Por André Dick
Ainda que tenha surgido na década de 80, como uma doença devastadora e ocasionando pouco tempo de vida para seus portadores, a Aids nunca chegou a ser abordada com grande interesse em filmes. Ainda hoje, o filme mais conhecido a tratar dela é Filadélfia, de duas décadas atrás, com a atuação oscarizada de Tom Hanks e que não chega a ser considerado uma referência, apesar da qualidade de seu elenco e da trilha musical com canções de Bruce Springsteen. Em As horas, importante lembrar, também temos o personagem do escritor interpretado por Ed Harris num diálogo com o passado de um dos personagens, enquanto tenta conviver com a doença. No ano passado, quando Clube de compras Dallas foi lançado, surgiram as inevitáveis comparações e a certeza de estarmos diante de um drama sobre a vida ameaçada pela Aids com condições de trazer um amplo debate. Apesar de seu diretor, o canadense Jean-Marc Vallée (A jovem rainha Vitória), ser pouco conhecido, o filme foi reunindo admiradores, por seu tom independente, com a atuação de Matthew McConaughey como Ron Woodroof, que participa de rodeios, trabalha como eletricicista e determinado dia, ao se ver colocado numa cama de hospital, descobre, depois de fazerem exame de sangue, que contraiu a doença. Com a atitude de um caubói, no entanto, ele irrompe pela porta do quarto na certeza de que não será derrotado – e McConaughey desenha os movimentos do personagem com propriedade, entre o nervoso e o tranquilo, como faz desde seus passeios noturnos em Jovens, loucos e rebeldes.
Este é o início do filme e contempla boa parte do que veremos ao longo da narrativa, com a ligação de Ron com uma médica deste hospital, Eve Saks (Jennifer Garner, em uma interpretação convincente), que não pode distribuir remédios capazes de ajudar no combate à Aids, ainda não liberados, à época, nos Estados Unidos. Ron precisa tomar uma série de decisões para aquilo que o médico, Dr. Sevard (Denis O’Hare), lhe determina: seu prazo de vida é de 30 dias. Esta contagem inicial dos dias dados pelo médico oferece ao espectador uma espécie de luta contra o tempo, no que o diretor tem uma eficiente saída, intercalando imagens de Ron sendo excluído de determinados convívios sociais, um peso dado ao filme de forma certamente contida, mas ainda assim interessante, além da sua dependência de drogas. Além disso, acostumado ao uso dessas, o personagem principalmente se vê na condição da procura de drogas químicas para impedir a concretização do prognóstico hospitalar, e entra em contato com o AZT. Quando Ron encontra um transexual, Rayon (Jared Leto), a sua vida ingressará numa corrida contra o tempo não apenas para ele, mas para diversas pessoas.
Para quem não acompanhou o início da carreira de McConaughey, talvez tenha sido William Friedkin que o transformou em grande ator com Killer Joe. Mas quem realmente conseguiu aproveitar o ator em seu melhor momento foram Jeff Nichols em Amor bandido e Jean-Marc Vallée em Clube de compras Dallas. Aqui McConaughey tem o papel de sua trajetória, iniciada ainda nos anos 90, quando foi comparado a Paul Newman, em papéis de Contato e Tempo de matar, inclusive com um figurino e o chapéu de caubói que remetem – e Vallée não estava desatento a isso – à figura de Killer Joe, assim como à sua participação em Lone Star – A estrela solitária. Depois de participar de várias comédias românticas, nos últimos anos ele passou a se tornar um ator de papéis mais restritos. Embora McConaughey já inicie o filme bastante magro, sua transformação ao longo dele é bastante plausível, oferecendo ao espectador mais uma condição do que uma atuação modesta. Como este personagem, ele consegue uma empatia com o espectador, mesmo com suas atitudes voltadas a uma certa prepotência e displicência do trato pessoal.
Em nenhum momento, e nisto podem se basear algumas críticas, Clube de compras Dallas se torna pesado a ponto do que seria os efeitos da Aids. Jean-Marc Vallée tem isso como um ponto claro. Isto, na verdade, evita que o filme se transforme em uma exploração gratuita dos danos que ela ocasionou nos anos 80, e continua ocasionando. O filme prefere explorar como uma pessoa pode estar à beira da morte, num contexto sobretudo de a doença ser recente, e não poder se medicar de forma conveniente em razão da indústria farmacêutica vagarosa ao tentar lidar com, senão a cura, paliativos para a doença. Nesse caso, a presença da AFA é vital para se entender este monopólio da indústria e a figura do Dr. Vass (Griffin Dunne, excelente) uma presença interessante.
Por outro lado, não se eleva o personagem de Ron a um pedestal inalcançável de ajuda humana – o objetivo dele é enfocar como a ajuda pode também estar ligada a um contexto equivocado, mas quando se lida com a morte os limites perdem sua localização. Clube de compras Dallas também lida com o fato de que no início da doença os homossexuais eram vistos como aqueles mais suscetíveis à doença, e o preconceito desencadeado por isso. É interessante, por exemplo, no início do filme Ron satirizar o fato de Rock Hudson, astro de Hollywood, ter morrido por causa da doença, logo revelando a inaceitação, e, ao longo do filme, ter de lidar com o próprio preconceito.
Deste modo, se por um lado o filme trata da história de Ron, a partir de determinado ponto, ficamos diante daquilo que dificilmente pode mudar e atinge diretamente a liberdade e as escolhas do indivíduo, a sua inserção na sociedade e como ela pode excluir o indivíduo quando a vida passa a valer apenas um pote de comprimidos. Todos os personagens acabam precisando atuar dentro de um contexto dito fora da lei para manter a condição diante da vida, e são destacados os trechos em que se busca a saída para o problema. A relação de Ron com o transexual Rayon, no entanto, poderia ter sido mais explorada por Vallée. Jared Leto impressiona no papel, entregando sua melhor atuação depois de Requiém para um sonho, mas lhe falta uma presença maior no filme, como um real acréscimo à narrativa central. Talvez seja este o maior impasse de Clube de compras Dallas, um filme que consegue apresentar uma proposta interessante em seu roteiro, com diálogos verossímeis e ágeis: a presença de Rayon acaba ficando, de certo modo, dispersa depois de um início muito vigoroso e sensível. Em paralelo a isso, o embate entre Ron e a AFA acaba também ficando deslocado, quase que um resquício no roteiro competente de Craig Borten e Melisa Wallack.
No entanto, as qualidades de Clube de compras Dallas são maiores do que seus problemas. Vallée tem um grande talento na montagem do filme (sua primeira hora, especialmente, é muito ágil, com movimentos de câmera interessantes) e consegue compor uma interessante similaridade entre a condição de Ron e o tempo que o caubói de rodeio precisa ficar em cima do touro, como se a vida estivesse por um fio e a exigência pessoal fosse enfrentar a independência da natureza. Se Clube de compras Dallas não tem um êxito completo, pelo menos não deixa de lidar com os conflitos internos e externos de um personagem a ser conhecido e não explora o tema de forma gratuita, beneficiado também pelo excelente elenco.
Dallas buyers club, EUA, 2013 Diretor: Jean-Marc Vallée Elenco: Matthew McConaughey, Jared Leto, Jennifer Garner, Steve Zahn, Griffin Dunne, Denis O’Hare Roteiro: Craig Borten, Melisa Wallack Fotografia: Yves Bélanger Produção: Rachel Rothman, Robbie Brenner Duração: 117 min. Estúdio: Truth Entertainment