O diabo de cada dia (2020)

Por André Dick

Com direção de Antonio Campos, que nos anos 2000 fez Afterschool, uma referência do cinema indie. O diabo de cada dia é baseado num romance de Donald Ray Pollock. É ele mesmo que narra a história do filme, com uma dicção calma e ágil, que acaba oferecendo o tom da história contada. O início mostra a volta o fuzileiro Willard Russell (Bill Skarsgård,, egresso da Segunda Guerra Mundial. Ele chega a um café da cidade de Mean, Ohio, onde conhece e se apaixona por uma atendente, Charlotte (Haley Bennett). Depois ele volta para casa em Coal Creek, West Virginia, a fim de encontrar sua mãe, Emma (Kristin Griffith). Willard conta da paixão pela atendente, mas ela quer que ele conheça Helen Hatton (Mia Wasikowska), uma jovem religiosa.
Ele vai vai a uma igreja da igreja com as duas, onde conhece Roy Laferty (Harry Melling), interessado em espantar os fiéis da igreja com aracnídeos, e acaba se casando com Charlotte, com quem tem um filho, Arvin (na vida adulta Tom Holland). O casal decide morar em Knockemstiff, Ohio, sempre escondendo algo muito estranho por trás do comportamento errante de seus habitantes, além de o xerife estar sempre pensando em fazer campanha ao invés de atender os moradores problemáticos, certamente porque imagina o quanto vai trazer a ele de preocupações.

Arvin cresce com uma menina, Lenora (Eliza Scanlen), na casa da avó e do tio, e tem de enfrentar alunos os valentões do colégio que perseguem sua irmã de criação, além de ir à igreja  onde há um novo reverendo, Preston Teagardin (Robert Pattinson).
O diabo de cada dia é um filme que lembra muito peças dos anos 90, com um enredo mais clássico, estruturalmente mais quadrado, mas ainda assim, por causa da edição e do elenco, ele se sai melhor do que outros exemplares. Há um cuidado genuíno com a ambientação, a fotografia e a narrativa, apesar das excessivas coincidências, acaba se mostrando interessante, mesmo com toda sua exposição, certamente indicando que, tirando as conversas sobre a influência da religião, vista como opressiva, talvez não restassem mais do que vinte minutos. Os personagens estão sempre pagando alguma espécie de pecado, sem saberem o motivo, procurando abreviar o caminho para um Paraíso imaginário, e ainda assim almejado por todos. Ainda temos a presença de um casal, Carl (Jason Clarke) e Sandy (Riley Keough), que parece antecipar aquele de Assassinos por natureza, de Oliver Stone.

Se Holland mostra mais uma vez seu talento, agora expandindo seu papel de Homem-Aranha para a de um jovem com pesadelos diários, Pattinson tem um papel arriscado para seu atual estágio na carreira e ele se sai muito bem, com algumas sequências em que deixa um sotaque predominar. Outros do elenco, como Scanlen, Melling e Clarke, são suficientemente bons, fazendo o roteiro mostrar seus melhores momentos. A fotografia  de Lol Crawley tem elementos de Terrence Malick, a imagem dos personagens olhando para as árvores que parecem encostar o céu. Há muito estilo sobre substância, e o ciclo da vida aqui dialoga com O lugar onde tudo termina, no qual os personagens vão se conectando indiretamente até que o núcleo reverta numa grande expansão para a história, mas também como uma espécie de purgatório para os pecados da humanidade.
Em determinado momento da metade do filme, Campos parece evitar expandir alguns temas e titubeia, mas se recupera num terceiro ato que se desenrola com um estilo climático e leva os personagens a uma confrontação também diante de tudo que fizeram, até então, desprezando o personagem promissor do xerife, Lee Bodecker (Sebastian Stan). Os temas da primeira parte vão ecoando ao longo da obra, e os requintes e violência se voltam tanto de uns personagens em relação aos outros quanto destes em relação à expectativa que possuem (ou não) da vida. Campos enfatiza o impacto de uma elevação espiritual por meio da violência, para combater a violência que ele julga mais perniciosa e combatente dos elementos positivos do ser humano. A figura de autoridade, seja na igreja, seja na polícia, é questionada constantemente por Campos em discursos que beiram o extremo posto da discrição, no entanto isso não concede à trama uma segunda camada superficial ou notavelmente brusca. Ele se choca com o consciente dos personagens, fazendo-os progredir em direção a uma espécie de vazio e uma retomada sempre dos mesmos caminhos: a guerra espera cada ser humano que ousa interromper esse ciclo de culpa e falta de compaixão.

The devil all the time, EUA, 2020 Diretor: Antonio Campos Elenco: Tom Holland, Bill Skarsgård, Riley Keough, Jason Clarke, Sebastian Stan, Haley Bennett, Eliza Scanlen, Mia Wasikowska, Robert Pattinson Roteiro: Antonio Campos, Paulo Campos Fotografia: Lol Crawley Trilha Sonora: Danny Bensi e Saunder Jurriaans Produção: Jake Gyllenhaal, Riva Marker, Randall Poster, Max Born Duração: 138 min. Estúdio: Nine Stories Productions, Bronx Moving ompany Distribuidora: Netflix

 

 

Madame Bovary (2015)

Por André Dick

Madame Bovary

As adaptações para o cinema de clássicos literários costumam suscitar alguns críticos e espectadores que indicam as mesmas características: “não captou a prosa”; “longe da densidade literária”; “personagens vazios, sem o impacto do livro”. Ainda é muito indelicado considerar uma adaptação de um clássico superior ou equivalente ao material original; mais do que uma indelicadeza, passa a ser um ponto contestável de todos os modos. É também difícil exigir originalidade da cineasta Sophie Barthes: Madame Bovary, de Gustave Flaubert, publicado em 1856, é o ponto de partida da maioria das histórias em que uma mulher, infeliz no casamento, decide buscar um verdadeiro amor, seja por meio de promessas românticas ou simplesmente porque imaginava que sua vida seria de outro modo. Nesse sentido, Madame Bovary chega a ser previsível, e normalmente se confunde sua temática com o resultado, assim como outro referencial, Anna Karenina, cuja adaptação de Joe Wright foi acusada de desvirtuar o romance original quando na verdade o enriqueceu com uma teatralidade realmente de impacto. E, como Anna Karenina, Madame Bovary já teve outras adaptações conhecidas, como aquela com Isabelle Huppert em 1991, dirigida por Claude Chabrol. Talvez pela má recepção crítica que o filme de Barthes não tenha chegado aos cinemas brasileiros, saindo diretamente no mercado de vídeo – o que se lamenta especialmente pela peça dramática em que se constitui, em meio a uma paisagem de obras de comédia e terror sem correspondência com a qualidade.

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Nesta nova adaptação, temos a atuação central de Mia Wasikowska, atriz que cresceu muito em termos dramáticos depois do decepcionante Alice no país das maravilhas. Ela fez, nos últimos anos, personagens também baseados em romances, como Jane Eyre e O duplo, além de Segredos de sangue (apesar de falho, já mostra uma tentativa de ela mostrar outras características) e Mapas para as estrelas. Como Emma Bovary, que se casa com um médico de um vilarejo, Charles Bovary (Henry Lloyd-Hughes), ela definitivamente entrega um papel sutil. Devota ao mundo religioso num convento logo no início, ela vê no casamento uma maneira de escapar a uma vida no meio rural, onde se veria atrelada à família para sempre. Nesse movimento, ela capta o livro de Flaubert em sua essência: estamos diante de uma mulher que pretende se emancipar do convencionalismo que se espera dela à época em que vive. O marido, sendo um médico e morando em e Yonville, representaria um ponto fora da curva dentro de seu projeto de vida, alguém com quem pode dividir experiências novas. Aos poucos, ela vai percebendo que isso não se mostra tão certo. Em meio a um contato com a empregada, ela passa por dias olhando o vazio pela janela.

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Ela vai conhecendo a comunidade de Yonville: Rhys Ifans é Monsieur Lheureux, que tenta lhe vender vestidos e vai empilhado dívidas em sua conta; Ezra Miller é Leon Dupuis, que se apaixona por ela logo no início, depois de um jantar, mas cuja paixão parece um pouco indefinida; Paul Giamatti se destaca como Monsieur Homais, entre o satírico e o trágico, uma especialidade do ator; e um surpreendente Logan Marshall-Green (mais conhecido como o cientista pouco simpático de Prometheus) interpreta o Marquês d’Andervilliers, capaz de envolver Bovary numa atmosfera de conquista para onde ela deseja ir. O filme não é sem falhas: ele possui um ritmo acelerado (mesmo que dê a impressão de ser lento), deixando para trás a caracterização de alguns personagens e se concentrando na solidão de Bovary em quase todos os momentos. Essa pouca caracterização não tira a beleza do filme de Barthes, sobretudo porque o elenco retribui a falta de certa consistência em termos de diálogos. Trata-se de uma adaptação com algumas liberdades, por outro lado absolutamente fiel a um sentimento de época. Reduzir a narrativa a uma espécie de peça feminista também não soa de acordo: o que Flaubert mostrava, em sua época, é o quanto a expectativa feminina era colocada em segundo plano quando o homem via que ela poderia ser diferente. Bovary não busca algum ideal feminino: ela busca a liberdade de escolher, que pertence a mulheres e homens, às vezes com uma rebeldia autocentrada (que Wasikowska incorpora com consciência), e o quanto essa escolha resulta mais de um embate consigo próprio do que exatamente com a sociedade em torno, voltada sempre a restringir espaços. Talvez esteja enganado quem ache que esta Madame Bovary não consegue representar um dos personagens femininos mais importantes da literatura.

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Madame Bovary, em termos técnicos, apresenta uma ótima direção de arte e uma fotografia delicada de Andrij Parekh, que parece se basear em Os duelistas, Barry Lindon, Tess, A árvore dos tamancos e nos filmes do português Manoel de Oliveira (como O gebo e a sombra), mas especificamente em Sven Nykvist. O figurino de Christian Gasc e Valérie Ranchoux também é grande e desempenha um papel ainda mais importante: é por meio dele que Bovary imagina renovar sua vida, sempre igual. Sophie trata a personagem como alguém que busca sempre a paixão, no entanto, esta não faz parte de sua época: todos os homens agem friamente, como o Marquês numa caça rodeado por cães. Nesse sentido, a beleza que Bovary vê no espaço bucólico de Yonville parece encobrir o que realmente se passa e, quando passa por algumas senhoras que trabalham no campo e percebe que a olham de costas, sabe que suas escolhas dependem ainda do que é dito. Tudo é projeto e esquemático e, ao tentar romper esse padrão, Bovary se vê em meio a uma sensação de luto. O que permanece, em termos dramáticos, é realmente a presença de Wasikowska: sua Bovary tem toda a instabilidade imaginada por Flaubert e uma sensação permanente de deslocamento. Por algumas horas, ela é realmente Madame Bovary.

Madame Bovary, EUA/BEL/ALE, 2015 Diretora: Sophie Barthes Elenco: Mia Wasikowska, Henry Lloyd-Hughes, Paul Giamatti, Ezra Miller, Rhys Ifans, Logan Marshall-Green Roteiro: Rose Barreneche e Sophie Barthes Fotografia: Andrij Parekh Trilha Sonora: Evgueni Galperine e Sacha Galperine Producão: Sophie Barthes, Felipe Marino, Jaime Mateus-Tique, Joe Neurauter Duração: 118 min. Distribuidora: 20th Century Fox Company Russia, Warner Bros., Noori Pictures Estúdio: Aden Film / Aleph Motion Pictures / Left Field Ventures / Occupant Entertainment / Radiant Films International

Cotação 4 estrelas

 

Alice através do espelho (2016)

Por André Dick

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Os estúdios Walt Disney tiveram um primeiro semestre bastante lucrativo, com Mogli – O menino lobo, Zootopia e Capitão América – Guerra civil. Parece que o filme a ficar de fora desse grupo de sucesso será exatamente aquele que dá continuação a um dos maiores títulos da companhia desta década, Alice no país das maravilhas, de Tim Burton, que iniciava como uma jornada a um reino de encantamento e em busca da passagem ao universo adulto. Em Alice através do espelho, o diretor James Bobin (responsável pelos dois Muppets mais recentes) parece utilizar a mesma fórmula e o mesmo requinte visual de Burton. No entanto, desde o primeiro movimento, pode-se perceber algumas diferenças. Não apenas na bilheteria, que, pelo início, será muito inferior, acompanhada pelas acusações feitas a Johnny Depp por sua ex-esposa Amber Heard depois de uma separação tumultuada, mas pelo enfoque.
No primeiro Alice no país das maravilhas, a personagem central, depois de perseguir um coelho, acaba caindo num universo paralelo. Neste, ela inicia já como capitã de um navio, em meio a uma tormenta, fazendo o que sonhava. Depois de voltar para casa e ver que sua mãe, Helen Kingsleigh (Lindsay Duncan), está para vender o barco – a grande herança de seu pai – ao ex-noivo, Hamish (Leo Bill), ela ingressa, através de um espelho, seguindo uma larva, Absolem (Alan Rickman, a quem o filme é emotivamente dedicado), justamente de volta no País das Maravilhas.

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Lá, ela reencontra o Chapeleiro Maluco (Depp), a Rainha Branca (Anne Hathaway, novamente com um batom escuro contrastando com a pele pálida e a única visivelmente sem um papel definido) e os dois irmãos, Tweedledum e Tweedledee (Matt Lucas). Os cenários têm uma densidade pop muito forte como cores berrantes, mas nada que substitua um elemento soturno, que está no fundo das paisagens e dos personagens, como no primeiro. O Chapeleiro Maluco, nesse caso, é um Willy Wonka mais contido, melancólico, desta vez numa das atuações mais concentradas de Depp. Alice recebe um pedido dele: que encontre sua família desaparecida, em que o pai, Zanik Hightopp (Rhys Ifans), também faz chapéus. Para isso, Alice deve chegar ao Tempo (Sacha Baron Cohen), que tem relação com a Rainha Vermelha (Helena Bonham Carter), aqui chamada Iracebeth, e parece controlar todos os relógios do mundo. No entanto, deve-se dizer que o que Alice mais procura é sua família, principalmente o pai já morto. Ao se refletir no desejo do Chapeleiro, ela passa a viajar pelo tempo.
Quando vemos as cenas de ação no primeiro, Tim Burton está na verdade querendo focalizar mais o aspecto dramático de seus personagens, ou seja, as relações de poder que surgem entre eles, e nesse sentido tornar uma fábula a princípio ingênua numa narrativa em forma de pesadelo. Essas características também o acompanhavam, de certo modo, em seus filmes mais soturnos, como a série Batman, Edward, mãos de tesoura e A lenda do cavaleiro sem cabeça, mas sempre com a presença do humor, capaz de atenuar alguma gravidade pretendida, sem abrir espaço mesmo para qualquer graça remetendo a jogos de palavras, Jaguadartes ou Humptys Dumptys. Neste segundo, o diretor Bobin está mais interessado numa narrativa em ritmo contínuo, sem quebras, e não trabalha tanto com o clima de pesadelo, embora o humor continue sendo uma parcela mal resolvida, mesmo com a presença de Baron Cohen. O diretor tem um senso considerável de manipulação de elementos fantásticos, com uma característica específica de comprimir as cenas em pequenos núcleos que vão se correspondendo uns com os outros.

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A questão é que Alice através do espelho esconde o que era mal resolvido no filme de Burton. Bobin oferece uma agilidade emotiva ao personagem central, também em razão de Mia Wasikowska ter crescido como atriz. Ela é uma especialista em viver personagens de época, a exemplo de Jane Eyre e Madame Bovary, assim como se provou excelente atriz de dramas contemporâneos e futuristas, como O duplo e Mapas para as estrelas, e mesmo num suspense falho, Segredos de sangue: aqui ela compõe uma Alice com a qual é possível se identificar. Há uma ressonância em sua atuação que consegue se equilibrar com o número de efeitos especiais e a história que faz referências a A invenção de Hugo Cabret, O Hobbit – A batalha dos cinco exércitos e De volta para o futuro 2. De modo geral, a história original de Lewis Carroll também dá oportunidade a Bobin fazer cenas que lembram um clássico infantojuvenil dos anos 80, A história sem fim, principalmente quando lida com as engrenagens do tempo e como se pode pará-lo, a fim de modificar as suas consequências. Trata-se de um elemento decisivo para compreender esse universo de Alice: não por acaso, ela, em determinado momento, se vê numa espécie de sanatório – como a personagem de Sombras da noite e parecendo estar em A colina escarlate – e perdendo seu sonho.
O filme trata de sonhos não realizados e de um passado que não pode ser realizado, mas, principalmente, da motivação em fazê-lo. Nessa linha, mais ainda do que o primeiro de Burton, um dos filmes mais irregulares de sua trajetória exitosa, Alice através do espelho focaliza o universo masculino como controlador, não apenas pela figura do Tempo e sim pela dos pais de Alice e do Chapeleiro: seguir a profissão paterna parece uma realização de sonhos. É este o elo principal que une os personagens principais. Do mesmo modo, é o que afasta a Rainha Vermelha de sua irmã: a aceitação dos pais.

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De maneira ampla, são temas comuns em filmes da Disney, porém existe aqui uma profusão de temas interessantes e mesclados, em razão também do roteiro de Linda Woolverton, responsável pelos de A bela e a fera O rei leão, e da montagem muito ágil de Andrew Weisblum, responsável por colaborar em O fantástico sr. Raposo e Moonrise Kingdom. E não se poderia deixar de comentar – sendo uma obra de fantasia – sobre o primor novamente dos figurinos, dos efeitos especiais e dos diálogos com obras de arte: os seguranças da Rainha Vermelha são como figuras do pintor Arcimboldo, compostos de alimentos. A máquina do tempo em que Alice viaja, chamada cronosfera, parece um globo terrestre em movimento e os anos que ela atravessa têm o formato de um mar tempestuoso, como se fosse seu próprio inconsciente projetado – e o gato Cheshire (Michael Scheen) se projeta numa das ondas. As cenas em que aparecem ponteiros de relógio gigantes e que devem ser saltados por Alice são também impressionantes, numa correspondência direta com Brazil – O filme, de Terry Gilliam. Também a imensa claraboia do sanatório lembra a cronosfera, mas apontando para um céu azul. E há robôs que assessoram o Tempo que remetem a O fantástico mundo de Oz, continuação do clássico feita nos anos 80. Como grande parte das peças de fantasia recentes igualmente contestadas, a exemplo de Peter Pan e Oz – Mágico e poderoso, Alice através do espelho se mantém muito pela nostalgia que pode ter ou não o espectador.

Alice through the looking glass, EUA, 2016 Diretor: James Bobin Elenco: Johnny Depp, Mia Wasikowska, Helena Bonham Carter, Anne Hathaway, Sacha Baron Cohen, Rhys Ifans, Matt Lucas, Lindsay Duncan, Leo Bill, Geraldine James, Andrew Scott, Richard Armitage, Ed Speleers, Alan Rickman, Timothy Spall, Paul Whitehouse, Stephen Fry, Barbara Windsor, Michael Sheen, Matt Vogel Roteiro: Linda Woolverton Fotografia: Stuart Dryburgh Trilha Sonora: Danny Elfman Duração: 112 min. Produção: Jennifer Todd, Joe Roth, Suzanne Todd, Tim Burton Distribuidora: Disney Estúdio: Estúdio Shepperton

Cotação 4 estrelas

 

A colina escarlate (2015)

Por André Dick

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O diretor mexicano Guillermo del Toro tem como uma de suas características a imaginação ligada a diferentes gêneros associados ao fantástico. Depois de O labirinto do fauno, na verdade uma fantasia com elementos reais, enfocando a Guerra Civil Espanhola, com uma violência incomum nesse gênero, ele parece, no entanto, ter sido associado ao gênero do terror e do suspense. Se há um filme dele com elementos fortes desses gêneros é Cronos, ainda dos anos 90, e um pouco de Mutação, primeira obra que filmou em Hollywood. Esta decepção original nos Estados Unidos o levou de volta para o México, para filmar sua maior realização, A espinha do diabo. Neste filme, certamente o elemento mais assustador está em seu título, pois, na verdade, trata-se de um drama com elementos de suspense focando um orfanato também durante a Guerra Civil Espanhola. Em seguida, com seu díptico Hellboy, ele conseguiu associar seu clima fantasioso a uma história de super-herói incomum, e ainda ajudou no roteiro da trilogia O hobbit (que inicialmente também dirigiria). E mesmo em Círculo de fogo, quando ele teria fugido, segundo parte da crítica, às suas origens, ele sempre esteve de acordo com elas.
Por isso, quando se analisa que Del Toro novamente foge a muitos de seus elementos em A colina escarlate, talvez possa se colocar em desconfiança o fato de que ele quer ser um artista do terror quando, na verdade, quando se aproveitou desse gênero, sempre o mesclou com outros. A colina escarlate, portanto, vem da imaginação de um dos cineastas mais originais já vindos do México.

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O interessante é como Del Toro consegue utilizar determinados cenários assustadores para, na verdade, falar dos temas que não aparecem na superfície. Em A colina escarlate, ele mostra uma jovem, Edith Cushing, que perdeu a mãe muito cedo e deseja ser escritora. Morando com o pai, Carter (Jim Beaver, excelente), ela é cortejada por Alan McMichael (Charlie Hunnam, adequado), um médico, até que chegam à sua cidade Thomas (Tom Hiddleston) e Lucille Sharpe (Jessica Chastain). Thomas pretende que invistam num projeto ao qual se dedica há anos – e vem da Europa aos Estados Unidos a fim de escapar da falência. O pai de Edith fica desconfiado quando ele passa a ter intenções de um relacionamento com ela e coloca um detetive, Holly (Burn Gorman), para investigá-lo. A relação de Thomas com a irmã é baseada em algum mistério ligado ao passado, e, quando Lucille deve ir morar com ambos na mansão Allerdale Hall, no alto de uma colina, tudo parece ficar mais nebuloso.
A composição de Del Toro para A colina escarlate não é menos notável do que o cuidado que tinha com a fotografia em A espinha do diabo e com os efeitos especiais esplendorosos de Círculo de fogo. Esta mansão tem por baixo uma barro vermelho que os Sharpe pretendem vender – e tanto pode remeter à ameaça do lugar quanto à pena da escrita e à lacradura de cartas. O filme, nesse sentido, é sobre uma escritora que não tem nenhuma vivência exatamente real para tratar de seu romance de fantasmas, quando ainda não entende exatamente o que são as pessoas que a cercam. Quando ela se depara com uma mansão em que até mesmo o transporte da água até a banheira desperta certo pânico, ou cujas portas podem ranger a noite inteira, e ainda há um vento que pode amedrontar a noita toda, Edith parece que não depende tanto da literatura pois já está inserida nela. Por isso, talvez não seja desperdício dizer que a narrativa remete a clássicos como O morro dos ventos uivantes e a autores como Lovecraft, escritor que certamente inspirou Del Toro na transição de gêneros, e Mary Shelley, de determinada literatura gótica.

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Este roteiro muito mais sugestivo do que colocado em palavras foi assinado em parceria de Del Toro com Matthew Robbins, já colaboradores em MutaçãoNão tenha medo no escuro, e de um dos próximos projetos do cineasta mexicano, Pinóquio. Robbins ganhou o prêmio de melhor roteiro em Cannes com Louca escapada, o primeiro filme oficial de Spielberg (uma vez que Encurralado foi feito para a TV), além de ter participação não creditada nos escritos de Contatos imediatos do terceiro grau, E.T., e ter dirigido dois cults na década de 80, O dragão e o feiticeiro e O milagre veio do espaço. Possivelmente seja de Robbins – é característica desses projetos – a fluência do roteiro de A colina escarlate e sua capacidade de, por meio de um desenho de produção gigantesco de Thomas E. Sanders (Drácula de Bram Stoker) e que insere o espectador no cenário retratado, além da fotografia elaboradíssima de Dan Laustsen (que havia trabalhado com o diretor em Mutação), também desenhar uma camada psicológica para os personagens.
Desde o início, com Lucille Sharpe interessada em casulos de mariposas, é possível entender que A colina escarlate, também pela personagem central ser jovem, está nessa mansão para que conheça a maturidade para a qual apenas a literatura não poderia transportar. É interessante, nesse sentido, como a sugestão de uma aproximação com Thomas depende sempre de alguma fantasia com alguém que pode ser o escolhido. O próprio figurino e o cabelo da personagem passam a sugerir uma determinada inocência e dependência, quando no início do filme ela se mostra independente, inclusive da aproximação de Alan. A personagem de Lucille representa certamente a ameaça que representa a iminência do relacionamento – e em determinado momento ela estende um livro que Edith nega.

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O vemelho de sangue depois da tosse pode não ser exatamente a tuberculose que levava os poetas românticos – e sim a maldade humana. Ou seja, a personagem de Edith, por causa da atuação de Mia Wasikowska – uma atriz que encadeou alguns grandes trabalhos, em O duplo, Mapas para as estrelas e Madame Bovary, depois do início hesitante em Alice no país das maravilhas –, tem uma transformação interessante ao longo da história. E a partir de determinado momento ela parece ter o mesmo dilema da personagem Jane Eyre, curiosamente também interpretada por Wasikowska numa adaptação recente.
O que se destaca, porém, é a maneira como Del Toro dispõe o lugar, com os quartos na parte de cima, a cozinha no térreo e folhas e neve que não param de adentrar nesse lugar, como se ele não pudesse segurar a natureza, assim como cada um dos personagens não pudesse esconder as suas diferentes faces. E, finalmente, há o porão enigmático, onde Edith tentará descobrir o mistério que cerca a mansão e se reproduz nos irmãos Sharpe. Esses ambientes são preenchidos principalmente pela figura de Lucille, numa atuação excepcional de Jessica Chastain, mesmo depois de um início indefinido em razão do sotaque acentuado, e Tom Hiddleston e seu talento habitual se equilibra entre as duas performances femininas com naturalidade. Afinal, o filme é sobre o embate entre duas mulheres: uma que sobrevive de um certo passado que pode ser glorioso, ligado a esta mansão, a outra uma mulher que procura a independência e a literatura como forma de subsistir em meio a um mundo em que os homens se reúnem ao redor da mesa para decidir sobre as novas invenções que devem ganhar espaço. Para Del Toro, a maioria dos homens são fantasmas que tentam sobreviver de uma tradição, e a mudança pode ser exatemente a convivência com os outros. Ele aponta isso com a culpa ligada a um passado em que a perda é, por um lado, da natureza e, por outro, pela loucura. Quando o cineasta trabalha com imagens como se fossem símbolos – Edith caminhando pela casa escura com um candelabro atrás da infância que parece ter perdido ameaçada por fantasmas, o barro vermelho querendo sair à superfície, o fantasma como uma ameaça ao longe –, A colina escarlate chega ao que mais imaginava: é resultado de um diretor que entende substancialmente da fantasia e de temores humanos que podem existir nela.

Crimson Peak, EUA, 2015 Diretor: Guillermo del Toro Elenco: Mia Wasikowska, Jessica Chastain, Tom Hiddleston, Charlie Hunnam, Jim Beaver, Burn Gorman, Leslie Hope, Doug Jones, Jonathan Hyde, Bruce Gray, Emily Coutts Roteiro: Guillermo del Toro, Matthew Robbins Fotografia: Dan Laustsen Trilha Sonora: Fernando Velázquez Produção: Callum Greene, Guillermo del Toro, Jon Jashni, Thomas Tull Duração: 119 min. Distribuidora: Universal Pictures Estúdio: Legendary Pictures

Cotação 4 estrelas e meia

 

O duplo (2013)

Por André Dick

O duplo 9A questão dos duplos no cinema, assim como na literatura, é utilizada por algumas obras, não apenas fisicamente (como víamos, ano passado, em O homem duplicado, com Jake Gyllenhaal, embora haja outras teorias para ele) como psicologicamente: o vencedor do Oscar de melhor filme deste ano apresenta Riggan Thomson, artista de Hollywood que tenta adaptar peça teatral na Broadway e ouve vozes do super-herói que havia interpretado décadas antes, Birdman. Em Cisne negro, que inspirou Birdman, uma dançarina vê surgir uma dupla personalidade a partir dos reflexos e ensaios noturnos, além de serem destacados seus conflitos com a mãe e sua colega de ensaio. É uma questão que abre para a interpretação extrema dos conflitos do sujeito, que, de algum modo, nunca parece único.
O cineasta Richard Ayoade, depois de Submarine, uma versão inglesa da adolescência com ambientação certamente amargurada, parte para a adaptação livre da obra O duplo, de Dostoiévski. Trata-se de um passo arriscado em sua trajetória, do qual poderia se sair com certa dificuldade. Primeiro porque a obra original é, sem dúvida, uma referência psicanalítica. O filme apresenta um dos melhores atores jovens, Jesse Eisenberg, no papel de Simon James, que trabalha num escritório semelhante ao de Brazil – O filme, de Terry Gilliam. É uma repartição com homens trabalhando em salas apertadas e uma constante cor amarela. Ao chegar ao trabalho, ele sempre precisa mostrar sua identificação, a fim de que possa ingressar numa espécie de sistema repetitivo. Mas, se Brazil ainda era um filme repleto de humor e nervosismo estridente, características de Gilliam, o mesmo não se pode falar de O duplo, mais próximo de uma melancolia gélida em alguns pontos. Os gracejos que Ayoade apresenta em Submarine e constituem um elemento para que o filme não cumpra todo seu potencial são bastante atenuados em razão de uma busca de Simon por sua verdadeira personalidade – ou apenas outra, dependendo do olhar. Isso não traz apenas um sentido de descoberta, mas, sobretudo, de incômodo e de explicação para suas camadas individuais.

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O personagem de Simon, ao visualizar de seu apartamento, por um telecóspio, sua vizinha do prédio em frente, vê também uma pessoa pendurada no parapeito e tudo se torna, a partir daí, tão estilizado quanto interessante, pois o espectador realmente não sabe se a narrativa se situa num plano minimante em diálogo com a realidade ou um universo à parte. Nem mesmo quando, em seu local de trabalho, Simon se interessa por uma colega de trabalho, Hannah (Mia Wasikowska), exatamente a mesma vizinha que observa do seu apartamento e que convidará para sair, o espectador se permite a achar que ele não se encontra em algum plano de idealização, uma fuga desse ambiente opressor de trabalho – que mais parece lembrar uma sala de máquinas – para um café da cidade cuja luz externa parece reservar mais uma vez um clima subterrâneo. Mais preocupante é o modo como Simon nunca é reconhecido pelos colegas de trabalho que vê todo o dia e tem na figura do gerente maníaco gerente, o Sr. Papadopoulos (Wallace Shawn, excelente), um possível apoio para seu crescimento na empresa.
A fotografia de Erik Wilson é primorosa, assim como a ambientação. Há influências de um clima noir, com referências a Janela indiscreta, Batman de Tim Burton, à literatura também de Kafka e, apesar de não sabermos em que época o filme se passa, nos sentimos tanto durante a Revolução Industrial quanto num passado futurista com toques dos anos 80 (a programação na televisão lembra claramente a MTV), assim como em meio a um clima no ar de perseguição paralela à Segunda Guerra Mundial. Ainda assim, o que mais perturba no trabalho de Ayoade é que, sem tentar ser um drama efetivamente ou uma comédia de humor trágico, O duplo mostra uma melancolia associada ao seu personagem e seu desconforto diante do mundo que o cerca muito próximo daquilo que víamos em outro filme de Aronofsky, Pi, em que um homem que vivia solitário num apartamento era perseguido por homens que viam nele a possibilidade de desvendar o universo.

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Com certa sobriedade onírica, em sua maior parte, mesmo quando tem elementos de humor, ao mesmo tempo possui uma profundidade que não havia em Submarine e um personagem central bem delineado, em razão de Eisenberg, em seu melhor papel desde A lula e a baleia ou A rede social. Mas ele não conseguiria atuar com competência sozinho: Wasikowska está em um de seus melhores momentos, mostrando a sua maturidade, que também se mostra um destaque em Mapas para as estrelas, deixando de lado sua persona de Alice no país das maravilhas. De maneira geral, O duplo surpreende por sua tentativa de não reduzir tudo a um enigma. Sim, em determinado momento Simon encontra seu duplo como um rival em seu local de trabalho – e o espectador se pergunta a partir daí o que seria verdade ou sonho. Oscilando entre esses dois espaços, a trilha sonora com influências orientais e de thrillers, assinada por Andrew Hewitt, é tão requintada quanto a abordagem de Ayoade para a questão da duplicidade. Ela lida com seu jogo de espelhos, reflexos e versões diferentes para um mesmo ponto de vista, transformando o filme num panorama psicológico amplo e uma espécie de tratado sobre a culpa de não se conseguir atender ou entender a todos, nem a si mesmo. Há elementos evidentes, nisso, também do esquecido (e excelente) Kafka, de Steven Soderbergh, em que o escritor (Jeremy Irons) ia descobrindo várias histórias relacionadas a seu local de trabalho. O ambiente de casa se torna tão estranho quanto o de trabalho, e Simon não sabe mais em quem pode se apoiar: se no que vê ou na sua paixão por Hannah, ou nas suas referências familiares, que já parecem distantes a fim de que possa alcançá-las. A atmosfera noturna de O duplo guarda, além da influência noir, a vontade permanente de se afastar do que acontecerá no dia seguinte, o local do trabalho para o qual Simon deve regressar. E, apesar de apresentar toques do Eraserhead de David Lynch, esse caminho não atrapalha o traço autoral de Ayoade neste filme que parece até modesto em suas dimensões, se não apresentasse um tema de maneira tão instigante. Nitidamente de orçamento reduzido, em que a imaginação de todos é colocada a prova, O duplo se torna, ao mesmo tempo, um outro lado do diretor ainda não mostrado: o daquele que consegue, por meio de uma história aparentemente descompromissada, procurar o mistério de entendimento que pertence a cada um, sem artifícios e ambiguidades reconhecidas de antemão.

The double, ING, 2013 Diretor: Richard Ayoade Elenco: Jesse Eisenberg, Mia Wasikowska, Wallace Shawn, Gemma Chan, James Fox, Paddy Considine Roteiro: Avi Korine, Richard Ayoade Fotografia: Erik Wilson Trilha Sonora: Andrew Hewitt Produção: Amina Dasmal, Robin C. Fox Duração: 93 min. Distribuidora: Europa Filmes Estúdio: Alcove Entertainment

Cotação 4 estrelas

Mapas para as estrelas (2014)

Por André Dick 

Mapas para as estrelas 12

Os filmes do canadense David Cronenberg, desde os anos 70, são vistos sob a análise da estranheza, com experimentos como Calafrios, ou dos anos 80, quando se tornou mais conhecido, com Scanners, Videodrome, A mosca e Gêmeos. Nos anos 90, ele teve uma incursão na literatura adaptada de Burroughs com Mistérios e paixões, assim como fez o provocativo Crash. Foi a partir do início deste século que Cronenberg foi adaptando suas estranhezas a um cenário mais próximo do cotidiano familiar, como em Marcas da violência, Senhores do crime e Um método perigoso. Este antecipou uma nova parceria do diretor, aquela com Robert Pattinson, substituindo a que resultou exitosa com Viggo Mortensen. O resultado foi Cosmópolis, uma espécie de homenagem às avessas à Bolsa de Wall Street, e a parceria é retomada em Mapas para as estrelas. Embora Pattinson aqui não seja o principal nome, trata-se de um dos filmes mais originais de Cronenberg, pois parece tratar dos costumes de Hollywood sem exatamente ser linear ou investir na estranheza evidente, e até rotulada, trazida pelo cineasta. Ou seja, a partir de determinado ponto, a obra do diretor só teria realmente qualidade se mostrasse o que mostra na maioria de seus filmes: coisas estranhas acontecendo como se fossem normais. Nesse sentido, Mapas para as estrelas pode se ressentir de seres humanos se transformando em insetos.
Talvez Cronenberg não goste de ser influenciado claramente por David Lynch, com referências a Billy Wilder, uma vez que Lynch costuma ser visto como um opositor a seu cinema. Mas, se o seu novo filme conta com um roteiro até raso se visto em um nível superficial, assinado por Bruce Wagner, Cronenberg ingressa naquilo que Lynch consegue fazer com qualidade: obter estranheza de momentos a princípio comuns. É interessante saber que Wagner fez antes o roteiro de A hora do pesadelo III – Os guerreiros dos sonhos, em que um grupo frequentava um hospital psiquiátrico para tratar de problemas com os pesadelos em que Freddy Krueger surgia. Isso porque Mapas para as estrelas, com o clima de Hollywood, guarda uma espécie de onirismo – mesmo que em alguns aspectos tenda mais ao pesadelo em si mesmo.

Mapas para as estrelas 8

Mapas para as estrelas 5

Mapas para as estrelas 6

Cada personagem apresenta um mistério a ser solucionado (ou não), de Havana Segrand, atriz quase esquecida feita por Julianne Moore, até a aspirante à atriz Agatha feita por Mia Wasikowska, passando pelo psicoterapeuta Stafford (John Cusack), sua mulher Cristina (Olivia Williams) e seu filho, astro de Hollywood, Benjie (Evan Bird). E temos também o motorista Jerome Fontana (Robert Pattinson), que pretende ser ator e roteirista. Ao chegar a Los Angeles, Agatha conhece Jerome e logo se interessa por ele, mas não consegue rivalizar com seu interesse pelo universo cinematográfico. Para ingressar em Hollywood, ela tem a ajuda de Carrie Fisher – a princesa Leia de Guerra nas estrelas fazendo ela mesma, na porção O jogador de Altman de Mapas para as estrelas – que a indica para Havana, da qual se torna amiga, até onde o limite é uma comemoração à beira da piscina. Por sua vez, Havana é cliente de Stafford, tendo de enfrentar conflitos existenciais que remetem à mãe (que regressa em imagens com a atuação da ótima Sarah Gadon), e enfrenta problemas em sua carreira como atriz. O que não acontece com Benjie, uma espécie de Macaulay Culkin dos anos 90, perseguido por jornalistas. Além das recordações de personagens ligadas ao elemento do fogo, que dialogam diretamente com a narrativa Coração selvagem, em que Lula e Sailor buscavam fugir da família, temos, em Mapas para as estrelas, uma reunião de Benjie com executivos de cinema, cuja estranheza recorda, em parte, a reunião de Justin Theroux em Cidade dos sonhos. Nessa cena rápida e a princípio descompromissada, Cronenberg confere a pressão em relação a este astro infantojuvenil, mas carregado de uma confusão por parte da mãe, Cristina. É uma pressão que Cronenberg reverte às vezes por meio do humor, embora não necessariamente tranquilo. Para o cineasta canadense, Hollywood é antes de tudo um ponto de encontro para a autopromoção, e isso existe sobretudo nas figuras de Havana e Stanfford. Tudo que pode fugir a esta autopromoção se converte em desespero e fuga ao que pode ser visto como normalidade familiar. E dentro dessa normalidade familiar há um passado nebuloso que irá ligar ainda mais as figuras de Agatha e Savana: elas são mais parecidas do que aparentam e, embora o roteiro não esclareça nem mesmo ao final, vítimas de uma mesma explicação baseada naquilo que se desconhece em suas famílias.
Enquanto Agatha e Jerome querem ser atores, Benjie parece já cansado de sua carreira, e Stafford recolhe o que sobra das relações. Todos, no entanto, têm algo em comum: eles são como clichês se movimentando em cena, assim como uma cena em que Agatha e Jerome se encontram próximos do letreiro de Hollywood. Se Jerome de Pattinson pode ser visto como uma extensão do personagem do motorista feito por Ryan Gosling em Drive – e Mapas para as estrelas, como o filme de Refn, consegue destacar os cenários de uma clara Los Angeles, pelo menos aparentemente, na excepcional fotografia do habitual colaborador de Cronenberg, Peter Suschitzky –, Agatha é uma espécie de mescla entre os personagens de Ed Harris em Marcas da violência e Rosanna Arquette em Crash: o seu corpo traz as marcas do seu passado. E mesmo a maquiagem que Jerome usa num determinado momento, apesar de lembrar um klingon, remete mais à estranheza de eXistenZ.

Mapas para as estrelas 14

Mapas para as estrelas 9

Mapas para as estrelas 7

Embora a relação de Savana com o passado de sua mãe seja a que mais marque presença ao longo da narrativa, é interessante como se coloca a presença da referência a um poema de Paul Éluard, ligado ao personagem de Benjie. Este poema, “Liberdade”, foi distribuído aos franceses na época da invasão do nazismo e serviu como compromisso pela busca da “liberdade”: é justamente a sensação que esses personagens não têm na Hollywood de David Cronenberg. Assim como aquela Hollywood de Lynch sustenta uma atriz aspirante dentro de um pesadelo tortuoso, aqui todo o significado das interpretações não esconde a falta de liberdade para desempenhar não um papel verdadeiro, mas aquele amparado justamente por uma realidade.
As atuações do filme não são menos do que excelentes, sobretudo as de Moore e Wasikowska (que já havia mostrado grande evolução em O duplo, ao lado de Jesse Eisenberg), ambas em seu melhor momento no cinema. No entanto, não se deve esquecer das presenças vitais de Cusack, Pattinson e de Evan Bird (excepcional, num papel que parece fácil). Misturando sonhos, alucinações, pretensões artísticas e o passado de famílias,  Mapas para as estrelas, mesmo que seja uma visão pouco idílica sobre Hollywood, não deixe de ser uma homenagem à cidade dos sonhos, avançando naquilo que Cronenberg anuncia em Cosmópolis: uma visão contemporânea corrosiva e cotidiana, mas não por isso comum. Esta visão é acompanhada por uma montagem bastante ágil, feita pelo habitual colaborador de Cronenberg, mas superior às que entregou em Senhores do crime e Um método perigoso, certamente ajudado pelo ritmo empregado na condução deste elenco. Com uma sequência de cenas que se conectam naturalmente, sem o esforço do espectador em retomar explicações e por isso sem excesso de camadas que poderiam estender o filme até seu limite, raramente se vê um filme recente com um elenco tão adequado à proposta do diretor, fazendo com que Mapas para as estrelas seja mais um integrante da lista de filmes que o Festival de Cannes recebeu com uma injusta frieza, apesar de ter escolhido Moore merecidamente como melhor atriz. É Moore, afinal, que consegue, não sem a colaboração direta de Mia Wasikowska, sintetizar Hollywood, assim como Naomi Watts conseguia em Cidade dos sonhos, neste acerto memorável de Cronenberg. 

Maps to the stars, CAN, 2013 Diretor: David Cronenberg Elenco: Julianne Moore, Mia Wasikowska, John Cusack, Robert Pattinson, Olivia Williams, Sarah Gadon, Evan Bird, Carrie Fisher, Jayne Heitmeyer Roteiro: Bruce Wagner Fotografia: Peter Suschitzky Trilha Sonora: Howard Shore Produção: David Cronenberg, Martin Katz Duração: 111 min. Distribuidora: eOne Films Estúdio: Prospero Pictures / Sentient Entertainment

Cotação 4 estrelas e meia