Madame Bovary (2015)

Por André Dick

Madame Bovary

As adaptações para o cinema de clássicos literários costumam suscitar alguns críticos e espectadores que indicam as mesmas características: “não captou a prosa”; “longe da densidade literária”; “personagens vazios, sem o impacto do livro”. Ainda é muito indelicado considerar uma adaptação de um clássico superior ou equivalente ao material original; mais do que uma indelicadeza, passa a ser um ponto contestável de todos os modos. É também difícil exigir originalidade da cineasta Sophie Barthes: Madame Bovary, de Gustave Flaubert, publicado em 1856, é o ponto de partida da maioria das histórias em que uma mulher, infeliz no casamento, decide buscar um verdadeiro amor, seja por meio de promessas românticas ou simplesmente porque imaginava que sua vida seria de outro modo. Nesse sentido, Madame Bovary chega a ser previsível, e normalmente se confunde sua temática com o resultado, assim como outro referencial, Anna Karenina, cuja adaptação de Joe Wright foi acusada de desvirtuar o romance original quando na verdade o enriqueceu com uma teatralidade realmente de impacto. E, como Anna Karenina, Madame Bovary já teve outras adaptações conhecidas, como aquela com Isabelle Huppert em 1991, dirigida por Claude Chabrol. Talvez pela má recepção crítica que o filme de Barthes não tenha chegado aos cinemas brasileiros, saindo diretamente no mercado de vídeo – o que se lamenta especialmente pela peça dramática em que se constitui, em meio a uma paisagem de obras de comédia e terror sem correspondência com a qualidade.

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Nesta nova adaptação, temos a atuação central de Mia Wasikowska, atriz que cresceu muito em termos dramáticos depois do decepcionante Alice no país das maravilhas. Ela fez, nos últimos anos, personagens também baseados em romances, como Jane Eyre e O duplo, além de Segredos de sangue (apesar de falho, já mostra uma tentativa de ela mostrar outras características) e Mapas para as estrelas. Como Emma Bovary, que se casa com um médico de um vilarejo, Charles Bovary (Henry Lloyd-Hughes), ela definitivamente entrega um papel sutil. Devota ao mundo religioso num convento logo no início, ela vê no casamento uma maneira de escapar a uma vida no meio rural, onde se veria atrelada à família para sempre. Nesse movimento, ela capta o livro de Flaubert em sua essência: estamos diante de uma mulher que pretende se emancipar do convencionalismo que se espera dela à época em que vive. O marido, sendo um médico e morando em e Yonville, representaria um ponto fora da curva dentro de seu projeto de vida, alguém com quem pode dividir experiências novas. Aos poucos, ela vai percebendo que isso não se mostra tão certo. Em meio a um contato com a empregada, ela passa por dias olhando o vazio pela janela.

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Ela vai conhecendo a comunidade de Yonville: Rhys Ifans é Monsieur Lheureux, que tenta lhe vender vestidos e vai empilhado dívidas em sua conta; Ezra Miller é Leon Dupuis, que se apaixona por ela logo no início, depois de um jantar, mas cuja paixão parece um pouco indefinida; Paul Giamatti se destaca como Monsieur Homais, entre o satírico e o trágico, uma especialidade do ator; e um surpreendente Logan Marshall-Green (mais conhecido como o cientista pouco simpático de Prometheus) interpreta o Marquês d’Andervilliers, capaz de envolver Bovary numa atmosfera de conquista para onde ela deseja ir. O filme não é sem falhas: ele possui um ritmo acelerado (mesmo que dê a impressão de ser lento), deixando para trás a caracterização de alguns personagens e se concentrando na solidão de Bovary em quase todos os momentos. Essa pouca caracterização não tira a beleza do filme de Barthes, sobretudo porque o elenco retribui a falta de certa consistência em termos de diálogos. Trata-se de uma adaptação com algumas liberdades, por outro lado absolutamente fiel a um sentimento de época. Reduzir a narrativa a uma espécie de peça feminista também não soa de acordo: o que Flaubert mostrava, em sua época, é o quanto a expectativa feminina era colocada em segundo plano quando o homem via que ela poderia ser diferente. Bovary não busca algum ideal feminino: ela busca a liberdade de escolher, que pertence a mulheres e homens, às vezes com uma rebeldia autocentrada (que Wasikowska incorpora com consciência), e o quanto essa escolha resulta mais de um embate consigo próprio do que exatamente com a sociedade em torno, voltada sempre a restringir espaços. Talvez esteja enganado quem ache que esta Madame Bovary não consegue representar um dos personagens femininos mais importantes da literatura.

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Madame Bovary, em termos técnicos, apresenta uma ótima direção de arte e uma fotografia delicada de Andrij Parekh, que parece se basear em Os duelistas, Barry Lindon, Tess, A árvore dos tamancos e nos filmes do português Manoel de Oliveira (como O gebo e a sombra), mas especificamente em Sven Nykvist. O figurino de Christian Gasc e Valérie Ranchoux também é grande e desempenha um papel ainda mais importante: é por meio dele que Bovary imagina renovar sua vida, sempre igual. Sophie trata a personagem como alguém que busca sempre a paixão, no entanto, esta não faz parte de sua época: todos os homens agem friamente, como o Marquês numa caça rodeado por cães. Nesse sentido, a beleza que Bovary vê no espaço bucólico de Yonville parece encobrir o que realmente se passa e, quando passa por algumas senhoras que trabalham no campo e percebe que a olham de costas, sabe que suas escolhas dependem ainda do que é dito. Tudo é projeto e esquemático e, ao tentar romper esse padrão, Bovary se vê em meio a uma sensação de luto. O que permanece, em termos dramáticos, é realmente a presença de Wasikowska: sua Bovary tem toda a instabilidade imaginada por Flaubert e uma sensação permanente de deslocamento. Por algumas horas, ela é realmente Madame Bovary.

Madame Bovary, EUA/BEL/ALE, 2015 Diretora: Sophie Barthes Elenco: Mia Wasikowska, Henry Lloyd-Hughes, Paul Giamatti, Ezra Miller, Rhys Ifans, Logan Marshall-Green Roteiro: Rose Barreneche e Sophie Barthes Fotografia: Andrij Parekh Trilha Sonora: Evgueni Galperine e Sacha Galperine Producão: Sophie Barthes, Felipe Marino, Jaime Mateus-Tique, Joe Neurauter Duração: 118 min. Distribuidora: 20th Century Fox Company Russia, Warner Bros., Noori Pictures Estúdio: Aden Film / Aleph Motion Pictures / Left Field Ventures / Occupant Entertainment / Radiant Films International

Cotação 4 estrelas

 

Alice através do espelho (2016)

Por André Dick

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Os estúdios Walt Disney tiveram um primeiro semestre bastante lucrativo, com Mogli – O menino lobo, Zootopia e Capitão América – Guerra civil. Parece que o filme a ficar de fora desse grupo de sucesso será exatamente aquele que dá continuação a um dos maiores títulos da companhia desta década, Alice no país das maravilhas, de Tim Burton, que iniciava como uma jornada a um reino de encantamento e em busca da passagem ao universo adulto. Em Alice através do espelho, o diretor James Bobin (responsável pelos dois Muppets mais recentes) parece utilizar a mesma fórmula e o mesmo requinte visual de Burton. No entanto, desde o primeiro movimento, pode-se perceber algumas diferenças. Não apenas na bilheteria, que, pelo início, será muito inferior, acompanhada pelas acusações feitas a Johnny Depp por sua ex-esposa Amber Heard depois de uma separação tumultuada, mas pelo enfoque.
No primeiro Alice no país das maravilhas, a personagem central, depois de perseguir um coelho, acaba caindo num universo paralelo. Neste, ela inicia já como capitã de um navio, em meio a uma tormenta, fazendo o que sonhava. Depois de voltar para casa e ver que sua mãe, Helen Kingsleigh (Lindsay Duncan), está para vender o barco – a grande herança de seu pai – ao ex-noivo, Hamish (Leo Bill), ela ingressa, através de um espelho, seguindo uma larva, Absolem (Alan Rickman, a quem o filme é emotivamente dedicado), justamente de volta no País das Maravilhas.

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Lá, ela reencontra o Chapeleiro Maluco (Depp), a Rainha Branca (Anne Hathaway, novamente com um batom escuro contrastando com a pele pálida e a única visivelmente sem um papel definido) e os dois irmãos, Tweedledum e Tweedledee (Matt Lucas). Os cenários têm uma densidade pop muito forte como cores berrantes, mas nada que substitua um elemento soturno, que está no fundo das paisagens e dos personagens, como no primeiro. O Chapeleiro Maluco, nesse caso, é um Willy Wonka mais contido, melancólico, desta vez numa das atuações mais concentradas de Depp. Alice recebe um pedido dele: que encontre sua família desaparecida, em que o pai, Zanik Hightopp (Rhys Ifans), também faz chapéus. Para isso, Alice deve chegar ao Tempo (Sacha Baron Cohen), que tem relação com a Rainha Vermelha (Helena Bonham Carter), aqui chamada Iracebeth, e parece controlar todos os relógios do mundo. No entanto, deve-se dizer que o que Alice mais procura é sua família, principalmente o pai já morto. Ao se refletir no desejo do Chapeleiro, ela passa a viajar pelo tempo.
Quando vemos as cenas de ação no primeiro, Tim Burton está na verdade querendo focalizar mais o aspecto dramático de seus personagens, ou seja, as relações de poder que surgem entre eles, e nesse sentido tornar uma fábula a princípio ingênua numa narrativa em forma de pesadelo. Essas características também o acompanhavam, de certo modo, em seus filmes mais soturnos, como a série Batman, Edward, mãos de tesoura e A lenda do cavaleiro sem cabeça, mas sempre com a presença do humor, capaz de atenuar alguma gravidade pretendida, sem abrir espaço mesmo para qualquer graça remetendo a jogos de palavras, Jaguadartes ou Humptys Dumptys. Neste segundo, o diretor Bobin está mais interessado numa narrativa em ritmo contínuo, sem quebras, e não trabalha tanto com o clima de pesadelo, embora o humor continue sendo uma parcela mal resolvida, mesmo com a presença de Baron Cohen. O diretor tem um senso considerável de manipulação de elementos fantásticos, com uma característica específica de comprimir as cenas em pequenos núcleos que vão se correspondendo uns com os outros.

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A questão é que Alice através do espelho esconde o que era mal resolvido no filme de Burton. Bobin oferece uma agilidade emotiva ao personagem central, também em razão de Mia Wasikowska ter crescido como atriz. Ela é uma especialista em viver personagens de época, a exemplo de Jane Eyre e Madame Bovary, assim como se provou excelente atriz de dramas contemporâneos e futuristas, como O duplo e Mapas para as estrelas, e mesmo num suspense falho, Segredos de sangue: aqui ela compõe uma Alice com a qual é possível se identificar. Há uma ressonância em sua atuação que consegue se equilibrar com o número de efeitos especiais e a história que faz referências a A invenção de Hugo Cabret, O Hobbit – A batalha dos cinco exércitos e De volta para o futuro 2. De modo geral, a história original de Lewis Carroll também dá oportunidade a Bobin fazer cenas que lembram um clássico infantojuvenil dos anos 80, A história sem fim, principalmente quando lida com as engrenagens do tempo e como se pode pará-lo, a fim de modificar as suas consequências. Trata-se de um elemento decisivo para compreender esse universo de Alice: não por acaso, ela, em determinado momento, se vê numa espécie de sanatório – como a personagem de Sombras da noite e parecendo estar em A colina escarlate – e perdendo seu sonho.
O filme trata de sonhos não realizados e de um passado que não pode ser realizado, mas, principalmente, da motivação em fazê-lo. Nessa linha, mais ainda do que o primeiro de Burton, um dos filmes mais irregulares de sua trajetória exitosa, Alice através do espelho focaliza o universo masculino como controlador, não apenas pela figura do Tempo e sim pela dos pais de Alice e do Chapeleiro: seguir a profissão paterna parece uma realização de sonhos. É este o elo principal que une os personagens principais. Do mesmo modo, é o que afasta a Rainha Vermelha de sua irmã: a aceitação dos pais.

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De maneira ampla, são temas comuns em filmes da Disney, porém existe aqui uma profusão de temas interessantes e mesclados, em razão também do roteiro de Linda Woolverton, responsável pelos de A bela e a fera O rei leão, e da montagem muito ágil de Andrew Weisblum, responsável por colaborar em O fantástico sr. Raposo e Moonrise Kingdom. E não se poderia deixar de comentar – sendo uma obra de fantasia – sobre o primor novamente dos figurinos, dos efeitos especiais e dos diálogos com obras de arte: os seguranças da Rainha Vermelha são como figuras do pintor Arcimboldo, compostos de alimentos. A máquina do tempo em que Alice viaja, chamada cronosfera, parece um globo terrestre em movimento e os anos que ela atravessa têm o formato de um mar tempestuoso, como se fosse seu próprio inconsciente projetado – e o gato Cheshire (Michael Scheen) se projeta numa das ondas. As cenas em que aparecem ponteiros de relógio gigantes e que devem ser saltados por Alice são também impressionantes, numa correspondência direta com Brazil – O filme, de Terry Gilliam. Também a imensa claraboia do sanatório lembra a cronosfera, mas apontando para um céu azul. E há robôs que assessoram o Tempo que remetem a O fantástico mundo de Oz, continuação do clássico feita nos anos 80. Como grande parte das peças de fantasia recentes igualmente contestadas, a exemplo de Peter Pan e Oz – Mágico e poderoso, Alice através do espelho se mantém muito pela nostalgia que pode ter ou não o espectador.

Alice through the looking glass, EUA, 2016 Diretor: James Bobin Elenco: Johnny Depp, Mia Wasikowska, Helena Bonham Carter, Anne Hathaway, Sacha Baron Cohen, Rhys Ifans, Matt Lucas, Lindsay Duncan, Leo Bill, Geraldine James, Andrew Scott, Richard Armitage, Ed Speleers, Alan Rickman, Timothy Spall, Paul Whitehouse, Stephen Fry, Barbara Windsor, Michael Sheen, Matt Vogel Roteiro: Linda Woolverton Fotografia: Stuart Dryburgh Trilha Sonora: Danny Elfman Duração: 112 min. Produção: Jennifer Todd, Joe Roth, Suzanne Todd, Tim Burton Distribuidora: Disney Estúdio: Estúdio Shepperton

Cotação 4 estrelas