Logan (2017)

Por André Dick

Desde a trilogia X-Men, iniciada por Bryan Singer no início dos anos 2000, até a mais recente, com um elenco jovem, passando pelos filmes de Wolverine, a Fox sempre apostou nesses personagens da Marvel com um apuro temático e visual, tentando criar novas referências para o gênero, com maior ou menos êxito. O personagem estrelado por Hugh Jackman ganhou um filme solo em 2009, com um primeiro ato muito bem feito, para se perder depois em tramas paralelas que não correspondiam à expectativa. A continuação se deu em 2013, com um trabalho visual que remetia a Refn, pelo trabalho com cores e o cenário oriental. Agora, o mesmo James Mangold propõe um encerramento para a trilogia de Wolverine com uma homenagem ao gênero do faroeste. Se A qualquer custo era quase um filme de assalto no qual poderia aparecer Clint Eastwood como justiceiro, Logan homenageia o gênero com seus cenários isolados e empoeirados, que ganham destaque na fotografia de John Mathieson, colaborador de Ridley Scott em obras como Gladiador, Cruzada e Robin Hood e que trabalhou em X-Men – Primeira classe.
O filme se passa em 2029, quando os mutantes estão quase extintos. James “Logan” Howlett, mais conhecido como Wolverine, está morrendo devido ao adamantium em seu organismo. Trabalhando como motorista de uma limousine no Texas, ele vive na fronteira mexicana numa fábrica abandonada, onde também se encontram o mutante albino Caliban (Stephen Merchant) e o Professor Charles Xavier (Patrick Stewart), cuja idade faz com que ele não tenha mais domínio sobre seus poderes telepáticos. Caliban precisa se manter afastado dos raios de sol e, com seu rosto protegido, ele parece mais alguém preparado para assaltar uma diligência.

Certo dia, Logan se depara com uma moça, Gabriela Lopez (Elizabeth Rodriguez), que trabalhou num projeto chamado Transigen, em que conheceu a menina Laura (Dafne Keen). Logo se colocam em seu encalço, sem saber exatamente os motivos, Donald Pierce (Boyd Holbrook), com os Reavers, seus agentes, e Zander Rice (Richard E. Grant), o criador de Transigen.
Este é o mote inicial para um filme em que Mangold explora suas habilidades dramáticas já evidenciadas no excelente Johnny & June e de cenas de ação, como na segunda parte de Wolverine e Encontro explosivo, peça subestimada com Tom Cruise e Cameron Diaz, assim como no seu faroeste realmente declarado, Os indomáveis. Mangold tem características que remetem, aqui, igualmente a George Miller, de Mad Max, com sua crueza na abordagem das perseguições de carro e nas cenas de violência. Impressiona o quanto Mangold não evita o traço de violência, embora Wolverine – O filme fosse igualmente impactante nesse quesito.
O roteiro, escrito por Mangold em parceria com Scott Frank e Michael Green, é inteligente ao mostrar o Professor Xavier na posição de um pai de Wolverine e, sobretudo, ao desenvolver sua relação com Laura. Desta vez, Wolverine parece uma espécie de Josey Wales (embora em determinado momento Mangold use imagens de Os brutos também amam, faroeste dos anos 1950), personagem de Eastwood dos anos 70, perseguido depois de perder toda sua família.

Seu sentimento em relação à família obviamente está comprometido pela passagem dos anos e por todos os acontecimentos que o cercaram, mas é quando ele precisa de demonstrar afeto que surge a atuação notável de Hugh Jackman, seu melhor momento no cinema ao lado de Os miseráveis. Não ficam para trás Stewart, numa atuação exemplar, e a menina Dafne Keen, ótima em uma atuação minimalista.
É de se lamentar, perto dessas atuações, que aquelas dos vilões feitos por Holbrook e Grant se sintam tão esvaziadas e com poucas cenas para realmente contribuir com um embate entre partes completamente distintas, que poderia render momentos mais épicos. Tendo sido um apreciador do normalmente menosprezado X-Men – Apocalipse, do ano passado, tende-se a ver Logan apenas por suas indiscutíveis qualidades, sem ao certo ver que ele estabelece um novo parâmetro para esses personagens que não necessariamente está de acordo com o universo em geral da Marvel (a HQ em que o filme se baseia em parte tem personagens como Hulk, que não puderam ser utilizados), o que pode se constituir numa qualidade e num problema.
Logan tem um início extremamente violento – num estacionamento – que logo anteciparia uma adaptação radical dos quadrinhos e, ao longo da narrativa, não atenua seu ímpeto, quebrado apenas por algumas passagens mais demoradas. As garras do “super-herói” estão afiadas como a sua vontade de encontrar uma saída para a situação em que se encontra, e ela pode existir tanto em si quanto nas pessoas que o cercam. Em determinado momento, ele é impelido a buscar o “Éden”, um lugar onde se esclareceriam algumas questões – e este “Éden” parece uma impossibilidade diante de seus percalços.

Curioso como Mangold também insere as histórias em quadrinhos na explicação da narrativa do filme, buscando um interessante contraponto entre “ficção” e “realidade”, um traço metalinguístico, apesar de em nenhum momento escolher um design de produção que proporcione algum elemento de fantasia, sendo justamente sua tentativa a de trazer a fantasia para um espaço visto como plenamente real.
A menina Laura acaba proporcionando uma viagem nos moldes do recente Destino especial, de Jeff Nichols, em que a infância se misturava a poderes não explicados pelo olhar comum, com um intervalo que dá espaço a uma família tendo à frente Will (Eriq LaSalle) e Kathryn Munson (Elise Neal), com inevitável empatia junto ao espectador. Mangold, no entanto, centraliza essa busca com um apelo dramático dificilmente encontrado em filmes que adaptam quadrinhos e, quando tentam fazê-lo, são vistos como inevitavelmente soturnos. A paisagem solar do Texas não esconde a vulnerabilidade do personagem central desde o início: ele parece escondido por trás das paisagens que se erguem no deserto como sucata, sendo a sua limousine um contraponto a essa decadência que observa neste futuro que habita. É ele, no entanto, que de algum modo ainda se sente próximo de algo a ser reencontrado além das montanhas que evocam o seu início em 2009, quando trabalhava numa madeireira canadense, com a possibilidade de se proliferar novamente para que uns se sintam menos afastados dos outros, carregando um verdadeiro sentido de família.

Logan, EUA, 2017 Diretor: James Mangold Elenco: Hugh Jackman, Patrick Stewart, Dafne Keen, Richard E. Grant, Boyd Holbrook, Stephen Merchant Roteiro: James Mangold, Scott Frank, Michael Green Fotografia: John Mathieson Trilha Sonora: Marco Beltrami Produção: Hutch Parker, Lauren Shuler Donner, Simon Kinberg Duração: 135 min. Distribuidora: Fox Film do Brasil Estúdio: Twentieth Century Fox Animation

 

A bela e a fera (2017)

Por André Dick

Desde o sucesso bilionário de Alice no país das maravilhas, a Walt Disney vem procurando fazer versões com atores de suas animações clássicas. Em seguida, tivemos Cinderela, Malévola e ano passado Mogli – O menino lobo e Meu amigo, o dragão. Se Cinderela e Malévola fizeram sucesso e Mogli atingiu novamente uma cifra bilionária, Meu amigo, o dragão, o melhor deles, acabou tendo uma recepção moderada. Este ano as expectativas estavam voltadas para a adaptação de A bela e a fera, realizada não apenas a partir da obra de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, como também da adaptação do ótimo desenho animado de 1991, o primeiro a ser indicado na categoria principal do Oscar.
Se em 1991 as músicas criadas para A bela e a fera tinham uma grande surpresa, nesta versão de Bill Condon, que fez filmes como Deuses e monstros e os dois últimos da série Crepúsculo, há uma atualização de alguns temas. Com a narrativa passada na França, o filme inicia mostrando a transformação de um príncipe numa Fera, que passa a viver encastelado com seus objetos, antes pessoas de seu círculo. Na aldeia de Villeneuve, perto dali, anos depois, moram Belle (Emma Watson) e seu pai, Maurice (Kevin Kline). Gaston (Luke Evans) é um ex-soldado que tenta conquistá-la, sempre acompanhado pelo braço direito LeFou (Josh Gad).

Ela, porém, não está interessada nele. Certo dia, seu pai, numa viagem, é atacado por lobos e vai parar no castelo da Fera (Dan Stevens). Sua filha surge para resgatá-lo e se torna prisioneira em seu lugar. Exatamente como a história original e como na animação de 91. No entanto, é notável que Belle aqui é uma mulher que tenta criar uma independência do papel visualizado para a mulher, trabalhando numa biblioteca e tentando ensinar crianças a ler (o que pode ofender alguns habitantes do vilarejo), e que Gaston, mais do que um pretendente, é um vilão ameaçador e que, com sua obsessão em falar com o espelho, pode lembrar outro personagem bastante conhecido dos contos de fada.
O roteiro de Stephen Chbosky, diretor de As vantagens de ser invisível, escrito a partir de uma primeira versão de Evan Spiliotopoulos, poderia trabalhar esses temas de maneira inovadora, no entanto Condon não consegue efetuar essa transposição de uma maneira interessante. Não apenas porque a personagem de Belle surge desinteressante, apesar da empatia, em razão de uma performance pouco efetiva de Emma Watson, como porque toda a narrativa se desenvolve de maneira a não mostrar a Fera como de fato uma figura solitária.

Os símbolos funcionavam na animação, mas não funcionam aqui – e a graça dos objetos tinha um componente superior anteriormente, embora continuem interessantes Lumière (Ewan McGregor), o candelabro, Cogsworth (Ian McKellen), um relógio de lareira, e Sra. Potts (Emma Thompson), um bule de chá disposto a uma conversa. Evans e Kline têm bons desempenhos, mas o vilão é baseado estritamente numa ideia de caricatura já vista em outros filmes, sem nuances. Os personagens estabelecem vínculos, mas nunca com naturalidade, e as decisões, quando tomadas, parecem sempre pertencer a outra história, não ao que estávamos assistindo até então. As mudanças bruscas no comportamento da Fera apenas acentuam uma sensação contínua de falta de interesse para o roteiro ser de fato interessante e é decepcionante que Chbosky tenha participação nele depois do êxito de seu filme em 2012, do qual Emma Watson participava, com mais vigor.
É visível a influência de Condon: Os miseráveis, de Tom Hopper, de 2012, tanto pela composição dos cenários e figurinos (belíssimos) quanto pela inserção das canções (excelentes, novamente sob comando de Alan Menken, que recebeu o Oscar de melhor trilha sonora e canção pelo A bela e a fera dos anos 90) em meio a movimentos de câmera que tentam captar a grandiosidade dos ambientes. Uma dança numa taverna é especialmente bem feita, aliada a uma composição espetacular de cores que lembra o melhor traço visual de filmes recentes dos estúdios Disney, a exemplo de Oz – Mágico e poderoso, assim como a dança entre Belle e a Fera se sinta quase componente de um cenário de Barry Lindon.

Embora Condon tenha dirigido Dreamgirls, não há quase um sinal de seu estilo nesta obra. Além disso, há também elementos que remetem a Frozen, a animação de grande sucesso em 2013, que impedem ainda mais de o filme soar com o mínimo de identidade. Há um momento em que a câmera se distancia e mostra o castelo da Fera ao longe e este tem o formato daquele que acompanha a marca dos estúdios Disney: é como se não apenas o príncipe vivesse encastelado numa situação que não queria; a própria história não foge nem um traço do que aguardam os produtores do projeto. Se no excepcional Deuses e monstros Condon mostrava uma relação interessante entre dois homens, a tentativa de ele mostrar LeFou como um pretendente de Gaston soa como uma possibilidade de abordar um tema inicialmente à parte, mas logo se perde pela inconsistência do roteiro e seu temor de fazer qualquer abordagem nesse sentido, nem mesmo quando LeFou sabe que Belle é uma ameaça para o que deseja. Isso se associa à extensa metragem para pouca história (mais de duas horas), quando a animação tinha agilíssimos 84 minutos. Que este A bela e a fera tenha arrecadado quase meio bilhão de dólares em duas semanas de exibição é surpreendente, mas talvez justificável: não será tão cedo que a Disney arrisque numa continuação de John Carter. Mais surpreendente ainda quando o chamado caça-níquel Alice através do espelho, um semifracasso dos estúdios Disney no ano passado, se sinta uma obra realmente distinta perto desta versão.

Beauty and the beast, EUA, 2017 Diretor: Bill Condon Elenco: Emma Watson, Dan Stevens, Luke Evans, Kevin Kline, Josh Gad, Ewan McGregor, Stanley Tucci, Ian McKellen, Emma Thompson, Audra McDonald, Gugu Mbatha-Raw Roteiro: Stephen Chbosky, Evan Spiliotopoulos Fotografia: Tobias A. Schliessler Trilha Sonora: Alan Menken Produção: David Hoberman, Todd Lieberman Duração: 129 min. Distribuidora: Walt Disney Pictures Estúdio: Walt Disney Pictures

 

Fragmentado (2017)

Por André Dick

A melhor notícia de Fragmentado é a volta de M. Night Shyamalan ao posto das grandes bilheterias (até agora, a partir de um orçamento de 9 milhões já fez 257 milhões de dólares). Embora o anterior, A visita, já tivesse recuperado um pouco seu crédito junto aos produtores (orçamento de 5 milhões para arrecadação de 98), O último mestre do ar e Depois da terra, com seus orçamentos típicos de blockbuster, haviam rendido pouco, além das críticas em coro apontando que ele havia perdido seu talento. Em Fragmentado, ele parte da situação de três jovens, Claire (Haley Lu Richardson), Marcia (Jessica Sula) e Casey (Anya Taylor-Joy) sendo sequestradas num engarrafamento, quando estão dentro do carro do pai de uma delas, por Dennis, uma das 23 personalidades de Kevin Wendell Crumb (James McAvoy). Ele, obviamente, tem um grave transtorno e visita frequentemente a psiquiatra Dra. Karen Fletcher (Betty Buckley), certamente uma homenagem a Louise Fletcher, a atriz de Um estranho no ninho.
As meninas logo percebem que ele surge com outras identidades, como a de uma criança, e imaginam uma maneira de escaparem do lugar onde ficam presas, que lembra bastante tanto Beijos que matam e O silêncio dos inocentes. A atuação de Anya Taylor-Joy, o destaque de A bruxa, talvez seja o toque mais surpreendente de Shyamalan, que novamente aparece aqui em uma ponta, e Buckley também convence.

Claire tem alguns flashbacks que mostram ela criança (em atuação de Izzie Coffey) em momentos de caça ao lado do pai (Robert Michael Kelly) e do tio (Brad William Henke). O que teria a ver a caça, em que o tio finge ser um animal, com a situação na qual ela se encontra? Haley Lu Richardson, que faz a melhor amiga da personagem de Hailee Steinfeld em Quase 18, também proporciona bons momentos, como uma espécie de oposto de Claire, sendo uma jovem mais popular no colégio. No entanto, Fragmentado se sente como uma decepção de Shyamalan principalmente em relação ao filme A visita, mesmo com todas as falhas que este possuía: a grande atuação de McAvoy não sustenta o filme. A partir de determinado momento ela é muito fragmentada, no mau sentido, não desenvolvendo de forma satisfatória cada uma de suas personalidades, não a ponto de criar um impacto, que certamente era o objetivo de Shyamalan, e a elaboração dos demais personagens é ligeira demais. Há um problema de narrativa, com as intrusões da psiquiatra de modo muito evasivo, não compondo um núcleo capaz de fazer a história render com o potencial que demonstrava ter ao menos nos primeiros vinte minutos.

O lugar onde ele prende as jovens não deixa de lembrar não apenas um labirinto humano, como também a falta de passagens para um lado equilibrado – ainda assim, em se tratando do diretor, poderia ser melhor explorado. Aqui, o mote parece ser aquele que envolve a infância: não por acaso, uma das identidades de Kevin é a de uma criança. Por meio dela, Shyamalan, assim como em quase todos os seus filmes, é possível imaginar o que vai acontecer na narrativa.
Seus filmes mais recentes dele, tão criticados (Fim dos temposO último mestre do ar e Depois da terra, por exemplo), têm qualidade, por isso não se exige que sua carreira dê uma guinada: ele realmente não a oferece em Fragmentado, baseando-se em temas simples do gênero de suspense e alguns toques de John Carpenter e Tobe Hooper (alguns movimentos de câmera lembram de O massacre da serra elétrica) e, principalmente, Dragão vermelho (da série de Hannibal Lecter). Há elementos que remetem à sua filmografia, que tem um atrativo por personagens confinados: em Sinais, numa fazenda; em A dama na água, num condomínio; em A vila, obviamente numa comunidade de campo. Assim como ele sempre gosta de mostrar personagens solitários: em Corpo fechado, O sexto sentido e O último mestre do ar, todos são, de certo modo, fechados em seu mundo. Kevin Wendell Crumb é a representação máxima, além de desequilibrada, deste traço.

E, claro, há sua movimentação de câmera sempre particular, construindo com ela parte do suspense de Fragmentado, que, no entanto, não cria uma solidez. Shyamalan desperdiça as personagens de Marcia e Casey, que certamente renderiam mais em combinação com a personagem de Claire durante mais tempo do que efetivamente acontece. Sente-se falta da espontaneidade de seu experimento anterior, A visita, que aproveita muito bem o cenário restrito para compor uma fábula assustadora.
Por outro lado, se temos um final sem uma grande revelação, ele é mais implícito do que o restante da narrativa, trabalhando com os conflitos internos de cada personagem, o que é uma característica do diretor muitas vezes não reconhecida suficiente. Ele também mostra que Shyamalan quer trabalhar com temas às vezes longe da superfície imediata. Em relação à grande parte da crítica destacar que Fragmentado é um grande filme, na verdade serve apenas para inventar que um cineasta que nunca perdeu seu talento, mesmo nos seus momentos mais conturbados, de uma hora para outra o reencontrou. Não é desta vez que ele apresenta seus melhores momentos, no entanto traz características capazes de interessar, de modo geral, o espectador. Isso se deve ao elenco e a seu estilo geralmente interessante.

Split, EUA, 2017 Diretor: M. Night Shyamalan Elenco: James McAvoy, Anya Taylor-Joy, Betty Buckley, Haley Lu Richardson, Jessica Sula, Sebastian Arcelus, Brad William Henke, Izzie Coffey Roteiro: M. Night Shyamalan Fotografia: Mike Gioulakis Trilha Sonora: West Dylan Thordson Produção: Jason Blum, M. Night Shyamalan, Marc Bienstock Duração: 117 min. Distribuidora: Universal Estúdio: Blinding Edge Pictures / Blumhouse Productions

Kong – A Ilha da Caveira (2017)

Por André Dick

O clássico King Kong de 1933 marcou não apenas sua época, como a história do cinema, e quando Dino De Laurentiis produziu uma refilmagem em 1976 foram poucos os que se atreveram a elogiá-la ou traçar comparações dela com o original. Obviamente, uma falha gigantesca: o King Kong dos anos 70, com sua crítica à indústria petrolífera, é, como diz Pauline Kael, um filme muito divertido. Em 2005, Peter Jackson fez a segunda refilmagem, numa obra grandiosa e com vigor incomum. O interessante é que as duas refilmagens ganharam o Oscar de efeitos visuais. Em Kong – A Ilha da Caveira não temos exatamente uma nova versão da mesma história. Pelo contrário.
Desde o início, quando se mostra uma queda em 1944 durante a Segunda Guerra Mundial de dois caças numa ilha do Pacífico Sul, temos uma liberdade histórica mais abrangente para a figura central.  Em 1973, James Conrad (Tom Hiddleston) é selecionado por um agente do governo norte-americano, Bill Randa (John Goodman), para ser guia de uma expedição exatamente a essa Ilha da Cavaleira, recém-localizada e que desperta o interesse governamental. Para a missão, também é chamado o Coronel Preston Packard (Samuel L. Jackson), com seu esquadrão Sky Devils, constituído por combatentes da Guerra do Vietnã, tendo como braço direito o major Chapman (Toby Kebbell). Junta-se ao grupo também Mason Weaver (Brie Larson), uma fotógrafa pacifista.

A chegada a ilha marca uma situação até então prevista, quando os personagens são lançados em meio a uma espécie de Apocalypse now, como muitos têm falado sobre o filme. Mas, desde o recrutamento de Conrad, num local conturbado, passando pelo soldado Reg Slivko (Thomas Mann), que usa uma bandana vermelha como Christopher Walken em O franco-atirador, este Kong é um subtexto do filme de Michael Cimino vencedor do Oscar principal em 1978. Com suas menções históricas a Richard Nixon, a história do monstro se confunde com a da própria América. A Ilha concentra não apenas King Kong, como também outros animais pré-históricos gigantes e muitas, muitas ossadas de animais já mortos, o que concede uma grande variedade de efeitos visuais e uma fotografia esplêndida de Larry Fong, habitual colaborador de Zack Snyder, com suas colorações destacando o criativo design de produção.
Na jornada, seguem Conrad, Weaver, os biólogos San Lin (Jing Tian), Houston Brooks (Corey Hawkins), os soldados Slivko e Cole (Shea Whigham) o empregado Victor Nieves (John Ortiz), entre outros, que encontram os indígenas do local – como de praxe nos outros da série – e a figura de Hank Marlow (John C. Reilly), um combatente de guerra que vive ali há anos com um aspecto de Capitão Ahab de Moby Dick.

O lugar onde eles vivem remetem claramente à aldeia administrada pelo personagem de Marlon Brando em Apocalypse now, e Marlow se torna a figura mais significativa e interessante da narrativa, graças à boa atuação de Reilly. Ele é como se fosse um elo de ligação entre a época das versões passadas nos anos 30 com a dos anos 70 – e mesmo a tribo não é mostrada como ameaçadora e sim pacífica, tanto que em certo momento se brinca com o lema “Paz e amor”, típico da década de 1970. É uma pena que, em meio a cenas realmente atrativas de ação e um fantástico arsenal de efeitos, os personagens de Conrad e Weaver se sintam tão fracos – ao contrário de Jeff Bridges e Jessica Lange no filme de 76 e de Naomi Watts e Adrien Brody no de 2005. Não porque Hiddleston e Larson não atuem bem, mas porque o arco deles não é suficientemente desenhado e deixe dois dos melhores nomes da atualidade com uma participação excessivamente discreta. Nesse sentido, esta nova obra envolvendo King Kong não prima exatamente pela faceta dramática ou elegância na construção dos personagens – como era o de Jackson principalmente –, sendo muito mais um blockbuster real e de peso, literalmente, o que não tira seus méritos, sobretudo aqueles que envolvem escolhas pessoais do diretor Jordan Vogt-Roberts em relação ao material de origem.

O filme cresce mais em sua analogia da Ilha da Caveira com a Guerra do Vietnã e o roteiro, escrito por Dan Gilroy, o diretor de O abutre, Max Borenstein, que escreveu o Godzilla de 2014, e Derek Connolly, responsável pela narrativa de Jurassic World, nunca deixa de encadear sequências com grande agilidade e ainda assim com lógica, sem quedas abruptas ou mudanças de rumo inaceitáveis. Quando Marlow faz um discurso sobre a onipresença de King Kong na ilha, ele parece estar se referindo ao que o exército dos Estados Unidos achou ser no Vietnã e, quando ele se refere aos pais mortos da criatura, parece delimitar uma época: algo aqui se perdeu. O exército de Packard chega à ilha com helicópteros e bombas, mas este é um novo lugar onde eles não conseguirão mudar o rumo da história. Tudo se sente como um início de franquia, o que, se por um lado incomoda quem gosta do personagem na roupagem mais clássica, por outro promete novos embates. Esses são claramente inspirados pela versão de Peter Jackson e, onde eram comparáveis quase a um video game de destruição, não deixam de ter uma textura verdadeira e até ameaçadora. Ou seja, o filme consegue lidar melhor com seus elementos de origem do que, por exemplo, Jurassic World em relação ao clássico de Spielberg. Quando vemos King Kong em ação, ele parece realmente uma figura em movimento, não um mero produto de efeitos visuais e CGI. É o que concede emoção particular a esta obra de Vogt-Roberts.

Kong: Skull Island, EUA, 2017 Direção: Jordan Vogt-Roberts Elenco: Tom Hiddleston, Samuel L. Jackson, John Goodman, Brie Larson, Jing Tian, ​​Toby Kebbell, Corey Hawkins, Shea Whigham, Jason Mitchell Roteiro: Dan Gilroy, Max Borenstein, Derek Connolly Fotografia: Larry Fong Trilha Sonora: Henry Jackman Produção: Jon Jashni, Mary Parent, Thomas Tull, Alex Garcia Duração: 118 min. Distribuidora: Warner Bros. Estúdio: Legendary Pictures / Warner Bros.

 

 

A garota desconhecida (2016)

Por André Dick

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Os personagens dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne sempre aparecem em situações delicadas: em Rosetta,  uma jovem busca trabalho para sustentar a mãe; em A criança, um jovem, em troca de dinheiro, prefere se desfazer do filho recém-nascido, e em O garoto da bicicleta o menino Cyril se mostra sempre deslocado e precisa pedir para que possa participar de uma determinada convivência que poderia ser mesmo rotineira para alguns. Esses temas se proliferam, com algumas modulações, em outros filmes da dupla, como O silêncio de Lorna e O filho, além de Dois dias, uma noite, no qual uma mulher ficava desesperada ao saber que perderia o emprego. Os irmãos costumam lançar seus filmes no Festival de Cannes, onde duas vezes já receberam a Palma de Ouro principal: por Rosetta e O filho. É a partir do Festival que suas obras passam a ganhar uma grande propaganda, sobretudo no meio que mais frequentam: o cinema arthouse.

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Talvez eles nunca tenham sido recebidos com tanta desconfiança no Festival quanto com A garota desconhecida. Eles mostram a figura de Jenny (Adèle Haenel, casada com a cineasta Céline Sciamma, de Tomboy e Lírios-d’água), uma clínica geral que trabalha com Julien (Olivier Bonnaud) e lhe pede para controlar melhor suas emoções quando não consegue agir ao ver um menino tendo uma convulsão no consultório. É interessante como Jenny é uma personagem tipicamente dos Dardenne: ela parece guardar mais mistérios do que subentende em seu olhar. O espectador se pergunta o que ela sente por Julien, à medida que parece tê-lo como uma referência de si mesma.
Jenny se sente culpada depois que acontece a morte de uma jovem para quem não abriu a porta de seu lugar de trabalho numa determinada noite. Passa, assim, a investigar o caso, passando, inclusive, à frente da polícia, cujo inspetor é Ben Mahmoud (Hamidou Ben). Sua principal pista é um de seus pacientes, Bryan (Louka Minnella), filho dos Smet (Jérémie Renier e Christelle Cornil), mas ela também mostra a fotografia da vítima para Julien e amigos médicos que podem tê-la atendido em algum momento, à medida que se tratava de uma imigrante. O fato de sequer saber o nome da vítima a perturba dia e noite a partir daí, e os Dardenne alternam o drama com um filme tipicamente investigativo, em que os encaminhamentos são tomados de acordo com o que se consegue com pouquíssimas informações. Não por acaso, os personagens estão visivelmente nervosos, parecendo não aceitar a condição em que se encontram, e são raros os filmes como este em que um personagem ligado à medicina parece realmente estar tratando de seus pacientes.

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O filme anterior dos Dardenne, Dois dias, uma noite, tinha em Marion Cotillard uma referência de atuação. Em A garota desconhecida, Adèle Haenel talvez se mostre a figura mais desprovida de carisma da trajetória dos irmãos e talvez resida aí a falta de engate em alguns momentos de um drama que se tenta se passar por uma narrativa de investigação. Ela possui um realismo inexpressivo, parecendo quase à parte da cena em alguns momentos (para alguns, no entanto, pode ser o elemento mais atrativo de sua atuação), lembrando algumas nuances de Adèle Exarchopoulos, de Azul é a cor mais quente, sem a mesma intensidade.
Os elementos dos diretores estão todos lá: narrativa realista, diálogos próximos do cotidiano, temas interessantes, abordagem que lembra Eric Rohmer. Mas talvez a metragem excessiva para uma história que poderia ser contada de maneira mais rápida prejudique razoavelmente o resultado. A personagem da médica lembra um pouco as figuras femininas de Rosetta e O silêncio de Lorna, com uma certa solidão em meio a um ambiente no qual se sente bem, mas nem tanto, porém falta um pouco mais de carisma na ação que ela empreende. Os Dardenne são muito focados em extrair boas atuações e aqui eles captam apenas o diálogo de forma realista, não os movimentos, mais mecânicos. Não se pode dizer, por outro lado, que a interpretação de Haenel não seja focada, assim como Bonnaud é sensível no tratamento de seu personagem com um passado que o leva a refletir sobre a própria profissão. O personagem dele certamente é o mais enigmático de A garota desconhecida: ele é uma espécie de reflexo do que Jenny gostaria de ser em sua vida.

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Mesmo com problemas em seu desenvolvimento, de algum modo a maneira como A garota desconhecida lida com temas que dizem respeito à mudança no posicionamento de uma personagem mostra que os Dardenne continuam utilizando o talento para os enquadramentos de forma segura. E há alguns momentos tocantes, como aquele em que Jenny é homenageada por um de seus pacientes, ou angustiantes, quando ela está atrás de novas pistas num terreno de construção e fica quase sem saída, sendo que os Dardenne contextualizam toda a cena como se ela estivesse realmente presa àquela situação na qual se inseriu. Se no início ela parece pouco disposta a ouvir ou compartilhar sentimentos, parece que o mote do filme é descobrir que este é o caminho para a autodescoberta. Daí a oferecer a mão para uma senhora descer alguns degraus até o consultório é de uma humanidade que apenas os Dardenne conseguem captar com facilidade.

La fille inconnue, BEL, 2016 Diretores: Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne Elenco: Adèle Haenel, Ben Hamidou, Christelle Cornil, Fabrizio Rongione, Jérémie Renier, Laurent Caron, Louka Minnella, Nadège Ouedraogo, Olivier Bonnaud, Olivier Gourmet, Pierre Sumkay, Yves Larec Roteiro: Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne Fotografia: Alain Marcoen Produção: Denis Freyd, Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne Duração: 113 min. Distribuidora: Califórnia Filmes Estúdio: Archipel 35 / Les Films du Fleuve / Savage Film

 

Silêncio (2016)

Por André Dick

O cineasta Martin Scorsese tem investigado mais o comportamento violento da humanidade que qualquer outro cineasta, incluindo Tarantino. Desde os anos 70, quando realizou Taxi Driver, passando pelos anos 90, quando trouxe à cena Os bons companheiros, sempre quis alternar uma observação sobre como o indivíduo pode levar a transgressão a um determinado limite. Mesmo uma comédia corrosiva como Depois de horas, nos anos 80, trazia este elemento. Por isso, ainda mais depois de O lobo de Wall Street e do piloto da série Vinyl, com sua sucessão de personagens envolvidos em problemas pessoais mesclando dinheiro e drogas, esta adaptação que fez com Jay Cocks do romance de Shusaku Endo se sente, a princípio, por vezes deslocada. Você vai assisti-lo esperando o Scorsese de sempre e encontra, de certo modo, um novo cineasta, embora com elementos claros daquele de sempre na maneira de conduzir seu elenco e a parte técnica – e mesmo sua conhecida transgressão.
Scorsese já adotou uma análise sobre a espiritualidade em seu polêmico A última tentação de Cristo e em Kundun, mas aqui pretende adensar a temática. O filme inicia com imagens que misturam religião e violência, para então mostrar o padre jesuíta Alessandro Vagliano (Ciarán Hinds), no Colégio de São Paulo, em Macau, transmitindo a notícia aos padres Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver) de que seu guia espiritual, Cristóvão Ferreira (Liam Neeson), renunciou à sua fé no Japão.

Eles se mostram interessados em viajar para o Japão feudal do século XVII, a fim de obter informações sobre o destino de Ferreira, pois não acreditam no relato, e lá encontram Kichijiro (Yôsuke Kubozuka), um pescador que os ajudará na procura, levando ambos à aldeia de Tomogi, onde a religião cristã está estabelecida. Para surpresa dos padres, eles se tornam referenciais da comunidade – e a chegada de barco em meio a uma névoa densa mostra o primeiro passo num país que está escondido pelo feudalismo. No entanto, surge um homem a que se referem como inquisidor, Inoue Masashige (Issey Ogata), o qual pretende descobrir se há cristãos na aldeia. A violência que surge poderia remeter ao filme A missão, em que tribos da América do Sul catequizadas por jesuítas eram dizimadas por espanhóis, mas Scorsese trabalha mais no plano psicológico e influenciado pela concepção visual de Mistérios de Lisboa.
Ele fornece um descompasso entre as primeiras cenas, bastante rápidas, e o restante de sua narrativa, que lembra mais a de um filme de Hsien ou Wong Kar-Wai, desenvolvendo lentamente os personagens, principalmente dos padres, para lidar depois com temas como a fé alheia, a maneira com que se trabalha com a retórica e o compromisso fervoroso. É interessante que a narrativa, apesar de trabalhar com temas aparentemente específicos, se mostra universal quando lida com a solidão do padre Rodrigues, que configura, para Scorsese, um jovem em busca do encontro com o que a religião promete.

Ele é inseguro e muitas vezes imaturo, e Garfield mostra essas características de maneira a não reduzi-lo em nenhum momento. Trata-se de uma figura fascinante e Scorsese o filma, em determinado momento, olhando para a água de um riacho quando se projeta a imagem de Cristo. É como se ele quisesse personificar um símbolo e, diante do medo, tentasse fazê-lo de todas as formas, precisando lidar com o fato de que não querem sua religião e sua presença, por meio de Inoue e de um intérprete (o excepcional Tadanobu Asano). Scorsese se insere melhor em seu estilo quando a história é transportada para Nagasaki, em momentos que lembram principalmente Furyo e o recente Invencível, além de filmes orientais de Kurosawa, a exemplo de Ran e Kagemusha, fazendo com que a imponência dessa cultura se projete como uma ameaça e como um bloco concreto incontornável para o plano de catequização.
Nisso, a figura de Kichijiro o acompanha, em todas as etapas, parecendo ser um símbolo daquilo que Rodrigues não admite ser. Scorsese desenha isso com uma desenvoltura particular e sem ingressar no estilo a que está acostumado. Quase não há movimentação de câmera – a fotografia de Rodrigo Prieto é esplêndida – e os templos adquirem uma magnitude própria. Em determinado momento, homens que creem em Deus são obrigados a enfrentar a força da maré, numa sequência capaz de sintetizar a força da natureza e da crença numa ideia religiosa.

Scorsese é um mestre em extrair boas atuações, e pode-se dizer que aqui, mais do que Garfield, é Driver que concede os momentos inclusive mais bem-humorados de Silêncio, além de uma missa em latim (embora, apesar de portugueses, nunca vemos os personagens falando em sua língua de origem) em meio a um cenário tomado pela chuva. Garupe não sabe ao certo se quer se inserir na devoção que é exigida para o comportamento cristão. Isso é revelado de maneira muito sutil. No entanto, diante do que virá, ele se torna a figura mais emblemática e forte do contexto. Claro que, por todo seu contexto, sua publicidade, Silêncio trata da fé do ser humano: quando vamos ao filme, porém, Scorsese lança um olhar de que a condição da fé passa pela materialidade, tanto que os personagens cristãos são obrigados a enfrentarem símbolos, neste caso cruzes ou a imagem de Cristo num molde de metal que eles precisam desrespeitar ou não.
Vários filmes de Scorsese tem esse conflito religioso como pano de fundo – como o subestimado Vivendo no limite, sobre um motorista de ambulância, Gangues de Nova York, permeado pela violência, ou ainda Cabo do medo –, e obviamente ele não está doutrinando o espectador e sim mostrando que o discurso está ligado mais a símbolos. A pergunta que Scorsese lança é: podemos prendê-los e ameaçá-los de morte?

Os padres desejam portar o discurso, mas a crença verdadeira está invariavelmente neles: daí o final ser um momento tão brilhante para o filme. Os símbolos, para Scorsese, não podem ser destituídos. O melhor momento parece ser aquele em que Rodrigues é solicitado por alguns japoneses a falar sobre o Paraíso, quando está ciente de que corre risco de morte – e o que fala ressoa apenas para os demais, não para ele. Desse modo, considerar que Scorsese pretende convencer o espectador sobre seguir uma determinada religião é desconhecer a verdadeira fé inabalável de sua obra: a espiritualidade pertence a cada um e possíveis seguidores não necessariamente podem ser evitados, à medida que o ser humano é constituído pela simbologia. É o que esta obra excepcional de Scorsese traz de mais surpreendente em sua notável análise sobre o indivíduo, aquele que busca a transcendência mesmo que esconda isso de si mesmo.

Silence, EUA, 2016 Diretor: Martin Scorsese Elenco: Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson, Issey Ogata, Yôsuke Kubozuka, Tadanobu Asano, Ciarán Hinds Roteiro: Jay Cocks e Martin Scorsese Fotografia: Rodrigo Prieto Trilha Sonora: Kathryn Kluge e Kin Allen Kluge Produção: Barbara De Fina, Emma Tillinger Koskoff, Gaston Pavlovich, Irwin Winkler, Martin Scorsese, Randall Emmett, Vittorio Cecchi Gori Duração: 162 min. Distribuidora: Imagem Filmes Estúdio: AI-Film / Cappa Defina Productions / Cecchi Gori Pictures / Fábrica de Cine / SharpSword Films / Sikelia Productions / Waypoint Entertainment

Fome de poder (2017)

Por André Dick

Em Fome de poder, uma cinebiografia sem os elementos típicos do gênero, Michael Keaton interpreta Ray Kroc, um vendedor ambulante que avança pelas estradas do interior dos Estados Unidos em 1954, vendendo aparelhos de milk-shake. O início parece lembrar um pouco as imagens de Carol, um road movie, sem a tentativa, no entanto, de estabelecer sentimentos entre os personagens – o que eles têm a apresentar são negócios a serem concretizados. Por causa de um pedido maior do que o comum, Kroc viaja até San Bernardino, Califórnia. Lá ele conhece a primeira lanchonete do McDonald’s, assim como os irmãos que a projetaram, Maurice (John Carroll Lynch) e Richard McDonald (Nick Offerman). Apresentado aos bastidores da criação, logo tem interesse em fazer parte do projeto, visualizando uma possível franquia capaz de se estender por todo o país. Para isso, ele tenta convencer quem não pensa o mesmo. Com a esposa Ethel (Laura Dern) como fonte de apoio, Kroc tenta encontrar, afinal, um negócio capaz de fazê-lo se consagrar.

Essa linha de argumento lembra bastante A rede social, quando Sean Parker visualiza de fora a criação de Zuckerberg e tenta convencê-lo a expandir sua ideia. Roy é do tipo compenetrado, que não deseja fazer mais nada depois de vislumbrar essa possibilidade de realmente ganhar dinheiro. Vendo como os hambúrgueres e as batatas fritas são preparados, ele pretende aplicar o mesmo rigor em todas as unidades que deseja abrir depois de assinar um contrato com os irmãos inventores. Como extrair potencial de uma história que parece mais inclinada a um documentário sobre negócios a serem feitos? Sobre a empresa que popularizou o fast-food?
Se Fome de poder tem um grande mérito é a atuação de Michael Keaton, fazendo jus a seu grande momento no cinema, logo depois de Birdman e Spotlight. Ao contrário desses filmes, no entanto, Keaton volta a apresentar certos trejeitos de Beetlejuice. Ele faz um sujeito que não é exatamente antipático, mas bastante frio em seu modo de comportamento, com uma certa alegria calculada. Isso não muda quando conhece o proprietário de um restaurante, Rollie Smith (Patrick Wilson), e sua esposa Joan (Linda Cardellini); pelo contrário: tudo se mostra conforme seu planejamento. É interessante como Kroc visualiza a empresa a ser colocada em expansão como um símbolo dos Estados Unidos e uma espécie de lugar onde não as famílias se reúnem, mas uma comunidade. Nesse sentido, aponta-se que Fome de poder trabalha bem com as potencialidades temáticas, mesmo que nunca ingresse naquele campo que Linklater trabalhe com impacto em Fast food nation, sobre os bastidores dessa indústria.

O diretor John Lee Hancock fez há alguns anos um filme visualmente muito parecido – outro grande mérito de sua direção –, chamado Walt nos bastidores de Mary Poppins. Se lá ele mostrava como agia o criador Walt Disney, aqui ele revela como iniciou a rede de lanches internacional que é lembrada principalmente pela efetiva entrega de seus produtos para consumo num curto espaço de tempo. Seria algo previsível não fosse a maneira como Hancock filma, com bela fotografia de John Schwartzman e trilha sonora de Carter Burwell (e os 25 milhões de orçamento aparecem na tela).
Ele, infelizmente, não recebe um roteiro, escrito por Robert D. Siegel, sem arestas, problema com o qual já lidava em Um sonho possível, o que é lamentável quando se lembra que realizou a história de uma das melhores obras de Clint Eastwood, Um mundo perfeito. Quando as coisas mudam drasticamente no momento em que Ray conhece Harry Sonneborn (BJ Novak), um consultor financeiro que o leva a um caminho específico capaz de inserir Fome de poder em vários temas, como fidelidade, ganância, traição, mas não explica exatamente por que, por exemplo, Crok nunca se reúne com os irmãos McDonald, conversando com eles apenas por telefone (e nem eles demonstram especial interesse pelo que Crok está fazendo), ou por que sua esposa jamais chega a frequentar o seu negócio brilhante. Nesse ponto, os atores, de modo geral, são subaproveitados, a começar por Laura Dern, embora Carroll Lynch e Offerman sejam convincentes e Cardellini discretamente insinuante.

Principalmente por causa de Keaton, o filme transita entre as aspirações de uma pessoa ao grande sonho americano e a maneira como ela tenta possuir o sonho de outra sem ter exatamente o merecimento disso. Hancock desenha uma linha tênue, em que vemos um Crok extremamente dedicado, enquanto os irmãos McDonald parecem até acomodados, e na qual os personagens parecem estar atrás dele em termos de agilidade e esperteza. Não deixa de ser uma limitação narrativa, principalmente quando a obra desenha seu arco final, talvez não mostrando exatamente como as coisas aconteceram e sim como Hancock imagina que causaria um impacto maior no espectador. Ainda assim, é interessante como o diretor desenha essa visão gloriosa de uma marca que é comparada a outras instituições marcantes de uma cidade com uma visão até certo ponto bastante sombria e pouco alegre, mesmo com o sol quase sempre brilhando e os arcos dourados reluzindo à noite. É um filme sobre parte da história dos Estados Unidos por meio de uma marca. Se não chega a ser uma propaganda (pergunta-se se não seria uma antipropaganda), Fome de poder atinge elementos de cinema de qualidade.

The founder, EUA, 2017 Diretor: John Lee Hancock Elenco: Michael Keaton, Nick Offerman, John Carroll Lynch, Linda Cardellini, Patrick Wilson, B. J. Novak, Laura Dern Roteiro: Robert D. Siegel Fotografia: John Schwartzmann Trilha Sonora: Carter Burwell Produção: Don Handfield, Karen Lunder, Jeremy Renner, Aaron Ryder Duração: 115 min. Distribuidora: Weinstein Company Estúdio: FilmNation Entertainment, The Combine, Faliro House Productions S.A.

 

Um limite entre nós (2016)

Por André Dick

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Em Um limite entre nós, ou simplesmente Fences (Cercas), seu título original, o ator e diretor Denzel Washington fez a adaptação para o cinema da própria peça que interpretou na Broadway, escrita por August Wilson (e que teve à frente num de seus primeiros elencos James Earl Jones). Nos últimos anos, Washington esteve mais dedicado a filmes de ação, mas sempre conseguiu, mesmo neles, desempenhar uma faceta dramática. Em O voo, por exemplo, mais um drama do que um filme de aventura, ele fazia um piloto de vilão com problemas alcóolicos. É um dos poucos astros que conseguem conciliar uma imagem de pessoa equilibrada com transtornos psicológicos, o que já lhe rendeu dois Oscars, de ator coadjuvante, por Tempo de glória, e de melhor ator, por Dia de treinamento, além de atuações subestimadas, como a que apresenta no notável filme de Ridley Scott O gângster. Indicado ao Oscar novamente por Um limite entre nós, acabou perdendo a estatueta para Casey Affleck.
A narrativa se passa em Pittsburg no ano de 1957, em que Troy Maxson (Denzel Washington) trabalha como lixeiro e é casado com Rose (Viola Davis, também parceira de Washington na versão da Broadway). Seu círculo ainda inclui os filhos Cory (Jovan Adepo) e Lyons (Russell Hornsby) e o grande amigo Jim Bono (Stephen McKinley Henderson). O irmão mais velho de Troy, Gabe Maxson (Mykelti Williamson), também faz parte da família, com as sequelas de uma lesão que sofreu durante a Segunda Guerra Mundial.

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Esses personagens entram e saem de cena como se estivessem realmente numa peça de teatro, com a simplicidade imposta pela direção de Washington, que já havia demonstrado muito talento por trás das câmeras em Voltando a viver, aproveitando muito bem a fotografia de Charlotte Bruus Christensen para realizar um filme de época de classe.
O filho mais velho, Lyons, de outra mãe, sempre aparece para pedir dinheiro emprestado para sua carreira musical, enquanto o mais novo, Cory, pretende se dedicar ao beisebol, o que deixa Troy um pouco enciumado, já que quase foi jogador depois de uma passagem pela prisão. Ele exatamente é um homem quer construir cercas ao redor da sua casa para demarcar o que pode ser, o que conquistou ou não, suas falhas e virtudes. Trata-se de um personagem muito complexo, pois não inspira exatamente simpatia do espectador, preferindo se concentrar mais no que tem a dizer no que os outros têm a lhe falar ou responder, e nisso a personagem de Rose é vital para que o espectador se aproxime mais dessa família. Ela é o símbolo da mãe que tenta conciliar os filhos e o pai, cada um com suas características particularíssimas, e que tenta romper com os conflitos que surgem.

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Por não esconder sua origem claramente teatral, Um limite entre nós é levemente prejudicado pelo número (excessivo) de diálogos em sua primeira metade. Quando o filme passa a ter cenas menos exageradas nesse sentido, ou seja, quando Washington deixa de fazer grandes monólogos (e sua direção não ajuda a conter a própria atuação), a narrativa melhora e abre espaço para uma ótima atuação de Viola Davis, que consegue equilibrar o drama mais emocionado e contido de maneira realmente irrepreensível, o que lhe rendeu um Oscar merecido (embora ela seja atriz principal e não coadjuvante).
Entretanto, arrisca-se dizer que grandes atuações têm os coadjuvantes: Jovan Adepo, Russell Hornsby (mais conhecido pela série Grimm), Stephen McKinley Henderson e Mykelti Williamson, todos grandiosos em sua naturalidade e tão injustiçados na temporada de premiações quanto os atores que fazem Cherrie em Moonlight. Com eles, o filme de Washington atinge a ternura discreta que há em Loving, por exemplo. Com poucos diálogos cada um e cenas não tão longas, todos conseguem desempenhar bem esse conflito ou não com a figura de Troy. Os embates com essa figura paterna se dão tanto dentro de casa quanto no quintal, ou seja, no território delimitado por ele e onde acredita mandar mais do que todos, inclusive dando-se permissão a uma liberdade não normalmente concedida ao homem. O roteiro deixado por Wilson, falecido em 2005, é notável ao mostrar que o núcleo familiar é construído pela mulher e pelo homem, mas sobretudo por tudo aquilo que leva ao crescimento pessoal em prol do conjunto.

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Um limite entre nós cansa um pouco em razão desse número de diálogos e pela pouca variação nos cenários, apostando no orçamento limitado, no entanto Washington consegue desenhar os personagens de maneira interessante. Mesmo uma revelação em determinada parte justifica o brilho nervoso de Troy durante mais de uma hora, fingindo uma alegria incontida. Washington não está bem como em Dia de treinamento e O voo por alguns maneirismos excessivos, e ainda assim se mostra inegavelmente competente e mesmo emociona em alguns trechos. Pode-se dizer que a história começa cansativa (sua longa duração não ajuda em certas partes) e termina até arrebatador. É uma obra autenticamente clássica, mostrando um período da história dos Estados Unidos que levou a outros movimentos em seguida, que Washington representaria, por exemplo, no filme de Spike Lee Malcolm X. Os direitos, aqui, não chegam a ser de toda uma comunidade, mas o que pensa e deseja Troy, de certo modo, é o sonho do trabalhador muitas vezes deixado de lado e cuja falta de empatia esconde, na verdade, um grande apreço pela proteção máxima à família. Mesmo que tudo pareça, inclusive, indicar o contrário.

Fences, EUA, 2016 Diretor: Denzel Washington Elenco:Denzel Washington, Viola Davis, Stephen Henderson, Mykelti Williamson, Jovan Adepo, Russell Hornsby, Saniyya Sidney Roteiro: August Wilson Fotografia: Charlotte Bruus Christensen Produção: Denzel Washington, Scott Rudin, Todd Black Duração: 139 min. Distribuidora: Paramount Pictures Estúdio: MACRO / Scott Rudin Productions

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