Top Gun: Maverick (2022)

Por André Dick

O cinema dos anos 80 sempre foi uma referência para os criadores depois que suas obras passaram a ter interesse revivido por novas gerações. Dificilmente há filmes de fantasia ou de ação tão marcantes quanto os dessa década. Ao mesmo tempo, é um cinema que valorizou o ritmo, em alguns momentos, que remetem a um videoclipe, e isso se esclarece principalmente por Flashdance e Top Gun – Ases indomáveis, este de Tony Scott, que também esteve à frente da sequência visualmente exuberante de Um tira da pesada.
Top Gun marcou toda uma geração e criou um impacto cultural de maneira muito sólida, com seu visual cheio de luzes e trilha sonora bastante marcante, tendo “Take my breath away” recebido Oscar de melhor canção. Por isso, ao longo de muitos anos, tentou-se fazer uma continuação para este exemplar que misturava ação e drama em igual medida. O próprio diretor Tony Scott iria, em determinado, dirigi-lo, antes de sua trágica morte.

Finalmente, no início de mais uma década deste século, Top Gun: Maverick é lançado. O diretor é Joseph Kosinski, que já havia mostrado talento em recuperar uma fantasia dos anos 80 em Tron – O legado, a ficção científica distópica Oblivion e fez o valoroso Homens de coragem. O novo Top Gun tem elementos de bravura do segundo sobretudo, com sua perspectiva interessante ao mostrar bombeiros de elite combatendo incêndios florestais.
A história começa mostrando o que aconteceu com Peter “Maverick” Mitchell (Tom Cruise), agora um piloto de testes, o que envolve sequências bastante influenciadas por O primeiro homem, de Chazelle, no melhor sentido. Ele é selecionado novamente por um contra-almirante, Chester “Hammer” Caincrata (Ed Harris, por um momento fazendo lembrar Os eleitos) para voltar à Escola Top Gun, mas, na verdade, o pedido é de Iceman (Val Kilmer), antigo rival de Maverick, antes de se tornar amigo, agora um almirante. Lá, ele precisa treinar um grupo de jovens pilotos para atacar uma ameaça envolvendo urânio, mesmo sob a contrariedade de Beau “Ciclone” Simpson (Jon Hamm, demonstrando mais uma vez um talento para fazer burocratas), que atua ao lado de Solomon “Warlock” Bates (Charles Parnell). Entre os pilotos estão Phoenix (Monica Barbaro), Hangman (Glen Powell) e Bradley “Rooster” Bradshaw (Miles Teller), este filho de Goose, o amigo que faleceu num acidente em Top Gun. No entanto, eles não se entendem. Maverick também reencontra Penelope “Penny” Benjamin (Jennifer Connelly), um antigo caso, que trabalha num bar, ambiente capaz de remeter a muitos momentos do filme de 1986, inclusive com um piano e os pilotos reunidos.

O novo Top Gun é cinema “linear” com atmosfera quase de clássico, ecoando a obra de Tony Scott, obra icônica, por meio também de fragmentos da trilha sonora de Harold Faltermeyer, intensificados por Hans Zimmer, Lorne Balfe e Lady Gaga, independente até de se gostar dela. Tom Cruise valoriza a influência do filme na cultura pop, mas quer dividir com uma nova geração. Trata-se de um filme de empatia. Chega a ser surpreendente ver um cinema tão compacto, hoje em dia, com uma simplicidade sem soar simplista, destacando sentimentos de empatia, reconhecimento, superação, divisão de conquistas como poucos filmes têm feito porque querem “surpreender”. A presença de Christopher McQuarrie, que fez o exitoso Missão: impossível – Operação Fallout, com Cruise, no roteiro e na produção, é importante para concretizar os objetivos. Parece haver mensagens em cada diálogo do filme, no entanto não soam superficiais. E Maverick, com certa melancolia, se torna um personagem mais humano e menos heroico do que no original de Tony Scott. Reconhecido a maior parte da narrativa como um professor, um guia, Maverick torna-se alguém que pode trazer a chance de se fazer diferente.
Tom Cruise, depois de praticamente dedicar sua carreira a Missão: impossível e outros filmes de ação, tem finalmente um papel com chance verdadeiramente dramática – e um momento específico mostra especialmente seu talento inabitual. Outros destaques no elenco de Top Gun: Maverick são Miles Teller, que nunca conseguiu repetir sucesso de Whiplash e é muito bom ator, o que já demonstrou em Cães de guerra, por exemplo, Glen Powell, ator subestimado que recebe finalmente sua chance, e Jeniffer Connelly, uma das melhores atrizes de sua geração e substituindo Kelly McGillis à altura. São personagens talvez com não tantas nuances como poderia, mas, ao mesmo tempo, este é um filme que dá sequência a uma obra que dificilmente se concentrava muito no desenvolvimento de histórias, preferindo destacar o ambiente em torno e as cenas espetaculares de caças (também superiores aqui).

Além disso, Top Gun: Maverick tem a fotografia exímia de Claudio Miranda, conseguindo dialogar com a do filme de Tony Scott dos anos 80, sem cair num mero derivado. Cenas aéreas impressionantes, de treinamento dos caças, tudo parecendo realista e impactante, com câmeras de qualidade IMAX, se espalham ao longo do filme, mas, principalmente, no terceiro ato emocionante, quando Kosinski consegue apresentar uma edição primorosa, sem sobras. Vários momentos dialogam com suas obras anteriores. O diretor elabora melhor certo impacto de ação que ainda era um pouco indefinido em Tron – O legado e Oblivion, até mesmo com certa grandiosidade ecoando Nolan e a parte final de Batman – O cavaleiro das trevas ressurge, com seus efeitos práticos. Ao contrário do primeiro, embora a narrativa seja despretensiosa, Kosinski não adota quase nenhum elemento de videoclipe: pelo contrário, algumas cenas se estendem em diálogos e conflitos (sobretudo uma que traz um antigo personagem do filme dos anos 80). É um belo exemplar de cinema que recupera traços dos anos 80, mas, ao mesmo tempo, entrega algo com elementos mais contemporâneos. Diante da distância em relação ao primeiro, não deixa até de ser um feito e um exemplo para novas obras com objetivo semelhante.

Top Gun: Maverick, EUA, 2022 Direção: Joseph Kosinski Elenco: Tom Cruise, Miles Teller, Jennifer Connelly, Jon Hamm, Glen Powell, Lewis Pullman, Ed Harris, Val Kilmer Roteiro: Ehren Kruger, Eric Warren Singer, Christopher McQuarrie Fotografia: Claudio Miranda Trilha Sonora: Lady Gaga, Harold Faltermeyer, Hans Zimmer, Lorne Balfe Produção: Jerry Bruckheimer, Tom Cruise, Christopher McQuarrie, David Ellison Estúdio: Skydance Media, Don Simpson/Jerry Bruckheimer Films Duração: 131 min. Distribuidora: Paramount Pictures

Jerry Maguire (1996)

Por André Dick

O diretor Cameron Crowe vinha de uma juventude trabalhando como repórter de música da Rolling Stone quando teve um roteiro seu filmado por Amy Heckerling em Picardias estudantis. Em Digam o que quiserem, ele estreou como diretor, mostrando uma história interessante sobre um jovem (John Cusack) que se apaixonava por uma colega de escola, enfrentando uma situação inusitada quando o pai dela se envolvia em problemas. Seu segundo passo foi o curioso Vida de solteiro, situado na cena grunge de Seattle dos anos 90; Finalmente, em 1996, ele deu o passo adiante em sua trajetória com Jerry Maguire. Indicado aos Oscars de melhor filme, roteiro original, ator (Tom Cruise) e edição e que proporcionou a estatueta de melhor coadjuvante ao ótimo Cuba Gooding Jr. Seu diretor, Cameron Crowe, já havia prestado uma homenagem à juventude descompromissada em Vida de solteiro e acerta, neste filme, no coração juvenil americano, com uma história ao mesmo tempo simples e exagerada (spoilers a partir daqui).

O agente esportivo Jerry Maguire (Cruise) redige um manual endereçado aos colegas de profissão, em que pede que os atletas em geral sejam mais valorizados. A princípio aplaudido, ele logo é despedido de sua agência por um colega inescrupuloso, Bob Sugar (Jay Mohr), que acaba roubando também sua agenda de esportistas que agencia. Na despedida do emprego, uma moça, Dorothy Boyd (Renée Zellweger) decide acompanhar Maguire em carreira solo. Namorado de Avery Bishop (Kelly Preston), uma mulher ambiciosa, o cliente que lhe resta é um jogador de futebol americano Rod Tidwell (Cuba), mas ainda tenta se manter agente de  Frank “Cush” Cushman (Jerry O’Connell), influenciado por seu pai, Matthew (Beau Bridges). Mãe solteira, Dorothy vai se interessar por Maguire e, a partir daí, o filme se torna, além de bem-humorado, romântico. O filho de Dorothy, Raymond (Jonathan Lipnicki) começa a gostar de Maguire como o pai que lhe faltava. No entanto, a irmã de?Dorothy, Laurel (Bonnie Hunt), está com receio do envolvimento dela com o novo chefe.

Ela costuma se reunir com amigas em sua sala de casa para falar sobre problemas que tiveram com seus parceiros – e Maguire parece como um intruso nesse cenário. Afogado em dívidas, ele é traído várias vezes, mas sabe que tem o perfil da superação.  Com intervalos pop, muito bem feito. Maguire e Dorothy se aproximam de Rod e sua mulher, Marcee (Regina King), tornando-se amigos e dividindo os problemas.
Jerry Maguire possui quase todos os elementos da filmografia de Crowe, cada vez mais usuais em Quase famosos, Compramos um zoológico e Sob o mesmo céu. Mesmo não sendo o melhor personagem de Cruise no cinema (que continua sendo Ron Kovic, de Nascido em 4 de julho), Maguire ainda assim é uma composição interessante que dá valor especial a esta obra de Crowe. Sua parceria com Zellweger, além disso, é muito boa, e funciona principalmente nos momentos de comicidade, auxiliado, às vezes, por uma ótima Regina King. No mesmo caminho, o trabalho de fotografia de Janusz Kamiński, hoje habitual colaborador de Steven Spielberg, faz uma mescla entre a iluminação de manhãs e uma atmosfera acolhedora noturna, quando, por exemplo, Maguire se prepara para ir a um restaurante com Dorothy. São momentos que Crowe sublinha com sua insuspeita em mostrar um mundo positivo, mesmo com personagens em meio a dificuldades. Cada um deles vai tentando estabelecer relações em meio a um cenário no qual os valores determinam seguir um rumo diferente, porém Crowe nunca perde de vista a humanidade investida em pequenas ações e gentilezas que movem a narrativa.

Em meio a isso, cresce o dueto de Cruise com Cuba Gooding Jr., um dos mais expressivos da década de 90 – principalmente manifestos em diálogos sobre a superação e especialmente nos bastidores de um comercial do jogador.. Há uma notável agilidade na maneira como Crowe utiliza esse personagem para visualizar o sonho americano, reproduzido tanto por Maguire como agente quanto por Rod como jogador e Dorothy como uma mulher que pretende criar independência estabelecendo laços. Há um romantismo dos anos 99 na história que em parte se perdeu a partir deste século, muitas vezes ingênuo, mas nunca menos do que autêntico. Crowe também possui uma tendência a relatar histórias otimistas, como mostra com o universo do rock em Quase famosos, sempre fazendo seus personagens atuarem com um elo de ligação muito claro com seu público.

Jerry Maguire, EUA, 1996 Diretor: Cameron Crowe  Elenco: Tom Cruise, Cuba Gooding Jr, Renée Zellweger, Kelly Preston, Regina King, Jerry O’Connell, Jay Mohr, Bonnie Hunt, (Jonathan Lipnicki, Beau Bridges Roteiro: Cameron Crowe Fotografia: Janusz Kamiński Trilha Sonora: Nancy Wilson Produção: Cameron Crowe, James L. Brooks, Laurence Mark, Richard Sakai Duração: 139 min. Estúdio: TriStar Pictures, Gracie Films, Vinyl Films Distribuidora: Sony Pictures Releasing

De olhos bem fechados (1999)

Por André Dick

Último filme de Stanley Kubrick, que faleceu sem vê-lo lançado depois da censura causada pelas cenas de nudez, De olhos bem fechados se baseia no livro Breve romance de sonho, de Arthur Schnitzler, com uma carga de tensão dramática, de thriller quase fantasmagórico e uma fotografia surpreendente de Larry Smith. Kubrick, aqui, está interessado numa estética noturna, do cotidiano, mas com um clima onírico, sem a tentativa de fazer cenas antológicas situadas de forma isolada (de agora em diante, possíveis spoilers).
Um médico, Bill Hadford (Tom Cruise), é casado com Alice (Nicole Kidman), e Kubrick já inicia o filme mostrando ambos indo a uma festa. Nela, Bill fica ao lado de duas modelos (Louise J. Taylor e Stewart Thorndike), enquanto sua mulher conversa com um húngaro, Sandor Szavost (Sky Dumont). A pedido do dono da festa, seu cliente Ziegler Victor (Sydney Pollack), o médico é chamado para atender, com urgência, uma modelo com overdose, Mandy (Julienne Davis). Em determinado momento, Bill se depara com um amigo pianista de jazz, Nick Nightingale (Todd Field), que fala de uma festa proibida no qual toca, e Kubrick compõe essa longa sequência com uma direção de arte composta por luzes de Natal e um brilho que tenta realçar, por um lado, cada um do casal sendo abordado por pessoas diferentes, e a maneira como a possível traição se coloca.
No dia seguinte à festa, Alice conta sobre uma fantasia sexual que teve com um oficial da Marinha, enquanto Bill é chamado para atender o pai de uma mulher, Marion (Marie Richardson), que, mesmo casada, o beija e lhe diz que o ama. No entanto, ele está perturbado com o que a mulher lhe contou, e, vagando pela noite, procura novamente Nick, que toca piano num bar à noite e lhe revela o que precisa para ir à festa de máscaras.

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Kubrick está interessado nessa atração do ser humano pelo sexo e pelo proibido – justamente porque é difícil entendê-los quando cercado de vozes e situações incomuns – a partir do choque causado pelo passado e pela morte do presente (não por acaso, depois de visitar o paciente que acabou de morrer, o único pensamento de Cruise seja na relação com a esposa). Muitas vezes, incorre em metáforas, mas a verdade é que o clima criado durante todo o filme é onírico, fiel ao romance, e mostra a descoberta de um mundo que o médico não conhecia, como quando conhece o dono de uma loja de fantasias, Milich (Rade Sherbedzija), que cuida de uma menina (Leelee Sobieski), soando a presença de Lolita. Tom Cruise, com seu aspecto ingênuo, e ainda sem ficar conhecido pelos filmes de ação, cabe muito bem nesse papel, assim como Sydney Pollack, o amigo misterioso. A máscara que o personagem Bill precisa comprar para ir à festa representa as diversas personae que acaba tendo de adotar, a fim de que não seja descoberto.
Há um interesse evidente de Kubrick nessa odisseia pelos espelhos, e os personagens estão sempre à frente deles, sendo vistos ou se olhando, como na conversa que o casal tem, antes de começar a divagar justamente sobre suas repressões. Estamos diante da odisseia de um homem comum, assim como Ulysses cambaleando por Dublin, ou como Lynch tornaria sua personagem Rita em Cidade dos sonhos descendo a Mulholland Drive (uma inspiração de Kubrick em Lynch, para retribuir Eraserhead em O iluminado). Lynch compreende, como Kubrick, que um filme transita por vários gêneros, ou seja, há, em De olhos bem fechados, tanto um drama de costumes quanto uma atmosfera de terror e suspense, e elementos de comédia, tragédia e distração.
No entanto, esta odisseia, assim como pode terminar numa resolução e no encontro do personagem com uma pretensa verdade que pode resguardá-lo de uma verdade maior, também concede uma espécie de visto para uma realidade escondida ao sonho que Bill imagina viver a partir de determinado momento, quando passa a ser seguido pela rua, por pessoas que desconhece, ou quando descobre que o amigo sofreu uma violência.

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A festa com cenas de sexo é mostrada de maneira muito discreta, por meio da brilhante fotografia de Smith, parecendo mais uma espécie de anexo às imagens enquadradas de Barry Lindon, para serem vislumbradas como pinturas, mas é através dela que Bill se coloca em meio à cena central, quando cobrado por sua presença. Isto faz com que Kubrick retome a primeira parte do filme, quando os personagens estão numa festa e seguem caminhos diferentes, embora ambos ilusórios.
Kubrick novamente dispõe seus personagens em cenários assépticos, limpos (mesmo na festa da orgia, que lembra filmes que focam o século XIX), pois construiu um Greenwich Village nos estúdios Pinewood, da Inglaterra. O resultado é que poucos filmes conseguem retratar o ambiente noturno como De olhos bem fechados, e quando o personagem central vaga pela cidade é como se Kubrick conseguisse ingressar o espectador em cada ambiente, seja de festa (como o clube), de terror (o encontro secreto), de alegria estranha (a loja de fantasias, com o nome sugestivo de “Rainbow”, como se remetesse ao universo paralelo de Oz) ou de melancolia (a casa de Domino, uma prostituta pelo qual Bill se interessa, interpretada por Vinessa Shaw). E focaliza sempre a estranheza e o amor entre os personagens num distanciamento provocado por eles mesmos. Isso se deve à interpretação tanto de Cruise quanto de Kidman, que à época formavam um dos casais mais conhecidos de Hollywood e que, de certo modo, expõem a si mesmos por meio dos personagens, embora sempre com um determinado limite, sem nenhuma tendência a algo explícito (o sexo, aqui, sem dúvida não tem a mesma presença daquela que vemos, por exemplo, em Laranja mecânica). Kubrick tinha a noção exata de que, para que o filme rendesse na medida certa, o casal precisaria ser de verdade – e o que eles falassem transpareceria, em algum sentido, o conhecimento da plateia. Tende-se a dizer que as cenas de sexo tão excessivamente assépticas, mas parece se encontrar aí um dos méritos do diretor: as cenas evocam um universo de máscaras, e nada se revela nele. No sexo mostrado de De olhos bem fechados, todos são escondidos.

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Ou seja, De olhos bem fechados quer adentrar a noite como se adentra em personagens densos e provocativos, a começar por Bill, que não enlouquece como outros personagens de Kubrick (o computador de 2001, Jack de O iluminado e o soldado de Nascido para matar), mas porque simplesmente não entende que está acordado. Para Kubrick, a noite e a relação se compara a uma divagação, a um elemento cercado de onirismo, que pode atender ou não por segurança e amor. Interessante, nesse sentido, quando Bill volta à casa de Domino e encontra uma colega, que lhe conta um segredo sobre a amiga, fazendo com que a satisfação de Bill acabe perpassada pelo sentimento de perda – tanto da pessoa quanto da noite anterior, que lhe trouxe o que até então desconhecia. Mesmo com as luzes acesas, e há luzes espalhadas ao longo de todo o filme, seja as de Natal, época em que se passa o filme, seja as das festas que acontecem, é difícil ver os personagens. Resta a perambulação na noite, até um encontro com o segredo, em meio a uma música soturna. E o personagem está sempre acompanhado, na busca de sua fantasia, pelo espectro da morte, que o impede de realizá-la. Depois de diversas obras-primas, De olhos bem fechados é outro filme de Kubrick que atinge notas altas.

Eyes wide shut, EUA/ING, 1999 Diretor: Stanley Kubrick Elenco: Tom Cruise, Nicole Kidman, Sydney Pollack, Rade Serbedzija, Marie Richardson, Thomas Gibson, Leelee Sobieski, Vinessa Shaw, Todd Field  Roteiro: Stanley Kubrick, Frederic Raphael Fotografia: Larry Smith Trilha Sonora: Jocelyn Pook Produção: Brian W. Cook, Stanley Kubrick Duração: 160 min. Estúdio: Hobby Films / Warner Bros. Distribuidora: Warner Bros.

 

Questão de honra (1992)

Por André Dick

Drama indicado a quatro Oscars (filme, ator coadjuvante, montagem e som) e que foi melhorando cada vez mais com o tempo, este filme de Rob Reiner traz um roteiro adaptado de uma peça de Aaron Sorkin (ele mesmo fez a adaptação) e investe num tema comum ao cinema norte-americano: o poder da força militar dentro do país. Dois fuzileiros, Louden Downey (James Marshall) e Harold W. Dawson (Wolfgang Bodison), são acusados de matar um companheiro, William Santiago, depois de aplicar o Código Vermelho, dentro da base militar americana em Guantánamo, comandada por um coronel corrupto, Nathan Jessup (Jack Nicholson), assessorado pelo tenente-coronel Matthew Markinson (JT Walsh) e pelo tenente Jonathan James Kendrick (Kiefer Sutherland). O caso chega ao governo federal e acaba na mão de um jovem casal, Daniel Kaffee (Tom Cruise) e JoAnne Galloway (Demi Moore), com a ajuda de Sam Weinberg (Kevin Pollack), resultando numa boa combinação. Eles começarão a investigar os fatos que cercam a morte do fuzileiro.

A montagem é uma das melhores estabelecidas num filme passado basicamente dentro de um tribunal, funcionando também com o simbolismo de algumas cenas. Já no início, mostra um batalhão de soldados realizando manobras com fuzis e em seguida a câmera segue o rosto de Demi, vestida de oficial, mostrando que ela representa a determinação feminina deslocada deste universo. O personagem de Cruise, filho de um famoso advogado, é bem delineado, e o ator ajuda a criar empatia, alternando descompromisso,  com sua fixação por esportes, e enfrentamento quando vai ao tribunal. Logo depois de suas atuações em Rain Man e Nascido em 4 de julho, Cruise era um dos melhores atores dramáticos de sua geração, o que foi dando espaço ao ator meramente de obras de ação, num dos declínios não financeiros, porém artísticos, de Hollywood, apesar de sua ótima série Missão: impossível. Cruise se alia tão bem a Moore que, quando eles encontram o coronel Jessup em Cuba, é uma das grandes sequências da filmografia de ambos, além, especialmente, de Nicholson, numa participação curta que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de ator coadjuvante, fazendo um vilão temível.

Sorkin, roteirista que depois ficaria conhecido pelo trabalho em A rede social, O homem que mudou o jogo Steve Jobs, além de ter estreado como diretor em A grande jogada, empreende uma sucessão de questionamentos, interrogatórios, utilizando os personagens do melhor modo em cada espaço. Do mesmo modo, chama a atenção como há um cuidado em traçar a passagem de estações: o filme parece começar no outono, depois passa pela primavera, até chegar ao verão. O design de produção, para isso, é extremamente funcional, quando se concentra especificamente nas reuniões de equipe na casa de Kaffee. Com o apoio do diretor de fotografia Robert Richardson, responsável pela maior parte dos filmes de Tarantino, consegue-se utilizar a iluminação em diálogo com os uniformes, além de estabelecer os pubs e corredores como confortáveis para os personagens exercerem seus diálogos. A maneira como o roteiro vai lidando com a posição de poder de cada personagem em cada circunstância diferenciada também se destaca de maneira evidente.

Os coadjuvantes (a maioria conhecidos, como Kevin Bacon, Kiefer Sutherland e James Marshall) cumprem suas funções corretamente, desempenhando personagens verossímeis e decorrentes de uma ótima direção de Reiner. Visto diversas vezes, Questão de honra funciona como raras obras do gênero, fazendo o espectador se perguntar por que não se fazem mais filmes em estilo mais objetivo como este e ainda assim com conteúdo impactante. Ainda: reserva para os últimos minutos um duelo fantástico, capaz de colocá-lo entre as grandes peças clássicas de uma época em que Hollywood tinha mais interesse em traçar roteiros ao mesmo tempo simples e complexos, além de seu custo reduzido (em torno de 30 milhões de dólares) ter retornado uma grande bilheteria (em torno de 240 milhões). Rob Reiner, à época, era um dos diretores em atividade mais interessantes, tendo feito a brincadeira fabular A princesa prometida, além de Conta comigo e Louca obsessão, duas das melhores adaptações da obra de Stephen King, tão delineados em roteiro quanto Questão de honra, e o nostálgico Harry & Sally – Feitos um para o outro. Este não é o melhor filme de tribunal já feito, mas parece.

A few good men, EUA, 1992 Diretor: Rob Reiner Elenco: Tom Cruise, Jack Nicholson, Demi Moore, Kevin Bacon, Kevin Pollak, Wolfgang Bodison, James Marshall, JT Walsh, Kiefer Sutherland Roteiro: Aaron Sorkin Fotografia: Robert Richardson Trilha Sonora: Marc Shaiman Produção: Rob Reiner, David Brown, Andrew Scheinman Duração: 138 min. Estúdio: Castle Rock Entertainment
Distribuidora: Columbia Pictures

Missão: impossível – Efeito Fallout (2018)

Por André Dick

O primeiro Missão: impossível, ainda dos anos 90, mostrou a volta, na época, do diretor Brian De Palma, estruturado em momentos de suspense, depois do desapontamento financeiro de A fogueira das vaidades e Síndrome de Caim. Nele, Ethan Hunt (Tom Cruise), um agente principal da IMF (Impossible Mission Force), é acusado de traição e precisa buscar uma lista oficial de espiões norte-americanos para a misteriosa Max (Vanessa Redgrave), a fim de provar sua inocência. Auxiliado por uma dupla (Ving Rhames e Jean Réno) e tendo em torno Claire (Emmanuelle Béart), o agente tenta chegar ao computador que contém a lista. Mesmo não apresentando muitos momentos de ação, a expectativa da história criada por De Palma vale a sessão, com uma passagem final memorável, em que a fotografia do colaborador habitual do diretor, Stephen H. Burum, era um trunfo. Se o segundo filme, dirigido por John Woo, tinha prevalência de estilo sobre substância, o terceiro, de J.J. Abrams elevou a série a um novo patamar, com o agente Hunt, dividido entre o trabalho e o casamento com Julia (Michelle Monagan). No entanto, ela não sabe de sua vida dupla, e ele parte em nova missão, para capturar Owen Davian (o ótimo Philip Seymour Hoffmann), que tem um objeto, o Pé de Coelho. O filme basicamente é sobre sua tentativa de reencontrar a namorada, mas Abrams concede ao personagem traços humanos.

No quarto filme, de Brad Bird, com o subtítulo Protocolo fantasma, além da curiosa presença de Léa Seydoux, as sequências de ação e a beleza das paisagens, na tempestade do deserto antológica, eram um acréscimo à competência narrativa, o que se repetiu na quinta parte, Nação secreta. O diretor desta, Christopher McQuarrie, volta em Missão: impossível – Efeito Fallout.
O filme dá prosseguimento ao que aconteceu no anterior. O que sobrou da organização de Solomon Lane (Sean Harris) se transformou num grupo terrorista. Ethan Hunt, em Belfast, precisa interromper a venda de plutônio para integrantes desse grupo, para outro cliente, John Lark. Ele recebe a ajuda novamente de Benjamin Dunn (Simon Pegg) e Luther Stickell (Ving Rhames). No entanto, acontece um imprevisto, que vai colocar Hunt em ação. Mesmo sob ordem de Alan Hunley (Alec Baldwin), ex-agente da CIA e secretário do IMF, para acompanhar Hunt, a agente Erica Sloane (Angela Bassett) escolhe o agente August Walker (Henry Cavill) e a primeira passagem é para a Cidade das Luzes, onde MvQuarrison filma cenas de ação antológicas, sob influência clara de John Wick 2 (a luta no banheiro entre os heróis e um personagem feito por Liang Yang) e do James Cameron de O exterminador do futuro 2, na perseguições de motos e carros. Lá, Hunt conhece a White Widow (Vanessa Kirby), enquanto tenta encontrar os integrantes ex-aliados de Lane, ao mesmo tempo que reencontra Ilsa Faust (Rebecca Ferguson), ex-agente do MI6, que aparecia em Nação secreta.

Efeito Fallout tem, primeiramente, excelentes locações (toda a sequência que se passa em Paris), assim como acontecia no terceiro, passado em grande quantidade no Japão (onde Ethan tinha uma passagem que inspiraria Batman em seu segundo filme de Nolan). As peripécias do agente são obviamente difíceis de acreditar, mas Quarrie filma com tanta veracidade e com uma fotografia alternando ângulos que sabemos estar diante de uma obra de aventura incomum. Tudo soa espetacular, com efeitos especiais de ponta e design de produção detalhista (o clube noturno, por exemplo), auxiliado por uma montagem trepidante.
McQuarrie concentra uma carga mais humana no personagem de Hunt, ou seja, coloca medo e reflexão na maneira como ele age diante do perigo. Isso fazia falta sobretudo no segundo da série. No primeiro, De Palma fazia um filme de ação quase orquestrado – num meio caminho entre os policiais que fez (Os intocáveis) com o aspecto cult de Femme fatale. Por sua vez, Abrams fazia uma espécie de peça de espionagem em que, à medida que acelera, consegue estabelecer cada um dos componentes de interesse entre cada personagem – ou seja, parecia que estávamos em meio à ação e o personagem de Hunt tentava encontrar a sua amada para se reconectar a uma vida ilusória. As conversas de Luther com a personagem de Rebecca Ferguson são as que melhor retomam essa tentativa de experimentar uma vida cotidiana.

Se o quarto e o quinto filmes foram interessantes, no entanto concentrados na parte visual, é neste sexto que McQuarrie estabelece melhor ainda a peregrinação de Hunt com o peso de escolher entre a humanidade e os amigos, de forma destacada no primeiro ato. E, mesmo que Pegg e Rhames continuem boas presenças, trazendo doses bem-vindas de humor, é, de forma surpreendente, que Cavill, um ator normalmente restrito apenas ao personagem de Superman e poucas variações (no ótimo O agente da U.N.C.L.E.), se destaque. Por isso, talvez, ele se ressinta, em alguns momentos, de reviravoltas no ato final, quando tudo se estabelece de maneira mais direta e Tom Cruise continue se afastando de um roteiro em que atue menos fisicamente. Surge uma personagem surpresa de um dos filmes passados e, ao contrário de explorar a sua presença, McQuarrie prefere se concentrar apenas na ação, o que diminui uma certa conexão do público. De qualquer modo, blockbuster de grande qualidade, Efeito Fallout acaba concedendo mais responsabilidade para as próximas obras de 007, a única franquia que possui a mesma quantidade de cenas de ação em intensidade, em que o espectador não apenas testemunha a ação, como se corresponde com a corrente emocional dos personagens. Existe aqui uma narrativa funcional, sem desenvolvimentos desnecessários, parecendo-se muito com Operação Skyfall nesse aspecto, abrindo os personagens para uma continuação possivelmente ainda mais grandiosa e capaz de reunir elementos do passado de Hunt e o futuro da humanidade contra grupos ameaçadores.

Mission: Impossible – Fallout, EUA, 2018 Diretor: Christopher McQuarrie Elenco: Tom Cruise, Henry Cavill, Ving Rhames, Simon Pegg, Rebecca Ferguson, Sean Harris, Angela Bassett, Alec Baldwin Roteiro: Christopher McQuarrie Fotografia: Rob Hardy Trilha Sonora: Lorne Balfe Produção: Tom Cruise, JJ Abrams, David Ellison, Dana Goldberg, Don Granger, Christopher McQuarrie, Jake Myers Duração: 147 min. Estúdio: Bad Robot, Skydance Media, Alibaba Pictures Distribuidora: Paramount Pictures

A lenda (1985)

Por André Dick

A Segunda História da Criação da Bíblia inicia-se no versículo 5 do Cap. II do Gênese. Em III, 22, expressa-se a razão pela qual Deus pune o ser humano no paraíso. É que estariam, homem e mulher, a um passo de elevar-se à condição de “deuses” (III, 5). Bastaria que eles, já possuidores do “conhecimento”, lançassem a mão ao fruto da “árvore da vida” e, comendo-o, ganhassem a imortalidade, passando a viver para sempre.
Em A lenda, de Ridley Scott, este início da Bíblia se reproduz na história da Princesa Lily (Mia Sara), que é chamada por Jack (Tom Cruise) a ver dois unicórnios que não podem ser tocados no rio em meio a uma espécie de floresta encantada. Não há uma explicação clara, no roteiro, de como eles se conheceram, nem onde seria exatamente seu palácio, mas Jack surge como o seu amor – como se eles fizessem parte de um mundo à parte, em que Lily sai pela floresta apenas para encontrar uma camponesa amiga, Nell (Tina Martin).
Ela acaba por tocar num dos unicórnios e permite com que duendes, tendo à frente Blix (Alice Playten), enviados pela escuridão, cortem o chifre de um deles e levem a unicórnio fêmea para o sacrifício. A escuridão é almejada pelo senhor das Trevas (Tim Curry), e os unicórnios representam a claridade do universo.

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Depois de cair nas águas de um lago, a fim de encontrar o anel da princesa Lily, Jack acaba por ficar embaixo do gelo; quando ele consegue quebrá-lo, o mundo já está transformado e ele, sem saber ao certo o que aconteceu, passa a ir atrás de Lily, que volta à casa de Nell, tentando escapar dos duendes.
A lenda, de Ridley Scott, é um produto acabado dos anos 80 e encontra diálogo com outros filmes de fantasia, como Labirinto, Flash Gordon e Krull. Mas é interessante mesmo como o filme de Scott, com seu visual extraordinário (em que havia pouco CGI e os cenários, de Assheton Gordon e Leslie Dilley, este de Star Wars, pareciam realmente reais), composto nos estúdios Pinewood, da Inglaterra, além de influenciado por outros filmes de Scott, como Alien – e interessante como, hoje, se vê traços do filme também em Prometheus –, com a belíssima fotografia de Alex Thomson, tem esse curioso subtexto religioso. E, como outros filmes de Scott, sua qualidade fica ainda mais perceptível na versão estendida (109 minutos, vinte a mais que o original).

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Jack serve como uma espécie de Adão. Na Bíblia, este foi colocado para nomear as coisas do mundo. E para Lily ele nomeia os unicórnios. Assim como o unicórnio em A lenda, a maçã, na Bíblia, traz a queda do paraíso, e Adão, como um romântico, leva consigo a noção de Deus, como seu grande criador, mas também como o gênio solitário, que é abandonado, como o Werther de Goethe. O castigo imposto a Adão e Eva por Deus é um castigo exatamente por se ceder à maçã proibida.
A presença de Deus, levando as personagens (no caso, Adão e Eva) a tentar reconhecer o que desconhecem (e não tem nome, pois guarda o segredo do sexo e do corpo humano), revela uma autodescoberta da violência que existe quando não há nomeação para aquilo que se faz. Adão não consegue nomear o que fez, porém Deus sim: seria o pecado. Em A lenda, de Scott, esse pecado surge no momento em que Jack resolve mostrar a Lily os unicórnios. Ele não sabe ao certo por que o cenário se torna invernoso e encoberto, no entanto sabe que algo foi cometido, e não poderia. Seu amor também não se encontra definido, mas ele sabe que está ligado a ela.

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O homem, feito à sua imagem e semelhança, continua sendo o espelho de Deus, contudo este espelho, no silêncio do pecado, se quebra. E ele, expulso do paraíso, precisa enfrentar a escuridão. Em A lenda, esse enfrentamento começa na travessia de um pântano e nos corredores da grande torre onde se esconde a besta, com a ajuda de Honeythorn Gump (David Bennent e dublado por Alice Playten), a fada Oona (Annabelle Lanyon), que se apaixona por Jack – uma espécie de Sininho de Peter Pan –, e uma dupla de duendes (Billy Barty e Cork Hubbert).
É interessante como Lily e sua inocência também tem parentesco com a menina Sarah (Connely, ainda adolescente), de Labirinto, uma garota triste, que vive no mundo da fantasia e pede para que o rei dos duendes, Jareth (David Bowie), leve embora seu irmão por parte de pai. Ela se arrepende de ter feito isso; no entanto, ela terá de atravessar um labirinto para trazê-lo de volta. No labirinto, arranja inúmeros amigos, como Hogglle, que a ajuda a chegar ao castelo, e outros: Ludo, um gigante peludo, e Sir Didymus, que parece um Fox terrier. Há, aqui, outro parentesco com A lenda: os duendes ajudam Jack e Lily a buscarem o unicórnio fêmea.

Trata-se, como A lenda, de uma referência em direção de arte e efeitos especiais, e da tentativa de possuir responsabilidade de uma garota saindo entre a adolescência e a vida adulta. Connelly é uma boa atriz para representar essa passagem, e algo de sua inocência se perde nessa jornada: o ingresso no quarto depois de passar pelo ferro-velho é um primor de concepção. Mia Sara, em A lenda, desempenha um papel em que o atrito entre a fantasia e a realidade, e, assim como Connelly em Labirinto, deseja recuperar o universo que perdeu. A Lily de Sara precisa enfrentar o que o senhor das Trevas lhe oferece: todas as riquezas materiais e uma sensação de poder, de controle sobre todo o universo. Enquanto isso, Jack precisa enfrentar a ilusão do espelho causado pela fada Oona, que pode enganá-lo. Na sequência final, os claros-escuros de A lenda proporcionam algumas cenas assustadoras, o que explica por que a Disney, a quem o filme foi oferecido inicialmente, não o aceitou.
Interessante, ao mesmo tempo, como, afastado dos anos 80, A lenda é uma espécie de prenúncio visual para séries como O senhor dos anéis – sendo que seu roteiro se inspira claramente nos livros de Tolkien – e merece uma reavaliação à altura de seus conceitos e referências mitológicas e religiosas.

Legend, EUA/Reino Unido, 1985 Diretor: Ridley Scott Elenco: Tom Cruise, Mia Sara, Tim Curry, David Bennent, Alice Playten, Billy Barty, Cork Hubbert, Peter O’Farrell, Kiran Shah, Annabelle Lanyon, Robert Picardo, Tina Martin, Ian Longmur, Mike Crane, Liz Gilbert, Eddie Powell Roteiro: William Hjortsberg Fotografia: Alex Thomson Trilha Sonora: Jerry Goldsmith (Versão estendida), Tangerine Dream (Versão original) Produção: Arnon Milchan Duração: 89 min. (Versão original), 109 min. (Versão estendida) Distribuidora: Universal Pictures, 20th Century Fox  

A múmia (2017)

Por André Dick

Há alguns filmes que não provocam muitas expectativas, e esta refilmagem de A múmia é um deles. Não apenas porque a história já se mostra um tanto desgastada, depois da série iniciada nos anos 90, com Brendan Fraser e Rachel Weisz, como também Tom Cruise está se repetindo cada vez mais no papel de herói em filme de ação. Depois de O último samurai, Colateral e Operação Valquíria, com algumas de suas melhores atuações, ao lado daquelas em Nascido em 4 de julho, Magnólia e De olhos bem fechados, Cruise se dedica a filmes em que possa se arriscar fazendo cenas no lugar de dublês, deixando clara uma escolha artística. Não deixa de se lamentar a perda de interesse por outros gêneros de um dos maiores atores dramáticos de Hollywood.
O filme inicia em 1127 a.C., quando cavaleiros ingleses descobrem um rubi egípcio e o enterram em uma tumba. Na Londres de hoje, uma equipe de construtores da Crossrail descobrem o lugar. Em um flashback, retoma-se a história da Princesa Ahmanet, numa sucessão de imagens envolvendo a inveja que tinha do filho recém-nascido de seu pai, que ocuparia seu lugar em direção ao poder do Egito. Sua lenda se encerra, obviamente, numa espécie de maldição, sendo mumificada, com um jogo de luzes que recupera algo de Fome de viver, dos anos 80.

No Iraque atual, onde existia a antiga Mesopotâmia, o mercenário Nick Morton (Tom Cruise) e seu parceiro Chris Vail (Jake Johnson) descobrem justamente a tumba de Ahmanet (a nova estrela Sofia Boutella, de Kingsman), junto com a arqueóloga Jenny Halsey (Annabelle Wallis), um interesse romântico antigo de Nick. Isso é o início para uma sequência de cenas de ação suficientemente divertidas para prender a atenção do espectador. A primeira se passa num avião, talvez a mais espetacular do ano, com um trabalho de movimentação de câmeras impactante, depois de Nick perceber que está tendo visões estranhas e parece ter ficado obcecado pela figura de Ahmanet. Mais interessante fica quando sabemos que Halsey trabalha para o Dr. Jekyll (um Russel Crowe claramente se divertindo) e o filme se desloca para a Inglaterra, no qual temos um refinamento de humor envolvendo o personagem de Nick e, principalmente, sua amizade com Vail, já em outro estado.

Tudo em A múmia é calculado, com efeitos visuais espetaculares e muito CGI, e a direção de Alex Kurtzman é previsível. Trata-se do segundo filme do diretor, que colaborou no roteiro de vários sucessos, entre os quais A lenda do Zorro, Missão: impossível III, Transformers, Watchmen, Star Trek e Cowboys e aliens, ou seja, especialista em grandes produções. Ele tem uma boa noção de ritmo e humor, principalmente na primeira hora, bastante agradável, trabalhando bem com a faceta bem-humorada de Tom Cruise, no entanto é justamente no desenvolvimento do roteiro e dos personagens que a obra apresenta mais falhas. Se o personagem de Nick tem uma boa química inicial com Jenny, aos poucos as cenas de ação passam a ocupar o centro emocional da trama, e nenhum dos atores consegue estar à altura desse combate. No entanto, mesmo em meio a elas pode-se extrair alguns momentos de cinema de ação de qualidade, como aqueles que antecedem uma ameaça sobre Londres. Os filmes de A múmia com Fraser tinham como foco exatamente a mescla entre ação e humor e por vezes principalmente o primeiro era assustador. Esta versão de Kurtzman tenta usar alguns ingredientes parecidos, no entanto procura ser mais soturno na resolução de determinados momentos.

A múmia também inaugura o Dark Universe, que pretende trazer vários filmes envolvendo monstros, em refilmagens de clássicos da Universal. A ideia é boa e, se conseguirem a qualidade que este filme obtém em sua primeira metade, há possibilidade de uma franquia interessante. A sua bilheteria não foi à altura do esperado, mas conseguiu bastante sucesso em países fora dos Estados Unidos, o que pode ser um caminho para os outros. Este é um universo realmente interessante, que merecia, num primeiro momento, melhor tratamento, mas que tem acertos e não deve ser desconsiderado, ao poder entrelaçar diferentes personagens num mesmo núcleo.

The mummy, EUA, 2017 Diretor: Alex Kurtzman Elenco: Tom Cruise, Sofia Boutella, Annabelle Wallis, Jake Johnson, Courtney B. Vance, Marwan Kenzari, Russell Crowe, Javier Botet Roteiro: David Koepp, Christopher McQuarrie, Dylan Kussman Fotografia: Ben Seresin Trilha Sonora: Paul Hirsch Produção: Alex Kurtzman, Chris Morgan, Roberto Orci, Sean Daniel Duração: 110 min. Estúdio: K/O Paper Products / Sean Daniel Company / Universal Pictures

 

Vidas sem rumo (1983)

Por André Dick

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Antes de John Hughes compor boa parte da visão do universo adolescente nos anos 80, com Gatinhas e gatões, O clube dos cinco e A garota de rosa shocking, o diretor Francis Ford Coppola, recém-saído dos problemas financeiros trazidos por sua obra-prima O fundo do coração, realizou a adaptação para o cinema de Outsiders, de Susan E. Hinton, com a revelação de um elenco de jovens estelar, que teria novos projetos de destaque, sobretudo naquela década (Estevez e Lowe se reencontrariam em O primeiro ano do resto de nossas vidas). Isso aconteceu depois de receber uma carta de uma bibliotecária que, em nome de alguns alunos (ver carta e respostas), lhe pedia para que fizesse a adaptação. Envolvido desde os anos 1970 com cenários mafiosos (de O poderoso chefão) e de guerra (Apocalypse now), caracterizados pela grandiosidade, não parecia adequado esperar que Coppola gostaria de adaptar uma história de brigas entre gangues, com jovens problemáticos, material menos ambicioso do que suas obras anteriores. A história se passa em Oklahoma, Tulsa, em 1965, quando vemos uma gangue – os Greasers – formada por Ponyboy (Howell),seus irmãos Darrel (Swayze) e Sodapop (Lowe), além de Johnny Cade (Macchio), Two-Bit Matthews (Estevez), Dallas Winston (Dillon) e Steve Randle (Cruise). Eles são rivais de outra gangue, composta por jovens da classe rica, que se autointitula Socs.

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Vidas sem rumo

Na versão estendida do filme (de 109 minutos, encontrada em Blu-Ray, enquanto a versão lançada nos cinemas era de 91 minutos), logo no início, quando vemos Ponyboy quase se envolver em confusão, sendo salvo por amigos, ao som de Elvis Presley (que ocupa a trilha de Carmine, pai de Francis, no original), já sabemos que Vidas sem rumo terá um ritmo de pressão adolescente. Essa gangue tem, por um lado, a liderança de Darrel, o mais velho, e por outro lado a rebeldia de Dallas. É esta rebeldia que levará ao primeiro desentendimento do filme com o universo feminino, quando ele, Ponyboy e Johnny estão num cinema drive-in e encontram duas jovens, Cherry (Lane) e Marcia (Meyrink). Após Cherry se desentender com Dallas, ela aceita a conversa dos outros dois, mas eles são perseguidos por dois integrantes dos Socs, Bob Sheldon (Garrett) e Randy Adderson (Dalton). Apenas aparentemente as coisas se resolvem, pois, quando estão à noite, numa praça, Ponyboy e Johnny são atacados por eles.
As consequências os levam a fugir da cidade, indo se refugiar numa igreja abandonada numa cidade vizinha. Ponyboy ponta o cabelo de loiro e, influenciado por …E o vento levou e um poema de Robert Frost, imagina um horizonte igual ao filme de Fleming. São dois jovens refugiados tanto da condição de se afastarem do universo de gangues quanto da sua verdadeira personalidade. A versão estendida de Coppola sugere uma ligação estrita entre esses dois personagens, também pela amizade de Ponnyboy com o irmão, Sodapop (personagem que pouco aparece na versão menor). Esta relação se estabelece com mais força depois que ambos são expostos a um acontecimento que pode transformar suas vidas e fazer com que se depare com uma situação mais grave.
Acostumado a mostrar os vínculos entre os mafiosos de O poderoso chefão e a relação apaixonada do casal central de O fundo do coração, Coppola visualiza esses jovens como afastados de uma cultura norte-americana. Suas origens são misturadas, e são melancólicos em não conseguir fazer parte diretamente desta cultura, também pelo estereótipo firmado de classes sociais afastadas umas das outras. Quando a fotografia excepcional de Stephen H. Burum parece reproduzir flashes de …E o vento levou, é sempre sob esse ponto de vista, de que os personagens gostariam de pertencer a algo maior, mais transcendente, do que a condição em que são colocados. Com uma vontade explícita também de dialogar com Terrence Malick de Terra de ninguém e Dias de paraíso, Coppola filma esses bairros e ruas em que os jovens se movimentam quase totalmente vazios, afastados de qualquer movimento e perspectiva. A noite no parque tem apenas a companhia do vento e as casas parecem sempre com as luzes apagadas ou enfraquecidas. Não se avista ninguém pelas janelas ou cortinas, como se não houvesse ninguém para ajudá-los, apenas com a ameaça invisível da polícia.

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O mesmo acontece quando Ponnyboy e Johnny precisam se refugiar em outra cidade e viajam de trem, chegando a um descampado. Coppola filma com cuidado essas imagens, embora não consiga estabelecer um vínculo entre os personagens do mesmo modo que acontece com esses dois. De qualquer modo, o elenco é de grande talento. Dillon, que vinha de outro belo filme com jovens, Tex, entrega uma atuação exemplar, assim como Macchio mostra que sua carreira ter praticamente encerrado depois dos anos 80 (voltou recentemente numa ponta em Hitchcock) foi uma injustiça. Thomas Howell é um bom ator, que faria depois o ótimo A morte pede carona, e Diane Lane tem uma participação curta, mas marcante, demonstrando a boa atriz que viria a ser. Já os demais são bastante convincentes: Lowe e Swayze formam uma boa dupla de irmãos para Howell, Cruise já mostra o que viria a explorar mais em Nascido em 4 de julho, e Estevez adianta sua participação talentosa em filmes como O primeiro ano do resto de nossas vidas e Tocaia.
Mas o primeiro nome a rejuvenescer a sua filmografia, aqui, é mesmo Coppola. Pouco afeito a este universo, que viria a adentrar novamente com interesse em O selvagem da motocicleta, do mesmo ano (com Dillon, Lane e o acréscimo de Mickey Rourke), plasticamente tão interessante quanto este filme, mas com uma força dramática menos intensa, Coppola tenta refazer sua história com uma narrativa mais simples em vários pontos, sem as repetições e fugas de um longa-metragem mais largo como os que fez nos anos 70. Se isso prejudica o desenvolvimento de alguns personagens e situações, mostra um desprendimento maior em relação a lances narrativos que desviem a sensibilidade do espectador. Embora muitos prefiram a versão original, a versão estendida de Coppola, com um prólogo e um desfecho mais elaborados, além da trilha sonora com canções da época, tornando a narrativa menos melancólica, mostram realmente a melhor adaptação do livro de Hinton. Os personagens têm uma carga maior de personalidade, o que lhes concede mais vida, mantendo Vidas sem rumo como um cult movie sólido.

The outsiders, EUA, 1983 Diretor: Francis Ford Coppola Elenco: C. Thomas Howell, Ralph Macchio, Diane Lane, Emilio Estevez, Tom Cruise, Matt Dillon, Patrick Swayze, Rob Lowe, Sofia Coppola, Tom Waits, Michelle Meyrink, Leif Garrett, Darren Dalton Roteiro: Kathleen Rowell Fotografia: Stephen H. Burum Trilha Sonora: Carmine Coppola  Produção: Francis Ford Coppola, Fred Roos, Gray Fredrickson Duração: 91 min. (versão original); 109 min. (versão estendida) Estúdio: Pony Boy / Zoetrope Studios

Cotação 4 estrelas

De olhos bem fechados (1999)

Por André Dick

De olhos bem fechados.Stanley Kubrick

Último filme de Stanley Kubrick, que faleceu sem vê-lo lançado depois da censura causada pelas cenas de nudez, De olhos bem fechados se baseia no livro Breve romance de sonho, de Arthur Schnitzler, com uma carga de tensão dramática, de thriller quase fantasmagórico e uma fotografia surpreendente de Larry Smith. Kubrick, aqui, está interessado numa estética noturna, do cotidiano, mas com um clima onírico, sem a tentativa de fazer cenas antológicas situadas de forma isolada (de agora em diante, possíveis spoilers).
Um médico, Bill Hadford (Tom Cruise), é casado com Alice (Nicole Kidman), e Kubrick já inicia o filme mostrando ambos indo a uma festa. Nela, Bill fica ao lado de duas modelos (Louise J. Taylor e Stewart Thorndike), enquanto sua mulher conversa com um húngaro, Sandor Szavost (Sky Dumont). A pedido do dono da festa, seu cliente Ziegler Victor (Sydney Pollack), o médico é chamado para atender, com urgência, uma modelo com overdose, Mandy (Julienne Davis). Em determinado momento, Bill se depara com um amigo pianista de jazz, Nick Nightingale (Todd Field), que fala de uma festa proibida no qual toca, e Kubrick compõe essa longa sequência com uma direção de arte composta por luzes de Natal e um brilho que tenta realçar, por um lado, cada um do casal sendo abordado por pessoas diferentes, e a maneira como a possível traição se coloca.
No dia seguinte à festa, Alice conta sobre uma fantasia sexual que teve com um oficial da Marinha, enquanto Bill é chamado para atender o pai de uma mulher, Marion (Marie Richardson), que, mesmo casada, o beija e lhe diz que o ama. No entanto, ele está perturbado com o que a mulher lhe contou, e, vagando pela noite, procura novamente Nick, que toca piano num bar à noite e lhe revela o que precisa para ir à festa de máscaras.

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Kubrick está interessado nessa atração do ser humano pelo sexo e pelo proibido – justamente porque é difícil entendê-los quando cercado de vozes e situações incomuns – a partir do choque causado pelo passado e pela morte do presente (não por acaso, depois de visitar o paciente que acabou de morrer, o único pensamento de Cruise seja na relação com a esposa). Muitas vezes, incorre em metáforas, mas a verdade é que o clima criado durante todo o filme é onírico, fiel ao romance, e mostra a descoberta de um mundo que o médico não conhecia, como quando conhece o dono de uma loja de fantasias, Milich (Rade Sherbedzija), que cuida de uma menina (Leelee Sobieski), soando a presença de Lolita. Tom Cruise, com seu aspecto ingênuo, e ainda sem ficar conhecido pelos filmes de ação, cabe muito bem nesse papel, assim como Sydney Pollack, o amigo misterioso. A máscara que o personagem Bill precisa comprar para ir à festa representa as diversas personae que acaba tendo de adotar, a fim de que não seja descoberto.
Há um interesse evidente de Kubrick nessa odisseia pelos espelhos, e os personagens estão sempre à frente deles, sendo vistos ou se olhando, como na conversa que o casal tem, antes de começar a divagar justamente sobre suas repressões. Estamos diante da odisseia de um homem comum, assim como Ulysses cambaleando por Dublin, ou como Lynch tornaria sua personagem Rita em Cidade dos sonhos descendo a Mulholland Drive (uma inspiração de Kubrick em Lynch, para retribuir Eraserhead em O iluminado). Lynch compreende, como Kubrick, que um filme transita por vários gêneros, ou seja, há, em De olhos bem fechados, tanto um drama de costumes quanto uma atmosfera de terror e suspense, e elementos de comédia, tragédia e distração.
No entanto, esta odisseia, assim como pode terminar numa resolução e no encontro do personagem com uma pretensa verdade que pode resguardá-lo de uma verdade maior, também concede uma espécie de visto para uma realidade escondida ao sonho que Bill imagina viver a partir de determinado momento, quando passa a ser seguido pela rua, por pessoas que desconhece, ou quando descobre que o amigo sofreu uma violência.

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A festa com cenas de sexo é mostrada de maneira muito discreta, por meio da brilhante fotografia de Smith, parecendo mais uma espécie de anexo às imagens enquadradas de Barry Lindon, para serem vislumbradas como pinturas, mas é através dela que Bill se coloca em meio à cena central, quando cobrado por sua presença. Isto faz com que Kubrick retome a primeira parte do filme, quando os personagens estão numa festa e seguem caminhos diferentes, embora ambos ilusórios.
Kubrick novamente dispõe seus personagens em cenários assépticos, limpos (mesmo na festa da orgia, que lembra filmes que focam o século XIX), pois construiu um Greenwich Village nos estúdios Pinewood, da Inglaterra. O resultado é que poucos filmes conseguem retratar o ambiente noturno como De olhos bem fechados, e quando o personagem central vaga pela cidade é como se Kubrick conseguisse ingressar o espectador em cada ambiente, seja de festa (como o clube), de terror (o encontro secreto), de alegria estranha (a loja de fantasias, com o nome sugestivo de “Rainbow”, como se remetesse ao universo paralelo de Oz) ou de melancolia (a casa de Domino, uma prostituta pelo qual Bill se interessa, interpretada por Vinessa Shaw). E focaliza sempre a estranheza e o amor entre os personagens num distanciamento provocado por eles mesmos. Isso se deve à interpretação tanto de Cruise quanto de Kidman, que à época formavam um dos casais mais conhecidos de Hollywood e que, de certo modo, expõem a si mesmos por meio dos personagens, embora sempre com um determinado limite, sem nenhuma tendência a algo explícito (o sexo, aqui, sem dúvida não tem a mesma presença daquela que vemos, por exemplo, em Laranja mecânica). Kubrick tinha a noção exata de que, para que o filme rendesse na medida certa, o casal precisaria ser de verdade – e o que eles falassem transpareceria, em algum sentido, o conhecimento da plateia. Tende-se a dizer que as cenas de sexo tão excessivamente assépticas, mas parece se encontrar aí um dos méritos do diretor: as cenas evocam um universo de máscaras, e nada se revela nele. No sexo mostrado de De olhos bem fechados, todos são escondidos.

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Ou seja, De olhos bem fechados quer adentrar a noite como se adentra em personagens densos e provocativos, a começar por Bill, que não enlouquece como outros personagens de Kubrick (o computador de 2001, Jack de O iluminado e o soldado de Nascido para matar), mas porque simplesmente não entende que está acordado. Para Kubrick, a noite e a relação se compara a uma divagação, a um elemento cercado de onirismo, que pode atender ou não por segurança e amor. Interessante, nesse sentido, quando Bill volta à casa de Domino e encontra uma colega, que lhe conta um segredo sobre a amiga, fazendo com que a satisfação de Bill acabe perpassada pelo sentimento de perda – tanto da pessoa quanto da noite anterior, que lhe trouxe o que até então desconhecia. Mesmo com as luzes acesas, e há luzes espalhadas ao longo de todo o filme, seja as de Natal, época em que se passa o filme, seja as das festas que acontecem, é difícil ver os personagens. Resta a perambulação na noite, até um encontro com o segredo, em meio a uma música soturna. E o personagem está sempre acompanhado, na busca de sua fantasia, pelo espectro da morte, que o impede de realizá-la. Depois de diversas obras-primas, De olhos bem fechados é outro filme de Kubrick que atinge notas altas.

Eyes wide shut, EUA/ING, 1999 Diretor: Stanley Kubrick Elenco: Tom Cruise, Nicole Kidman, Sydney Pollack, Rade Serbedzija, Marie Richardson, Thomas Gibson, Leelee Sobieski, Vinessa Shaw, Todd Field Produção: Brian W. Cook, Stanley Kubrick Roteiro: Stanley Kubrick, Frederic Raphael Fotografia: Larry Smith Trilha Sonora: Jocelyn Pook Duração: 160 min. Distribuidora: Warner Bros. Estúdio: Hobby Films / Warner Bros.

Cotação 5 estrelas

Oblivion (2013)

Por André Dick

Oblivion.Filme 7

Tom Cruise é um dos melhores atores de sua geração, como provam suas atuações em Nascido em 4 de julho, Rain man e Magnólia. No gênero de ficção científica, havia feito dois filmes marcantes com Spielberg, Minority Report e Guerra dos Mundos, mesmo com sua irregularidade. Por isso, com Oblivion, havia a expectativa de um filme pelo menos original. Desta vez, ele faz uma parceria com Joseph Kosinski, que coescreveu os quadrinhos em que o filme se baseia, diretor de Tron – O legado, habituado aos efeitos especiais, mas cuja sensibilidade tem dificuldade de ir além daquele universo que até agora retratou: o eletrônico e o robótico. Uma qualidade sua é que costuma se cercar de técnicos talentosos, e não é diferente aqui. A fotografia é de Claudio Miranda (que  ganhou o Oscar deste ano com As aventuras de Pi), o designer de produção de Darren Gilford (o mesmo do seu filme de estreia) tem algumas boas alternativas, embora, na maior parte do tempo, lembre outros filmes de futuro desolador, como o recente Prometheus, e a trilha da banda francesa M83 consegue manter certo ritmo com sintetizadores, fazendo o que o Daft Punk fez em Tron – O legado. E, na produção, temos até mesmo o nome de David Fincher (diretor de Seven e Millennium).

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Jack Harper (Cruise) se encontra em 2077 naquilo que sobrou da Terra, com Vika (Andrea Riseborough, transmitindo certa emoção, apesar de sua aparência glacial), tendo de cuidar de robôs de combate, os drones, que ajudam a proteger estações de água, produtoras de energia, e a controlar os alienígenas saqueadores, os quais destruíram a Lua e tentaram exterminar os humanos. Eles precisam cumprir essa missão de vigiar antes de irem para uma das luas de Saturno, para onde foram os humanos que restaram. Supervisionados diariamente por Sally (Melissa Leo), eles vivem numa espécie de purgatório em meio a nuvens, sobre a terra devastada por terremotos e tsunamis (um bom momento é quando Kosinski focaliza as ruínas de uma arquibancada de estádio em em meio às lembranças de Harper) e a única ligação estabelecida é aquela que envolve o conceito de equipe e, se há algum jogador prestes a desistir do time, pode ser sumariamente cobrado.
No entanto, Harper tem lembranças recorrentes do período pré-apocalíptico, todas com uma mulher (Olga Kurylenko) no alto do Empire State, que imagina se irá encontrar em determinado momento, e é obcecado por livros e pelo poema “The Lays of Ancient Rome”, de Thomas Macaulay. Esta primeira parte tem os momentos mais interessantes de Oblivion, e ele consegue se sustentar com razoável progressão até em torno de 50 minutos, mesmo sendo basicamente centrado na relação entre Jack e Vika. Quando ingressa o personagem de Morgan Freeman, um ator marcante quando tem um papel à altura, o filme, de forma surpreendente, cai de qualidade, e os diálogos, até então presentes mais em conversas de averiguação de área, mantendo certo suspense, tornam-se mais deslocados, sem estabelecer conexão entre as partes. Os novos personagens se estabelecem com dificuldade, devido à pouca sutileza do diretor, e começa a existir um salto de cena para cena, como se a cada momento iniciasse um novo filme, e, se o anterior já não satisfazia, o incômodo passa a ser presente. Nem mesmo o tom esperançoso e ecológico em algumas partes anima a trama.
Há uma compilação estranha de referências, e sabe-se que é difícil obter originalidade no cinema contemporâneo. Mas um filme como Oblivion, que mistura um excesso de filmes, partindo, inclusive, de imagens oferecidas por eles, desde O vingador do futuro e O exterminador do futuro, passando por Matrix e Eu sou a lenda, até Independence day e 2001 (procurando colocar robôs com luzes idênticas ao HAL 9000 e um gráfico final cuja pretensão equivale à do roteiro), parece indicar uma dificuldade ostensiva em dizer algo minimamente novo. Com poucas cenas de ação, a limitação fica mais evidente. Tom Cruise também anda de moto, evocando Top Gun, finge estar num estádio de beisebol com um boné, menção a Questão de honra, e procura resquícios de plantas (como uma espécie de Wall-E). Você vai encontrar muitos outros filmes aqui, e os spoilers irão proliferar dentro do próprio filme, antes da próxima sequência. É interessante, nesse sentido, que o roteiro tenha a colaboração de Michael Arndt (autor do divertido Pequena miss Sunshine), a quem coube a corajosa versão final.

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Em Encontro explosivo, sabíamos que Tom Cruise satirizava a si mesmo como Ethan Hunt; em Oblivion, a sátira não é evidente e a pretensão parece sintetizar a ficção científica dos últimos 40 anos, com uma homenagem ininterrupta durante suas duas horas, a última especialmente cansativa. Na parte final, quando o roteiro poderia apontar questões inusitadas e mesmo metafísicas para explicar as longas exposições do filme, parece se perder. É aí que apontam as principais falhas de Kosinski: ele não chega a ser um cineasta formado. É como se ele tentasse ainda esboçar ideias, mas elas só conseguissem alguma sustentação com orçamentos milionários, dedicado mais a compor histórias em que a humanidade é, particularmente, um detalhe, ou um acidente de percurso. A questão é que Oblivion persegue o sucesso e a aceitação a qualquer custo, sem sair por um segundo sequer do programa. Como filme, pode ser assistível; como cinema, é difícil saber o que acrescenta.

Oblivion, EUA, 2013 Diretor: Joseph Kosinski Elenco: Tom Cruise, Morgan Freeman, Nikolaj Coster-Waldau, Olga Kurylenko, Nikolaj Coster-Waldau, Zoe Bell, Melissa Leo, Andrea Riseborough, James Rawlings Produção: Joseph Kosinski, David Fincher, Peter Chernin, Ryan Kavanaugh, Dylan Clark, Barry Levine Roteiro: Joseph Kosinski, William Monahan, Michael Arndt, Karl Gajdusek Fotografia: Claudio Miranda Trilha Sonora: M83 Duração: 124 min. Distribuidora: Paramount Pictures Brasil Estúdio: Chernin Entertainment / Universal Pictures / Radical Pictures / Ironhead Studios

2  estrelas