On the rocks (2020)

Por André Dick

Depois de sua versão de O estranho que nós amamos, Sofia Coppola teve um hiato de três anos até este On the rocks, em que Bill Murray interpreta Felix, dono de uma galeria de arte em Manhattan, que tenta estabelecer uma ligação com a filha, Laura, interpretada por Rashida Jones, por conta de uma suspeita de traição do marido dela, Dean (Marlon Wayans). Ele tenta servir como um conselheiro – e também detetive, se surgir a oportunidade – para o que pode estar acontecendo, visto que o marido age de maneira suspeita depois de começar a trabalhar com Fiona (Jessica Henwick) numa empresa dedicada às mídias e sempre envolvida com viagens e festas nas quais Laura se sente deslocada.

De modo geral, este filme reúne imagens que remetem a Encontros e desencontros, sobretudo pela presença de Bill Murray, assim como sua temática: a de uma mulher que se sente sozinha em seu casamento. Sofia também capta imagens de um certo tédio existencial de Nova York que remetem a um Um lugar qualquer, seu ótimo filme sobre a Hollywood que só existe nos sonhos. A ligação que o pai vai tendo com a filha, com recordações da família, é tratada com caminhos emotivos e bastante básicos por Sofia, mas nunca reduz o seu olhar sobre a paternidade. Sofia costura uma relação em que o pai tenta fazer com que a filha seja menos introvertida, seja fazendo com que ela assobie, o que parece não conseguir, ou se divirta mais quando vai ao restaurante. Não se trata de uma concepção distanciada do mundo real de Sofia, e sim uma espécie de transição para um mundo à parte, em que o pai parece saído de uma película de Fellini e, depois de dirigir um carro esporte vermelho à noite em alta velocidade, consegue fazer amizade instantânea com o policial que o para.

Sob determinado ponto de vista, esta é uma obra que certamente traz elementos biográficos da ligação de Sofia com seu pai, Francis, com um olhar otimista, melancólico e por vezes divertido. Trata das relações entre casamentos passados e casamentos presentes, do que se espera para justificar algo que aconteceu e não foi bem resolvido. É difícil negar que o filme extrai complexidade de um assunto até simples e breve – a visão que o homem tem de si mesmo, dos seus desejos e da mulher. Felix tem uma visão da mulher que pertence a seus relacionamentos e parece querer expandi-la para onde consegue reduzir tudo a seu olhar. Sua filha acaba sendo incluída nesta mesma interpretação do estado de coisas. A mulher, no casamento, se vê, no caso de Laura, entre o sonho – a escrita de um romance – e a criação de duas filhas pequenas, enquanto nas idas ao colégio precisa ouvir da amiga Vanessa (Jenny Slate) divagações sobre o sexo com o parceiro. Os momentos de lazer parecem ser aqueles representados pelo design de produção cuidadoso de restaurantes, assim como era em outra parceria exitosa de Sofia com Murray, em A very Murray Christmas, um especial natalino no qual se fazia uma intersecção entre a festividade e a melancolia, em ritmo musical, numa prévia clara de La La Land. Nesses pontos, Sofia tem uma influência direta do cinema italiano do qual descende sua família, e desta vez com uma fotografia sensível e atmosférica de Philippe Le Sourd, que remete aos trabalhos de Paolo Sorrentino, como A juventude. Em igual escala, a trilha sonora de Phoenix, também familiar a Sofia, captura o espírito contemporâneo.

Na década passada, Sofia esteve muito interessada em mostrar certo vazio tanto na vida de um artista (Um lugar qualquer) quanto na vida de adolescentes capturados pelas imagens de ídolos superficiais (The Bling Ring). Aqui ela parece querer uma volta à solidão feminina, que evocou em O estranho que nós amamos e no início de sua carreira, mais destacadamente Maria Antonieta. Difícil imaginar que ela não se sai bem, com cenas lentas, um roteiro até certo ponto básico e atuações excepcionais de Rashida e Murray, este no seu momento mais contido desde Flores partidas. Rashida já se mostrou grande atriz ao lado de Andy Semberg em Celeste e Jesse para sempre, um filme delicado sobre o divórcio conturbado de dois jovens, e aqui está especialmente bem, enquanto Wayans, como seu marido, foge ao padrão das comédias pastelão que faz com seu irmão, a exemplo de As branquelas, ou os dois primeiros Todo mundo em pânico, para desenhar uma figura em relação à qual o espectador fica indefinido. É exatamente na falta de definição desses personagens que se baseia Sofia para mostrar se trabalho talvez mais intimista desde Encontros e desencontros, um retrato decisivamente elaborado sobre o casamento e seus efeitos na vida de cada um.

On the rocks, EUA, 2020 Diretor: Sofia Coppola Elenco: Bill Murray, Rashida Jones, Marlon Wayans Roteiro: Sofia Coppola Fotografia: Philippe Le Sourd Trilha Sonora: Phoenix Produção: Sofia Coppola, Youree Henley Duração: 96 min. Estúdio: American Zoetrope Distribuidora: A24 e Apple TV+

Os 7 de Chicago (2020)

Por André Dick

Aaron Sorkin ficou mais conhecido como roteirista de Questão de honra nos anos 90 e de dois ótimos projetos sobre competição, na indústria da informática, em A rede social e Steve Jobs, e do mundo esportivo, em O homem que mudou o jogo, além da própria política, na série de TV The west wing. Criador de diálogos ágeis e, apesar de expositivos, eficazes, ele estreou há alguns anos na direção com A grande jogada, no qual Jessica Chastain desempenhava o papel de uma líder de apostas. Ela e Idris Elba conseguiam sustentar uma narrativa recheada de subtramas e muitos personagens.
Agora, com Os 7 de Chicago, Sorkin volta suas baterias para a cena política, mais exatamente os atos antiguerra ocorridos em Chicago em agosto de 1968 durante a Convenção Nacional Democrata.  Ele tenta se restringir, no entanto, ao julgamento de algumas personalidades envolvidas neste acontecimento

Tom Hayden (Eddie Redmayne) e Rennie Davis (Alex Sharp), integrantes da tudents for a Democratic Society (SDS); David Dellinger (John Carroll Lynch); John Froines (Danny Flaherty) e Lee Weiner (Noah Robbins), que não parecem saber exatamente o que fazem envolvidos no processo; Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen) e Jerry Rubin (Jeremy Strong), membros do Partido Internacional da Juventude (Yippies); e oo líder dos Panteras Negras Bobby Seale (Yahya Abdul-Mateen II)
Julgados por Julius Hoffman (Frank Langella), um homem cujas intenções não estão muito claras, Sorkin desenha a situação como fez em Questão de  honra: o dentro e fora do tribunal se coordenam de modo autêntica e sinceramente atraente, com os personagens nunca chamando atenção para si mesmos e sim para a trama.

Quando as figuras a serem julgadas chegam ao tribunal, já sabemos que o acusador será Richard Schulz, que começa o filme se reunindo com o novo Procurador-Geral John Mitchell (John Doman ), nomeado por Richard Nixon, ao lado de Thomas Foran (JC MacKenzie). Gorodon-Levitt é um ator propício para este tipo de embate, com sua tranquilidade e descompromisso, mas aqui ele funciona menos do que poderia, pelo parco roteiro que recebe. Mais eficiente é Mark Rylance como William Kunstler, o que faz a defesa dos sete acusados, mas se nega a defender Seale, que não pode ser representado pelo advogado que quer como gostaria. Rylance tem aqui uma atuação que seria merecedora de um Oscar, ao contrário daquela pelo qual o recebeu, em Ponte dos espiões
Com ambientação de época notável e alguns registros misturados com cenas documentadas (ou seria um efeito de JFK, de Oliver Stone?), Os 7 de Chicago vai se embrenhando na vida dessas figuras. A principal talvez seja a de Abbie Hoffmann, feito com rara eficácia por Sacha Baron Cohen, em sua melhor participação num filme desde A invenção de Hugo Cabret. No papel de um homem com ideais revolucionários, ele não sucumbe demais ao romantismo de suas reflexões, nem adere e a uma postura autocomplacente. Ele tem certo embate com :Tom, feito com talento por Eddie Redmayne. Alguns personagens são mais assessórios da trama de Sorkin, que vai entre idas e vindas nos mesmos moldes de A rede social.

Mas o filme, de qualquer modo, não parece ser tão profundo quanto o seu material de fundo subentende: ele se dispersa em alguns pontos básicos, não desenvolve outros, nem cria uma tensão necessária para que o terceiro ato se mostre impactante o suficiente. Sorkin ainda tateia uma linguagem como diretor. Ainda assim, ele nunca torna os personagens excessivamente facilitados para o paladar do espectador, como fez Spielberg em seu The Post (e o qual seria o diretor de Os 7 de Chicago) que reúne, de certo modo, uma trama política parecida com esta na sua tentativa de mesclar cinema e política. É muito difícil traçar paralelos entre épocas diferentes, embora o filme force isso, como The Post, pois cada período da história tem suas próprias delimitações e desejos, mesmo que as ideias pareçam semelhantes. Nesse sentido, Os 7 de Chicago não é justamente o lugar mais adequado para se ter uma referência do que ocorre hoje em dia. O mundo se transforma em cada atitude, mas elas não são necessariamente iguais. Algumas atitudes e o final são tão inautênticos que fica difícil avaliar onde começa a cinematografia e onde acaba a exposição dos diálogos fascinantes de Sorkin, É quando, enfim, o discurso se estabelece sobre a pretensão do filme e quando Sorkin parece querer convencer o espectador a adotar uma determinada compreensão. Quando foge disso, é cinema de alta qualidade, com atuações que conseguem fazer a trama funcionar de modo exemplar.

The trial of the Chicago 7, EUA, 2020 Diretor: Aaron Sorkin Roteiro: Aaron Sorkin Elenco: Mark Rylance, Eddie Redmayne,  Yahya Abdul-Mateen II, Sacha Baron Cohen, Daniel Flaherty, Joseph Gordon-Levitt, Michael Keaton, Frank Langella, John Carroll Lynch, Noah Robbins, Alex Sharp, Jeremy Strong Fotografia: Phedon Papamichael Trilha Sonora: Daniel Pemberton Produção: Stuart M. Besser, Matt Jackson, Marc Platt, Tyler Thompson Duração: 130 min. Estúdio: Paramount Pictures,  DreamWorks Pictures, Cross Creek Pictures, Marc Platt Productions Distribuidora: Netflix

A visita (2015)

Por André Dick

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Depois de ser muito criticado por A dama na água, O último mestre do ar e Antes da terra, M. Night Shyamalan voltou ao gênero em que se consagrou, com A visita. Enquanto peças como Sinais e Corpo fechado são surpreendentemente valorizadas, Shyamalan parece ter mais acerto em obras consideradas menores, como A vila e Fim dos tempos. Este A visita é uma obra, digamos, menor, feito em estilo found footage.
Levando em conta que não aprecio muitos exemplares de found footage, A visita mostra como o diretor tem talento em filmar, pois, com exceção de poucos momentos, não percebemos que se trata de um filme deste estilo. É uma fotografia, a meu ver, belíssima – assinada por Mayse Alberti (que remete sobretudo à de O iluminado).
Shyamalan acompanha a visita de um casal de irmãos,  Rebecca (Olivia DeJonge) e Tyler (Ed Oxenbould) aos avós, John (Peter McRobbie) e Dora (Deanna Dunagan), enquanto a mãe, Paula (Kathryn Hahn),  partirá com seu namorado para uma viagem de cruzeiro. Sua mãe fugiu de casa cedo e nunca entrou em contato depois com seus pais; dar espaço para que seus filhos possam conhecer os avós parece um pedido de reconciliação. Recebido na estação pelos avós, Rebecca e Tyler partem logo para uma casa distanciada de tudo. Os irmãos vivem filmando todas as situações e pretendem fazer um documentário sobre os avôs, tentando solucionar dívidas sentimentais da família.

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O que encontram no lugar é, a princípio, afeto, acompanhado de algumas ordens, como a de não poderem sair do quarto depois das 9h30 da noite, pois os avós já estarão descansando. A questão é que tanto Rebecca quanto Tyler não estão dispostos a seguir as regras e logo estão visitando lugares que não deveriam. A curiosidade sempre foi um dos conceitos da obra de Shyamalan, assim como a de crianças envolvidas com perigos (basta vermos O sexto sentido e Sinais). Ao mesmo tempo, Shyamalan visualiza sempre a criança como alguém solitário, a exemplo de em O último mestre do ar e Antes da terra, e em A visita não é diferente: por que essas crianças foram deixadas pela mãe a irem para um lugar desconhecido, mesmo que próximo, já que a mãe não os vê seus pais há anos? Como pode ter a confiança de que cuidarão de seus filhos? São questões que não prejudicam a narrativa pelo talento em direcionar tudo a pequenas reviravoltas e surpresas capazes de atrair mesmo o espectador mais desatento.  A atuação de Kathryn Hahn contribui para essa sensação de descompromisso diante do surpreendente, porém são os passeios pela casa e pelos arredores que se assemelham a uma fábula de terror moderno. O comportamento dos irmãos é perfeitamente adequado dentro de cada compasso exigido pela narrativa.

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Nada é muito explicado e há buracos no roteiro, mas A visita fornece um clima interessante de suspense e o casal de irmãos é interpretado por bons atores, além de se fazer bom uso da metalinguagem e referências bem-humoradas a outros filmes do gênero. Especialmente Oxelboud, revelado em Alexandre e o dia terrível, horrível, espantoso e horroroso, é um ator muito convincente. Também é surpreendente a atuação do casal de idosos e a atmosfera que Shyamalan vai criando. Em certo momento, é como se fosse uma fábula às avessas, no qual o final não necessariamente pode ser uma revelação singela e redentora para os personagens. Isso já transparecia no subestimado A vila e ganhava contornos inequívocos em A dama na água e Fim dos tempos. Pode-se entender que é um filme que exige simpatia pelo modo como foi filmado, mas Shyamalan é um dos poucos cineastas talentosos em extrair medo de lugares-comuns, de simples gestos ou silêncios dos personagens.
A maneira como enquadra os personagens também dá espaço para um suspense que acaba por contaminar o espectador, além de seu talento em dar cores aos ambientes e aos figurinos (o casaco verde do menino, as luzes dos abajures). Apenas se lamenta que o final seja pouco elaborado, certamente o mais fraco da carreira de Shyamalan: a narrativa merecia mais. De qualquer modo, a influência de Alfred Hitchcock e de O iluminado, de Kubrick, marcam presença durante toda a narrativa, fazendo com que o pano de fundo sempre deixe espaço para a dúvida do que está acontecendo. São aprimoradas algumas técnicas exibidas em Fim dos tempos, na composição das imagens, por vezes dispersas, por vezes simétricas, ocasionando um estranho conflito dentro do mesmo enquadramento.

The visit, EUA, 2015 Diretor: M. Night Shyamalan Elenco: Olivia DeJonge, Ed Oxenbould, Deanna Dunagan, Peter McRobbie, Kathryn Hahn Roteiro: M. Night Shyamalan Fotografia: Maryse Alberti Produção: M. Night Shyamalan, Jason Blum e Marc Bienstock Duração: 94 min. Estúdio: Blinding Edge Pictures, Blumhouse Productions Distribuidora: Universal Pictures

O diabo de cada dia (2020)

Por André Dick

Com direção de Antonio Campos, que nos anos 2000 fez Afterschool, uma referência do cinema indie. O diabo de cada dia é baseado num romance de Donald Ray Pollock. É ele mesmo que narra a história do filme, com uma dicção calma e ágil, que acaba oferecendo o tom da história contada. O início mostra a volta o fuzileiro Willard Russell (Bill Skarsgård,, egresso da Segunda Guerra Mundial. Ele chega a um café da cidade de Mean, Ohio, onde conhece e se apaixona por uma atendente, Charlotte (Haley Bennett). Depois ele volta para casa em Coal Creek, West Virginia, a fim de encontrar sua mãe, Emma (Kristin Griffith). Willard conta da paixão pela atendente, mas ela quer que ele conheça Helen Hatton (Mia Wasikowska), uma jovem religiosa.
Ele vai vai a uma igreja da igreja com as duas, onde conhece Roy Laferty (Harry Melling), interessado em espantar os fiéis da igreja com aracnídeos, e acaba se casando com Charlotte, com quem tem um filho, Arvin (na vida adulta Tom Holland). O casal decide morar em Knockemstiff, Ohio, sempre escondendo algo muito estranho por trás do comportamento errante de seus habitantes, além de o xerife estar sempre pensando em fazer campanha ao invés de atender os moradores problemáticos, certamente porque imagina o quanto vai trazer a ele de preocupações.

Arvin cresce com uma menina, Lenora (Eliza Scanlen), na casa da avó e do tio, e tem de enfrentar alunos os valentões do colégio que perseguem sua irmã de criação, além de ir à igreja  onde há um novo reverendo, Preston Teagardin (Robert Pattinson).
O diabo de cada dia é um filme que lembra muito peças dos anos 90, com um enredo mais clássico, estruturalmente mais quadrado, mas ainda assim, por causa da edição e do elenco, ele se sai melhor do que outros exemplares. Há um cuidado genuíno com a ambientação, a fotografia e a narrativa, apesar das excessivas coincidências, acaba se mostrando interessante, mesmo com toda sua exposição, certamente indicando que, tirando as conversas sobre a influência da religião, vista como opressiva, talvez não restassem mais do que vinte minutos. Os personagens estão sempre pagando alguma espécie de pecado, sem saberem o motivo, procurando abreviar o caminho para um Paraíso imaginário, e ainda assim almejado por todos. Ainda temos a presença de um casal, Carl (Jason Clarke) e Sandy (Riley Keough), que parece antecipar aquele de Assassinos por natureza, de Oliver Stone.

Se Holland mostra mais uma vez seu talento, agora expandindo seu papel de Homem-Aranha para a de um jovem com pesadelos diários, Pattinson tem um papel arriscado para seu atual estágio na carreira e ele se sai muito bem, com algumas sequências em que deixa um sotaque predominar. Outros do elenco, como Scanlen, Melling e Clarke, são suficientemente bons, fazendo o roteiro mostrar seus melhores momentos. A fotografia  de Lol Crawley tem elementos de Terrence Malick, a imagem dos personagens olhando para as árvores que parecem encostar o céu. Há muito estilo sobre substância, e o ciclo da vida aqui dialoga com O lugar onde tudo termina, no qual os personagens vão se conectando indiretamente até que o núcleo reverta numa grande expansão para a história, mas também como uma espécie de purgatório para os pecados da humanidade.
Em determinado momento da metade do filme, Campos parece evitar expandir alguns temas e titubeia, mas se recupera num terceiro ato que se desenrola com um estilo climático e leva os personagens a uma confrontação também diante de tudo que fizeram, até então, desprezando o personagem promissor do xerife, Lee Bodecker (Sebastian Stan). Os temas da primeira parte vão ecoando ao longo da obra, e os requintes e violência se voltam tanto de uns personagens em relação aos outros quanto destes em relação à expectativa que possuem (ou não) da vida. Campos enfatiza o impacto de uma elevação espiritual por meio da violência, para combater a violência que ele julga mais perniciosa e combatente dos elementos positivos do ser humano. A figura de autoridade, seja na igreja, seja na polícia, é questionada constantemente por Campos em discursos que beiram o extremo posto da discrição, no entanto isso não concede à trama uma segunda camada superficial ou notavelmente brusca. Ele se choca com o consciente dos personagens, fazendo-os progredir em direção a uma espécie de vazio e uma retomada sempre dos mesmos caminhos: a guerra espera cada ser humano que ousa interromper esse ciclo de culpa e falta de compaixão.

The devil all the time, EUA, 2020 Diretor: Antonio Campos Elenco: Tom Holland, Bill Skarsgård, Riley Keough, Jason Clarke, Sebastian Stan, Haley Bennett, Eliza Scanlen, Mia Wasikowska, Robert Pattinson Roteiro: Antonio Campos, Paulo Campos Fotografia: Lol Crawley Trilha Sonora: Danny Bensi e Saunder Jurriaans Produção: Jake Gyllenhaal, Riva Marker, Randall Poster, Max Born Duração: 138 min. Estúdio: Nine Stories Productions, Bronx Moving ompany Distribuidora: Netflix

 

 

Enola Holmes (2020)

Por André Dick

Alguns filmes se sustentam pelo talento de seu elenco ou pelos valores técnicos. Quando essas duas peças se reúnem normalmente assessoradas por um roteiro interessante, o resultado pode se aproximar de um acerto. Ebnola Holmes traz Millie Bobby Brown como uma das produtoras e atriz principal, depois do seu grande sucesso como Eleven em Stranger things. Antes seu único papel de destaque no cinema era em Godzilla II – Rei dos monstros; agora ela parece disposta a empregar seu carisma em papéis diferentes. Baseado em The Enola Holmes Mysteries: The Case of the Missing Marquess, de Nancy Springer, a história começa mostrando a relação de Enola com sua mãe Eudoria (Helena Bonham Carter). Ela é irmã do detetive mais conhecido da Inglaterra, Sherlock (Henry Cavill), e tem em seu irmão Mycroft (Sam Claflin) uma possibilidade de mudar de vida quando sua mãe desparece, apesar de ter mais a ajuda da governanta Lane (Claire Rushbrook). Mas, diante dos acontecimentos e da mania de Mycroft em querer vê-la longe, ela começa a procurar uma saída para seus problemas, fugindo de casa num trem, onde conhece Tewkesbury (Louis Patridge). Depois de uma perseguição brusca, eles acabam viajando juntos até Londres, onde se saparam. Mal ela sabe que ele está sendo visado por um criminoso, Linthom (Burn Gorman).

Mas Enola quer reencontrar principalmente sua mãe enquanto seus irmãos não parecem se importar muito com isso. Enola Holmes tem o seu melhor na presença de Bobby Brown, uma atriz que adquiriu uma versatilidade ao longo das temporadas em Stranger things. Ela encarna de maneira empática essa personagem, falando diretamente com a câmera para provocar certa interação com o telespectador e provocar humor, e o diretor, Harry Bradbeer, de Fleabag, consegue ser eficiente ao conduzir tudo sob seu olhar. Bobby Brown ofusca Sam Claflin, muito bem como seu irmão ranzinza, e Henry Cavill, certamente o Sherlock mais discreto de todos, em comparação sobretudo com os anteriores mais recentes, de Robert Downey Jr. e Benedict Cumberbatch, quase tímido em sua maneira de investigar ou segurar livros. Enola Holmes, apesar de subutilizar Helena Bonham Carter como a mãe da família Holmes, é uma mescla entre história simples (às vezes até excessivamente, principalmente em se tratando de envolver detetives) e bem feita, no sentido técnico. O design de produção, os figurinos e a fotografia são peças da engrenagem que funcionam em todos os momentos, e, apesar dos custos modestos de produção, nunca se sentem superficiais. É um conjunto muito bem montado e que nada fica a dever tecnicamente para os Sherlock Holmes de Guy Ritchie. Os campos esverdedeados, as grandes mansões e castelos, as ruas cheias de carroças de Londres são captados com rara eficiência pela fotografia de Giles Nuttgens.

O diretor acerta em nunca expandir demais os núcleos, deixando tudo levemente livre para que os personagens não se sintam muito pressionados pelos acontecimentos. É bem verdade que isso acaba apagando um pouco a atuação de Cavill e torna a veia cômica de Bobby Brown solitária, mas Louis Partridge, como seu interesse, é especialmente eficiente, ao tornar a personagem de Enola mais humana. É Bobby Brown que não permite que se trate de uma espécie de figura excessivamente inteligente ou convencida de técnicas que apenas seu irmão teria. Ela torna a personagem quase desprovida de convencimento,  o que colabora para que a trama flua, e em alguns momentos é especialmente engraçada, como no momento em que se vê numa instituição rigorosa liderada por Miss Harrison (Fiona Shaw).
Os blocos da trama se movem também com uma edição muito ágil, com deslocamento de lugares sem afetar a compreensão do espectador. Os personagens também não adquirem muitas nuances capazes de deixá-los excessivamente herméticos e, nesse sentido, tudo se assemelha bastante a um conto de mistério sob uma ótica infantojuvenil um acerto da adaptação de Thorne. Não há muitos enigmas, nem pistas a serem seguidas: tudo é mais ou menos costurado para se chegar à finalidade desejada. Neste sentido, o filme de Bradbeer é um dos mais simpáticos e despretensiosos do ano.

Enola Holmes, EUA, 2020 Diretor: Harry Bradbeer Elenco: Millie Bobby Brown, Sam Claflin, Henry Cavill, Helena Bonham Carter, Louis Partridge, Burn Gorman Roteiro: Jack Thorne Fotografia: Giles Nuttgens Trilha Sonora: Daniel Pemberton Produção: Mary Parent, Alex Garcia, Ali Mendes, Millie Bobby Brown, Paige Brown Duração: 123 min. Estúdio: Legendary Pictures, PCMA Productions Distribuidora: Netflix