Apenas Deus perdoa (2013)

Por André Dick

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Depois do grande êxito de Drive, pelo qual foi premiado no Festival de Cannes como melhor diretor, Nicolas Winding Refn passou a fazer parte de uma reservada lista de cineastas e sua parceria com Ryan Gosling resultou em novo fime: Apenas Deus perdoa. A contrário do anterior, este novo Refn foi vaiado em Cannes e bastante criticado por seu visual e história. De certo modo, esperava-se uma espécie de prosseguimento das alternativas fornecidas por Drive, que magnetiza pela sua ação comedida e pelo comportamento estranho do personagem central. Embora Apenas Deus perdoa não se esforce em ser um diálogo direto de Drive, deve-se reconhecer, pelo menos, o seguinte: dificilmente haverá, pelo menos este ano, um filme tão estranho e visualmente fascinante.
Desta vez, Gosling interpreta Julian Thompson, que possui um clube de luta Muay Thai em Bangkok, junto com seu irmão, Billy (Tom Burke). Em determinada noite, este sai à procura de mulheres e encontra um cenário de pesadelo. Cada falha dos personagens deve ser punida pelo tenente Chang (Vithaya Pansringarm, excelente), que canta num karaokê para uma plateia imobilizada, antes de empunhar a sua espada como elemento de vingança e, ao voltar para casa, tira os sapatos, a fim de encontrar sua filha – pela janela do quarto dela, se enxerga uma vegetação verde e calma, como em algum plano de Kurosawa, como se fizesse parte de um quadro oriental (veja também o cão que caminha pelo beco até onde Julian se encontra). Assim como em Drive, Apenas Deus perdoa apresenta dissonâncias.

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Apenas Deus perdoa

Há um salto da violência (e aqui ela é graficamente desagradável, embora sonoramente não tão chocante quanto em Drive) para o sossego e a calmaria, mas o que permanece é uma espécie de sensação de pesadelo noturno, e não está distante a ideia de que este universo guarda alguma ligação com o de Nikki de Império dos sonhos, a obra de David Lynch. Assim como Chang olha pela janela o céu calmo, Julian olha para o espelho num ambiente escurecido, como se estivessem em universos complementares, em que a violência acaba vindo à tona. Julian tenta estabelecer vínculo emocional com uma prostituta, Mai (Yayaying Rhatha Pongham), que trabalha num clube com neons, lâmpadas pelas paredes, e está sempre em corredores escuros ou intensamente vermelhos, cercados pelo figurino e pelos papéis de parede com o mesmo dragão que está ao fundo do clube de luta. Não se sabe ao certo se Julian está acordado ou sonhando: o banheiro às vezes fica azul e em suas mãos é possível ver o sangue da culpa ou do prenúncio do que ainda irá acontecer. Ele tenta afastar-se desse corredor, como se fugisse do pesadelo. Sua mãe, Crystal (Kristin Scott Thomas), vem da América e deseja cobrá-lo por não ter pego ainda o assassino do seu irmão. Ela é claramente obcecada pelos filhos, mas sobretudo por Julian, sobre o qual parece não obter o domínio que gostaria – e Kristin desempenha um dos melhores papéis de sua carreira, assustadora e frágil na medida certa.
Refn trabalha alguns elementos que já apresentava em Drive, como a pulsação da trilha sonora de Cliff Martinez e a quase muda participação de Gosling. Este se encontra parcialmente preocupado em lidar com sua relação com o universo feminino, e a cada olhar que dispara para a mulher que deseja no clube é uma espécie de sinal de que sabe que tudo acabará sofrendo alguma concessão desnecessária. Ele não consegue corresponder à criação e exigência materna com o que aparenta ser sua rotina: dividido entre a luta de boxe, as drogas e os pesadelos noturnos, o que lhe resta é tentar enfrentar aquele que parece ser uma espécie de justiceiro, responsável em escolher o destino de alguns personagens e mesmo uma espécie de fantasma, que anda pelas ruas de Bangkok e desaparece sem que possamos imaginar seu paradeiro.
Todos os personagens, embora pouco dialoguem, e interajam, conseguem estabelecer uma espécie de panorama de relacionamento perturbador. Não apenas a obsessão da mãe pelos filhos, como a tentativa de Julian em enfrentar aquele que imagina fazer justiça, tornam Apenas Deus perdoa numa espécie de experimento arriscado. Também a maneira como Refn dispõe a infância tortuosa desses irmãos – sobre a qual não ficamos sabendo – quando revela outras crianças: uma na cadeira de rodas e a filha de Chang, sempre à espreita de uma violência incontrolável.

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Pode-se dizer que o início do filme e muitas passagens ao longo dele sejam feitas num estilo slow motion: quase tudo é extremamente sem movimento, calculado e mesmo pesado, mas, de algum modo, essa composição acaba por amplificar o sentimento dos personagens (aqui, poucos diálogos não significam falta de história) e torna a fotografia de Larry Smith – que fez parte da equipe de iluminação de O iluminado e Barry Lindon, é responsável pelo trabalho do Kubrick derradeiro, De olhos fechados, e havia trabalhado com Refn em Bronson – numa peça-chave para essa composição se tornar mais ampla. Os contrastes pretendidos por Refn são esboçados em alta conta por Smith: sobretudo quando passamos dos interiores noturnos para a casa aberta e arejada, parecendo parte de um cartão postal, de Chang. É como se os personagens fizessem parte de um universo obscuro, onírico, de pesadelo e, de repente, passassem à claridade do dia, sendo, antes de tudo, extensões uns dos outros (spoiler: inevitável imaginar que Julian, ao final, chegue à casa de Chan, e sai em defesa da filha dele se contrapõe à acusação que sua mãe faz em outra cena e a seu irmão).
De igual intensidade, é o trabalho em relação às mãos dos personagens. Se Julian inicia o filme colocando seus punhos fechados, como um boxeador, logo ele estará tentando levar suas mãos ao corpo feminino, ou vendo, no banheiro, o sangue saindo delas. Do mesmo modo, num instante especialmente cruel – e o mais perturbado do filme, embora num cenário que parece alentador e lembre o do karaokê, numa espécie de clube noturno de mulheres bem comportadas –, as mãos são castigadas a tal ponto que nem o personagem que causa a situação consegue suportar.

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Only God forgives.Filme 4Refn não estabelece uma estética da violência; ele, na verdade, parece trabalhar muito mais com conceitos prévios a essas imagens, criando uma atmosfera de opressão como se ela não fosse, como indica o título, perdoar o comportamento de seus personagens, traídos ou não pelas situações em que se colocam. Julian também tem pesadelos ao imaginar suas mãos sendo cortadas por uma lâmina, e os personagens são captados pela câmera sempre numa espécie de estagnação, a não ser quando se está esperando que a violência irrompa de algum canto. Nesse sentido, os olhares passam a ganhar um movimento perturbador no isolamento em que Refn consegue captá-las, e as mãos passam a ser um símbolo do toque e do afastamento: ao mesmo tempo em que Julian quer tocar a mulher de sua vida, ele tem um receio e mesmo uma repulsa.
Esta simbologia é desenhada de maneira profunda por Refn, ou seja, muito mais do que Drive, que, em meio à sua originalidade latente, ainda era uma espécie de produto dos sintetizadores dos anos 80 e uma visão, embora original, sobre os dublês de Hollywood, Apenas Deus perdoa apresenta uma espécie de panorama amplo de um cinema experimental. Para Refn, as vaias em Cannes representam não um passo atrás em sua trajetória, mas uma compreensão de que conseguiu criar estranheza mais do que já era provável. Seu filme é uma obra de notável impacto, mesmo que se movimente quase em slow motion, planejado simetricamente e com uma densidade onde nada parece existir.

Only God forgives, FRA/Dinamarca, 2013 Diretor: Nicolas Winding Refn Elenco: Ryan Gosling, Kristin Scott Thomas, Vithaya Pansringarm, Yayaying Rhatha Pongham, Tom Burke Roteiro: Nicolas Winding Refn Produção: Lene Børglum Fotografia: Larry Smith Trilha Sonora: Cliff Martinez Duração: 90 min. Estúdio: A Grand Elephant / Film i Väst / FilmDistrict / Gaumont / Wild Bunch

Cotação 4 estrelas e meia

O fabuloso destino de Amélie Poulain (2001)

Por André Dick

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Com um visual que lembra o de um filme publicitário, em razão de suas imagens, com cores distribuídas como um espelho visual para vendas, O fabuloso destino de Amélie Poulain é uma das homenagens mais interessantes ao mundo do cinema e da descoberta, injustiçada na época do Oscar (foi indicado em cinco categorias, sem receber nenhum, mesmo com a campanha da Miramax dos Weinstein, ou talvez por causa dela). A personagem central, Amélie (a ótima Audrey Tautou) é uma jovem solitária, e o filme conta, por meio da narração de André Dussollier, desde a infância o motivo de ela ser assim: primeiro, os possíveis problemas cardíacos, nunca exatamente comprovados, nem pelo pai médico, mais ligados à emoção dela (e Jeunet faz com que vejamos o seu coração latejando), numa espécie de Meu tio da América do início do século (daqui em diante, possíveis spoilers).
Numa das tentativas de apanhar um rato em sua casa, acaba descobrindo uma caixa com várias relíquias do passado, motivando-se a encontrar seu dono, o melancólico Dominique Bretodeau (Maurice Bénichou). Para isso, Amélie utiliza sua imaginação e conta com a ajuda de um vizinho pintor, Raymond Dufayel (Serge Merlin), inventando cartas para a possível volta de um determinado vizinho que não aparece há mais de quarenta anos. Ao mesmo tempo, provoca um vizinho que causa mal-estar. Enquanto isso, seu pai, Raphaël (Rufus) espera um motivo para viajar, Amélie pega o anão de seu jardim e o fotografa com a imagem de várias localidades famosas pelo mundo, enviando-as para o pai, tudo em meio à morte da Princesa Diana, em 1997 e caminhadas pelo Canal Saint-Martin, em que Amélie visualiza casais. O mundo dela é atraído para um mundo da fantasia: ela deseja não se considerar uma princesa do mundo real, mas sua meta é tentar estabelecer contato com quem está à sua volta e se tornar conhecida.

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Se trabalha num café, como garçonete do Café des 2 Moulins, em Montmartre, sempre com a presença de figuras estranhas e bizarras, típicas do universo do filme e do diretor Jeunet, inclusive o interesse que existe entre Georgette (Isabelle Nanty), sua colega, hipocondríaca, e Joseph (Dominique Pinon), com ciúmes constantes  – e o café tem as cores elaboradas como o restante do filme, lembrando a paisagem de Paris, apesar de seus personagens não corresponderem, algumas vezes, ao cuidado do ambiente –, Amélie também quer fazer com que se aproximem.
O roteiro de Jeunet com Guillaume Laurant é simples na medida exata, contribuindo para que se trabalhe mais visualmente as imagens, com seus neons sugestivos e, em meio a eles, não por acaso a personagem vem a se apaixonar por um homem, que imagina trabalhar numa loja de revelação fotográfica, Nino Quincampoix (Mathieu Kassovitz), mas na verdade tem outro trabalho possivelmente menos idealizado por Amélie. Num universo voltado exclusivamente para a imagem e para a imaginação que circula em torno dela, Amélie está plenamente caracterizada, ao montar imagens a partir de pedaços de fotos 3×4 ou se deixar fotografar com o uniforme de Zorro para oferecer pistas de quem pode ser. Querer viver o que culturalmente é entendido como amor (a exemplo dos personagens de Meu tio da América) é o motivo para a personagem mudar sua rotina e o diretor acaba por mudar também a do espectador – como o abajur em forma de suíno que conversa com Amélie e o universo que ela constrói ao redor, que parece viver num mundo de brinquedos e bonecos, aproximando o cenário de uma fábula infantojuvenil (e não há dúvida de que Wes Anderson também bebeu daqui em filmes como Moonrise Kingdom).
Cada enquadramento de Bruno Delbonnel (que recentemente fez a fotografia excepcional de Sombras da noite) é memorável pois lembra uma pintura – o roteiro tem suas referências a Renoir –, e sua influência é visível em filmes recentes, como A invenção de Hugo Cabret. Há, inclusive, uma cena de cinema que também remete à do filme de Scorsese, em que Hugo e a neta de Mèliés entram na sala sem passar pela bilheteria.

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Com esses enquadramentos notáveis, todos os elementos de um interesse amoroso entre Amélie e Nino – em certa medida previsíveis – acabam fugindo do lugar-comum, constituindo-se por meio de objetos e lugares: a cabeceira do quarto, as fotografias do céu, com as nuvens formando animais, a personagem no cinema, as cores na floricultura.
Não parece que o diretor desta obra é o mesmo Jean-Pierre Jeunet que dirigiu Alien – A ressurreição, um filme com visual extraordinário, mas precário em sua maneira de retratar a saga de Ellen Ripley. Amélie Poulain é o contrário em tudo: de sua sensibilidade até sua leveza, trata-se de um filme que possui uma espécie de ritmo de épico do cotidiano, com a montagem que remete tanto à velocidade de um certo universo de vendas (sobretudo quando se pronuncia a narração, não estranharíamos se Amélie apontasse produtos para a tela), mas também à calma dos filmes europeus mais contemplativos. Tudo acontece em torno de Amélie, sem que ela deseje ou preveja, e é justamente esta despretensão que acaba articulando a história e amarrando as pontas eventualmente soltas. Toda a discussão que existiu em torno do filme na época de seu lançamento, tornando-o numa espécie de cult instantâneo, parece tê-lo prejudicado num primeiro momento, mas, mais de uma década depois, é difícil perceber envelhecimento na sua proposta.
A realização de Jeunet é muito eficaz e oportuna. A personagem de Amélie, mesmo com toda a sua ingenuidade, conservando pontos esquecidos da infância, sonha por meio dos sonhos alheios, exatamente a quando vai ao cinema ou assiste à televisão – não por acaso, ela assiste a um filme em que um personagem diz que ela tem o direito de se fugir da realidade. Nesta inter-relação entre ela e o cinema, ela e os sonhos alheios, estrutura-se a narrativa incomum, que aplica nas cenas de velocidade – em uma moto – o que não havia aplicado na estagnação, por exemplo, dos personagens na cafeteria; afinal, é preciso, como Amélie, sair do lugar, nem que seja por meio da fotografia ou de animais nas nuvens. O que se percebe é que, para Jeunet, Amélie desencadeia uma vida de joias lapidares justamente quando acha ter perdido um ponto de referência da realidade e quando descobre algo escondido que pode levar de volta ao universo que finge desconhecer. É por meio desse deslocamento proporcionado pelo imaginário, como a descoberta de uma caixa no início do filme, que ela vive e Jeunet faz uma obra contemporânea com aspecto já clássico.

Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain, FRA, 2001 Diretor: Jean-Pierre Jeunet Elenco: Audrey Tautou, Mathieu Kassovitz, Yolande Moreau, Artus de Penguern, Urbain Cancelier, Dominique Pinon, Maurice Bénichou Produção: Jean-Marc Deschamps, Claudie Ossard Roteiro: Jean-Pierre Jeunet, Guillaume Laurant Fotografia: Bruno Delbonnel Trilha Sonora: Yann Tiersen Duração: 120 min.  Distribuidora: Não definida

Cotação 4 estrelas e meia

Elysium (2013)

Por André Dick

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Em 2009, Neill Blomkamp surpreendeu o público com sua ficção científica Distrito 9, indicada ao Oscar de melhor filme, e passou a ser visto como uma das promessas entre os novos diretores. Desta vez, com um orçamento maior e a presença de Matt Damon à frente do elenco, Blomkamp regressa com Elysium, um filme que aposta, como sua estreia, num cenário que mescla os elementos de ficção científica com favelas e exploração de seres humanos. Eles vivem numa Terra combalida, em 2154, que tem no espaço a presença de Elysium, uma estação espacial com mansões e uma vegetação tropical, almejada sobretudo porque conta com um suporte tecnológico que não permite seus moradores terem qualquer tipo de doença. A estação tem à sua frente de defesa Jessica Delacourt (Jodie Foster), desinteressada em conversar com um grupo de rebeldes que pretende conquistar o direito de ter um domínio sobre o planeta e cujo direcionamento bélico desagrada ao seu superior, Presidente Patel (Faran Tahir).
Damon interpreta Max Da Costa, um ex-presidiário que trabalha na Armadyne Corp, responsável pela construção de Elysium, dirigida por John Carlyle (William Fichtner), e que em determinado dia recebe uma carga de radiotividade capaz de levá-lo à morte. Com a ajuda de um amigo, Julio (Diego Luna), para que consiga se curar, ele precisa ter a chance de embarcar para Elysium. Mas só pode fazer isso se prestar um serviço quase como um semirrobô a Spider (Wagner Moura), o líder de um grupo rebelde que pretende conquistar a estação. Ainda ligado a uma enfermeira, Frey (Alice Braga), mãe de Matilda (Emma Tremblay), Max precisa fazer o máximo para que possa receber a recompensa. Há elementos de alguns filmes na narrativa de Elysium, mas isso não incomoda devido à apresentação inicial do filme, como se conseguisse, a partir dela, expandir seu universo, sem confundi-lo com as lembranças de Oblivion. Há elementos de Mad Max (sobretudo o segundo filme), Robocop e Eles vivem (de John Carpenter), mas devidamente filtrados, e Blomkamp tem uma certa inclinação para a imagem menos condescente, no que se assemelha a David Cronenberg (não por acaso, Distrito 9 é uma extensão, em alguns momentos, de A mosca), sendo aqui o principal diálogo eXistenZ, o subestimado filme com Jude Law, e A cidade da esperança, de Roland Joffé (sobre um jovem médico americano que se defronta com a miséria na Índia).

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Blomkamp tem um talento sólido em filmar cenas de ação e, embora lhe falte a coerência de Verhoeven de Robocop e O vingador do futuro, com quem tenta dialogar nas cenas de ação e explosões, nunca deixa de apresentar esta ação com uma intensidade que parece crível – e os melhores momentos de Elysium se baseiam nesta apresentação, assim como o foi em Distrito 9, menos em sua discussão política e sobre os problemas de acesso à saúde, ou quem deve recebê-la, que se apresenta até mesmo escassa e um pouco apressada. No entanto, Blomkamp tem uma certa proximidade sentimental de seus personagens, o que não consegue outros diretores de sua geração, a exemplo de Joseph Kosinski. Max e Frey são figuras com quem o espectador se importa, e Spider consegue transparecer uma determinada ambiguidade importante para o prosseguimento da narrativa. O sofrimento imposto ao personagem de Max, embora de curta duração, cria um certo impacto, mostrando uma agilidade semelhante ao que víamos em Distrito 9, e suas reações não lembram a princípio a de um herói, ou seja, seu desespero diante da situação em que se encontra é evidente.
Por outro lado, Elysium é o tipo de ficção científica que quanto mais parece crescer mais vai ficando desinteressante. Sua melhor trajetória se encontra quando privilegia os personagens, as relações que podem existir potencialmente com eles. Não se trata, em nenhum momento, de ser descartável; pelo contrário: sua concepção visual é realmente atrativa e os efeitos especiais, junto com o trabalho considerável de efeitos sonoros, transporta o espectador para um outro universo, mas ele declina muito cedo de trabalhar o personagem de Max, pois Damon o joga muito bem, trabalhando nuances inicialmente, com sua habitual capacidade para personagens diferentes (capaz de passar de O desinformante para Bravura indômita), mas perdendo parte do interesse a partir da metade. A presença de Wagner Moura como Spider também fornece ao filme um vigor que escapa às vezes dentro dessa concepção visual. Moura é um ator que já se mostrou extraordinário em alguns filmes, e aqui ele tenta compor um personagem diferente do habitual, inclusive com um tom de voz peculiar. Sai-se de maneira equilibrada e destacada, chamando mais atenção do que Damon e Alice Braga. Uma surpreendente vilã feita por Foster acaba não recebendo muitas linhas de diálogo e perde-se com sua ausência, mas uma atriz como ela acaba sempre chamando a atenção quando está em cena, mesmo que se possa dizer que ela está até mesmo caricata, como se adotou como lógica para sua participação no filme.

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A sua personagem é assessorada por Kruger (Sharlto Copley), uma espécie de braço direito para os serviços mais complicados contra a aliança rebelde de Elysium. Este personagem parece saído de alguma ficção científica de estilo B, com a qual Elysium certamente se assemelha em alguns momentos, sobretudo pela despretensão, e consegue ser um bom oponente aos homens que lutam pela liberdade de poder utilizarem a estação espacial. O roteiro consegue definir um terceiro ato pouco cansativo, devido à montagem acelerada de Julian Clarke e Lee Smith, embora seu clímax tenha o mesmo problema de blockbusters recentes: parece que se quer encerrar o filme para que não pareça longo demais, o que prejudica o próprio entendimento de toda a ação que antecipou o ato derradeiro. Os temas que haviam por trás do roteiro acabam ficando em segundo plano, e espera-se apenas uma solução para as subtramas. Ainda assim, Elysium é realizado com competência, com um senso de direção de arte importante para uma ficção científica e não deixa sua narrativa às vezes não tão trabalhada se transformar num impecilho, muito em razão de Blomkamp e do elenco.

Elysium, EUA, 2013 Diretor: Neill Blomkamp Elenco: Matt Damon, Alice Braga, Jodie Foster, Sharlto Copley, Wagner Moura, William Fichtner, Faran Tahir, Diego Luna Produção: Simon Kinberg Roteiro: Neill Blomkamp Fotografia: Trent Opaloch Trilha Sonora: Ryan Amon Duração: 109 min. Distribuidora: Sony Pictures Estúdio: Media Rights Capital / QED International / Sony Pictures Entertainment

Cotação 3 estrelas

Scarface (1983)

Por André Dick

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No início dos anos 80, Fidel Castro autorizou a saída de milhares de famílias que poderiam visitar os Estados Unidos. O objetivo era enviar, junto com elas, criminosos que não aderiram à Revolução. É assim que inicia Scarface, de Brian De Palma, mostrando a chegada desses cubanos a Miami, mais especificamente Tony Montana (Al Pacino) e seu amigo Manny Ribera (Steven Bauer). Entre acampamentos embaixo da ponte e cobranças para que assassinem um inimigo, ambos vão trabalhar num restaurante, fazendo comida e lavando pratos, enquanto observam o clube em frente, com uma série de carros sofisticados, antes de encontrarem Omar Suarez (F. Murray Abram), que pode proporcionar bons negócios. A velocidade da narrativa de De Palma se baseia num roteiro de Oliver Stone, antes de retomar sua trajetória como diretor, em Salvador – O martírio de um povo e Platoon, e parece que este já anunciava sua trajetória pós-Oscar, como aquela que inclui Assassinos por natureza, Reviravolta e Um domingo qualquer, com a presença constante de violência e drogas.
Tony Montana é símbolo dessa imigração cubana para os Estados Unidos, encarnando os anseios, vital na trajetória de Stone, do capitalismo americano. Mas De Palma não leva este roteiro fielmente, como Stone nunca deixou de se encantar pelo capitalismo (a exemplo de seus dois Wall Street), apresentando Montana com um estilo nervoso, acompanhado dos sintetizadores de Giorgio Moroder, da mesma época de Flashdance. Com camisas e ternos coloridos, Tony Montana deseja ter seu lugar ao sol. Depois de uma série de incidentes, inclusive envolvendo uma motosserra, ele se torna uma figura de confiança do chefe, Frank Lopez (Robert Loggia), cuja mansão guarda um jogo entre o vermelho e o branco, próprio do filme, e neste instante já se apaixona por sua mulher, Elvira Hancock (Michelle Pfeiffer, logo depois de Grease 2 e já mostrando ser uma atriz excepcional). Ao mesmo tempo, ele se ressente de não dar apoio à mãe (Miriam Colon) e à irmã, Gina (Mary Elizabeth Mastrantonio). A mãe não deseja sua presença, pois seria prejudicial para Gina, o que não o impede de tentar uma aproximação.

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Tony encarna uma tentativa de sobrepujar seu passado como criminoso e, dominado pela violência, desde o início, controlar a rede de crime da qual tenta se afastar. Sua trajetória pessoal está ligada a ganhar cada vez mais dinheiro. De Palma mostra esse personagem como alguém instável, desequilibrado e com elementos de um personagem de tragédia. A violência vai ocupando o sonho de ter filhos, assim como a noção de amizade aos poucos vai se perdendo com a presença das drogas – sem, no entanto, tirar de sua mente uma noção de família feliz. Por isso, Scarface, apesar de todo seu estilo, de uma direção de arte suntuosa e figurinos excepcionais, é, ao contrário de outros filmes de De Palma, um filme menos cinematográfico e mais trágico. Os personagens não estão a serviço da câmera, mas exatamente o contrário, e temos cenas de suspense irretocáveis (como aquela em que um carro é perseguido). Embora De Palma seja um grande diretor de suspense, a exemplo de inúmeros filmes (para citar dois: Vestida para matar e o subestimado Síndrome de Caim) e um grande diretor de atores (o que vemos em Os intocáveis e Pecados da guerra), parece ser neste campo da máfia (a exemplo de O pagamento final) que ele consegue exercer uma fascinação quanto aos elementos que distribui em cena.
É verdade que depois da excepcional primeira hora, Scarface utiliza algumas elipses narrativas, fazendo com que haja uma passagem de tempo sem anúncio (como as anteriores), em que os personagens se reencontram tratando de temas que não foram desenvolvidos (o que Pauline Kael aponta em sua crítica implacável contra o filme, chamando-o de “épico sem textura”). Isso não tira do filme a rapidez dos seus diálogos, a visão de universo corrosivo, e a linha que separa, para o olhar de Hollywood, os cubanos recém-chegados aos Estados Unidos do respeito a um show de piadas, na discoteca frequentada pelos criminosos. De Palma consegue eliminar alguns excessos e fazer até um intervalo anos 80 em seu filme, com uma série de passagens lembrando um videoclipe. Ele não pretende passar a dramaticidade de Coppola na saga O poderoso chefão (cujo estilo clássico remete mais ao Scarface de 1932, de Howard Hawkes, a quem este é dedicado); seu Scarface é produto de uma época pop e, como aquela mostrada em Onde os fracos não têm vez, as drogas começam realmente a ter uma entrada em grande quantidade nos Estados Unidos e atingir uma comunidade que parece, a princípio, apenas interessada em frequentar praias, discotecas e cujas mulheres sonham apenas em comprar um novo biquíni. Seria adequado ver a fotografia da praia que preenche toda a parede do escritório de Frank Lopez, longe de qualquer sinal de violência ou ameaça, mas com uma tranquilidade quase tropical. É uma história grave que ele tenta conduzir, nesses momentos, com a agilidade de um videoclipe estendido, no qual a cocaína, para esses personagens, é usada na mesma proporção em que atiram ou contam dinheiro.

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Não há, por isso, sutilezas na atuação de Al Pacino. O ovearcting do ator é visível em muitas passagens, mas ele se encaixa bem no filme, com sua faceta de descontrole – e brincaria com ela alguns anos mais tarde, quando interpretou Big Boy Caprice no divertido Dick Tracy, de Beatty. Pacino mostra raiva e sabe, nisso, mostrar também um certo desespero interior – sua atuação no terço final do filme é irrepreensível, sobretudo em determinada cena em que precisa enfrentar o passado que abandonou, como se estivesse no cenário de um rei francês. O elenco que o cerca é de primeiro nível. Apesar de Murray Abraham não ter grandes chances (ele ganharia o Oscar de melhor ator no ano seguinte, como o Salieri de Amadeus), Loggia é impecável, assim como Pfeiffer e Mastrantonio garantem uma boa presença feminina, e Bauer é um ator que consegue tirar bastante de suas limitações. Como os atores, a parte técnica é excepcional, e pode-se desconfiar quando se diz que a trilha de Moroder envelheceu. Como várias trilhas dos anos 80, vistas como datadas, mas de belas melodias, a de Scarface guarda um talento especial e uma certa tristeza que corresponde às linhas internas do filme. Além da fotografia de John Alonzo, no entanto, o que se destaca na hora final é a montagem trepidante, eliminando qualquer excesso e colocando o personagem de Montana nas situações mais delicadas, e pode-se ver o quanto este pedaço de filme influenciou toda a trajetória de Tarantino, principalmente Kill Bill: Vol. 1, Bastardos inglórios e Django livre (com a diferença de aqui a montagem das cenas é ainda melhor). Nem que um neon sirva de epitáfio e tudo sirva de motivo para um O grande Gatsby em formato de filme de máfia.
É difícil avaliar que Scarface tem exatamente, com esse elenco e parte técnica raros, uma faceta sentimental. Não é o forte de De Palma e de Stone, o roteirista, e Scarface certamente desapontou em sua estreia por motivos diversos. Um deles certamente não é o de seu poder como imagem cinematográfica, sintetizando não apenas o período em que se insere, como o próprio gênero e suas contribuições. Um filme essencial.

Scarface, EUA, 1983 Diretor: Brian De Palma Elenco:  Al Pacino, F.Murray Abraham, Mary Elizabeth Mastrantonio, Michelle Pfeiffer, Robert Loggia, Steven Bauer Produção: Martin Bregman Roteiro: Oliver Stone Fotografia: John A. Alonzo Trilha Sonora: Giorgio Moroder Duração: 170 min. Estúdio: Universal Pictures

5 estrelas

 

Ruby Sparks – A namorada perfeita (2012)

Por André Dick

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Um dos filmes mais comentados no final de 2012, com uma recepção de cult, embora tenha passado rapidamente pelos cinemas, é Ruby Sparks – A namorada perfeita. Dirigido pela mesma dupla do criativo e com ótimo elenco Pequena Miss Sunshine, Jonathan Dayton e Valerie Faris, o filme consegue se manter entre o drama, o romance e a comédia mais irônica ao longo da sua narrativa, sem exatamente alçar voos mais altos, mas tampouco desapontando o espectador.
Calvin Weir-Fields (Paul Dano, que participou do primeiro filme da dupla), depois de publicar um romance que se transformou em best-seller aos 19 anos, tem vivido uma crise existencial, sem conseguir produzir novos livros, e sai de casa praticamente apenas para participar de debates com alunos em universidades e de sessões de terapia com Dr. Rosenthal (Elliot Gould). Ele detesta a palavra gênio, e é chamado assim durante várias vezes ao longo do filme, sem esboçar felicidade. Isso porque gênio é a palavra que caracteriza o escritor que se destaca, colocando-o acima dos demais – e Calvin não se sente assim, pelo menos à primeira vista e com uma simples troca de palavras num debate.
Obcecado por J.D. Salinger, o autor de O apanhador no campo de centeio, ele ainda escreve numa máquina antiga, ou seja, afastado dos computadores . Também mora num apartamento moderno, completamente limpo, sem cores, como se retratassem a página que insiste em colocar todo o dia, junto com o café, a fim de ter uma espécie de inspiração momentânea para conseguir produzir outra história, além de um abajur posicionado geometricamente seja qual for a hora do dia e a insegurança diante da escrita.

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Ruby Sparks

Mantém uma relação próxima com o irmão, Harry (Chris Messina), tenta fugir do seu agente, Langdom Tharp (Steve Coogan) e convive com o seu cachorro, Scotty (uma homenagem a F. Scott Fitzgerald). Até o dia em que começa a sonhar com uma moça, que passa a servir de inspiração para seu livro. Quando o psiquiatra lhe pede para escrever algo numa página, o livro começa a surgir. Ele a chama de Ruby Sparks. Seu intuito é contar sua história desde o nascimento, passando pela infância, adolescência, até a vida adulta. Ela também é fã de John Lennon e pintora. E, certo dia, Ruby de fato aparece realmente, para seu espanto. No entanto, a princípio, ele considera que ninguém a vê, que ela é fruto de sua imaginação, até o momento em que conhece Mabel (Alia Shawkat), admiradora de sua obra.
Se antes tínhamos elementos que remetem a Adaptação (em que Nicolas Cage fazia os irmãos gêmeos que querem escrever roteiros), agora temos lembranças de A rosa púrpura do Cairo (uma das inspirações do filme), e do Gil Pender de Meia-noite em Paris, e o filme cultiva a ideia de que o personagem precisa se manter afastado do verdadeiro mundo para “criar sua obra”. No entanto, Ruby Sparks não chega a ser previsível como pode parecer a partir de sua premissa, embora sempre se mantenha numa linha regular, sem provocações. O filme brinca com o fato de o universo literário ser visto como o ponto da compreensão humana, assim como Pequena Miss Sunshine brincava com as estranhezas de uma família em viagem para um concurso de beleza da filha menor e tinha no personagem de Steve Carell o maior especialista de Proust nos Estados Unidos.
Ruby ganha vida com Joe Kazan, autora do roteiro e namorada na vida real de Paul Dano. O escritor passa a vivenciar outras experiências, inclusive aquela que parece mais ameaçadora: sair de casa. Passa, inclusive, a frequentar a noite – onde precisa passar por indiscrições de Ruby. Ela também o obriga a visitar sua mãe, Gertrude (Annette Benning), e seu padrasto, Mort (Antonio Banderas, inesperadamente divertido, embora subaproveitado), um carpinteiro que tenta convencer Calvin a levar para sua casa uma cadeira pós-moderna. Nada exatamente fora do contexto, e menos diferenciado do que a obra anterior dos diretores, apesar de o filme ter um ambiente indie interessante, apoiado numa bela trilha sonora de Nick Urata (a melhor qualidade do filme, ao lado da atuação do sempre eficiente Dano). É no momento em que Calvin e Ruby viajam para a praia que a noção de abertura da piscina para o mar se abre no personagem.

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Ruby Sparks depende de se gostar, mais do que de Paul Dano, de Zoe Kazan (neta do diretor Elia). Embora natural, ela fica um pouco deslocada quando o filme se inclina para a comédia, mesmo tendo feito o roteiro. Quando ela consegue dosar o personagem criado por Calvin e seus atritos românticos, mesmo que apressados e que escapam a um olhar mais atento, o filme acaba tendo seu melhor resultado. Com eles, o personagem passa a ter a experiência da vida que, na verdade, não deseja, mas experimentá-la por meio de Ruby passa a lhe causar não apenas melancolia, mas também cansaço e dinamismo. A questão é se ela conseguirá fazer com que Calvin dê tanto valor a ela quanto ao que estava fora dele mesmo. Volta-se, então, à questão que percorre o personagem: de que ele é, de fato, um gênio. Pois, se ele imaginava um amor perfeito com Ruby, ou seja, aplicava o romantismo em sua visão de mundo, com seus parques iluminados e uma toalha estendida no gramado, ele passa a reconhecer que pode ter o controle absoluto sobre Ruby, mas ela sempre será seu espelho, ou seja, com partes a serem sempre reescritas. É nesta releitura que, afinal, Calvin baseia sua existência a partir da premissa desse encontro, consigo e com o livro que, na verdade, tentará reescrever toda a vida.

Ruby Sparks, EUA, 2012 Diretor: Jonathan Dayton, Valerie Faris Elenco: Zoe Kazan, Antonio Banderas, Paul Dano, Alia Shawkat, Deborah Ann Woll, Annette Bening, Steve Coogan, Chris Messina, Elliott Gould, Aasif Mandvi, Wallace Langham Produção: Albert Berger, Ron Yerxa Roteiro: Zoe Kazan Fotografia: Matthew Libatique Trilha Sonora: Nick Urata Duração: 106 min. Distribuidora: Fox Film Estúdio: Bona Fide Productions / Fox Searchlight Pictures

Cotação 3 estrelas

Caminho para o nada (2010)

Por André Dick

Caminho para o nada.Filme 5

Um filme se abre dentro de um laptop, com a longa sequência de uma jovem com o secador elétrico ligado no quarto de uma casa. Do lado de fora, chega alguém de carro. Ouve-se um tiro e ela sai pela estrada até entrar num túnel, ficando nele por alguns minutos, até se dirigir, novamente de carro, para a frente de um lago. A situação pode ser exatamente o contrário daquilo que aparenta. Em seguida, jovens em frente aos computadores tentam selecionar uma estrela para o seu filme. Eles conseguirão realizar, desta vez, sua obra-prima? Tudo isso pode ser um policial, um drama, um suspense, um exercício cansativo de metalinguagem e pode ser um filme de Monte Hellman.
Com referências a Robert Altman, sobretudo a O jogador, e ao tratamento que concedia aos roteiristas, e a David Lynch, que criou o gênero do carro numa estrada deserta, Caminho para o nada também pode ser o contrário do que antecipa seu título. Esta estrada para lugar algum, quase perdida, como em Lynch, é também a dos sonhos relacionados ao cinema e às atuações. Entre DiCaprio e Scarlett Johansson, nada atrai mais o diretor Mitchell Haven (Tygh Runyan) do que Laurel Graham (Shannyn Sossamon). Ele deseja a atriz amadora, que fez apenas um filme de terror juvenil, para seu próximo projeto, que tratará de Velma Duran, uma mulher que teria forjado seu desaparecimento junto com o ricaço Rafe Tachen e ido embora do país, e com quem Laurel se parece.

Caminho para o nada.Filme 2

Caminho para o nada.Filme 3

Após uma entrevista para a Rolling Stone, num desses cenários montanhosos de Hollywood, e ainda surpreendido com o encanto de sua estrela, com quem atravessou Roma, Mitchell é ainda uma caricatura do diretor Hellman (veja sua entrevista à Slant): “90% do papel do diretor é escolher o elenco”. Hellman parece, no início, lançar esta metalinguagem contra a tela. Os atores não convencem; pelo contrário, citam frases pretensamente artísticas e desgastadas, a fim de tentar convencer sobre a própria genialidade, mas esta não existe. A equipe de filmagem se dirige para a cidade em que a história aconteceu e onde será filmada a trama. Lá, eles se deparam com Bruno Brotherton (Waylon Payne), escolhido como ajudante das filmagens, e Nathalie Post (Dominique Swain), que escreve um blog sobre o caso real de Velma e Rafe Tachen (interpretado no filme dentro do filme por Cliff De Young na pele de Cary Stewart) e se comporta como outra personagem de Swain, a Lolita de Adrian Lyne. Ambos estão desconfiados do interesse claro do diretor por sua estrela principal, e a partir de conversas em bares e em quartos, diante de obras-primas passando na madrugada pela televisão, o clima noir se sustenta sobre o próprio filme, assim como lances de canastrice de alguns personagens e atores que lembram um filme B.
À medida, no entanto, que Hellman funde as filmagens com a história real, mas dentro também de um filme (o que assistimos), já estamos em seu próprio sonho, aquele que Mitch diz buscar em outros diretores. Será lançada uma obra-prima ou mais um “pedaço de merda” de Hollywood? Bruno, na verdade, é um controlador de seguros que pretende descobrir a fraude que houve com o casal desaparecido que o diretor do filme procura retratar. Ao mesmo tempo, acontecem reuniões e discussões de dinheiro para o filme e sua produção, não se esperando que o orçamento passe do limite – pelo menos não para Bruno e sua perturbação, capaz de ver Velma onde existe Laura.
A obsessão do diretor por sua estrela começa a ficar plausível à medida que Hellman os insere em situações não apenas referentes a outros filmes (como o ensaio que sintetiza Cidade dos sonhos, com Naomi Watts tendo de se envolver emocionalmente com seu parceiro de cena), mas a cenários encobertos pela noite, como o do hotel em que está a equipe de filmagem, com seu horizonte ao fundo contrastando com as luzes acesas de cada quarto, compondo não apenas outra referência lynchiana, a Twin Peaks, como também a pinturas de Hopper. A noite e o dia se fundem em Caminho para o nada, assim como as equipes de filmagem se alternam dentro da realidade dentro de um sonho fora do sonho dentro da realidade. Temos, em meio a isso, diálogos de Haven com seu roteirista Steve Gales (Robert Kolar), brigando pela presença ou não de alguns atores no filme, em razão da preferência dada a Velma em todas as tomadas, com suas referências a Altman (e sua insistência, por exemplo, em Shelley Duvall para viver Olívia Palito, em Popeye, posicionando-se contra o estúdio) e ao personagem de Tim Robbins em O jogador.

Caminho para o nada

Caminho para o nada.Filme 6

Caminho para o nada é forte como as canções de Tom Russell, que abrem e fecham o filme. No entanto, é Shannyn Sossamon, na pele da atriz que não se considera atriz e se envolve com o cineasta como se quisesse se envolver também com o cinema e seus sonhos, não sendo tão especial para tanto, que concede a esta obra de Hellman um olhar perdido e contundente sobre as ações demonstradas. Os personagens, na verdade, indefinidos entre o real dentro do sonho e o sonho dentro do real não querem ser desvendados, continuando como símbolos e protótipos de um panorama muito mais ameaçador. Obcecada pelo personagem de Velma, que representa, Laurel interfere no roteiro, pede para que sejam feitas novas tomadas, pois deseja fazer parte da obra-prima do diretor. Este, dominado pela imagem cinematográfica de Velma, mas também pela história real e misteriosa de Laurel, não consegue mais discernir nenhuma das duas. Para ele, os elementos da história começam a fazer parte do mesmo set de filmagem. Ele filma quem está sendo filmado. Antes de uma cena decisiva, assiste-se, na TV, O sétimo selo, de Bergman. Ele anuncia, como antes, alguém à espreita na porta?
Mesmo as locações do filme são um jogo com o próprio roteiro. O túnel onde se passam alguns momentos da narrativa de fato existe na Carolina da Norte e sua construção, tendo iniciado nos anos 40, nunca foi terminada. Monte Hellman brinca tanto com os personagens quanto com a localização, mas reside nele uma seriedade, não austeridade, em ondulações de energia e mistério. A atmosfera inebria o espectador, com sua lentidão de imagens e azuis misturados ao verde das árvores e dos bosques. Quando vemos o filme, estamos sendo traídos, pouco a pouco, com as pistas oferecidas, mas o que se oferece, embora não seja uma obra-prima, como aquelas que o diretor vislumbra, é no mínimo um jogo notável com a própria paixão pelo cinema que suscita em cada movimento.

Road to nowhere, EUA, 2010 Diretor: Monte Hellman Elenco: Shannyn Sossamon, Tygh Runyan, Cliff De Young, Rafe Tachen, Waylon Payne, Dominique Swain, Rob Kolar Produção: Jared Hellman, Melissa Hellman, Monte Hellman, Steven Gaydos Roteiro: Steven Gaydos Fotografia: Josep M. Civit Duração: 121 min. Distribuidora: Lume Filmes

Cotação 4 estrelas