Alice através do espelho (2016)

Por André Dick

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Os estúdios Walt Disney tiveram um primeiro semestre bastante lucrativo, com Mogli – O menino lobo, Zootopia e Capitão América – Guerra civil. Parece que o filme a ficar de fora desse grupo de sucesso será exatamente aquele que dá continuação a um dos maiores títulos da companhia desta década, Alice no país das maravilhas, de Tim Burton, que iniciava como uma jornada a um reino de encantamento e em busca da passagem ao universo adulto. Em Alice através do espelho, o diretor James Bobin (responsável pelos dois Muppets mais recentes) parece utilizar a mesma fórmula e o mesmo requinte visual de Burton. No entanto, desde o primeiro movimento, pode-se perceber algumas diferenças. Não apenas na bilheteria, que, pelo início, será muito inferior, acompanhada pelas acusações feitas a Johnny Depp por sua ex-esposa Amber Heard depois de uma separação tumultuada, mas pelo enfoque.
No primeiro Alice no país das maravilhas, a personagem central, depois de perseguir um coelho, acaba caindo num universo paralelo. Neste, ela inicia já como capitã de um navio, em meio a uma tormenta, fazendo o que sonhava. Depois de voltar para casa e ver que sua mãe, Helen Kingsleigh (Lindsay Duncan), está para vender o barco – a grande herança de seu pai – ao ex-noivo, Hamish (Leo Bill), ela ingressa, através de um espelho, seguindo uma larva, Absolem (Alan Rickman, a quem o filme é emotivamente dedicado), justamente de volta no País das Maravilhas.

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Lá, ela reencontra o Chapeleiro Maluco (Depp), a Rainha Branca (Anne Hathaway, novamente com um batom escuro contrastando com a pele pálida e a única visivelmente sem um papel definido) e os dois irmãos, Tweedledum e Tweedledee (Matt Lucas). Os cenários têm uma densidade pop muito forte como cores berrantes, mas nada que substitua um elemento soturno, que está no fundo das paisagens e dos personagens, como no primeiro. O Chapeleiro Maluco, nesse caso, é um Willy Wonka mais contido, melancólico, desta vez numa das atuações mais concentradas de Depp. Alice recebe um pedido dele: que encontre sua família desaparecida, em que o pai, Zanik Hightopp (Rhys Ifans), também faz chapéus. Para isso, Alice deve chegar ao Tempo (Sacha Baron Cohen), que tem relação com a Rainha Vermelha (Helena Bonham Carter), aqui chamada Iracebeth, e parece controlar todos os relógios do mundo. No entanto, deve-se dizer que o que Alice mais procura é sua família, principalmente o pai já morto. Ao se refletir no desejo do Chapeleiro, ela passa a viajar pelo tempo.
Quando vemos as cenas de ação no primeiro, Tim Burton está na verdade querendo focalizar mais o aspecto dramático de seus personagens, ou seja, as relações de poder que surgem entre eles, e nesse sentido tornar uma fábula a princípio ingênua numa narrativa em forma de pesadelo. Essas características também o acompanhavam, de certo modo, em seus filmes mais soturnos, como a série Batman, Edward, mãos de tesoura e A lenda do cavaleiro sem cabeça, mas sempre com a presença do humor, capaz de atenuar alguma gravidade pretendida, sem abrir espaço mesmo para qualquer graça remetendo a jogos de palavras, Jaguadartes ou Humptys Dumptys. Neste segundo, o diretor Bobin está mais interessado numa narrativa em ritmo contínuo, sem quebras, e não trabalha tanto com o clima de pesadelo, embora o humor continue sendo uma parcela mal resolvida, mesmo com a presença de Baron Cohen. O diretor tem um senso considerável de manipulação de elementos fantásticos, com uma característica específica de comprimir as cenas em pequenos núcleos que vão se correspondendo uns com os outros.

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A questão é que Alice através do espelho esconde o que era mal resolvido no filme de Burton. Bobin oferece uma agilidade emotiva ao personagem central, também em razão de Mia Wasikowska ter crescido como atriz. Ela é uma especialista em viver personagens de época, a exemplo de Jane Eyre e Madame Bovary, assim como se provou excelente atriz de dramas contemporâneos e futuristas, como O duplo e Mapas para as estrelas, e mesmo num suspense falho, Segredos de sangue: aqui ela compõe uma Alice com a qual é possível se identificar. Há uma ressonância em sua atuação que consegue se equilibrar com o número de efeitos especiais e a história que faz referências a A invenção de Hugo Cabret, O Hobbit – A batalha dos cinco exércitos e De volta para o futuro 2. De modo geral, a história original de Lewis Carroll também dá oportunidade a Bobin fazer cenas que lembram um clássico infantojuvenil dos anos 80, A história sem fim, principalmente quando lida com as engrenagens do tempo e como se pode pará-lo, a fim de modificar as suas consequências. Trata-se de um elemento decisivo para compreender esse universo de Alice: não por acaso, ela, em determinado momento, se vê numa espécie de sanatório – como a personagem de Sombras da noite e parecendo estar em A colina escarlate – e perdendo seu sonho.
O filme trata de sonhos não realizados e de um passado que não pode ser realizado, mas, principalmente, da motivação em fazê-lo. Nessa linha, mais ainda do que o primeiro de Burton, um dos filmes mais irregulares de sua trajetória exitosa, Alice através do espelho focaliza o universo masculino como controlador, não apenas pela figura do Tempo e sim pela dos pais de Alice e do Chapeleiro: seguir a profissão paterna parece uma realização de sonhos. É este o elo principal que une os personagens principais. Do mesmo modo, é o que afasta a Rainha Vermelha de sua irmã: a aceitação dos pais.

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De maneira ampla, são temas comuns em filmes da Disney, porém existe aqui uma profusão de temas interessantes e mesclados, em razão também do roteiro de Linda Woolverton, responsável pelos de A bela e a fera O rei leão, e da montagem muito ágil de Andrew Weisblum, responsável por colaborar em O fantástico sr. Raposo e Moonrise Kingdom. E não se poderia deixar de comentar – sendo uma obra de fantasia – sobre o primor novamente dos figurinos, dos efeitos especiais e dos diálogos com obras de arte: os seguranças da Rainha Vermelha são como figuras do pintor Arcimboldo, compostos de alimentos. A máquina do tempo em que Alice viaja, chamada cronosfera, parece um globo terrestre em movimento e os anos que ela atravessa têm o formato de um mar tempestuoso, como se fosse seu próprio inconsciente projetado – e o gato Cheshire (Michael Scheen) se projeta numa das ondas. As cenas em que aparecem ponteiros de relógio gigantes e que devem ser saltados por Alice são também impressionantes, numa correspondência direta com Brazil – O filme, de Terry Gilliam. Também a imensa claraboia do sanatório lembra a cronosfera, mas apontando para um céu azul. E há robôs que assessoram o Tempo que remetem a O fantástico mundo de Oz, continuação do clássico feita nos anos 80. Como grande parte das peças de fantasia recentes igualmente contestadas, a exemplo de Peter Pan e Oz – Mágico e poderoso, Alice através do espelho se mantém muito pela nostalgia que pode ter ou não o espectador.

Alice through the looking glass, EUA, 2016 Diretor: James Bobin Elenco: Johnny Depp, Mia Wasikowska, Helena Bonham Carter, Anne Hathaway, Sacha Baron Cohen, Rhys Ifans, Matt Lucas, Lindsay Duncan, Leo Bill, Geraldine James, Andrew Scott, Richard Armitage, Ed Speleers, Alan Rickman, Timothy Spall, Paul Whitehouse, Stephen Fry, Barbara Windsor, Michael Sheen, Matt Vogel Roteiro: Linda Woolverton Fotografia: Stuart Dryburgh Trilha Sonora: Danny Elfman Duração: 112 min. Produção: Jennifer Todd, Joe Roth, Suzanne Todd, Tim Burton Distribuidora: Disney Estúdio: Estúdio Shepperton

Cotação 4 estrelas

 

Um fim de semana em Paris (2013)

Por André Dick

Um fim de semana em Paris

Há alguns diretores que conseguem se especializar num determinado nicho de produções e acabam fazendo sua trajetória de uma maneira pouco pretensiosa. Este talvez seja o caso de Roger Michell, o diretor de Um fim de semana em Paris, uma espécie de mescla entre a trilogia de Richard Linklater com Julie Delpy e Ethan Hawke com Cópia fiel, a obra de Kiarostami que não deixa de dialogar com a obra do diretor norte-americano. Michell, no final da década de 90, realizou um dos romances mais interessantes (e descompromissados), mas com sensibilidade, que renderam várias imitações, Um lugar chamado Notting Hill. Aproveitando um dos melhores momentos de Julia Roberts e Hugh Grant, ele conseguia transportar o espectador para um universo em que uma atriz de Hollywood se apaixonava por um livreiro do bairro inglês, com bom humor e situações simpáticas. Mais de uma década depois, ele proporcionou um novo filme romântico, desta vez situado nos bastidores da TV, chamado Uma manhã gloriosa, com um trio de atores em grande momento, Rachel McAdams, Harrison Ford e Diane Keaton. Se Uma manhã gloriosa não tem nenhum fã declaradamente assíduo, pode-se dizer que é muito superior a comédias do gênero, guardando algumas proximidades com Notting Hill no formato pop, no entanto sem diluir tudo num simples projeto para bancar a carreira dos integrantes do elenco.
Este seu novo filme traz basicamente dois personagens, um casal, Nick (Jim Broadbent) e Meg Burrows (Lindsay Duncan), de Birmingham. Ambos são professores e, para comemorar o 30º aniversário de casamento, eles vão passar exatamente um fim de semana em Paris. Com o objetivo de aparar as arestas e fazer seu casamento ter alguns dias novamente de tranquilidade, eles acabam encontrando um escritor famoso, Morgan (Jeff Goldblum), que foi colega de Nick em início de trajetória, durante uma caminhada. Michell reserva esse encontro não exatamente como algo ameno, e sim como algo que pode deixar o casamento ainda mais complicado, sobretudo quando Morgan convida Nick e Meg para uma festa que dará em seu apartamento.

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O que Michell atesta em seu novo filme – que volta ao gênero que o consagrou, ao contrário do subestimado Fora do controle e do recente Um final de semana em Hyde Park, com Bill Murray – é que tem um domínio sobre a atmosfera. O hotel em que os Burrows ficam transpira Paris, no entanto também uma certa melancolia recolhida, que pode comprovar alguns passeios deslocados por lugares turísticos que não podem reparar o que ambos guardam – e isso se esclarece no hotel – e novamente a proximidade de um filho que costuma perturbá-los. Os Burrows são, até determinado ponto, figuras que remetem ao lugar-comum, no entanto é justamente o movimento que Michell lhes oferece, de humanidade, o ponto mais acertado do roteiro de Hanif Kureishi, parceiro do diretor em dois projetos anteriores, Recomeçar e Venus, e que iniciou a carreira de roteirista de cinema com duas obras bastante comentadas nos anos 80, Minha adorável lavanderia e Sammy e Rosie. Essas características diaologam com o casal da trilogia de Linklater: além disso, como Hawke e Delpy, Broadbent e Linday Duncan oferecem realmente atuações de uma sensibilidade diferenciada; se Broadbent tem feito grandes papéis (como em Cloud Atlas), Duncan apareceu recentemente como a crítica rígida de Birdman e é justamente num projeto dessa natureza, mais intimista, que suas nuances acabam se destacando. Enquanto Broadbent tem um comportamento quase sempre nervoso e deslocado, como convém a seu personagem, o receio de mostrar uma liberdade maior é a qualidade que Duncan extrai de seu personagem.
No entanto, quando eles são colocados diante da realidade – e ela pode se mostrar tanto em uma caminhada pelas ruas de Paris quanto na maneira de lidar com as realizações ou não de sua vida profissional – é que Um fim de semana em Paris atinge seu melhor momento e sua importância. São poucas as obras que mostram com essa autencidade do casal Burrows um casal passando da meia idade e entrando naquele momento da vida em que tudo pode soar definitivo se não avaliado a tempo para uma mudança ou não de direção e de comportamento. Esta avaliação diante da vida tem uma atmosfera quase teatral, o que é uma marca de seu roteirista, um dramaturgo: os diálogos afiados se reproduzem em larga escala, sem que se dê uma atenção demasiada a eles, como se esses personagens tivessem uma vida própria e acompanhássemos realmente sua ida e estadia na cidade das luzes.

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Os problemas particulares de Nick se revelam principalmente por uma questão que o prejudicou junto a seus alunos, capaz de conduzi-lo a uma aposentadoria antes do previsto, e na dificuldade especial de se aproximar da mulher que não seja por provocações. Esse casal está no limite da convivência, embora ainda respire uma necessidade de se encantar com pequenos detalhes ou, no caso de Nick, ouvir “Like a Rolling Stone”, de Bob Dylan. Tudo é sugerido por Michell em pequenos lances de humor amargo, reunidos sob a qualidade de uma relação desgastada pelo tempo e não menos complexa.
Nesse sentido, Michell acaba colocando o personagem de Morgan, numa criação bastante destacada de Goldblumm (que já havia feito com o diretor Uma manhã gloriosa), como a figura a ser entendida e combatida pelos Burrows. Em alguns momentos, os caminhos do diretor parecem ressoar uma produção mais simples, sobretudo ao final um pouco abrupto, no entanto não deixam de conferir ao filme uma delicadeza no olhar sobre a transição da vida e os períodos que ela abrange. Talvez haja aí novamente uma influência notável do projeto de Linklater, sobretudo de Antes do pôr do sol, passado nas ruas de Paris, e em que o personagem de Hawke tenta sair de seu universo literário para se voltar de vez ao olhar de Céline (Delpy). Michell, não sem a ajuda fundamental do elenco, como Linklater, lança sobre esses personagens um olhar melancólico e esperançoso no sentido de entender que a relação só pode ser renovada por meio de uma nostalgia correspondente às conquistas do momento.

Le week-end, Reino Unido, 2013 Direção: Roger Michell Elenco: Jim Broadbent, Lindsay Duncan, Jeff Goldblum, Olly Alexander, Xavier de Guillebon, Brice Beaugier Roteiro: Hanif Kureishi Fotografia: Nathalie Durand Trilha Sonora: Jeremy Sams Produção: Kevin Loader Duração: 93 min. Distribuidora: Pandora Filmes Estúdio: Film4 / Free Range Films / Le Bureau

Cotação 3 estrelas e meia

Birdman ou (A inesperada virtude da ignorância) (2014)

Por André Dick

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Antes de assistira Birdman ou (A inesperada virtude da ignorância), é natural que se espere mais um filme superestimado, em razão do número de críticas prontas para apontar inúmeras virtudes, sobretudo numa época em que muitos filmes são lançados com o objetivo de participar de alguma premiação. O mexicano Alejandro González Iñárritu é um diretor que agradava à Academia de Hollywood, depois das indicações de 21 gramas e Babel, mas não havia lidado até agora com um material que não envolvesse um drama caracterizado até mesmo pela tragédia, como vimos em Biutiful, na interpretação de Javier Bardem. Com a colaboração do fotógrafo Emmanuel Lubezki (Gravidade e dos filmes mais recentes de Terrence Malick), ele provoca uma espécie de deslocamento em sua carreira, mesmo que não se afaste completamente de características da sua trajetória, e consegue apresentar Birdman como se fosse um único plano-sequência, mostrando os ensaios de uma peça teatral adaptada de Raymond Carver, no Teatro St. James de Nova York.
Esta peça tem à frente da adaptação e do elenco o ex-ator de sucessos de Hollywood Riggan Thomson (Michael Keaton), que interpretava o super-herói Birdman até 1992 (como o próprio Keaton quando fez Batman) e deixou de fazê-lo no terceiro filme da franquia. Longe dos holofotes, Thomson está em conflito com alguns integrantes do elenco, como Mike Shiner (Edward Norton), e sua tentativa de estabelecer um relacionamento com a filha, Sam (Emma Stone), enquanto tenta lidar com a ex-mulher, Sylvia (Amy Ryan). Ele ainda precisa buscar o equilíbrio na relação com duas atrizes: Lesley (Naomi Watts) e Laura (Andrea Riseborough), mas ainda enfrenta o pior: a voz de Birdman – que lembra tanto a de Batman quanto a de Beetlejuice – em sua mente, ditando o que deve fazer. A questão é se seus poderes o ajudarão a se livrar de um ator que está jogando a peça para baixo.
Um dos componentes mais interessantes de Birdman é justamente ser um filme que mostra uma peça teatral baseada em “Do que falamos quando falamos de amor”, de Carver, em que temos alguns temas suscitados ao longo de sua história: a relação problemática entre o homem e a mulher e, sobretudo, a vida como um limite tênue com o desespero e a busca pela personalidade. No entanto, a obra de Iñárritu não se sustenta apenas por ser um filme de referências e autorreferências, ainda que uma conversa no início remeta a Roland Barthes, um dos teóricos da metalinguagem.

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Misturando o movimento nos bastidores da peça e os arredores do teatro, na Times Square, as tomadas de Lubezki conseguem envolver o espectador numa atmosfera ao mesmo tempo familiar e enigmática, e o uso de luzes nos bastidores e no palco desempenha quase um elemento narrativo, principalmente porque algumas luzes representam situações ou sensações dos personagens. Não há muitos filmes, como Birdman, que apresentem a sensação de estarmos num teatro e na vida real (A viagem do Capitão Tornado, filme italiano de Ettore Scola, e Sinédoque, Nova York podem ser mais lembrados). Ele talvez soasse pretensioso, mas não é sentido desta maneira: Birdman consegue unir vida “real” e teatro de uma maneira criativa, por meio do plano-sequência adotado por Iñárritu, intercalado pelos solos de bateria e das trocas de roupa, maquiagem e uso de perucas de Riggan.
Diante de críticas a este estilo de filmagem, pode-se imaginar se há uma espécie de surpresa em relação a ele e Lubezki terem conseguido, por efeitos especiais, essa ilusão, ou imperícia crítica de acreditar que ele existe apenas para uma espécie de enfeite: a sensação é de que Birdman tenta costurar aquele ambiente teatral que havia nos filmes de Robert Altman, sobretudo um filme bastante esquecido de 1976, Oeste selvagem, em que Paul Newman interpretava Buffalo Bill e o fazia como se estivesse em um teatro ao ar livre.
Para dar a impressão de acompanharmos os movimentos dos bastidores, da peça e da vida “real” de cada personagem, Iñárritu filma longas sequências com diálogos, obtendo um sentido de continuidade e de variações de cada um e os duplos de cada personagem, nos bastidores e à frente do público. Trabalha-se com os duplos a todo instante, não apenas dentro da narrativa apresentada, como também em relação a outras obras, numa sucessão de piadas culturais, mesmo que possam ser vistas como descartáveis: enquanto Keaton já foi Batman, Norton atuou como Hulk, mas substancialmente, e isso se relaciona com a questão da duplicidade de Riggan, esteve em Clube da luta (também evocado em determinada sequência), enquanto Naomi Watts homenageia Cidade dos sonhos e seu papel no King Kong de Peter Jackson, como atriz selecionada por Jack Black. Por sua vez, Emma já fez par com Ryan Gosling, a quem o personagem de Norton se compara em Birdman, em dois filmes. Nesse sentido, esses atores não estão desempenhando apenas personagens, como também satirizando a própria carreira, além de remeterem às inúmeras histórias de outro livro de Carver, este adaptado para o cinema, pelo próprio Altman: Short Cuts – Cenas da vida.

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Lembrando-se que o cineasta turco Nuri Bilge Ceylan filma diálogos de 15 a 20 minutos em Winter sleep, vendedor em Cannes no ano passado, tendo como personagem central um ex-ator, Iñárritu emprega um filme que parece não ter cortes e onde tudo deve ser ensaiado, mas que quase nunca resulta no que se ensaiou. As conversas entre Riggan e seu agente, Jake (Zach Galifianakis), são divertidas porque justamente abordam essa linha de abordagem – os imprevistos da montagem teatral -, enquanto a atriz Lesley tenta obter seu primeiro sucesso na Broadway e não raramente costura algumas brigas nos bastidores, mesmo tentando, em seguida, a reconciliação. E Shiner se torna o principal ponto de provocação para Riggan, pois atrai o público para as bilheterias, a principal lembrança guardada pelo ex-Birdman dos tempos de fama e seu calcanhar de Aquiles.
Num instante em que Keaton entra num estabelecimento tomado de luzes aparentemente natalinas, mas no formato de pimentas mexicanas, Birdman também tenta voar como Enter the void, de Gaspar Noé. O espectador sente a profundidade dos ambientes, embora haja a opção, na maior parte do tempo, do diretor e de Lubezki pelos closes. É muito interessante a cena em que Keaton precisa enfrentar o Times Square (está no trailer) e as pessoas na multidão fazem comentários sobre seu estado físico ou querendo aparecer com ele em câmeras de celulares. Trata-se de uma sequência que poderia ser previsível, com sua evidente sátira ao show business, mas recebe um tratamento tão interessante por Iñárritu e Lubezki, como apoio de Keaton, que se torna quase uma síntese da narrativa. Do mesmo modo quando os personagens entram e saem do teatro como se fôssemos conhecendo diferentes níveis de consciência de cada um, sobretudo nos encontros entre Sam e Shiner no alto do teatro, de onde se pode ver a Broadway. Se, por um lado, Birdman é uma ode ao mundo do teatro e das múltiplas interpretações, ele também é um palco aberto para figuras bastante solitárias, com seus dramas de rotina.

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É a solidão de Riggan que se torna o diálogo perfeito para O fantasma da ópera, que aparece em propagandas, na Broadway, pois o personagem de Keaton não deixa de habitar os bastidores e sua persona dupla não deixa de ser um fantasma do seu eu, sobretudo por sua tentativa de conviver com as mulheres ao redor que, como aparece na peça de Carver, o abandonam ou se afastam por seu comportamento ambíguo. No entanto, é um fantasma menos taciturno, e algumas falas dele com uma crítica de teatro, Tabitha Dickinson (Lindsay Duncan), são bastante engraçadas, à medida que o desabafo se torna uma metalinguagem descompromissada. Como grande diretor de atores,  Iñárritu extrai de Keaton uma excelente interpretação (no ano passado, ele já estava bem no mais recente RoboCop), assim como do elenco coadjuvante, cumprindo à risca as mudanças de tom e direcionamentos (com destaque para os ótimos Norton, Watts e Stone) e se o filme tem um problema é não dar um desfecho à altura para cada um dos personagens.
Por meio da figura de Dickinson, Iñárritu faz, com certeza, algumas provocações pessoais ao universo da crítica, assim como leva Keaton também a falar contra quem o vê apenas como Batman, e ainda sobram referências cômicas a atores que fazem super-heróis, além da sátira às redes sociais (pela qual Jason Reitman pagou por todos em Homens, mulheres e filhos). Destacado por seu visual atrativo, Birdman é uma mescla entre estilo e substância e torna-se melhor quando o espectador se surpreende com a mudança de ambientes, mesmo dentro de um mesmo espaço, ou de situações, sempre com o ritmo de um ator que precisa jogar suas falas para a plateia de uma peça, com o calor das luzes do teatro St. James chegando também ao espectador. Há emoção nele, traduzida pelo elenco com interesse e, ainda que em seu plano mais emocional tenha elementos claros de outros filmes (como Cisne negro Asas da liberdade), é uma peça muito calibrada de cinema. Mesmo o final, aparentemente rápido demais, é capaz de estabelecer a passagem da natureza interna para a externa que o cineasta deseja mostrar, formando, com seu elenco estelar, um filme estranhamente de arte sem deixar de lembrar Hollywood. Uma obra sobre a própria vida e os clichês que costumam movimentá-la, mas não sem emoção, por meio da representação e do desejo de nunca ser o mesmo.

Birdman or (The unexpected virtue of ignorance), EUA, 2014 Diretor: Alejandro González Iñárritu Roteiro: Alejandro González Iñárritu, Alexander Dinelaris, Armando Bo, Nicolás Giacobone Elenco: Michael Keaton, Edward Norton, Emma Stone, Zach Galifianakis, Naomi Watts, Andrea Riseborough, Amy Ryan, Lindsay Duncan Fotografia: Emmanuel Lubezki Trilha Sonora: Antonio Sánchez Produção: Alejandro González Iñárritu, Arnon Milchan, James W. Skotchdopole, John Lesher Duração: 119 min. Distribuidora: Fox Film do Brasil Estúdio: Fox Searchlight Pictures / Regency Enterprises / Worldview Entertainment

Cotação 5 estrelas