcionado por Ed Pegram (Stacy Keach, excelente) – o que pode ser necessário para um avanço.
Com uma fotografia elaborada em preto e branco de Phedon Papamichael (as nuvens do interior fazendo uma analogia com a cor dos cabelos de Woody e Kate e das casas de interior, o escuro em diálogo com os tratores, os carros, o figurino, a noite e as lâmpadas dos bares), Nebraska toca por sua sensibilidade e depois de se vê-lo não é possível imaginá-lo em cores. Em certos aspectos, inclusive na sua temática de vida em relação a Woody, ele lembra História real, de David Lynch, com elementos de As confissões de Schmidt, assim como Sideways, filmes de Payne, porém há uma tentativa de compreender a ligação entre as gerações, como também com o passado, especialmente bem mostrada por Payne aqui e em sua obra anterior, Os descendentes. Do mesmo modo que em As confissões de Schmidt, Payne lida com figuras do interior entre o respeito delimitado e uma espécie de ironia em relação a seu comportamento. A família do genro de Schmidt, naquele filme, é especialmente vista de forma corrosiva. Em Nebraska, não é diferente – e, se alguns momentos soam bem-humorados, é justamente por esse olhar de Payne. No entanto, parece que o humor vai até um determinado ponto; depois de uma discussão, a narrativa de Nebraska toma um rumo menos complacente.

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Do retrato que Payne faz desses personagens do interior, pode-se desconfiar, e foi acusado de não ser fiel. Mas também se deve falar que o cineasta nasceu em Omaha, Nebraska, ou seja, ele tem conhecimento sobre esse universo. O que se percebe é que ele, mais do que retratar as pessoas dessa comunidade visita por Woody e sua família, revela o desejo delas quando se deparam com uma maneira de modificar suas vidas. Não é um retrato elogioso – e daí possivelmente as críticas feitas por meio do humor. Um exemplo pode ser o de Kate, a mulher de Woody, que no início pode não ser uma figura exatamente delineada além do esperado, mas que passa, ao longo da narrativa, a desempenhar um meio-termo entre sentimentos que Woody não consegue demonstrar do melhor modo, assim como uma figura capaz de surpreender os próprios filhos. Este retrato apresentado por Payne produz a sequência mais bela, possivelmente, de um filme seu, em que os personagens reencontram um cenário de passado, com árvores que lembram o filme O sacrifício – que também trata da relação entre pais e filhos – e, em seguida, uma síntese da época atual, nos Estados Unidos, de secura e afastamento de uma determinada mitologia de segurança. Por outro lado, parece ser essa mesma mudança de mitologia dos Estados Unidos que confere a este personagem uma lembrança de certo encontro com aquela mitologia de livros e histórias contadas. Na verdade, Payne trata de um país que está terminando e outro que está começando, mas um não existe sem o outro. Esta sensação se reproduz durante a narrativa de Nebraska, em maior ou menor frequência, em suas referências a guerras longínquas e ainda presentes: para Payne, os conflitos se desenham no embate mais forte, aquele do presente contra o passado. E, em paralelo a isso, temos o comportamento dos pais, igualmente inserido em suas memórias e esquecimentos, como se fossem crianças, e a atitude correspondente dos filhos, com um sentimento ainda mais infantil, principalmente quando tentam recuperar um bem importante para o pai. Hawthorne se torna mais do que um lugar para se passar alguns momentos: sua composição e arquitetura traz um sentimento permanente de infância, no entanto, como toda infância, capaz de dar novos passos.
Por isso, Nebraska mostra que a herança é uma espécie de sonho particular estendido às novas gerações, e Bruce Dern revela esta ideia da melhor forma, numa atuação contida e comovente. O diretor Alexander Payne mais uma vez não desaponta quem espera uma narrativa com elementos de humor, mas, ao mesmo tempo, densa e trabalhada num crescente. Seu filme mais introspectivo até o momento, Nebraska nos faz lembrar de como o ser humano pode se reconhecer sempre não apenas pelo passado, como também pelo futuro, por mais limitado que pareça, afinal, segundo Payne, tudo pode reservar um alento.

Nebraska, EUA, 2013 Diretor: Alexander Payne Elenco: Bruce Dern, Will Forte, June Squibb, Bob Odenkirk, Stacy Keach, Rance Howard, Mary Louise Wilson, Angela McEwan, Devin Ratray, Tim Driscoll Roteiro: Bob Nelson Fotografia: Phedon Papamichael Trilha Sonora: Mark Orton Produção: Albert Berger, Ron Yerxa Duração: 115 min. Distribuidora: Sony Pictures Estúdio: Blue Lake Media Fund / Bona Fide Productions / Echo Lake Productions

Cotação 5 estrelas

Ela (2013)

Por André Dick

Her 7

O diretor Spike Jonze surgiu como uma das maiores revelações do cinema, à frente de Quero ser John Malkovich, uma experiência com John Cusack, e alguns anos depois fez o original Adaptação, com o melhor momento de Nicolas Cage. Desde então, Jonze só havia conseguido imprimir sua marca autoral no infantojuvenil com temática adulta Onde vivem os monstros. Alguns anos depois, ele finalmente volta ao cinema, com Ela, já sem a parceria no roteiro de Charlie Kaufman, trazendo novamente Joaquin Phoenix depois de sua atuação antológica em O mestre. Phoenix interpreta Theodore Twombly, nome próprio de alguma história infantil, que escreve cartões de amor numa empresa, BeautifulWrittenLetters.com, e se mantém solitário depois do casamento com Catherine (Rooney Mara). Até o dia em que ele decide adquirir um sistema operacional com inteligência artificial – cuja voz é de Scarlett Johansson (que substituiu Samantha Morton depois das filmagens).
Alguns têm falado que o filme apresenta elementos biográficos de Jonze e de sua relação com Sofia Coppola, e não por acaso temos Johansson, que havia feito Encontros e desencontros. Mas, se Sofia Coppola visualiza a solidão como uma espécie de artefato pop, Jonze a toma como uma espécie de síntese do ser humano. Em Ela, Theodore é um ser solitário, avesso aos relacionamentos, e Jonze não foge, neste ponto, a alguns clichês do gênero. Mesmo quando ele inicia o relacionamento de amizade com seu sistema operacional, chamado de Samantha, parece que há algo solto no filme e os personagens, de algum modo, não têm uma ligação estabelecida. Samantha organiza a agenda de Theodore e lhe repassa as informações de mensagens pessoais, tentando organizar não apenas a autoestima dele, como também sua vida profissional. No entanto, este é o preparo de uma narrativa com diversas nuances, que lidam com o afeto, a solidão e a companhia de maneira não tratada antes, e sob um ponto de vista moderno.

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O filme se passa num futuro não longínquo, mas as relações vistas nele já se mostram contemporâneas: a necessidade de, por meios tecnológicos, iniciar uma relação, e até que ponto ela será virtual ou verdadeira. Jonze discute essas questões num roteiro escrito com uma qualidade notável, em que o excelente Phoenix vai mostrando um crescente capaz de tornar detalhes mesmo banais em algo com sentimento. Jonze sempre soube também construir imagens que gravam na mente do espectador, com um sentido de lembrança e de conflitos inescapáveis. Mesmo os escritórios, as sacadas, os elevadores, corredores de estação de trem da cidade de Los Angeles no futuro (mas com várias cenas rodadas em Xangai) se mostram com uma sensação de que algo se perdeu, ou quando Theodore caminha pela rua mostrando as pessoas a Samantha. De elaboração a princípio simples, a direção de arte do filme mistura as suas cores com aquelas do figurino de Theodore, e há uma névoa em algumas imagens que lembram não apenas flashbacks, mas também uma atmosfera de sonho, o que empresta ainda mais ao filme uma sensação de conectar o espectador com lembranças dispersas. Se não soubéssemos que a história se passa no futuro, poderíamos imaginá-la num passado estilizado, pois tudo evoca algum tipo de lembrança. Ao mesmo tempo em que nos sentimos num local populoso, parece que estamos vagando, com o personagem, numa metrópole semiabandonada. A caracterização dos edifícios, as suas luzes e a imponência, também contrasta com a natureza (de árvores e do mar) em alguns trechos do filme – e deitar-se na areia da praia configura uma mudança da rotina.
Chama a atenção, também, como Ela, com seu bom humor em alguns momentos – sobretudo em seu início, quando mostra a relação de Theodore com seu videogame realista ou uma conversa sexual com uma mulher cuja voz é de Kristen Wiig –, consegue mesclar sentimentos variados em relação aos conflitos entre Theodore e Samantha. Se no início eles parecem corriqueiros, e às vezes não tão interessantes, Jonze faz com que o personagem central comece a materializar Samantha em uma figura humana, mesmo que sem rosto. Ela tem o comportamento de uma pessoa, com sentimentos em relação a Theodore e ao mundo, sente-se magoada e reage ao relacionamento, ou o possível abandono. Ela quer se transformar verdadeiramente num ser humano, interessada por livros e em valorizar as cartas escritas por Theodore – ditadas para um computador que vai desenhando a caligrafia das palavras. Ou seja, é notável como Jonze torna a atuação de Johansson naquela que é, talvez ironicamente (pois é uma atriz sempre acusada de chamar a atenção mais pela aparência do que pelo vigor dramático), a melhor de sua trajetória.

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A interação entre Phoenix (visível para o espectador) e ela (ausente de nossa visão) é memorável a partir de determinado momento, quando temos os mais variados sentimentos no que se refere a esta relação. Sobretudo porque Jonze nos lança na questão recorrente de que o ser humano vem se tornando mais frio e atento a programas de computador, e menos confortável em relações verdadeiras. O que ele nos lembra, mais do que tudo, é como a imaginação costuma ressoar mais forte mesmo quando parecemos nos entregar a uma distância com o contato humano. Mesmo os relacionamentos com Amy (Amy Adams, numa participação relativamente curta, mas eficiente), casada com Charles (Matt Letscher), com Paul (Chris Patt), colega que trabalha na empresa de Theodore, e a moça de um encontro às escuras (Olivia Wilde, deslocada como convém ao personagem), são um tanto evasivos, imersos num ambiente introspectivo. Nesse sentido, o sentimento se torna mais forte sobretudo pela capacidade que temos de, por meio da imaginação, delinear nossa concepção verdadeira de humanidade, e como ela acabará nos inserindo de verdade no mundo.
E o que Jonze faz é uma realização. Não era uma expectativa chegar a este filme de Jonze como um exemplo de cinema em que o escape se torna, na verdade, uma maneira de se encontrar de maneira tão elaborada, e cuja emoção vai repercutir na trilha da banda Arcade Fire (cujo clipe da canção “The Suburbs” foi feito por Jonze). Não que seus filmes anteriores, sobretudo Adaptação, não tivessem este elemento, mas não de maneira tão dosada quanto aqui. Há elementos que o afastam da metalinguagem de Charlie Kaufman, mas se aproximam do ato final de Sinédoque, Nova York, com a passagem do tempo e a mistura entre realidade e imaginação – como naquele instante extraordinário em que Theodore se insere numa paisagem invernal, com árvores, ou quando passeia com Samantha num dia de verão. Os cortes oferecidos por Jonze dessas imagens dialogam com nossa memória e aliam comoção e envolvimento. É interessante como, de algum modo, o diretor se expõe, com seu elenco, ao risco, no sentido de efetuar uma imagem ampla do que poderia ser apenas trazer a curiosidade do amor de um homem por um programa de computador. A ideia, que parece não oferecer a segurança para um filme, torna-se, aos poucos, cada vez mais plausível e, quando percebemos, estamos inseridos na história de amor talvez mais original já feita, não exatamente pela relação virtual, mas como ela é abordada de modo verdadeiro e sem artifícios. Quando Samantha diz a Theodore que ele a ajudou a se descobrir, não estamos mais lidando com um sentimento virtual, com uma fuga da realidade, desculpando-se pela solidão, e sim com o pleno entendimento do amor. É o que torna Ela um filme tão próximo, com seu universo aparentemente tão distante: ele nos lembra de nós mesmos.

Her, EUA, 2013 Direção: Spike Jonze Elenco: Joaquin Phoenix, Amy Adams, Scarlett Johansson, Rooney Mara, Olivia Wilde, Chris Pratt, Matt Letscher, Portia Doubleday Roteiro: Spike Jonze Fotografia: Hoyte Van Hoytema Trilha Sonora: Owen Pallett Produção: Megan Ellison, Spike Jonze, Vincent Landay Duração: 120 min. Distribuidora: Sony Pictures Estúdio: Annapurna Pictures

Cotação 5 estrelas

De olhos bem fechados (1999)

Por André Dick

De olhos bem fechados.Stanley Kubrick

Último filme de Stanley Kubrick, que faleceu sem vê-lo lançado depois da censura causada pelas cenas de nudez, De olhos bem fechados se baseia no livro Breve romance de sonho, de Arthur Schnitzler, com uma carga de tensão dramática, de thriller quase fantasmagórico e uma fotografia surpreendente de Larry Smith. Kubrick, aqui, está interessado numa estética noturna, do cotidiano, mas com um clima onírico, sem a tentativa de fazer cenas antológicas situadas de forma isolada (de agora em diante, possíveis spoilers).
Um médico, Bill Hadford (Tom Cruise), é casado com Alice (Nicole Kidman), e Kubrick já inicia o filme mostrando ambos indo a uma festa. Nela, Bill fica ao lado de duas modelos (Louise J. Taylor e Stewart Thorndike), enquanto sua mulher conversa com um húngaro, Sandor Szavost (Sky Dumont). A pedido do dono da festa, seu cliente Ziegler Victor (Sydney Pollack), o médico é chamado para atender, com urgência, uma modelo com overdose, Mandy (Julienne Davis). Em determinado momento, Bill se depara com um amigo pianista de jazz, Nick Nightingale (Todd Field), que fala de uma festa proibida no qual toca, e Kubrick compõe essa longa sequência com uma direção de arte composta por luzes de Natal e um brilho que tenta realçar, por um lado, cada um do casal sendo abordado por pessoas diferentes, e a maneira como a possível traição se coloca.
No dia seguinte à festa, Alice conta sobre uma fantasia sexual que teve com um oficial da Marinha, enquanto Bill é chamado para atender o pai de uma mulher, Marion (Marie Richardson), que, mesmo casada, o beija e lhe diz que o ama. No entanto, ele está perturbado com o que a mulher lhe contou, e, vagando pela noite, procura novamente Nick, que toca piano num bar à noite e lhe revela o que precisa para ir à festa de máscaras.

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Kubrick está interessado nessa atração do ser humano pelo sexo e pelo proibido – justamente porque é difícil entendê-los quando cercado de vozes e situações incomuns – a partir do choque causado pelo passado e pela morte do presente (não por acaso, depois de visitar o paciente que acabou de morrer, o único pensamento de Cruise seja na relação com a esposa). Muitas vezes, incorre em metáforas, mas a verdade é que o clima criado durante todo o filme é onírico, fiel ao romance, e mostra a descoberta de um mundo que o médico não conhecia, como quando conhece o dono de uma loja de fantasias, Milich (Rade Sherbedzija), que cuida de uma menina (Leelee Sobieski), soando a presença de Lolita. Tom Cruise, com seu aspecto ingênuo, e ainda sem ficar conhecido pelos filmes de ação, cabe muito bem nesse papel, assim como Sydney Pollack, o amigo misterioso. A máscara que o personagem Bill precisa comprar para ir à festa representa as diversas personae que acaba tendo de adotar, a fim de que não seja descoberto.
Há um interesse evidente de Kubrick nessa odisseia pelos espelhos, e os personagens estão sempre à frente deles, sendo vistos ou se olhando, como na conversa que o casal tem, antes de começar a divagar justamente sobre suas repressões. Estamos diante da odisseia de um homem comum, assim como Ulysses cambaleando por Dublin, ou como Lynch tornaria sua personagem Rita em Cidade dos sonhos descendo a Mulholland Drive (uma inspiração de Kubrick em Lynch, para retribuir Eraserhead em O iluminado). Lynch compreende, como Kubrick, que um filme transita por vários gêneros, ou seja, há, em De olhos bem fechados, tanto um drama de costumes quanto uma atmosfera de terror e suspense, e elementos de comédia, tragédia e distração.
No entanto, esta odisseia, assim como pode terminar numa resolução e no encontro do personagem com uma pretensa verdade que pode resguardá-lo de uma verdade maior, também concede uma espécie de visto para uma realidade escondida ao sonho que Bill imagina viver a partir de determinado momento, quando passa a ser seguido pela rua, por pessoas que desconhece, ou quando descobre que o amigo sofreu uma violência.

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A festa com cenas de sexo é mostrada de maneira muito discreta, por meio da brilhante fotografia de Smith, parecendo mais uma espécie de anexo às imagens enquadradas de Barry Lindon, para serem vislumbradas como pinturas, mas é através dela que Bill se coloca em meio à cena central, quando cobrado por sua presença. Isto faz com que Kubrick retome a primeira parte do filme, quando os personagens estão numa festa e seguem caminhos diferentes, embora ambos ilusórios.
Kubrick novamente dispõe seus personagens em cenários assépticos, limpos (mesmo na festa da orgia, que lembra filmes que focam o século XIX), pois construiu um Greenwich Village nos estúdios Pinewood, da Inglaterra. O resultado é que poucos filmes conseguem retratar o ambiente noturno como De olhos bem fechados, e quando o personagem central vaga pela cidade é como se Kubrick conseguisse ingressar o espectador em cada ambiente, seja de festa (como o clube), de terror (o encontro secreto), de alegria estranha (a loja de fantasias, com o nome sugestivo de “Rainbow”, como se remetesse ao universo paralelo de Oz) ou de melancolia (a casa de Domino, uma prostituta pelo qual Bill se interessa, interpretada por Vinessa Shaw). E focaliza sempre a estranheza e o amor entre os personagens num distanciamento provocado por eles mesmos. Isso se deve à interpretação tanto de Cruise quanto de Kidman, que à época formavam um dos casais mais conhecidos de Hollywood e que, de certo modo, expõem a si mesmos por meio dos personagens, embora sempre com um determinado limite, sem nenhuma tendência a algo explícito (o sexo, aqui, sem dúvida não tem a mesma presença daquela que vemos, por exemplo, em Laranja mecânica). Kubrick tinha a noção exata de que, para que o filme rendesse na medida certa, o casal precisaria ser de verdade – e o que eles falassem transpareceria, em algum sentido, o conhecimento da plateia. Tende-se a dizer que as cenas de sexo tão excessivamente assépticas, mas parece se encontrar aí um dos méritos do diretor: as cenas evocam um universo de máscaras, e nada se revela nele. No sexo mostrado de De olhos bem fechados, todos são escondidos.

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Ou seja, De olhos bem fechados quer adentrar a noite como se adentra em personagens densos e provocativos, a começar por Bill, que não enlouquece como outros personagens de Kubrick (o computador de 2001, Jack de O iluminado e o soldado de Nascido para matar), mas porque simplesmente não entende que está acordado. Para Kubrick, a noite e a relação se compara a uma divagação, a um elemento cercado de onirismo, que pode atender ou não por segurança e amor. Interessante, nesse sentido, quando Bill volta à casa de Domino e encontra uma colega, que lhe conta um segredo sobre a amiga, fazendo com que a satisfação de Bill acabe perpassada pelo sentimento de perda – tanto da pessoa quanto da noite anterior, que lhe trouxe o que até então desconhecia. Mesmo com as luzes acesas, e há luzes espalhadas ao longo de todo o filme, seja as de Natal, época em que se passa o filme, seja as das festas que acontecem, é difícil ver os personagens. Resta a perambulação na noite, até um encontro com o segredo, em meio a uma música soturna. E o personagem está sempre acompanhado, na busca de sua fantasia, pelo espectro da morte, que o impede de realizá-la. Depois de diversas obras-primas, De olhos bem fechados é outro filme de Kubrick que atinge notas altas.

Eyes wide shut, EUA/ING, 1999 Diretor: Stanley Kubrick Elenco: Tom Cruise, Nicole Kidman, Sydney Pollack, Rade Serbedzija, Marie Richardson, Thomas Gibson, Leelee Sobieski, Vinessa Shaw, Todd Field Produção: Brian W. Cook, Stanley Kubrick Roteiro: Stanley Kubrick, Frederic Raphael Fotografia: Larry Smith Trilha Sonora: Jocelyn Pook Duração: 160 min. Distribuidora: Warner Bros. Estúdio: Hobby Films / Warner Bros.

Cotação 5 estrelas

Fruitvale Station – A última parada (2013)

Por André Dick

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Um filme baseado em fatos reais às vezes fica comprometido de modo excessivo com a história da qual surge, resultando numa narrativa mecânica quando não encontra seu realizador mais adequado. Quando assistimos os minutos iniciais de Fruitvale Station – A última parada, é esta a sensação que temos. O diretor estreante Ryan Coogler mostra uma sequência gravada do acontecimento em que o seu filme se baseia e parece sintetizar tudo a partir dele. Para o espectador menos informado sobre o acontecimento, o filme pode ter um crescimento diferente, pois não se sabe o desfecho; para quem conhece a história, talvez não haja o mesmo impacto, no entanto é interessante, pelo tratamento dado à narração e ao elenco, acompanhá-lo.
A partir desse momento captado numa câmera de vídeo, Coogler passa a mostrar um dia na vida de Oscar Grant (Michael B. Jordan), 22 anos, que foi dispensado do trabalho e está à procura de uma ocupação. O que ele teria a fazer, a princípio, seria andar de carro e vender drogas, como fez antes de ir para a prisão, mas este dia enfocado não é apenas de véspera do ano novo, como também do aniversário de sua mãe, Wanda Johnson (Octavia Spencer), e o dia em que ele precisa fazer escolhas, diante da namorada, Sophina (Melonie Diaz), e da filha, Tatiana (Ariana Neal). Ele não consegue contar a ela que não trabalha mais no supermercado de onde foi dispensado, e essa preocupação o persegue ao longo de todo o filme, destacado pelo diretor por meio de cenários quase isolados, como o do posto de gasolina e uma sequência em seguida filmada com extrema perícia, e nada tem de calculadamente emotiva, mas essencialmente diz respeito à situação do personagem, a como ele se sente.

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Esses momentos diante da família, ou de uma conversa com a avó ao telefone, são verdadeiramente humanos e a peça central para fazê-lo funcionar é justamente seu ator principal, Jordan. Ele consegue aliviar os momentos em que o roteiro carrega nas tintas dramáticas, assim como Octavia Spencer, mesmo com poucas linhas de diálogo, desenha uma mãe essencialmente de vigor. Em Fruitvale Station, é a figura da mãe o que acaba servindo de guia para a compreensão do personagem central, aquela que acaba alimentando a narrativa a partir de sua ausência, mesmo estando próxima. Em uma narrativa de pouco mais de 80 minutos, Coogler mostra os sonhos do personagem e a necessidade de concretizar a família na qual nunca se imagina inserido – e o momento em que ele conversa com um desconhecido, mais ao final do filme, basta para definir este entendimento. Tampouco parece que ele esconde algo para tornar o personagem numa referência intocada; pelo contrário, ele desenha apenas um momento determinado na vida de um jovem de pouco mais de 20 anos, diante da tentativa de abandonar o passado e seguir em frente ou se entregar ao impulso daquilo que o imobiliza de todo modo. A pergunta que pode ser feita é: se o jovem fosse mostrado como alguém sem solução o seu desfecho teria um motivo racional?
Os movimentos podem lembrar um filme de Gus Van Sant (a exemplo de Elefante e Paranoid Park), com uma espécie de sentimento bruto, em que o personagem tenta se desvencilhar do seu passado e acaba tendo de enfrentar a incompreensão. No entanto, Coogler filma com mais dispersão, deixando o personagem independente na maior parte do tempo, à frente da câmera acertadamente emocional instável de Rachel Morrison, sem cair no tom de um documentário, e captando a atmosfera solitária de Oakland, Califórnia, e de figuras dispersas. Apenas se lamenta que, com isso, algumas conversas não sejam tomadas de modo mais denso, e Coogler escolha por um certo distanciamento dos cenários em que elas acontecem. Por outro lado, ele esvazia o tom que poderia existir, mais teatral, dando espaço a coadjuvantes como Melonie Diaz se destacarem. Isso ocorre, ao mesmo tempo, pela presença, ao longo do filme, de celulares e câmeras digitais, localizando a tecnologia como um ponto de proximidade e separação entre os personagens – a julgar pelo início, peça central para esclarecer um acontecimento –, principalmente quando as palavras digitadas ficam em relevo, ocupando o espaço das falas.

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A princípio um filme independente (depois foi distribuído por Harvey Weinstein), Fruitvale Station tem Forest Whitaker como um de seus produtores, e ele esteve justamente em O mordomo da Casa Branca, bastante prestigiado nos Estados Unidos e com bela reconstituição de época. O realismo que falta a O mordomo, no entanto, marca presença neste filme, em que Jordan tem a presença mais identificada com o público. Certamente por isso a sua acolhida no Festival de Sundance, em que foi escolhido como melhor filme pelo júri e pelo público, e seu prêmio na mostra “Um certo olhar”, do Festival de Cannes. As escolhas feitas pelo diretor neste sentido o tornam mais interessante. Acusado de contemporizar o que realmente aconteceu, Coogler não se ressente de uma direção hábil de atores. Com ele, todos têm um desempenho perto do imaginado para uma situação como a do filme, e é isso que realmente importa ao vê-lo. Não há um excesso narrativo, mas a composição de quadros que vão se unindo e compondo a figura do personagem central. E é interessante como ele consegue, por meio da montagem de Claudia Castello e Michael P. Shawver, se concentrar em circunstâncias essenciais para a motivação do personagem. Isso se deve à presença da atriz mirim Ariana Neal, que faz sua filha e protagoniza uma cena fantástica em que eles se encontram num colégio. Mas não apenas este momento: Coogler em vários momentos equilibra a sensação de liberdade de Oscar com a da prisão, como a de um momento em que ele observa o sol se pôr numa baía e tem um flashback definidor daquilo que o trouxe àquele momento e vai estabelecer uma ligação com seu desfecho, notável, por mais dolorosa e mesmo sentimental que seja. É Jordan quem acaba trazendo a ideia de que algo diferente poderá acontecer, desviando-se dos fatos, e é este fio de esperança que sustenta a narrativa. Pode-se assistir este filme com o pensamento de que se trata de uma história banal – sobretudo porque pode se confundir um ser humano com estatísticas –, mas Fruitvale Station nos faz lembrar de momentos que definem toda uma existência e a necessidade do afeto. Num momento em que o cinema perde dois referenciais, como Philip Seymour Hoffman e Eduardo Coutinho, é um filme, sob os moldes de uma pretensa inovação, até comedido, mas extremamente humano.

Fruitvale Station, EUA, 2013 Direção: Ryan Coogler  Elenco: Michael B. Jordan, Melonie Diaz, Octavia Spencer, Ariana Neal, Ahna O’Reilly, Kevin Durand Roteiro: Ryan Coogler Fotografia: Rachel Morrison Trilha Sonora: Ludwig Goransson Produção: Forest Whitaker, Nina Yang Bongiovi Duração: 85 min. Distribuidora: The Weinstein Company Estúdio: Forest Whitaker’s Significant Productions / OG Project

Cotação 4 estrelas