Por André Dick
Baseada livremente na história do menino Pedrinho, que foi roubado na maternidade de um hospital em Brasília nos anos 80, por uma mulher que passou a criá-lo como se fosse de fato sua mãe, e cuja história veio a público no início dos anos 2000, Mãe só há uma, nova obra de Anna Muylaert, recupera elementos já vistos em É proibido fumar e Que horas ela volta?, mas ainda tem como principal referência Bicho de sete cabeças, no sentido de possuir uma linguagem que parece apoiada numa imagem documental, com um nervosismo típico dos dias atuais e mostrar o atrito entre um jovem e sua família num ambiente turbulento.
Naomi Nero interpreta Pierre, um jovem que procura ainda identificar suas preferências, enquanto vai a festas e frequenta ensaios de uma banda de rock. Também veste roupas de mulher sem que sua família saiba. Nesse momento conturbado, ele descobre, por meio de autoridades, que sua mãe, Aracy (Daniela Nefussi), não seria verdadeira, tendo roubado ele, assim como a sua irmã, Jaqueline (Lais Dias), da maternidade. A partir daí, ele passa a conhecer sua família de verdade: Matheus (Matheus Nachtergaele), Glória (novamente Daniela Nefussi) e seu irmão Joaquim (Daniel Botelho). Nessa nova família, ele também não se chama Pierre, e sim Felipe. O que seria, então, sua família verdadeira?
Muylaert costura este drama por meio de uma atuação excelente de Nero, principalmente porque ele tem poucos diálogos e mais vemos seu comportamento gestual. Ele é uma escolha acertada justamente porque ele contrabalança uma faceta que procura entender o acontece a seu redor com outra mais violenta, desgastada pelo contato alheio. Isso parece um equilíbrio fácil de ser alcançado e não o é, dependendo, para isso, de um ator capaz de recriar de modo competente diferentes fases de sua jornada. A necessidade de ser aceito de acordo com suas vontades é o mote da trama, que se apoia ainda na recepção dos pais biológicos e sua necessidade de levar o filho a se adequar a uma nova vida. Em suma: é o retrato de alguém deslocado pela necessidade de se responder a testes de DNA e à procura de sua família que deseja sua presença há anos. Dentro da família, ele recebe principalmente a desconfiança do irmão menor, Joaquim, e de seu pai, interpretado por Nachtergaele com grande poder de síntese, pouco afeito a algumas atitudes (principalmente numa loja).
Ao contrário de Que horas ela volta?, não temos aqui uma reflexão sobre padrões de vida, ou isso seria mais o pano de fundo. A questão aqui é como um personagem precisa se adequar a outro universo que não aquele que conhece desde o início de sua criação. Ao colocar a mesma atriz fazendo o papel da mãe que roubou o menino e de sua mãe verdadeira, Muylaert cria um choque de perspectiva. Do mesmo modo, ao colocar o irmão menor de Pierre/Felipe como alguém que precisa visualizar a situação de perto e, ao mesmo tempo, a distância, Muylaert se pergunta: a qual deles falta uma mãe.
Esses personagens quase não se conversam e não há uma personagem para estabelecer esse elo, como no filme Que horas ela volta?, em que esse papel cabia à personagem de Regina Casé. Trata-se de uma narrativa essencialmente sobre a solidão de um jovem em sua autodescoberta. Pierre/Felipe é o retrato de um determinado jovem indefinido entre ir ou ficar. Essa solidão é assinalada por imagens dele em festas noturnas ou caminhando por um túnel vazio cheio de pichações urbanas. O retrato que Muylaert faz da periferia paulistana é tão melancólico quanto a que exibia do centro da capital de São Paulo em É proibido fumar. Pessoas desaparecem da vista do espectador, assim como outras entrem sem que lhes seja dado o devido crédito: é como se todas estivessem de passagem e nada fosse permanente, assim como a própria situação com que o personagem central se depara. As relações de Pierre/Felipe com homens e mulheres são tão indefinidas quanto sua duração. No cinema brasileiro recente, só há outro personagem jovem tão interessante: o de Casa Grande, que precisava se adequar ao novo momento pelo qual atravessa sua família até então com grande facilidade de vida. O de Mãe só há uma não recebe tantas nuances quanto aquele, porém carrega o mesmo sentido de solidão em meio a decisões que não lhe pertencem ou dos quais deseja fazer parte e não consegue. Durante uma festa no início do filme, ele parece vestir um figurino de pelúcia que remete a Onde vivem os monstros: ele de fato não vivenciou uma infância clara e vive dividido entre ela e o mundo adulto.
Lançado no Festival de Berlim, no qual recebeu um prêmio especial do júri da revista alemã Männer, por sua temática LGBT, Mãe só há uma é envolvente, curto (pouco mais de 80 minutos) e marcante, graças ao domínio de Muylaert sobre a narrativa e o elenco sólido. Percebe-se a diferença em relação a Que horas ela volta? também na construção, menos fechada, na elaboração da trama sem recorrer a alguns diálogos de apoio desnecessário e à funcionalidade maior entre o que é mostrado e subentendido, sobremaneira nas escolhas e identificações sexuais do personagem central.
A fotografia de Barbara Alvarez também é menos simétrica e fechada, abrindo espaço para movimentos bruscos, de acordo com a indefinição sentimental Pierre/Felipe. Não há mais o aspecto solar do filme anterior: tudo é governado por uma cor opaca, um certo desencantamento, em que reunir pessoas num mesmo ambiente não é para trocar experiências, e sim para se mostrar satisfeito com a recepção e fotografias até então não tiradas. É uma obra muito interessante, com mais sentimento do que seu estilo semidocumental pode fazer entender.
Mãe só há uma, BRA, 2016 Diretora: Anna Muylaert Elenco: Naomi Nero, Daniela Nefussi, Matheus Nachtergaele, Daniel Botelho, Helena Albergaria, June Dantas, Lais Dias, Luciana Paes, Luciano Bortoluzzi, Renan Tenca Roteiro: Anna Muylaert Fotografia: Bárbara Álvarez Trilha Sonora: Berna Ceppas Produção: Anna Muylaert, Sara Silveira Duração: 82 min. Distribuidora: Vitrine Filmes Estúdio: África Filmes / Dezenove Som e Imagem