Apenas Deus perdoa (2013)

Por André Dick

Only God forgives.Filme 20

Depois do grande êxito de Drive, pelo qual foi premiado no Festival de Cannes como melhor diretor, Nicolas Winding Refn passou a fazer parte de uma reservada lista de cineastas e sua parceria com Ryan Gosling resultou em novo fime: Apenas Deus perdoa. A contrário do anterior, este novo Refn foi vaiado em Cannes e bastante criticado por seu visual e história. De certo modo, esperava-se uma espécie de prosseguimento das alternativas fornecidas por Drive, que magnetiza pela sua ação comedida e pelo comportamento estranho do personagem central. Embora Apenas Deus perdoa não se esforce em ser um diálogo direto de Drive, deve-se reconhecer, pelo menos, o seguinte: dificilmente haverá, pelo menos este ano, um filme tão estranho e visualmente fascinante.
Desta vez, Gosling interpreta Julian Thompson, que possui um clube de luta Muay Thai em Bangkok, junto com seu irmão, Billy (Tom Burke). Em determinada noite, este sai à procura de mulheres e encontra um cenário de pesadelo. Cada falha dos personagens deve ser punida pelo tenente Chang (Vithaya Pansringarm, excelente), que canta num karaokê para uma plateia imobilizada, antes de empunhar a sua espada como elemento de vingança e, ao voltar para casa, tira os sapatos, a fim de encontrar sua filha – pela janela do quarto dela, se enxerga uma vegetação verde e calma, como em algum plano de Kurosawa, como se fizesse parte de um quadro oriental (veja também o cão que caminha pelo beco até onde Julian se encontra). Assim como em Drive, Apenas Deus perdoa apresenta dissonâncias.

Only God forgives.Filme 32

Apenas Deus perdoa.Filme 14

Apenas Deus perdoa

Há um salto da violência (e aqui ela é graficamente desagradável, embora sonoramente não tão chocante quanto em Drive) para o sossego e a calmaria, mas o que permanece é uma espécie de sensação de pesadelo noturno, e não está distante a ideia de que este universo guarda alguma ligação com o de Nikki de Império dos sonhos, a obra de David Lynch. Assim como Chang olha pela janela o céu calmo, Julian olha para o espelho num ambiente escurecido, como se estivessem em universos complementares, em que a violência acaba vindo à tona. Julian tenta estabelecer vínculo emocional com uma prostituta, Mai (Yayaying Rhatha Pongham), que trabalha num clube com neons, lâmpadas pelas paredes, e está sempre em corredores escuros ou intensamente vermelhos, cercados pelo figurino e pelos papéis de parede com o mesmo dragão que está ao fundo do clube de luta. Não se sabe ao certo se Julian está acordado ou sonhando: o banheiro às vezes fica azul e em suas mãos é possível ver o sangue da culpa ou do prenúncio do que ainda irá acontecer. Ele tenta afastar-se desse corredor, como se fugisse do pesadelo. Sua mãe, Crystal (Kristin Scott Thomas), vem da América e deseja cobrá-lo por não ter pego ainda o assassino do seu irmão. Ela é claramente obcecada pelos filhos, mas sobretudo por Julian, sobre o qual parece não obter o domínio que gostaria – e Kristin desempenha um dos melhores papéis de sua carreira, assustadora e frágil na medida certa.
Refn trabalha alguns elementos que já apresentava em Drive, como a pulsação da trilha sonora de Cliff Martinez e a quase muda participação de Gosling. Este se encontra parcialmente preocupado em lidar com sua relação com o universo feminino, e a cada olhar que dispara para a mulher que deseja no clube é uma espécie de sinal de que sabe que tudo acabará sofrendo alguma concessão desnecessária. Ele não consegue corresponder à criação e exigência materna com o que aparenta ser sua rotina: dividido entre a luta de boxe, as drogas e os pesadelos noturnos, o que lhe resta é tentar enfrentar aquele que parece ser uma espécie de justiceiro, responsável em escolher o destino de alguns personagens e mesmo uma espécie de fantasma, que anda pelas ruas de Bangkok e desaparece sem que possamos imaginar seu paradeiro.
Todos os personagens, embora pouco dialoguem, e interajam, conseguem estabelecer uma espécie de panorama de relacionamento perturbador. Não apenas a obsessão da mãe pelos filhos, como a tentativa de Julian em enfrentar aquele que imagina fazer justiça, tornam Apenas Deus perdoa numa espécie de experimento arriscado. Também a maneira como Refn dispõe a infância tortuosa desses irmãos – sobre a qual não ficamos sabendo – quando revela outras crianças: uma na cadeira de rodas e a filha de Chang, sempre à espreita de uma violência incontrolável.

Apenas Deus perdoda.Filme 9

Only God forgives.Filme 13

Only God forgives.Filme 2

Pode-se dizer que o início do filme e muitas passagens ao longo dele sejam feitas num estilo slow motion: quase tudo é extremamente sem movimento, calculado e mesmo pesado, mas, de algum modo, essa composição acaba por amplificar o sentimento dos personagens (aqui, poucos diálogos não significam falta de história) e torna a fotografia de Larry Smith – que fez parte da equipe de iluminação de O iluminado e Barry Lindon, é responsável pelo trabalho do Kubrick derradeiro, De olhos fechados, e havia trabalhado com Refn em Bronson – numa peça-chave para essa composição se tornar mais ampla. Os contrastes pretendidos por Refn são esboçados em alta conta por Smith: sobretudo quando passamos dos interiores noturnos para a casa aberta e arejada, parecendo parte de um cartão postal, de Chang. É como se os personagens fizessem parte de um universo obscuro, onírico, de pesadelo e, de repente, passassem à claridade do dia, sendo, antes de tudo, extensões uns dos outros (spoiler: inevitável imaginar que Julian, ao final, chegue à casa de Chan, e sai em defesa da filha dele se contrapõe à acusação que sua mãe faz em outra cena e a seu irmão).
De igual intensidade, é o trabalho em relação às mãos dos personagens. Se Julian inicia o filme colocando seus punhos fechados, como um boxeador, logo ele estará tentando levar suas mãos ao corpo feminino, ou vendo, no banheiro, o sangue saindo delas. Do mesmo modo, num instante especialmente cruel – e o mais perturbado do filme, embora num cenário que parece alentador e lembre o do karaokê, numa espécie de clube noturno de mulheres bem comportadas –, as mãos são castigadas a tal ponto que nem o personagem que causa a situação consegue suportar.

Only God forgives.Filme.Cena 9

Only God forgives.Filme 29

Only God forgives.Filme 4Refn não estabelece uma estética da violência; ele, na verdade, parece trabalhar muito mais com conceitos prévios a essas imagens, criando uma atmosfera de opressão como se ela não fosse, como indica o título, perdoar o comportamento de seus personagens, traídos ou não pelas situações em que se colocam. Julian também tem pesadelos ao imaginar suas mãos sendo cortadas por uma lâmina, e os personagens são captados pela câmera sempre numa espécie de estagnação, a não ser quando se está esperando que a violência irrompa de algum canto. Nesse sentido, os olhares passam a ganhar um movimento perturbador no isolamento em que Refn consegue captá-las, e as mãos passam a ser um símbolo do toque e do afastamento: ao mesmo tempo em que Julian quer tocar a mulher de sua vida, ele tem um receio e mesmo uma repulsa.
Esta simbologia é desenhada de maneira profunda por Refn, ou seja, muito mais do que Drive, que, em meio à sua originalidade latente, ainda era uma espécie de produto dos sintetizadores dos anos 80 e uma visão, embora original, sobre os dublês de Hollywood, Apenas Deus perdoa apresenta uma espécie de panorama amplo de um cinema experimental. Para Refn, as vaias em Cannes representam não um passo atrás em sua trajetória, mas uma compreensão de que conseguiu criar estranheza mais do que já era provável. Seu filme é uma obra de notável impacto, mesmo que se movimente quase em slow motion, planejado simetricamente e com uma densidade onde nada parece existir.

Only God forgives, FRA/Dinamarca, 2013 Diretor: Nicolas Winding Refn Elenco: Ryan Gosling, Kristin Scott Thomas, Vithaya Pansringarm, Yayaying Rhatha Pongham, Tom Burke Roteiro: Nicolas Winding Refn Produção: Lene Børglum Fotografia: Larry Smith Trilha Sonora: Cliff Martinez Duração: 90 min. Estúdio: A Grand Elephant / Film i Väst / FilmDistrict / Gaumont / Wild Bunch

Cotação 4 estrelas e meia