Silêncio (2016)

Por André Dick

O cineasta Martin Scorsese tem investigado mais o comportamento violento da humanidade que qualquer outro cineasta, incluindo Tarantino. Desde os anos 70, quando realizou Taxi Driver, passando pelos anos 90, quando trouxe à cena Os bons companheiros, sempre quis alternar uma observação sobre como o indivíduo pode levar a transgressão a um determinado limite. Mesmo uma comédia corrosiva como Depois de horas, nos anos 80, trazia este elemento. Por isso, ainda mais depois de O lobo de Wall Street e do piloto da série Vinyl, com sua sucessão de personagens envolvidos em problemas pessoais mesclando dinheiro e drogas, esta adaptação que fez com Jay Cocks do romance de Shusaku Endo se sente, a princípio, por vezes deslocada. Você vai assisti-lo esperando o Scorsese de sempre e encontra, de certo modo, um novo cineasta, embora com elementos claros daquele de sempre na maneira de conduzir seu elenco e a parte técnica – e mesmo sua conhecida transgressão.
Scorsese já adotou uma análise sobre a espiritualidade em seu polêmico A última tentação de Cristo e em Kundun, mas aqui pretende adensar a temática. O filme inicia com imagens que misturam religião e violência, para então mostrar o padre jesuíta Alessandro Vagliano (Ciarán Hinds), no Colégio de São Paulo, em Macau, transmitindo a notícia aos padres Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver) de que seu guia espiritual, Cristóvão Ferreira (Liam Neeson), renunciou à sua fé no Japão.

Eles se mostram interessados em viajar para o Japão feudal do século XVII, a fim de obter informações sobre o destino de Ferreira, pois não acreditam no relato, e lá encontram Kichijiro (Yôsuke Kubozuka), um pescador que os ajudará na procura, levando ambos à aldeia de Tomogi, onde a religião cristã está estabelecida. Para surpresa dos padres, eles se tornam referenciais da comunidade – e a chegada de barco em meio a uma névoa densa mostra o primeiro passo num país que está escondido pelo feudalismo. No entanto, surge um homem a que se referem como inquisidor, Inoue Masashige (Issey Ogata), o qual pretende descobrir se há cristãos na aldeia. A violência que surge poderia remeter ao filme A missão, em que tribos da América do Sul catequizadas por jesuítas eram dizimadas por espanhóis, mas Scorsese trabalha mais no plano psicológico e influenciado pela concepção visual de Mistérios de Lisboa.
Ele fornece um descompasso entre as primeiras cenas, bastante rápidas, e o restante de sua narrativa, que lembra mais a de um filme de Hsien ou Wong Kar-Wai, desenvolvendo lentamente os personagens, principalmente dos padres, para lidar depois com temas como a fé alheia, a maneira com que se trabalha com a retórica e o compromisso fervoroso. É interessante que a narrativa, apesar de trabalhar com temas aparentemente específicos, se mostra universal quando lida com a solidão do padre Rodrigues, que configura, para Scorsese, um jovem em busca do encontro com o que a religião promete.

Ele é inseguro e muitas vezes imaturo, e Garfield mostra essas características de maneira a não reduzi-lo em nenhum momento. Trata-se de uma figura fascinante e Scorsese o filma, em determinado momento, olhando para a água de um riacho quando se projeta a imagem de Cristo. É como se ele quisesse personificar um símbolo e, diante do medo, tentasse fazê-lo de todas as formas, precisando lidar com o fato de que não querem sua religião e sua presença, por meio de Inoue e de um intérprete (o excepcional Tadanobu Asano). Scorsese se insere melhor em seu estilo quando a história é transportada para Nagasaki, em momentos que lembram principalmente Furyo e o recente Invencível, além de filmes orientais de Kurosawa, a exemplo de Ran e Kagemusha, fazendo com que a imponência dessa cultura se projete como uma ameaça e como um bloco concreto incontornável para o plano de catequização.
Nisso, a figura de Kichijiro o acompanha, em todas as etapas, parecendo ser um símbolo daquilo que Rodrigues não admite ser. Scorsese desenha isso com uma desenvoltura particular e sem ingressar no estilo a que está acostumado. Quase não há movimentação de câmera – a fotografia de Rodrigo Prieto é esplêndida – e os templos adquirem uma magnitude própria. Em determinado momento, homens que creem em Deus são obrigados a enfrentar a força da maré, numa sequência capaz de sintetizar a força da natureza e da crença numa ideia religiosa.

Scorsese é um mestre em extrair boas atuações, e pode-se dizer que aqui, mais do que Garfield, é Driver que concede os momentos inclusive mais bem-humorados de Silêncio, além de uma missa em latim (embora, apesar de portugueses, nunca vemos os personagens falando em sua língua de origem) em meio a um cenário tomado pela chuva. Garupe não sabe ao certo se quer se inserir na devoção que é exigida para o comportamento cristão. Isso é revelado de maneira muito sutil. No entanto, diante do que virá, ele se torna a figura mais emblemática e forte do contexto. Claro que, por todo seu contexto, sua publicidade, Silêncio trata da fé do ser humano: quando vamos ao filme, porém, Scorsese lança um olhar de que a condição da fé passa pela materialidade, tanto que os personagens cristãos são obrigados a enfrentarem símbolos, neste caso cruzes ou a imagem de Cristo num molde de metal que eles precisam desrespeitar ou não.
Vários filmes de Scorsese tem esse conflito religioso como pano de fundo – como o subestimado Vivendo no limite, sobre um motorista de ambulância, Gangues de Nova York, permeado pela violência, ou ainda Cabo do medo –, e obviamente ele não está doutrinando o espectador e sim mostrando que o discurso está ligado mais a símbolos. A pergunta que Scorsese lança é: podemos prendê-los e ameaçá-los de morte?

Os padres desejam portar o discurso, mas a crença verdadeira está invariavelmente neles: daí o final ser um momento tão brilhante para o filme. Os símbolos, para Scorsese, não podem ser destituídos. O melhor momento parece ser aquele em que Rodrigues é solicitado por alguns japoneses a falar sobre o Paraíso, quando está ciente de que corre risco de morte – e o que fala ressoa apenas para os demais, não para ele. Desse modo, considerar que Scorsese pretende convencer o espectador sobre seguir uma determinada religião é desconhecer a verdadeira fé inabalável de sua obra: a espiritualidade pertence a cada um e possíveis seguidores não necessariamente podem ser evitados, à medida que o ser humano é constituído pela simbologia. É o que esta obra excepcional de Scorsese traz de mais surpreendente em sua notável análise sobre o indivíduo, aquele que busca a transcendência mesmo que esconda isso de si mesmo.

Silence, EUA, 2016 Diretor: Martin Scorsese Elenco: Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson, Issey Ogata, Yôsuke Kubozuka, Tadanobu Asano, Ciarán Hinds Roteiro: Jay Cocks e Martin Scorsese Fotografia: Rodrigo Prieto Trilha Sonora: Kathryn Kluge e Kin Allen Kluge Produção: Barbara De Fina, Emma Tillinger Koskoff, Gaston Pavlovich, Irwin Winkler, Martin Scorsese, Randall Emmett, Vittorio Cecchi Gori Duração: 162 min. Distribuidora: Imagem Filmes Estúdio: AI-Film / Cappa Defina Productions / Cecchi Gori Pictures / Fábrica de Cine / SharpSword Films / Sikelia Productions / Waypoint Entertainment

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2 Comentários

  1. Mais uma grande crítica sua.

    Acho que esse é um filme que vai demorar mais algum tempo para ganhar o devido reconhecimento.

    Gostaria de recomendar uma boa entrevista que Thelma Schoonmaker deu ao site omelete, falando sobre esse filme e outras coisas envolvendo Scorsese:

    https://omelete.uol.com.br/filmes/entrevista/parceira-de-martin-scorsese-ha-50-anos-thelma-schoonmaker-fala-do-ritmo-e-das-cobrancas-do-diretor/

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    • André Dick

       /  12 de março de 2017

      Prezado Alan,

      agradeço por sua mensagem e pelo comentário generoso a respeito da crítica. Também acredito que levará algum tempo para Silêncio ser reconhecido como o filme que é de fato. Talvez seja a obra mais arriscada de Scorsese: ele realmente fez um filme com ritmo oriental, contemplativo, no cinema atual dominado por obras que precisam encontrar seu público rapidamente.

      Também lhe agradeço pelo link da matéria do Omelete. É uma ótima entrevista e muito reveladora sobre como Thelma e Scorsese estabeleceram essa parceria durante tanto tempo. Ela é uma profissional fora de série e tem grande influência no ritmo dos filmes dele.

      Volte sempre!

      Um abraço,
      André

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