Retrato de uma jovem em chamas (2019)

Por André Dick

A diretora francesa Céline Sciamma surgiu com um filme muito delicado chamado Lírios-d’água, sobre uma menina que se apaixona por outra em aulas de nado sincronizado. Em seguida, ela fez Tomboy, sobre uma garota que gosta de se vestir como menino e não consegue se adequar à sociedade, e Girlhood, um olhar sobre uma gangue feminina, sua obra anterior a este Retrato de uma jovem em chamas.
Pode-se dizer que Sciamma tem como sua musa exatamente a atriz Adèle Haenel, com quem foi casada, e atua à frente de seu novo filme. Ela interpreta Héloïse, uma jovem que mora numa ilha da Bretanha, França, com sua mãe uma condessa italiana (Valeria Golino), por volta de 1770, evita ser registrada numa pintura para selar um acordo de casamento com um homem da nobreza de Milão, depois de sair de um convento. O casamento era para ter sido de sua irmã, não tivesse ela falecido.

Para a tarefa de pintá-la, é convocada Marianne (Noémie Merlant), que chega à ilha como alguém que fará companhia a Héloïse. Elas passam a andar todos os dias, à beira do mar, sem a retratada desconfiar do que está acontecendo. No mesmo lugar, há Sophie (Luàna Bajrami), uma criada que cuida da casa e da alimentação.
Pode-se dizer que Retrato de uma jovem em chamas é um dos mais belos filmes feitos sobre o ato da pintura. Não apenas ele mostra a aproximação entre a pessoa retratada e quem a pinta, como mostra que os traços e o jeito com que um ser humano se revela numa obra artística diz muito dele – mais do que se imagina. Céline Sciamma vai compondo a aproximação das duas com esse viés. Sophie não pode pintar Héloïse como é de praxe e precisa observá-la (seu rosto, suas mãos, sua pele) para que, depois de voltar à casa, possa fazer seu retrato escondida. É uma história simples, mas que conta não apenas a aproximação de duas pessoas com caminhos diferentes que podem ser muito semelhantes, caracterizando, ao mesmo tempo, o espaço de onde cada uma delas vem, como relata a própria essência de uma obra de arte – e se imagina o quanto a mímesis aristotélica poderia ser explicada a partir desses traços do filme.

Sciamma utiliza o cenário da ilha e da casa com uma profundidade poucas vezes vista, inserindo as personagens numa atmosfera de solidão, abandono e, ao mesmo tempo, de reencontro e de vontade de descobrir o mundo e mesmo a maternidade – numa das sequências-chave da trama. A fotografia de Claire Mathon estabelece uma comunicação não apenas entre essas figuras, como também do público com o lugar onde se passa a narrativa. Há elementos claros do cinema de Raúl Raiz (Mistérios de Lisboa) e Manoel de Oliveira (O estranho caso de Angélica, em algumas imagens que parecem fantasmagóricas), mas onde o filme se sai melhor é justamente na análise que faz de um período do século XVIII com uma aura de mistério indecifrável, mesmo quando as personagens se expõem. O figurino de Dorothée Guiraud é outro grande destaque, como se representasse os diferentes estados de espíritos de cada uma, principalmente quando Héloïse é píntada de verde, e Sophie precisa se imaginar no lugar dela, colocando também o mesmo vestido.
Os diálogos são mínimos, mas Haenel e Merlant atuam tão bem que fazem lembrar outro filme sobre a paixão entre mulheres, Azul é a cor mais quente. Se no filme de Kechiche as mulheres ainda sofrem dificuldades para assumir um relacionamento, no de Sciamma, pela visão de época, há ainda mais angústia e sentimento de impossibilidade.

Do mesmo modo, a família se constituía por meio de casamentos arranjados, sob uma tradição aristocrática. No entanto, como no restante de sua obra, principalmente Lírios-d’água, Sciamma se movimenta mais sob alguns signos, como o do próprio fogo (há uma lareira dentro da casa onde estão essas mulheres e em frente à qual às vezes se aquecem, depois há uma fogueira montada na praia) e o do mar, como complementos: a repressão e o desejo. Também há um diálogo decisivo sobre o mito de Orfeu e Eurídice, que dialoga com a própria essência dessa narrativa: olhar ou não olhar para a figura amada, enfrentar ou não o possível castigo? É possível resistir a ele? Retrato de uma jovem em chamas igualmente simboliza o ressurgimento da atriz Haenel, que aparecia um pouco deslocada em A garota desconhecida, dos irmãos s Dardénmne, e 120 batimentos por minuto. Aqui ela revela novamente o talento em Lírios-d’água, com o auxílio vital de Merlant.. Quando a narrativa se encaminha para um final emotivo e contido, Retrato de uma jovem em chamas se torna uma obra-prima.

Portrait de la jeune fille en feu, FRA, 2019 Diretora: Céline Sciamma Elenco: Noémie Merlant, Adèle Haenel, Valeria Golino, Luàna Bajrami Roteiro: Céline Sciamma Fotografia: Claire Mathon Trilha Sonora: Jean-Baptiste de Laubier e Arthur Simonini Produção: Véronique Cayla e Bénédicte Couvreur Duração: 120 min. Estúdio: Lilies Films Distribuidora: Pyramide Films

Luta por justiça (2019)

Por André Dick

Os filmes sobre prisão se tornaram muito populares para o público contemporâneo com Frank Darabont, por meio de Um sonho de liberdade e À espera de um milagre. No segundo, especificamente, era mostrado um homem afrodescendente com alguns poderes capazes de trazer alívio às dores da humanidade de modo muito sensível. A situação de encarcerados pode ser vista em alguns muitos outros filmes feitos desde então, mas poucos com a relação entre prisioneiro e o seu advogado. É o que Luta por justiça traz.
Em nova obra de Destin Daniel Cretton, autor de O castelo de vidro e Temporário 12, o advogado Bryan Stevenson (Michael B. Jordan) é um jovem formado em Harvard que se desloca para Monroeville, no Alabama, a fim de defender os injustamente condenados, tendo a seu lado, entre outros, Eva Ansley (Brie Larson). Um deles é Walter McMillian (Jamie Foxx), ou “Johnny D.”, preso injustamente pela morte de uma mulher e colocado no corredor de morte sem obter um julgamento capaz de analisar as provas. Outro é Herb Richardson (Rob Morgan)., um veterano do Vietnã. Com uma participação menor, está Anthony (O’Shea Jackson Jr).  A narrativa de Cretton se baseia mais no caso de McMillan.

Ele teria cometido um assassinato, no entanto, segundo testemunhas, não estaria sequer perto do local onde ele ocorreu.  Foi em Monroeville que Harper Lee escreveu O sol é para todos, que deu origem ao filme homônimo, no qual um advogado interpretado por Gregory Peck, Atticus Finch, fazia a defesa de um afrodescendente. E este filme é referenciado em alguns momentos desta obra de Cretton.
A história inicia com McMillan sendo preso na estrada por policiais. Depois, ao encadear a história mostrando o jovem advogado, ele já coloca a importância dessa função para que um erro possa ser revisto, não antes sem ele passar também por uma situação de preconceito por meio de um guarda da prisão (Hayes Mercure). McMillan não tem esperanças em seu caso, mas Bryan Stevenson vai até sua família, conhecendo sua esposa, Minnie (Karan Kendrick), e seus amigos, criando uma aproximação.  Sua figura cria polêmica, pois as famílias envolvidas nos casos não querem que eles sejam reabertos – e para isso o advogado precisa enfrentar o promotor público Tommy Chapman (Rafe Spall) e o xerife xerife Tate (Michael Harding).

Tanto Jordan quanto Foxx fazem um grande trabalho nesse sentido: a obra constrói uma expectativa. Cretton é um diretor interessado em figuras à margem, o que já mostrava com os jovens abandonados pela família em Temporário 12 e a família de O castelo de vidro, que viajava sem nunca conseguir se inserir direito na sociedade. Nos três filmes, ele conta com a presença de Brie Larson, que aqui tem uma presença rápida, mas efetiva. O roteirista Andrew Lanham, em parceria com Cretton, desenha bem os personagens, adaptando o livro de Bryan Stevenson, o advogado retratado aqui.
Entre as principais testemunhas do caso McMillan está Ralph Myers (Tim Blake Nelson) – e Cretton sabe utilizar esse ator, num momento fantástico, que dialoga com os melhores interrogatórios de Mindhunter. No entanto, cresce a emoção quando surge a atuação de Rob Morgan, como um homem preso depois de ter preparado uma bomba. A maneira como o ator distribui a culpa em camadas de fala mostra por que Mudbound, do qual ele fazia parte, era um filme tão denso. Sua participação, incluindo uma conversa com o advogado feito por Jordan, é extraordinária na sua contenção.

Cretton não tem até agora sido lembrado pela Academia de Hollywood, no entanto costuma apresentar excelente trabalho de direção de atores e histórias profundamente humanas. Luta por justiça é em boa parte uma história tanto sobre prisioneiros quanto a função jurídica e a investigação. Apenas se lamenta a fotografia de Brett Pawlak ser tão realista, parecendo às vezes um documentário, sem uma atmosfera mais trabalhada, porém isso é uma característica que Cretton apresentava anteriormente em Temporário 12, reproduzida aqui e, dentro do seu objetivo, funcional. Se dois primeiros atos mostram como é o Alabama no final dos anos 80, o racismo contra figuras presas injustamente, o ato final expande seu diálogo para a situação contemporânea. Embora suas soluções não sejam complexas, o tratamento dado ao tema, por causa da profundidade de seus atores, principalmente Foxx, Jordan, Morgan e Nelson, é notável.

Just mercy, EUA, 2019  Diretor:  Destin Daniel Cretton Elenco: Michael B. Jordan, Jamie Foxx, Rob Morgan, Tim Blake Nelson, Rafe Spall, Brie Larson Roteiro: Destin Daniel Cretton e Andrew Lanham Fotografia: Brett Pawlak Trilha Sonora:  Joel P. West Produção: Gil Netter, Asher Goldstein, Michael B. Jordan Duração: 136 min. Estúdio: Endeavor Content, One Community, Participant Media, Macro Media, Gil Netter Productions, Outlier Society Distribuidora:  Warner Bros. Pictures

1917 (2019)

Por André Dick

Em 1999, o diretor inglês Sam Mendes estreava na direção com Beleza americana, sobre um pai de família descontente com o casamento que resolve deixar seu emprego para tentar uma volta à adolescência. Ele tem uma filha, admirada por um jovem vizinho sempre em conflito com o pai. Este fio de história não esclarece o que acontecerá, mas guarda um senso estranho de visão sobre a sociedade norte-americana. E já guarda uma ideia de guerra (entre familiares) que tomaria proporções diferentes na carreira do cineasta: sob a ótica dos gângsteres (Estrada para perdição), de um casal (Foi apenas um sonho) e mesmo militar (Soldado anônimo). Esta ideia de guerra (desta vez contra o terrorismo) foi explorada literalmente por Mendes em seus dois 007, alguns dos melhores de toda a série, e regressam em 1917.

Com o auxílio notável da fotografia de Roger Deakins, querendo adotar um plano-sequência com poucos cortes evidentes, Mendes coloca o espectador num campo de batalha da Primeira Guerra Mundial. Um jovem cabo, Blake (Dean-Charles Chapman), é chamado pelo General Erinmore (Colin Firth), a fim de levar uma mensagem ao Segundo Batalhão do Regimento de Devonshire. O aviso a ser transmitido  para o tenente Joseph Blake (Benedict Cumberbatch) é de que as tropas inglesas não devem avançar num terreno determinado, arriscando a vida de mais de 1.600 homens, porque isso seria uma cilada dos alemães. O soldado escolhe como parceiro de missão o amigo Schofield (George MacKay).
E esta premissa é motivo para Mendes exercer uma proeza técnica junto com Deakins numa tentativa de plano-sequências semelhante àquela que Iñárritu empreendeu com Emmanuel Lubezki em Birdman. Se no filme do cineasta mexicano esse plano se passava nos bastidores de um teatro da Broadway, e às vezes ia para as ruas de Nova York, Mendes filma os dois soldados caminhando em trincheiras e cenários devastados de guerra, até descampados.

Isso, no início, é bastante funcional, principalmente quando Mendes empreende alguns diálogos perto de uma fazenda perdida em meio ao cenário de guerra e, finalmente, depois de uma sequência fortíssima, aos poucos o filme vai retrocedendo até que a proeza técnica se constitua em si quase o único atrativo.
Não ajuda o fato de haver tão poucos diálogos para os personagens centrais, nem que as participações especiais se sintam engessadas, pelo formato, o que não acontecia em Birdman – quando a câmera de Lubezki buscava a expressão dos personagens e o plano-sequência, como em 1917, era um truque técnico, e muito bem realizado. Por meio de um design de produção meticuloso de Dennis Gassner, Mendes, de qualquer modo, insere o espectador a um cenário de Primeira Guerra, evocando em seus melhores momentos O resgate do soldado Ryan e Nascido para matar, além de Glória feita de sangue, os dois últimos de Kubrick, além, evidentemente, de Dunkirk, de Nolan (e, como este, 1917 é para ser visto na tela grande, com o melhor som possível, mas com o critério de que isso não torna um filme isento de falhas).

Mendes gosta muito de lidar com personagens que se sentem desamparados no mundo. Em Beleza americana, eles estavam perdidos, mas isso fazia com que, em algum momento, tentassem se encontrar. O roteiro ia delineando essas figuras com algum interesse pelo seu fim, sobretudo o vizinho, que filma um sacola voando ao vento. A violência em sua casa é apenas para o jovem que não pode se mover, sob o silêncio da mãe. Na outra, a mãe, trabalhando com vendas de imóveis, quer envolvimentos fora do casamento. Em 1917, a figura da mãe é decisiva para compreender a intimidade dos dois personagens centrais – e, mesmo distante, é afetuosa.
Para Mendes, o enfrentamento continua representando um pesadelo, e Beleza americana, ao contrário das belas rosas vermelhas que mostra (dialogando com David Lynch), apresenta mais espinhos. Em seu filme de guerra, os jovens soldados tranquilos embaixo de uma árvore, tendo ao fundo uma paisagem cheia de flores ao fundo, logo estão em meio ao barro, lama, cinza e marrom dos uniformes. Não há vida para Mendes aqui a não ser o heroísmo dos personagens. Ele também mostra uma árvore seca em meio à paisagem desolada num determinado momento, mostrando a progressão da narrativa. O que falta a Mendes, no entanto, apesar de uma sequência-chave angustiante, seguida de outra mais adiante depois de uma passagem de tempo que contraria a tentativa de realismo da narrativa (e, particularmente, me tirou em parte do filme, pois não tem a ver com o seu objetivo central) é justamente uma emoção: em certos momentos os personagens parecem, por meio de diálogos, reproduzirem etapas de um jogo: “Você quer voltar?”, pergunta um deles, aos 30 minutos do filme. Ou: “Eu preciso chegar a determinado lugar em X tempo”.

Boa parte dos poucos diálogos é excessivamente expositiva, mesmo que não se desprendam da realidade – e uma entrada numa das passagens escuras é notável. Do mesmo modo, algumas soluções se revelam apressadas demais e, pela dificuldade da filmagem, os atores dão a sensação de insegurança em expressar de maneira mais enfática seus diálogos, com o risco de terem de refilmar o que fizeram (embora antes tenham acontecido, claro, cortes que a montagem esconde). Ainda assim, Chapman (que faz o irmão de Chalamet em O rei) e MacKay (a grande revelação de Capitão Fantástico) são bons atores e fazem o possível com o roteiro. A trilha sonora de Thomas Newman no início é discreta e eficiente, no entanto aos poucos vai se tornando intrusiva e tentando impor uma emoção difícil de ser notada. E, finalmente, há uma sequência impecável de batalha, mas que indica o mais falho em 1917: a necessidade de chama a atenção para a câmera de Deakins, com um soldado correndo de maneira a ressaltar o que se passa ao fundo. É magistral do ponto de vista técnico; como função narrativa, é evidentemente forçoso. A ação se baseia basicamente em corridas, para que a câmera possa ir atrás dos personagens – no início funciona, depois cansa. A passagem de tempo se torna estranhamente sem ritmo, como se fosse um encadeamento apenas de passagens que precisassem retratar a guerra, porém sem qualquer contato verdadeiro com as situações, tornando-se tudo muito ligeiro e até sem criar expectativa.
De certo modo, 1917 é um filme que pela técnica merece ser visto e apreciado em escala, no entanto parece estar longe de mostrar o melhor de Mendes e Deakins em termos de funcionalidade narrativa Como virtuose, este talvez seja o auge deles– como artistas, possivelmente lhes falte ainda outro projeto mais interessante. 1917 está muito interessado em demonstrar técnica quando lhe falta um pouco de originalidade e um roteiro não tão focado apenas na ação de seus personagens.

1917, EUA/ING, 2019 Diretor: Sam Mendes Elenco: George MacKay, Dean-Charles Chapman, Mark Strong, Andrew Scott, Richard Madden, Claire Duburcq, Colin Firth, Benedict Cumberbatch Roteiro: Sam Mendes e Krysty Wilson-Cairns Fotografia:Roger Deakins Trilha Sonora: Thomas Newman Produção: Sam Mendes, Pippa Harris, Jayne-Ann Tenggren, Callum McDougall, Brian Oliver Duração: 119 min Estúdio: DreamWorks Pictures, Reliance Entertainment, New Republic Pictures, Mogambo, Neal Street Productions, Amblin Partners Distribuidora: Universal Pictures (Estados Unidos), eOne (Reino Unido), Reliance Entertainment (Índia)

O escândalo (2019)

Por André Dick

Em 2017, as acusações de assédio de atrizes contra o produtor Harvey Weinstein acabaram tomando grande proporção, chegando também a outros nomes., alguns bastante conhecidos no círculo de Hollywood. O escândalo, de certo modo, ao mostrar as acusações contra Roger Ailes, o chefe da Fox News, em 2016, acaba dialogando com esse cenário, em que mulheres constituíram movimentos como %MeToo e Time’s Up.
O filme de Jay Roach, responsável antes por comédias como Entrando numa fria e por Trumbo, que deu uma indicação ao Oscar a Bryan Cranston, procura mostrar algumas jornalistas e apresentadoras desse canal, mais especificamente Megyn Kelly (Charlize Theron) e Gretchen Carlson (Nicole Kidman), que, sob as ordens de Roger, ingressavam na grade como figuras de destaque, a primeira principalmente e a segunda no programa Fox and Friends. Megyn, assessorada por Lily Balin (Liv Hewson) e Julia Clarke (Brigette Lundy-Paine) e casada com Doug (Mark Duplass), acaba tendo um sério contratempo depois de uma pergunta num debate ao então candidato Donald Trump.

O escândalo é uma amostra de fazer um certo cinema que se pretende de denúncia e consegue abranger uma atmosfera situada entre a vida pública e restrita aos bastidores. Ele se apoia tanto nas duas protagonistas quanto na figura da jovem Kayla Pospisil  (Margot Robbie),, não baseada exatamente numa personalidade real, que chega à emissora pretendendo, claro, conquistar seu espaço e se torna amiga de Jess Carr (Kate McKinnon). As discussões sobre posicionamentos ideológicos permeiam o roteiro bem escrito de Charles Randolph, apostando num estilo semelhante em A grande aposta, embora certamente entrecortado algumas vezes por alguns exageros expositivos. A figura de Roger, sustentada por Murdoch (Malcolm McDowell), dono da emissora, é muito bem desenhada por John Lithgow, numa interpretação excepcional, embaixo de uma maquiagem que o deixa quase irreconhecível – a maquiagem é um destaque também em Theron e Kidman, para deixá-las parecidas com as apresentadoras reais. Suas conversas com as âncoras são conflituosas, mostrando as manobras de uma emissora para conquistara audiência, até que o diretor Roach se direciona para o objetivo. E, quando ingressa em âmbito jurídico, num determinado momento, surge a advogada Susan Estrich,, em ótima atuação de Allison Janney, inserindo o filme num ambiente mais ousado.

De certo modo, O escândalo não chega a tomar uma posição como poderia se prever pela sua temática, não no sentido de reconhecer quem é a peça-chave para a denúncia, e sim para outros assuntos que correm à margem. Roach evita também entrar em algumas escolhas mais espinhosas, sem, no entanto, não deixar de explorar o drama dessas mulheres que sofreram assédio.
Charlize Theron é uma grande atriz e tem aqui seu melhor desempenho talvez desde Jovens adultos, um de seus filmes mais subestimados, fazendo uma apresentadora ao mesmo tempo fria e interessada no bem-estar dos familiares. Kidman também é excelente, tecendo uma dualidade entre certa segurança à frente das câmeras e uma necessidade de querer agradar, mas sem nunca conseguir se encaixar no que está acontecendo ao redor. E Robbie tem sua atuação mais dedicada desde O lobo de Wall Street, conseguindo se mostrar vulnerável e, ao mesmo tempo, ambiciosa. Ela tem a cena certamente mais difícil e que causa angústia no espectador, além de se apoiar bem, em alguns momentos, na atuação de Kate McKinnon, mais conhecida por ser humorista no Saturday Night Live e por sua participação no Caça-fantasmas, mais uma no elenco predominantemente feminino e de qualidade notável, alternando comédia e drama com a mesma competência.

O escândalo também se apresenta como um filme sobre a mulher num meio de comunicação e sua tentativa de conciliar a ambição corrente, a dedicação à família e seus valores pessoais e intransferíveis. O roteirista não chega a desenvolvera  ligação entre as três figuras proeminentes como poderia, deixando nas entrelinhas que elas sofreram assédio na mesma proporção, mas se mantêm a distância entre elas, não chegando a querer embarcar num movimento. É nesse ponto, talvez, que alguns considerem sua história mais atenuadora e menos motivador para o universo feminino, abdicando de maior aprofundamento, principalmente no terceiro ato.
Em termos de estilo, é editado de maneira ágil, como alguns filmes que se assemelham a ele, a exemplo de Vice, A grande aposta e As golpistas, todos com um selo de Adam McKay. Como Vice, especificamente, do ano passado, em determinados momentos acaba tratando seus temas de maneira superficial, porém nunca de maneira desinteressante. Isso é apoiado pelo brilhante design de produção e pelo figurino de Colleen Atwood (habitual colaboradora de Tim Burton), que transportam o espectador quase para dentro da emissora de televisão, com uma perspicácia também da fotografia de Barry Ackroyd (de obras como Guerra ao terror e Detroit), o que não é comum em boa parte das obras que tratam de jornalismo.

Bombshell, EUA, 2019 Diretor: Jay Roach Elenco: Charlize Theron, Nicole Kidman, Margot Robbie, John Lithgow, Kate McKinnon, Connie Britton, Malcolm McDowell, Allison Janney Roteiro: Charles Randolph Fotografia: Barry Ackroyd Trilha Sonora: Theodore Shapiro Produção: Aaron L. Glibert, Jay Roach, Robert Graf, Michelle Graham, Charles Randolph, Margaret Riley, Charlize Theron, AJ Dix, Beth Kono Duração: 108 min. Estúdio: Bron Creative, Annapurna Pictures, Denver + Delilah Productions, Lighthouse Management & Media, Creative Wealth Media Distribuidora: Lionsgate

Indicados ao Oscar 2020

Por André Dick

Dos possíveis candidatos ao Oscar que apontei em outubro de 2019 (neste post), sete chegaram às indicações de melhor filme: O irlandês, Coringa, 1917, Adoráveis mulheres, Ford vs Ferrari, Jojo Rabbit e Era uma vez em… Hollywood.  Da repescagem chegaram dois: História de um casamento e Parasita. Coringa teve o maior número de indicações (11), seguido por Era uma vez em… Hollywood, O irlandês e 1917 com 10 cada um.

Melhor filme

Adoráveis mulheres
Coringa
O irlandês
Era uma vez em… Hollywood
Parasita
Jojo Rabbit
Ford vs Ferrari
História de um casamento
1917

Os possíveis indicados principais sempre foram O irlandês, Coringa e Era uma vez em… Hollywood. A partir de dezembro, eles ganharam a companhia de História de um casamento. A princípio, considerava pouco viável dois indicados da Netflix a melhor filme, mas no Globo de Ouro surgiram mais dois: Meu nome é Dolemite e Dois Papas. O vencedor do Festival de Sundance, Jojo Rabbit, não mostrou a mesma força que vencedores dos anos anteriores, Três anúncios para um crime e Green Book, mostraram, sendo ignorado no Independent Spirit Awards. Em início de janeiro, Adoráveis mulheres e 1917 começaram suas campanhas e chegaram também ao Oscar. Ford vs Ferrari, apesar da decepção nas bilheterias, também sempre foi visto como adequado ao gosto da Academia de Hollywood. E Parasita, desde a vitória no Festival de Cannes, foi ganhando cada vez mais admiradores e se tornou um grande e inesperado sucesso de bilheteria. Não vi apenas 1917: os outros são excelentes ou muito bons, não entrando nenhuma obra irregular na lista.
Esta é facilmente a melhor seleção desde o início da regra de possíveis 10 candidatos ao Oscar de melhor filme ao lado daquelas de 2011 – Cisne negro, Bravura indômita, A rede social, Toy Story 3, A origem –, 2012 – A árvore da vida, Os descendentes, O homem que mudou o jogo, O artista, Meia-noite em ParisA invenção de Hugo Cabret – e 2013 – Django livre, O lado bom da vida, Lincoln, As aventuras de Pi, Amor, Os miseráveis e A hora mais escura.
Numa décima vaga, poderiam ter lembrado de O relatório, O caso Richard Jewll e, principalmente, a obra-prima O farol, indicado apenas na categoria de melhor fotografia. Também foi esquecido pelas premiações o melhor Soderbergh dos últimos anos: A lavanderia. Além de um filme que foi destituído pela crítica em geral e de grande qualidade: O pintassilgo, cujo prejuízo para a Warner foi marcante. Também não é preciso ter visto Uma vida oculta, de Terrence Malick, para saber que no mínimo seus valores técnicos foram deixados de lado. A distribuidora independente A24 não conseguiu emplacar seus filmes, mas Midsommar merecia ser lembrado. E, com a indústria ainda querendo manter as salas de cinema como a primeira opção para o espectador, o que não seria possível com a Netflix, 1917 surge preenchendo os requisitos: filme de guerra com potencial de prêmios e de ser blockbuster. Numa temporada do Oscar que parece ter se passado mais à frente da tela de TV (por causa de O irlandês, História de um casamento, Dois Papas) do que nos cinemas, a indústria se precavê. E é justo, pois nessa década certamente haverá uma transformação sem precedentes, com muitos filmes migrando das salas de cinema  para o streaming.
De qualquer modo, depois de seleções menos fortes – entre as quais as de 2015, 2016 e 2019 –, o Oscar volta a mostrar ótimos indicados em grande escala. E possivelmente a disputa será entre Era uma vez em… Hollywood, 1917 e O irlandês, com Coringa e História de um casamento (este, no entanto, bastante desvalorizando pelas premiações e chegando ao Oscar quase sem chances) correndo por fora. A grande surpresa seria a vitória de Parasita, não, claro, pela qualidade.

Melhor diretor

Martin Scorsese, por O irlandês
Todd Phillips, por Coringa
Sam Mendes, por 1917
Quentin Tarantino, por Era uma vez em… Hollywood
Bong Joon Ho, por Parasita

O diretor Martin Scorsese é certamente o nome mais histórico da lista, seguido de perto por Quentin Tarantino. Scorsese já ganhou o Oscar de direção por um de seus filmes menos interessantes, Os infiltrados, e Tarantino recebeu o Oscar de roteiro original por Pulp Fiction e Django livre. Ambos estão num momento de reavaliação de suas trajetórias, com Scorsese fazendo um épico de 3h30 e Tarantino uma ode a Hollywood. Joon Boon Hong fecha seu grande 2019 com esta indicação por Parasita. É merecida: um diretor que tem em sua carreira peças como Memórias de um assassino e Mother e aqui se supera. Todd Phillips é indicado por Coringa, ganhando o reconhecimento que não tinha por sua trilogia Se beber, não case! (sendo os dois primeiros ótimos) e por Cães de guerra. Sam Mendes, por sua vez, já recebeu o Oscar de melhor direção por Beleza americana, mas sua proeza técnica em 1917 tem sido elogiada e pode repetir o feito. Greta Gerwig não teve sua segunda indicação depois de Lady Bird., assim como Clint Eastwood novamente foi deixado de lado por O caso Richard Jewell. Outros indicados possíveis: Robert Eggers (O farol), Céline Sciamma (Retrato de uma jovem em chamas), Josh e Benny Safdie (Joias brutas) e Noah Baumbach (História de um casamento)

Melhor ator

Antonio Banderas, por Dor e glória
Leonardo DiCaprio, por Era uma vez em… Hollywood
Adam Driver, por História de um casamento
Joaquin Phoenix, por Coringa
Jonathan Pryce, por Dois Papas

O grande favorito, depois do Globo de Ouro e Critics’ Choice Awards, é Joaquin Phoneix, por Coringa. Ela já foi ignorado outras vezes, por O mesrtre, Johnny & June e Gladiador, além de não ter sido nomeado por obras-primas como Ela e Vício inerente. Seu concorrente principal Adam Driver, excelente em História de um casamento, que também foi destaque em outros três filmes em 2019: Os mortos não morrem, Star Wars – A ascensão Skywalker e O relatório. Vencedor por O regresso, DiCaprio está ótimo em Era uma vez em… Hollywood, mas desta vez dentro de uma linha de atuação mais segura. Jonathan Pryce, por sua vez, se destaca como o Papa Francisco de Dois Papas, em duelo com o feito por Hopkins. Em mais uma parceria com Almodóvar, Banderas tem uma das melhores oportunidades em sua filmografia com Dor e glória .
Outras grandes atuações, que poderiam ter sido lembradas: Roman Griffin Davis (Jojo Rabbit), Adam Driver (O relatório)., Christian Bale (Ford vs Ferrari), Paul Walter Hauser (O caso Richard Jewell), Aaron Paul (El Camino – A Braking Bad movie), Brad Pitt (Ad Astra – Rumo às estrelas), Robert Pattinson (O farol), Matthew McConaughey (The beach bum), Adam Sandler (Joias brutas), Song Kang-ho (Parasita) e Robert De Niro (O irlandês). Também estavam entre as apostas Eddie Murphy (Meu nome é Dolemite) e Taron Egerton (Rocketman).

Melhor atriz

Cynthia Erivo, por Harriet
Scarlett Johansson, por História de um casamento
Saoirse Ronan, por Adoráveis mulheres
Charlize Theron, por O escândalo
Renee Zellweger, por Judy

Renée Zellwegger teve um início de século marcante, fazendo sucesso com O diário de Bridhget Jones e Chicago, além de ganhar o Oscar de atriz coadjuvante por Cold Montain. Depois de uma segunda década do século apagada, ela reaparece na cinebiografia Judy. Tem como concorrente Saoitse Ronan, indicada recentemente por ótimas atuações em Brooklyn e Lady Bird, que interpreta a escritora Jo em Adoráveis mulheres. Também estão entre as rivais  Scarlett Johansson, no melhor momento de sua carreira em História de um casamento. Charlize Theron, vencedora por Monster, é lembrada pelo polêmico O escândalo, e Cynthia Erivo por Harriet.
Poderiam ter sido lembradas Adèle Haenel (Retrato de uma jovem em chamas), Zhao Tao (Amor até as cinzas), Elle Fanning (Um dia de chuva em Nova York), Lupita Nyong’o (Nós), Costance Wu (As golpistas)., Felicity Jones (The aeronauts), Florence Pugh (Midsommar), Ana de Armas (Entre facas e segredos), Cate Blanchett (Cadê você, Bernadette?) e Awkwafina (A despedida)

Melhor ator coadjuvante

Tom Hanks, por Um lindo dia na vizinhança
Anthony Hopkins, por Dois Papas
Al Pacino, por O irlandês
Joe Pesci, por O irlandês
Brad Pitt, por Era uma vez em… Hollywood

Esta categoria reúne alguns atores com uma filmografia invejável. Depois das últimas premiações, Brad Pitt parece ser o favorito por Era uma vez em… Hollywood, mas não se pode desconsiderar Al Pacino e Joe Pesci, por O irlandês, ambos já vencedores do Oscar (Pacino com Perfume de mulher de melhor ator e Pesci nessa mesma categoria por Os bons companheiros). Juntam-se a eles Anthony Hopkins, com atuação memorável em Dois Papas, e Tom Hanks, na indicação solitária de Um lindo dia na vizinhança, depois de 20 anos sem uma nomeação (desde Náufrago).
Poderiam ter sido lembrados, caso a concorrência não fosse tão forte, Willem Dafoe (O farol), Sam Rockwll (Jojo Rabbit e O caso Richard Jewell),, Ray Liotta e Alan Alda (História de um casamento), Robert Pattinson (O rei) e Timothée Chalamet e Chris Cooper (Adoráveis mulheres)

Melhor atriz coadjuvante

Kathy Bates, por O caso Richard Jewell
Laura Dern, por História de um casamento
Scarlett Johannson, por Jojo Rabbit
Florence Pugh, por Adoráveis mulheres
Margot Robbie, por O escândalo

A atriz Laura Dern vem sendo muito premiada pela atuação em História de um casamento. No entanto, as outras indicadas são fortes: Margot Robbie por O escândalo; Kathy Bates (vencedora do Oscar de melhor atriz com Louca obsessão), por O caso Richard Jewell; Florence Pugh (também presente em 2019 no terror Midsommar) por Adoráveis mulheres; e a segunda nomeação para Scarlett Johansson por Jojo Rabbit,.
Poderiam também concorrer: Jennifer Lopez (As golpistas), Meryl Streep (A lavanderia), Annette Bening (O relatório), Beanie Feldstein (Fora de série), Nicole Kidman (O pintassilgo), Noémie Merlan (Retrato de uma jovem em chamas), Tilda Swinton (Os mortos não morrem) e Thomasin McKenzie  (Jojo Rabbit)

Melhor roteiro original

Rian Johnson, por Entre facas e segredos
Noah Baumbach, por História de um casamento
Sam Mendes e Krysty Wilson-Cairns, por 1917
Quentin Tarantino, por Era uma vez em… Hollywood
Bong Joon-ho, Jin Won Han, por Parasita

Sempre quando é indicado, Quentin Tarantino costuma ser o favorito nesta categoria, e não é diferente agora por Era uma vez em… Hollwyood. No entanto, ele tem uma boa competição com Joo Boon Hong, por seu trabalho excepcional em Parasita. Noah Baumbach apresenta um trabalho irrepreensível em História d eum casamento e deveria ser um dos lembrados naturalmente já outras vezes – o foi antes apenas por A lula e a baleia. Rian Johnson teve uma recepção exitosa de Entre facas e segredos, e Sam Mendes  e Krysty Wilson-Cairns fazem o elogiado roteiro de 1917. Entre os trabalhos não lembrados, gosto muito do roteiro dos irmãos Safdie para Joias brutas e de Robert Eggers e seu irmão Max para O farol. Também é excepcional o roteiro de Retrato de uma jovem em chamas, escrito por Céline Sciamma.

Melhor roteiro adaptado

Steven Zaillian, por O irlandês
Taika Waititi, por Jojo Rabbit
Todd Phillips, Scott Silver, por Coringa
Greta Gerwig, por Adoráveis mulheres
Anthony McCarten, por Dois Papas

Uma categoria com trabalhos muito competentes. Taika Waiiti concorre por Jojo Rabbit, um trabalho muito bom de narrativa mesclando drama e humor; Greta Gerwig tem a história em vista em Adoráveis mulheres; Topp Phillips e Scott Silver fazem um ótimo trabalho em se inspirar livremente na figura dos quadrinhos em Coringa; E o trabalho de Steve Zaillian em O irlandês é primoroso, na sua sucessão de tempo e familiaridade, com muitas características interessantes. Anthony McCarten é responsável pelo duelo verbal de Dois Papas. Mereciam ter sido lembrados os trabalhos de adaptação de O pintassilgo, As golpistas, O caso Richard Jewell e A lavanderia.

Melhor filme estrangeiro

Corpus Christi (Polônia)
Honeyland (Macedônia do Norte)
Os miseráveis (França)
Dor e glória (Espanha)
Parasita (Coreia do Sul)

O grande favorito da categoria é o vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e de vários prêmios posteriormente: Parasita. Ele só parece ter como adversário direto Dor e glória, de Pedro Almodóvar, embora Os miseráveis também tenha agradado ao público em Cannes. Aliás, a categoria está cada vez mais ligada aos filmes que são exibidos no festival francês.

Melhor animação

Como treinar o seu dragão 3
I lost my bod
Klaus
Link perdido
Toy Story 4  

Com a não inclusão de Frozen 2 entre os finalistas da categoria, dando espaço a um inesperado Klaus, Toy Story 4 se tornou o grande favorito. No entanto, Link perdido surpreendeu no Globo de Ouro e Como treinar o seu dragão 3 tem muitos admiradores. Acredito que O rei leão deveria ter sido indicado nesta categoria, mesmo sendo considerado live-action.

Melhor curta de animação

Dcera
Hair Love
Kitbull
Memorable,
Sister

Melhor documentário

American Factory
The Cave
The Edge of Democracy
For Sama
Honeyland

Melhor documentário em curta-metragem

n the Absence
Learning to Skateboard in a Warzone
Life Overtakes Me
St. Louis Superman
Walk Run Cha-Cha,” Laura Nix

Melhor curta-metragem

Brotherhood,
Nefta Football Club
The Neighbors’ Window,
Saria,
A Sister

CATEGORIAS TÉCNICAS

Melhor fotografia

Rodrigo Prieto, por O irlandês
Lawrence Sher, por Coringa
Jarin Blaschke, por O farol
Roger Deakins, por 1917
Robert Richardson, por Era uma vez em… Hollywood

Melhor trilha sonora

Hildur Guðnadóttir, por Coringa
Alexandre Desplat, por Adoráveis mulheres
Randy Newman, por História de um casamento
Thomas Newman, por 1917
John Williams, por Star Wars – A ascensão Skywalker

Melhor canção original

“I Can’t Let You Throw Yourself Away” (Toy Story 4)
“I’m Gonna Love Me Again” (Rocketman)
“I’m Standing With You” (Breakthrough)
“Into the Unknown” (Frozen 2)
“Stand Up”  (Harriet)

Melhor design de produção

Bob Shaw and Regina Graves, por O irlandês
Ra Vincent and Nora Sopkova, por Jojo Rabbit
Dennis Gassner and Lee Sandales, por 1917
Barbara Ling and Nancy Haigh, por Era uma vez em… Hollywood
Lee Ha-Jun and Cho Won Woo, Han Ga Ram, and Cho Hee, por Parasita

Melhor figurino

Sandy Powell, Christopher Peterson, por O irlandês
Mayes C. Rubeo, por Jojo Rabbit
Mark Bridges, por Coringa
Jacqueline Durran, por Adoráveis mulheres
Arianne Phillips, por Era uma vez em… Hollywood

Melhor edição

Michael McCusker, Andrew Buckland, por Ford vs Ferrari
Thelma Schoonmaker, por O irlandês
Tom Eagles, por Jojo Rabbit
Jeff Groth, por Coringa
Jinmo Yang, por Parasita

Melhor edição de som

Don Sylvester, por Ford vs Ferrari
Alan Robert Murray, por Coringa
Oliver Tarney, Rachel Tate, por 1917
Wylie Stateman, por Era uma vez em… Hollywood
Matthew Wood, David Acord, por Star Wars – A ascensão Skywalker

Melhor mixagem de som:

Ad Astra
Ford vs Ferrari
Coringa
1917
Era uma vez em… Hollywood

Melhor maquiagem e cabelo

O escândalo
Coringa
Judy
Malévola – Dona do mal
1917

Melhores efeitos visuais

Vingadores – Ultimato
O irlandês
1917
O rei leão
Star Wars – A ascensão Skywalker

Na parte técnica, um bom duelo entre Coringa, O irlandês, Jojo Rabbit, Era uma vez em… Hollywood e 1917. Dumbo foi esquecido nas categorias de melhor figurino e design de produção, assim como O rei. Ad Astra era um concorrente certo em efeitos visuais e talvez fotografia ou design de produção. O fechamento da nova trilogia de Star Wars foi lembrado, com três indicações. Num ano com menos concorrentes, O rei leão teria muitas chances em melhor fotografia e design de produção (excelentes). Alita – Anjo de combate parecia ser um forte concorrente na categoria de efeitos visuais, mas caiu entre os pré-indicados, e mixagem de som. Eu estava torcendo por alguma lembrança (em trilha sonora ou mixagem de som) para Doutor Sono ou It – Capítulo 2 (maquiagem e cabelo). Surpreendente Meu nome é Dolemite não ter sido indicado sequer a figurino, pois recebeu o prêmio na categoria no Critics’ Choice Awards. Entre os filmes estrangeiros, Retrato de uma jovem em chamas poderia concorrer facilmente a melhor fotografia e figurino.
A cerimônia de entrega do Oscar ocorre em 9 de fevereiro.

 

Adoráveis mulheres (2019)

Por André Dick

Depois de uma estreia exitosa com Lady Bird – A hora de voar, indicado aos Oscars de melhor filme e direção, Greta Gerwig se tornou uma das promissoras cineastas da atualidade. Talvez seu nome tenha sido o mais comentado, entre as diretoras de cinema, desde Sofia Coppola. A origem, de certo modo, era muito parecida. Lady Bird se baseava nas características do cinema indie, o mesmo que Sofia ajudou a popularizar com As virgens suicidas e Encontros e desencontros: personagens descompromissados, uma história simples, uma maneira de filmar sem grandes adornos e muita agilidade narrativa. Isso aproximava o trabalho das duas de modo fundamental, e, além disso, havia a humanidade dos personagens.
Em seu segundo filme, Adoráveis mulheres, Gerwig toma como base o romance de Louisa May Alcott, já adaptado para o cinema antes (uma das versões é de 1994), que mostra uma jovem chamada Jo March (Saoirse Ronan). Ela é uma escritora em busca dos primeiros interessados a publicá-la, o que encontra na figura do Sr. Dashwood (Tracy Letts), em torno de 1868, em Nova York. Um pouco depois, ela entra em contato com o professor Friedrich Bhaer (Louis Garrel) Enquanto isso, sua irmã, Amy (Florence Pugh), vive em Paris com a tia March (Meryl Streep), e reencontra Laurie (Timothée Chalamet), um antigo amigo.

Gwrwig retrocede alguns anos antes para mostrar como Jo conheceu Laurie, tornando-se muito próximos, e como vivia com as irmãs Meg (Emma Watson), Amy (Pugh) e Beth (Eliza Scanlen), numa casa em Concord, Massachusetts. As irmãs são muito unidas, ao lado da mãe Marmee (Laura Dern). Seu pai (Bob Odenkirk) está, por sua vez, na Guerra Civil.
No prosseguimento de sua trajetória como diretora, Gerwig adota mais ou menos as mesmas escolhas de Sofia quando resolveu fazer Maria Antonieta e, recentemente, O estranho que nós amamos. Desde o início, é possível perceber uma tentativa de certa grandiosidade, ao mostrar Jo dançando com o Prof. Bhaer num baile, que remete a cenas de clássicos (especificamente O portal do paraíso, A época da inocência Gangues de Nova York) e, em seguida, um desfile suntuoso de figurinos deixando o filme visualmente muito atrativo para o espectador, em combinação com a ótima fotografia de Yorick Le Saux, alterando lugares escuros e iluminados de maneira amplamente eficaz.

Nesse sentido, Adoráveis mulheres se aproxima da suntuosidade de Maria Antonieta, por exemplo, e se afasta quase completamente dos elementos de cinema indie que caracterizam Lady Bird. Isso, por um lado, é elogiável, pois a diretora não quis se repetir, inclusive nos primeiros acordes da trilha sonora de Alexandre Desplat, evocando John Williams, com outra influência clara de Gerwig: A cor púrpura, de Steven Spielberg Se o filme de Spielberg mostrava de maneira excepcional a trajetória de mulheres afrodescendentes com uma trajetória de sofrimento, Gerwig revela uma aristocracia modesta em Adoráveis mulheres. As paisagens invernais, no entanto, aproximam muito os filmes, assim como os enquadramentos de Gerwig, a imponência das casas e um transporte para os anos 1860, enquanto o filme de Spielberg se passava no início do século XX. Embora os temas sejam diferentes, a imersão é a mesma. Gerwig faz lembrar de como eram os filmes históricos feitos para o Oscar, com talento.
No que se refere ao desenvolvimento das personagens, Gerwig conta com o apoio vital da melhor do elenco: Saoirse Ronan, seguida por Chalamet, seguindo seu bom momento desde Querido menino e Um dia de chuva em Nova York. Além  disso, Gerwig extrai de Emma Watson a melhor atuação da atriz desde As vantagens de ser invisível. Outra atriz que se destaca é Florence Pugh, uma revelação nos últimos anos, só não mais que Eliza Scanlen, mesmo com breve participação.

A relação de Laurie com Jo e Amy atravessas as épocas e Gerwig decidiu contar a história, com idas e vindas no tempo, com uma sucessão de acontecimentos dialogando por conta própria., sem uma unidade evidente. O filme está no seu melhor quando concentra seus personagens em cenários pequenos, dando uma dimensão de afeto a essas adoráveis mulheres, à luz de velas e iluminadas pelo sol atravessando a janela, assim como por meio de cenas em que fazem peças teatrais caseiras. Há uma conversa entre Marmee e Jo, elucidando o que habita a narrativa, e oportunizando a Laura Dern seu grande momento como atriz discreta (que era sobretudo nos anos 80 e 90).
Gerwig usava um humor discreto em Lady Bird e aqui emprega um certo classicismo, parecendo querer reproduzir os filmes talhados para o Oscar, lembrando em alguns momentos Brooklyn (com a mesma Saoitse Ronan). É uma característica que não se aproximou de Sofia nem mesmo no grandioso Maria Antonieta, cuja narrativa ainda trazia elementos dos filmes indie da diretora. Na maioria das vezes, Gerwig consegue empregar bem esse tom ao contrário de muitos pares.

Do mesmo modo que Lady Bird, Jo é visivelmente o alter ego de Gerwig, e traz com isso, além de motivações artísticas muito interessantes, um certo discurso às vezes entregue um pouco de maneira expositiva. Ao contrário do que acontecia no seu filme de estreia, Gerwig parece ter dúvida se o espectador vai entender as motivações de Joe nas entrelinhas. No terceiro ato, ela faz quase uma ligação direta de sua trajetória como diretora com os percalços da personagem.
É nesse ponto que Adoráveis mulheres mostra a união  entre um cinema mostrado com absoluta beleza técnica, por um lado, e aquele que evolui em termos de história e elenco, por outro. E isso se dá de maneira efetiva, pois, de Saoise, passando por Chalamet, até Laura Dern e Meryl Streep, o que não falta a esta adaptação é um elenco. Talvez Gerwig pudesse ter mesclado seu estilo anterior a um novo sem perder as características básicas. Mas, mesmo ao fazer de Adoráveis mulheres uma procura pelo Oscar, ela mantém um tom otimista e afetuoso, no qual o ser humano aprende tanto fora quanto dentro da obra que ele compõe para sua vida de maneira sensível.

Little women, EUA, 2019 Diretora:  Greta Gerwig Elenco: Saoirse Ronan, Emma Watson, Florence Pugh, Eliza Scanlen, Laura Dern, Timothée Chalamet, Meryl Streep, Tracy Letts, Bob Odenkirk, James Norton, Louis Garrel, Chris Cooper Roteiro: Greta Gerwig Fotografia: Yorick Le Saux Trilha Sonora: Alexandre Desplat Produção: Amy Pascal, Denise Di Novi, Robin Swicord Duração: 135 min. Estúdio: Columbia Pictures, Regency Enterprises, Pascal Pictures, Di Novi Pictures Distribuidora: Sony Pictures Releasing

O farol (2019)

Por André Dick

Em 2015, quando surgiu à frente de A bruxa, filme de terror bastante elogiado, Robert Eggers tornou-se um dos cineastas a se acompanhar. Particularmente, não apreciei sua estreia, mas era inegável que ele conseguia construir uma atmosfera e, se tivesse às mãos uma história superior, poderia lidar melhor com elementos que já demonstrava. Isso acontece justamente em O farol, cuja estreia aconteceu no Festival de Cannes do ano passado com grande recepção, escrito por ele e seu irmão Max.
Ele acompanha a trajetória de Ephraim Winslow (Robert Pattinson), que vai parar numa ilha da Nova Inglaterra, a fim de guardar um antigo farol, no século XIX, ao lado do estranho Thomas Wake (Willem Dafoe). A premissa é bastante curta, quase desinteressante, ecoando, por exemplo, A luz entre oceanos e o brasileiro A ostra e o vento, mas a diferença é que Eggers entrega aqui um duo espetacular de Pattinson e Dafoe, ambos, talvez, em seus melhores momentos na década passada, o que não é pouco, pois ambos fizeram grandes filmes (para citar apenas um de cada, Cosmópolis e Projeto Flórida).

Eggers utiliza essas figuras taciturnas para desenvolver uma espécie de simbologia ligada ao oceano, com influência da mitologia grega. Ephraim começa a ver imagens oníricas ligadas justamente à figura de uma sereia (Valeriia Karamän), depois de encontrar uma pequena estatueta desse ser, despertando nele também desejos que desconhece. Ele também passa a se deparar com uma gaivota perturbadora, sendo avisado por Wake de que matá-la pode trazer problemas para ambos. Trata-se de uma espécie de Ulisses, aquele homem que ouve encantado o canto das sereias e precisa ser amarrado (embora isso não necessariamente aconteça no filme, o diálogo é explícito).
A chuva incessante sobre a ilha parece levar esses personagens a criar uma redoma em torno concentrada por lances de loucura. Pattinson, para desenvolver seu personagem, recorre certamente a atuações de Von Sydow na fase bergmaniana de loucura particular ou coletiva, principalmente em A hora do lobo e Shame. São esses dois filmes que Eggers incorpora em seu roteiro de maneira acertada, focando a loucura como um símbolo da própria vida que esses personagens passam a levar. Em entrevistas, Pattinson tem dito o quanto teve dificuldades com o diretor: o que transparece, no entanto, por meio de expressões, é uma das atuações mais surpreendentes dos últimos anos, original e impactante.

O personagem de Thomas Wake, além de guardar um segredo, tenta impedir que Ephraim tenha uma autonomia, tentando atraí-lo para sua rotina, incluindo doses etílicas consideráveis. Em algumas sequências, ele lembra um Ahab sem uma obsessão em mente, com a longa barba e a performance enlouquecedora de Dafoe, indo na mesma linha de seu companheiro de elenco. Em determinado momento, o tom conflituoso é tamanho que o espectador parece acompanhar uma espécie de pesadelo kafkiano (nesse sentido, há algo nele também do experimento de Steven Soderbergh do início dos anos 90, com Jeremy Irons no papel do escritor). O cenário da ilha e do vazio que cerca o farol, além da presença da estranha gaivota, colabora decisivamente para isso. Além disso, a fotografia em preto e branco de Jarin Blaschke, em tamanho de tela 1,19: 1 (típico na era do cinema mudo), dialoga com a filmografia de Bergman, incluindo aí outras obras-primas, como O sétimo selo.
Eggers também não utiliza apenas referências esparsas ao clássico diretor sueco: a maneira como ele movimenta a câmera tem muita semelhança, além da necessidade de mesclar um cenário real, dramático, a elementos de terror. Isso era muito presente em A hora do lobo, já referido, no qual um casal morava numa ilha atormentada por estranhas figuras de uma mansão. Também é visível a influência do cinema de Béla Tarr, sobretudo O cavalo de Tuim, com a presença considerável de efeitos sonoros do vento e dos pássaros, além das ondas do mar batendo nos rochedos da ilha, inserindo o espectado no centro da situação que vivem os personagens. Por isso, a partir do terceiro ato e, principalmente, a conclusão tornam a história ainda mais notável, por toda a ousadia e o cuidado em retratar a época. A última cena é tão pictórica que poderia, como outras passagens do filme, ser emoldurada. Poderia ser apenas estilo sobre substância, sem nenhuma história verdadeira a ser contada: não é. Este é um tipo de cinema cada vez mais raro e é preciso dedicar toda a atenção quando ele surge, com alguém disposto a bancá-lo, sem fazer concessões.

The lighthouse, EUA, 2019 Diretor: Robert Eggers Elenco: Willem Dafoe, Robert Pattinson, Valeriia Karamän  Roteiro: Robert Eggers e Max Eggers Fotografia: Jarin Blaschke Trilha Sonora: Mark Korven Produção: Rodrigo Teixeira, Jay Van Hoy, Robert Eggers, Lourenço Sant’Anna, Youree Henley Duração: 110 min. Estúdio: A24, Regency Enterprises, RT Features Distribuidora: A24 (Estados Unidos) e Focus Features (Internacional)

 

Melhores filmes de 2019

Por André Dick

O ano de 2019 teve dois momentos no cinema: um no primeiro semestre praticamente destinado aos grandes sucessos da Disney, incluindo o encerramento de Vingadores e as live-actions, e um segundo semestre, principalmente a partir do lançamento de Era uma vez em… Hollywood, destinado a um cinema que respira os anos 70 (Coringa, Ford vs Ferrari, Meu nome é Dolemite, Ad Astra, História de um casamento. Shaft), e mais voltado a uma tentativa de reverter expectativas em alguns gêneros, principalmente no gênero do terror (Midsommar, It – Capítulo 2).
A consolidação das franquias da Disney praticamente tornou o estúdio no principal mantenedor da ida do grande público ao cinema, mas a Warner Bros tentou suas cartadas, com Coringa, principalmente, depois de um primeiro semestre bastante problemático, apenas destacando-se Shazam! e Godzilla II – Rei dos monstros. A Netflix, portanto, tentou continuar investindo num cinema mais autoral, apoiando-se em grandes diretores, como Baumbach e Scorsese, a fim de levar mais adiante o que pretende, que é se tornar a segunda distribuidora do muindo, apenas atrás da Disney, em termos de ganhos, apresentando obras como O irlandês, História de um casamento, O rei, Dois Papas, A lavanderia e El camino.

O cinema sofreu um pouco com isso com o excesso de live-actions, apesar da boa qualidade (Dumbo, Aladdin, O rei leão, A dama e o vagabundo, este em streaming), no entanto, a partir de setembro, com a temporada de premiações, a qualidade se sobressaiu de modo destacado.
Se o cinema internacional trouxe novas peças bem-vindas de Ceylan (A árvore dos frutos selvagens), Yorgos Lanthimos (A favorita), Gaspar Noé (Climax), Jean-Luc Godard (Imagem e palavra), Pawel Pawlijowski (Guerra fria), Pedro Almodóvar (Dor e glória) e Julian Schnabel (No portal da eternidade), aos poucos mesmo blockbusters tiveram uma qualidade inabitual (Ad Astra e Entre facas e segredos, por exemplo). O fechamento da saga de Star Wars se deu com grande polêmica e visto como uma obra divisiva, mas, particularmente, bastante satisfatória.
Cineastas firmados ou fizeram sucesso (Vidro, de Shyamalan) ou foram amplamente ignorados (Allen em Um dia de chuva em Nova York). Atores e atrizes surgiram como cineastas: Paul Dano (Vida selvagem) e Olivia Wilde (Fora de série).
O universo adolescente esteve bem representado sob várias perspectivas em Querido menino, O mau exemplo de Cameron Post, Boy erased, Anos 90, Oitava série e na comédia Fora de série.

Continuações ou refilmagens, como Creed II, Toy Story 4, X-Men – Fênix Negra, Hellboy, Uma aventura LEGO 2, John Wick 3 – Parabellum, Gloria Bell e Suspíria, se tornaram alguns dos motivos para a ida ao cinema. No Brasil, tivemos destaques como Bacurau, Turma da Mônica – Laços e A vida invisível, em termos de público ou crítica (ou ambos).
O mundo da música se deu de diversos modos em Vox Lux, Rocketman, Corações batendo alto, Espírito jovem e Yesterday; O tema pesado do tráfico de drogas apareceu também sob pontos de vista diferentes em El camino, A mula e Dogman. Os conflitos de segregação racial foram analisados em Green Book – O guia e Se a Rua Beale falasse. O gênero do faroeste se renovou com humor e uma visão mais existencial em Hostis, Sob o sol do velho oeste Os irmãos Sisters. O universo religioso foi revelado com alguns temas polêmicos, em Graças a Deus e Dois Papas. Mais uma vez a ligação entre a política, a vida cotidiana e conflitos financeiros esteve presente em A lavanderia, Vice e As golpistas.
Abaixo, as listas de menções honrosas, filmes apreciados e decepções e/ou superestimados. Todos estrearam comercialmente, nos cinemas ou plataformas diversas, no Brasil ao longo de 2019.

Menções honrosas

Creed II (Steven Caple Jr.), Se a Rua Beale falasse (Barry Jenkins), O rei leão (Jon Favreau), It – Capítulo 2 (Andy Muschietti), Velvet Buzzsaw (Dan Gilroy), Climax (Gaspar Noé), Shazam! (David F. Sandberg), Dor e glória (Pedro Almodóvar), Obsessão (Neil Jordan), Shaft (Tim Story), Vidro (M. Night Shyamalan), Guerra fria (Pawel Pawlikowski), Ad Astra – Rumo às estrelas (James Gray), Turma da Mônica – Laços (Daniel Rezende), Annabelle 3 (Gary Dauberman), Histórias assustadoras para contar no escuro (André Øvredal), Imagem e palavra (Jean-Luc Godard), As golpistas (Lorene Scafaria), Doutor Sono (Mike Flanagan),  O rei (David Michôd), Entre facas e segredos (Rian Johnson), Ford vs Ferrari (James Mangold), Alita – Anjo de combate (Robert Rodriguez), Fora de série (Olivia Wilde), Cemitério maldito (Kevin Kölsch e Dennis Widmyer), Toy Story 4 (Josh Cooley), The perfection (Richard Shepard), Espírito jovem (Max Minghella), Paddleton (Alexandre Lehmann), A mula (Clint Eastwood), Assunto de família (Hirokazu Koreeda), Bem-vindos a Marwen (Robert Zemeckis), Oitava série (Bo Durnham), Sob o sol do oeste (David e Nathan Zellner), Graças a Deus (Olivier Assayas), Quem somos agora (Matthew Newton), Pássaros de verão (Ciro Guerra, Cristina Gallego), O que nos mantêm vivos (Colin Minihan), No coração das trevas (Paul Schrader), Grande saída (Alex Ross Perry), Acrimônia (Tyler Perry), WiFi Ralph – Quebrando a internet (Rich Moore, Phil Johnston), Os irmãos Sisters (Jacques Audiard), Vice (Adam McKay), Anos 90 (Jonah Hill), Zumbilândia – Atire duas vezes (Ruben Fleischer).

Apreciados

Poderia me perdoar? (Marielle Heller), Boy erased – Uma verdade anulada (Joel Edgerton), Com quem será? (Victor Levin),  A professora do jardim de infância (Sara Colangelo), Verão de 84 (François Simard, Anouk Whissell, Yoann-Karl Whissell), Stan & Ollie – O gordo e o magro (John S. Baird), Corações batendo alto (Brett Haley), Amizade desfeita 2: dark web (Stephen Susco), The girl (Lukas Dhont), Brightburn (David Yarovesky), Meu nome é Dolemite (Craig Brewer), Projeto Gemini (Ang Lee), Cadê você, Bernadette? (Richard Linklater), A vida secreta dos bichos 2 (Chis Renaud), Polémon: Detetive Pikachu (Rob Letterman), Hostis (Scott Cooper), Anima (Paul Thomas Anderson), Dumbo (Tim Burton), Uma aventura Lego 2 (Mike Mitchell), Aladdin (Guy Ritchie), X-Men – Fênix Negra (Simon Kinberg), Gloria Bell (Sebastián Lelio), John Wick 3 – Parabellum (David Stahelski), Godzilla II – Rei dos monstros (Michael Dougherty), JT LeRoy (Justin Kelly), Calmaria (Steven Knight), A cinco passos de você (Justin Baldoni), Estrada sem lei (John Lee Hancock), Deixando Neverland (Dan Reed), A morte te dá parabéns 2 (Christopher Landon), Hellboy (Neil Marshall), O menino que queria ser rei (Joe Cornish), Amanda (Mikhaël Hers), Dois Papas (Fernando Meirelles).

Decepções e/ou superestimados

A esposa (Björn Runge), Predadores assassinos (Alejandro Aja), Guava Island (Hiro Murai), Capitã Marvel (Anna Boden, Ryan Fleck), Cafarnaum (Nadine Labaki), Free Solo (Jimmy Chin, Elizabeth Chai Vasarhelyi), Máquinas mortais (Christian Rivers), Um ladrão com estilo (David Lowery), Os animais somos nós (Jeremiah Zagar), Nós (Jordan Peele), Bacurau (Kleber Mendonça Filho), Estranha presença (Lenny Abrahamson), Desculpe te incomodar (Boots Riley), Eu mato gigantes (Anders Walter), O mau exemplo de Cameron Post (Desiree Akhavan), High flying Bird (Steven Soderbergh), Casal improvável (Jonathan Levine), Homem-Aranha –  Longe do lar (Jon Watts).

A seguir, a lista dos 25 melhores filmes do ano do Cinematographe.

Dogman é o novo filme do diretor Matteo Garrone, logo após Conto dos contos, baseado não mais num universo onírico, fantasioso, ligado a fábulas, e sim um um neorrealismo fundamentado no cinema italiano dos anos 60, principalmente com suas cenas noturnas, remetendo a Antonioni. Responsável pela loja Dogman, localizada no bairro de Magliana, em Roma, Marcello (Marcello Fonte) passa os dias cuidando de cães, dando banho e tosando, enquanto faz um tráfico de drogas discreto, de cocaína, escondendo isso de sua filha, Alida (Alida Baldari Calabria). Fonte, premiado como melhor ator em Cannes, tem uma atuação extraordinária, assim como Garrone desenvolve o ambiente de um bairro bastante decadente, à beira-mar, longe das maravilhas despertadas pela obra de Fellini da década de 60, com uma profusão poucas vezes vista.

Este é um filme sobre a cultura e a política na América, a mania de se tentar esvaziar os temas para preenchê-los com um colorido animador, e como tudo isso não impede uma maldade que se manifesta sempre dos lugares mais inesperados e por pessoas já esvaziadas de qualquer sentimento. Por isso, Vox Lux é um referencial para entender sua própria época. A estrela está chorando pelas perdas que acontecem ao seu redor com toda a sua crise e desorientação pessoal; ela aparenta servir de guia. Não serve, mas ela está lá, tentando resistir, como cada um que se junta a um coro musical ilusório. Para o diretor Cobert, a arte é muito mais; é um retrato da confusão buscando pela tranquilidade, como na cena em que mãe e filha se ajoelham na areia da praia para orar pelas pessoas que se foram. Não importa o passar dos anos, o que importa é a experiência do momento e a carga de aprendizado que ele carrega. Vox Lux leva isso a um ponto em que o espectador tem certeza de que está diante de algo a ser transformado, e simplesmente é aquilo que o público espera atingir por meio dos sonhos fornecidos por outra pessoa. Não deixa de ser uma tentativa de reencontrar um sentimento de otimismo.

Com roteiro de Deborah Davis e Tony McNamara, o primeiro filme de Lanthimos sem trabalhar sua própria história, A favorita flutua entre episódios distintos, quase como contos da realeza, e corridas de pato em meio a punições a criadas que ousam buscar um tratamento médico para os problemas de saúde da rainha. Suas características podem ser descobertas em meio aos percalços existenciais de cada um e na futilidade de Sarah, atendida prontamente por todos. Lanthimos insere mais suas propriedades quando transforma Abigail no centro da história, e Stone consegue reproduzir sua estranheza de maneira por vezes impactante. A utilização dos cenários para representar os sentimentos de cada uma dessas mulheres constrói um contraste interessante. O Palácio de Kensington representa uma redoma de solidão e, ao mesmo tempo, de lugar onde muitas personalidades vão se revelar de modo contundente. Se no início o humor está mais presente (com uma personagem, por exemplo, sendo jogada de uma carruagem diretamente na lama), a dramaticidade e mesmo certos elementos soturnos aos poucos vão consumindo a história, chegando a um último ato anticlimático, em relação à filmografia de Lanthimos, embore funcione simbolicamente.

Green Book é um exemplar de cinema despretensioso em relação ao qual o espectador acaba relevando certas inconsistências de roteiro e mesmo a mensagem de pano de fundo às vezes previsível até demais. Ele tem, além de uma atmosfera trabalhada, com uma fotografia sensível de Sean Porter, que lembra a de obras recentes como Carol e Fome de poder, uma espécie de equilíbrio entre tons narrativos que não é fácil de conseguir, principalmente no cinema contemporâneo, muito mais rápido e quase sem elementos clássicos.  O fato de Don Shirley sentir-se deslocado em relação à cultura construída por afro-americanos e o atrito dela com o universo da composição clássica, assim como seus trejeitos mais elaborados, contribui para isso de maneira significativa, provocando no espectador uma certa compreensão mais universal. A figura do Green Book, que apontava, por exemplo, os lugares que poderiam hospedar afro-americanos no Sul dos Estados Unidos dos anos 60, acaba servindo como símbolo de que, na verdade, Toni também se sente deslocado não apenas em relação à sua cultura original quanto em relação à influência que recebe do novo amigo, ao vivenciar o preconceito junto com ele (e talvez a única cena mais deslocada seja aquela do banheiro numa mansão sulista). Em determinados momentos, esse aspecto lembra No calor da noite, premiado com o Oscar de melhor filme em 1967, com Sidney Poitier.

Com belo roteiro assinado por Schnabel com Jean-Claude Carrière, conhecido romancista e corroteirista, por exemplo, de O discreto charme da burguesia, e Louise Kugelberg, o filme possui uma fotografia tremida de Benoît Delhomme, parecendo até uma peça de Von Trier. No entanto, é como se o espectador visse as paisagens do modo que Van Gogh as vê, com sua proliferação de amarelos e desvios da realidade para contemplações próximas da eternidade, como ele diz em determinado momento. Tudo vai se configurando como se um pintor fosse lançando as cores na tela, na composição de uma obra. Van Gogh, deste modo, é um personagem muito disponível para se lidar com uma faceta quase poética de uma realização cinematográfica. Alguns cineastas já trabalharam sobre sua obra com destaque, com destaque para Robert Altman em Vincent & Theo, a animação Com amor, Van Gogh e o episódio de Sonhos, de Akira Kurosawa, que mostrava o pintor, interpretado por Martin Scorsese, caminhando dentro de algumas de suas obras.

Como a série, porém ainda com mais apuro, isto se parece com um faroeste contemporâneo, igual a alguns dos melhores momentos da obra dos irmãos Coen, e há uma determinada solução que aponta para esse caminho. Jesse é um homem que vem de um quase desaparecimento para uma tentativa de desaparecer totalmente do Novo México e do rastro da polícia e do passado que o envolveu numa série de castigos. Gilligan exerce essa visão de maneira visualmente atrativa, parecendo coloca-lo em cenários abandonados e nunca mais visitados. Mesmo uma conversa ao telefone com seus pais é cercada de ilusões sobre o que poderia ter sido, não tivesse acontecido exatamente o contrário. Desse modo, o filme El Camino – A Breaking bad movie é uma das grandes surpresas desta temporada do Oscar que se aproxima, com grande efeito em quem viu ou não a série. Um exemplo de como lidar com um personagem principalmente em diferentes linguagens, muitas vezes inseparáveis.

A lavanderia não é necessariamente um drama ou uma comédia, situando-se num meio-termo oportuno que conduz o risco de emprego de dinheiro em questões duvidosas. Embora toda a narrativa que envolve a personagem de Meryl Streep seja mais de um drama de Hollywood, interrompido apenas por uma cena em que ela imagina fazer algo, em outros momentos o filme parece uma sátira, que, embora lembre A grande aposta, não tem o encantamento de McKay pelas trapaças. Ou seja, Soderbergh lança um certo pesar mesmo quando parece brincar com as vítimas das enganações de Mossack e Fonseca – e ao filmá-los por meio de imagens emulando propagandas luminosas lança, na verdade, uma bruma de dúvida sobre seu comportamento. Nesse sentido, o filme de Soderbergh, apesar de nunca explorar com a devida ênfase seus personagens, é um estudo muito curioso sobre o universo dos negócios e o reflexo na vida de várias pessoas, mesmo que pareça episódico. É na sua aparente leveza que sua trama se fortalece de maneira substancial, definindo-se como um dos melhores momentos na trajetória de Soderbergh e do cinema deste ano.

Há um descompromisso aqui em certos diálogos, mais ação e menos tentativa de seguir exatamente à risca um plano, como O despertar da força. Há também uma busca de Abrams em retomar temas de linhagens familiares usados em sua retomada de 2015 e um pouco ignorados por Johnson em Os últimos Jedi para dar espaço a discussões sobre falta de combustível numa nave espacial. É visível que Abrams também ignora personagens incluídos pelo sucessor, a exemplo de Rose Tico (Kelly Marie Train) para aplicar suas ideias, o que pode constituir uma estranheza a princípio, mas se torna autoral. Se os vinte minutos iniciais a edição é tortuosa, com excesso de acontecimentos, sem a necessária ponderação para cada personagem, aos poucos Abrams, mesmo desperdiçando a retomada de uma conhecida figura, sabe como costurar escala e grandiosidade como em seus dois Star Trek, lembrando também um determinado momento de Interestelar. Ele também deixa de lado o tom infantojuvenil de O despertar da força e se guia por algumas pistas deixadas por Johnson, principalmente na ligação entre Rey e Kylo Ren, muito bem explorada em Os últimos Jedi e que aqui toma um ponto de inflexão interessante.

A estreia do ator Paul Dano na direção se dá em Vida selvagem. Ao assisti-lo, é difícil não lembrar que Dano estava no elenco de um dos filmes que definiram a trajetória de Paul Thomas Anderson, Sangue negro. É na filmografia desse cineasta que ele vai buscar referenciais importantes, para o uso de uma narrativa minimalista, atuações contidas e ainda assim fortes e uma fotografia irretocável do mexicano Diego Garcia (Cemitério do esplendor, Boi neon), que parece reproduzir pinturas clássicas de Edward Hopper. Discreto e eficiente no sentido visual, mesclando belas imagens a um figurino de época escolhido com acerto, Vida selvagem incorpora ainda mais o conflito quando surge o Warren Miller de Bill Camp. É com ele que Mulligan e Gyllenhaal experimentam performances ainda mais poderosas. De qualquer modo, é ainda o conflito solitário de Joe com a ideia de uma família a ser conservada que move esta adaptação bela e concisa de Dano e Kazan. São momentos breves e passageiros que mais ficam gravados no espectador. As sequências sem diálogos, embora com outro estilo, lembram O mestre, de PTA, principalmente quando mãe e filho se deslocam atrás do pai para o cenário dos incêndios florestais. Esse cenário, aliás, contrasta com a própria gelidez dos personagens. No entanto, é uma gelidez apenas superficial, pois há sentimentos por trás das ações de cada um bastante visíveis e atrativos para o espectador lidar com a narrativa de maneira interessada. E a cena final, além de tudo, é um primor de construção.

Por isso, pode-se dizer que esta refilmagem lida com uma camada quase histórica e absolutamente séria e outra camada ligada ao terror mais ostensivo. Quase nunca Suspíria se inclina para o sangue do original – no entanto, quando se inclina, lida com imagens que, embaralhadas, vão formando um sentido metafórico, principalmente no primeiro ensaio de dança, que cria um paralelo com uma situação angustiante e muito bem filmada. Mesmo quando Susie chega à Academia, forma-se a palavra Theathre num letreiro embaralhado a seu fundo; em outros momentos, o espectador vê a capa de uma revista com a palavra Terror, como se estivesse comentando o que acontece, e a gangue Baader-Meinhof, um grupo violento à solta em Berlim e que toma conta dos noticiários.

Da relação dele com o pai, Felix Van Groeningen extrai uma história agridoce, situada entre um lado trágico – o périplo de Nic por casas de recuperação é o principal elemento disso –, e nunca pendendo para o uso do vício em drogas como um traço pop, o que vemos em certo cinema de Danny Boyle, sem deméritos para o olhar que este lança. Ele se lança mais no terreno que era desbravado por Trier em Oslo, 31 de agosto: o sentimento inescapável de alguém sentir-se sozinho e sem apoio, mesmo tendo opções para contornar seu rumo. Há uma dramaticidade decisivamente corrente no roteiro do diretor em parceria com Luke Davies, sem apelar a um excesso de situações que mostrem o jovem usando drogas, e sim seus efeitos em relações sociais. A atmosfera de solidão e dificuldade de inserção de Nic não raramente reproduzem cenários constantemente desabitados, só preenchidos por sentimentos perdidos no tempo.

Amor até as cinzas possui, como em toda a obra de Jia, uma fotografia deslumbrante, com uma predileção por captar ambientes externos com um cuidado irreparável, assim como deixa cenários internos com uma sensação de realismo destacada. A China antiga e a China moderna convivem não raramente no mesmo enquadramento, e se temos algum sinal de neve é sempre em meio a uma natureza já surgida no asfalto. Cenas que captam a tradição chinesa são ampliadas com um afeto trabalhado, lembrando o que Ka-Wai e Kurosawa já fizeram para o Oriente em termos de imagem. E, em meio a essas imagens, a presença cada vez maior do Ocidente, sobretudo na circulação de automóveis e jogos, e um sentimento de que a China vive o futuro, principalmente na velocidade dos trens e na tentativa de incorporar outras linguagens, realçadas pelo talento da atriz Zhao Tao, aqui numa relação conturbada por décadas.

O diretor Drew Goddard há alguns anos fez O segredo da cabana, que se caracterizava principalmente pelo uso da metalinguagem num filme de terror e suspense. Em Maus momentos no Hotel Royale, ele regressa para montar uma história que remete a Quentin Tarantino e aos irmãos Coen e por isso mesmo poderia ser apenas um derivado, uma mescla repetitiva.. Como em O segredo da cabana, ele mostra um mundo de universos espelhados, mas que um não representa exatamente quem parece. No entanto, ao contrário desse filme, Goddard está mais interessado em construir uma narrativa milimetricamente pensada, em que fragmentos vão se unindo sob diferentes pontos de vista, o que, pela ambientação e traço teatral, lembra imediatamente Os oito odiados. Há um atrativo fabuloso na fotografia de Seamus McGarvey, habitual parceiro de Joe Wright, capaz de rivalizar com seu trabalho de iluminação em Anna Karenina, embora não com a mesma variedade de cenários. No entanto, McGarvey coloca o espectador no centro da ação. Muitas vezes, parece estilo sobre substância, uma espécie de Tarantino e irmãos Coen olhando a filmografia de Refn. No entanto, é mais: uma amostra do cinema contemporâneo que pode ser ágil longe de grandes orçamentos.

Vingadores – Ultimato tem referências a muitas obras sobre passagem do tempo, de forma mais destacada à trilogia referencial De volta para o futuro, porém apresenta ainda mais um diálogo implícito, ao final, com uma obra-prima de Stanley Kubrick sem diluir numa ideia de universo compartilhado, contudo conseguindo expandi-lo dentro do mundo do cinema. Nessa atemporalidade, vemos até Barton e Natasha em cenários que remetem a Encontros e desencontros, filme responsável por elevar a trajetória de Johansson no início deste século. São os últimos 10 minutos que asseguram o quanto, por mais que seja produto de um universo pop levado à exaustão, é possível fazer um grande cinema blockbuster sem esquecer o atrativo da história à margem de todos os personagens, lembrando a simples humanidade. Os irmãos Russo homenageiam a introdução heroica de Whedon a esses personagens, no entanto acrescentam um tom emocional incontornável e realmente infinito.

Chalamet e Fanning são surpreendentes em seus papéis – e divertidos, principalmente ela. Allen consegue produzir um roteiro adequado à personalidade de cada um, fazendo de Um dia de chuva em Nova York aquele que mais dialoga com os jovens desde Igual a tudo na vida. Também é o mais nostálgico desde, talvez, Meia-noite em Paris, com sua tendência a imaginar um universo paralelo do protagonista. A maneira como Allen utiliza a fotografia de Vittorio Storaro também é um destaque. Em sua terceira parceria iniciada em Café Society, Storaro ilumina os personagens como se estivessem sempre sob um pôr-do-sol, a exemplo do que acontecia em O céu que nos protege. Os interiores também são belíssimos, com uma visão de Nova York poucas vezes vista, e em alguns momentos lembra o trabalho cenográfico de De olhos bem fechados – e Allen parece estar tratando da sociedade nova-iorquina de forma mais incisiva aqui.

Os diálogos quase não importam e as ações dos personagens são quase sempre previsíveis: o filme contado por Aster, como em Hereditário, não está nos diálogos e sim nas imagens. E é nelas que, como em sua estreia, Midsommar adquire um impacto imprevisto. Pode haver em alguns momentos o predomínio da estética sobre o conteúdo, mas é uma estética elaborada em minúcias. Iniciando numa paisagem invernal e soturna, a obra se transfere para o dia tão iluminado que parece brilhar, no entanto ele não parece ser o mais propício para os rumos da narrativa. A própria maneira como o diretor colhe pontos de O homem de palha, por exemplo, é justificada pelo contexto, sem nunca, no entanto, parecer uma diluição. O seu desinteresse em mostrar os integrantes da comunidade é justamente para causar um impacto nos momentos necessários. A claridade da fotografia de Pawel Pogorzelski, o mesmo de Hereditário, se justifica em todos os seus pontos e ajuda a contar a história de maneira decisiva. E é por meio dela que Midsommar adquire outro estágio no ato final, quando os personagens vão se dispersando para, na verdade, concentrar o relato num só olhar. É uma sucessão de sequências raramente permitidas em Hollywood e que fazem o gênero de terror adentrar no campo indefinido da arte mais subjetiva possível.

Diante de críticas que extraíram de maneira geral a qualidade de uma obra tão rica desde o lançamento no Festival de Toronto – ajudando a fazer com que fosse um fracasso de bilheteria, ou seja, escondendo mais um acerto do público –, O pintassilgo se mantém de modo tocante no que se refere à construção de uma identidade por meio da arte e das figuras ao seu redor. É apropriadamente bela a sequência na qual Theo se encontra com Pippa na vida adulta (interpretada por Ashleigh Cummings), e ela lhe diz não consegue suportar o que os faz ter em comum, justamente o atentado. É como se apenas Theo vivesse naquele situação que marcou sua vida e ela acabasse interferindo em todas as escolhas, e ele continuasse em meio aos escombros, solitário, caminhando pelas cinzas, no que lembra Mais forte que bombas, de Joachim Trier. Além disso, a analogia entre o acontecimento e partículas de poeira no ar é muito bem trabalhada, assim como a da explosão com o personagem na banheira ou se jogando na piscina, como se quisesse um alívio em relação ao pensamento recorrente.

Nunca deixe de lembrar é um filme longo (188 minutos), mas que vale plenamente sua duração, tanto pelas atuações (principalmente Sebastian Koch, assustador sem forçar overacting) quanto pelo estilo narrativo ágil adotado por Donnersmarck, concentrado em momentos afetuosos ou com fundo histórico de maneira efetiva. A maneira como mostra a aproximação de um jovem da arte se oferece de modo simples e ainda assim funcional, nunca deixando os personagens sem interesse. Baseado na obra do pintor Gerhard Richter, que, por sua vez, negou o filme, trata-se de uma obra cinematográfica lenta, parecendo, por vezes, excessiva, mas que controla seus meandros de maneira excepcional. O roteiro discute de maneira ampla a presença do artista em um período nefasto, tentando replicar as ideias pessoais sobre o mundo em imagens. Isso é conectado com a relação amorosa e o sonho de atingir uma obra, o que constitui uma base prática para o entendimento do outro. Nunca deixe de lembrar, do diretor Florian Henckel von Donnersmarck, o mesmo de A vida dos outros, foi lançado no Festival Internacional de Cinema de Veneza e indicado aos Oscars de melhor filme estrangeiro e melhor fotografia. O trabalho de Caleb Deschanel é realmente extraordinário, dando o tom entre história e ficção da narrativa.

Chama a atenção, igualmente, como Baumbach entrelaça o cenário de ruas lotadas de Nova York e os preparativos da peça de Charlie para estrear na Broadway com as ruas cheias de palmeiras de Los Angeles e o apartamento a ser preenchido ainda por móveis, para evocar um estabelecimento provisório a fim de se lutar pela guarda do filho. Tudo guarda uma estética dos anos 70, impressão consolidada pela trilha sonora de Randy Newman e pela fotografia de Robbie Ryan, criando uma textura caseira e documental para cada cena, porém sem menosprezar o trabalho de luzes e sombras. Isso cria uma sensação extra de solidão dos personagens. No entanto, Baumbach não conduz tudo para um mero drama conjugal nem se apega àquilo que sustentava alguns de seus filmes, um humor patético, e sim para um teatro contundente sobre como o embate pode levar pessoas a se recolocarem no mundo, tentando descobrir o que as levou até determinado ponto e sem negar os sentimentos de afeto. Em alguns momentos, parece que História de um casamento está tratando de um divórcio. Na verdade, ele está tratando, de modo pouco usual e brilhante, da verdadeira conciliação.

Com uma trilha sonora incessante de Hildur Guðnadóttir, retratando o descompasso do personagem central, e uma fotografia exímia de Lawrence Sher, com o qual Phillips habitualmente trabalha e que se inspira na de Emmanuel Lubezki de Birdman, em alguns momentos, Coringa revela um universo no qual a piada feita em cadernos borrados de pensamentos nunca consegue realmente se manifestar – apenas uma risada compulsiva. Fleck é uma espécie de travessia da tentativa de se adaptar e o resultado da inadaptação, e os passos dados por Phoenix na construção de seu personagem são marcantes porque se situam num espaço em que a clareza não se manifesta nunca. Isso porque não sabemos o que nele é humano e desumano, pois ambas as facetas algumas vezes parecem existir nele em diferentes etapas da narrativa e Gotham City e seus habitantes são a projeção de como ele se sente em relação às pessoas.

O irlandês adota uma dramaticidade baseada no biografismo e sem ceder a alguns exageros típicos dos filmes antigos do cineasta, em que a violência era quase fantasiosa de tão acentuada, e entre essas obras se inclui Os infiltrados. Se em meio a esse universo a figura da mulher se perde (e ela era presente em Os bons companheiros com Lorraine Bracco, em Cassino com Sharon Stone e em O lobo de Wall Street com Margot Robbie) é porque Scorsese parece estar tratando do auge e do aprisionamento da figura clássica e queda da figura masculina entre os anos 50 e início dos anos 80. Novos gângsters ainda viriam, no entanto Scorsese prefere mesclar uma espécie de sentimento religioso e de desapego às relações para mover sua obra em direção a uma coda melancólica e impecavelmente habitada nos longínquos anos 70. Tudo soa como um testamento do cineasta, desde a escolha dos atores que o acompanharam ao longo de sua carreira até os momentos mais próximos de um afeto já perdido, quando o olhar diante dos filhos em relação às ações de uma vida toda não se faz mais possível. Mesmo a narração de Sheeran soa desanimada, diante de um universo conturbado e impecavelmente bem desenhado.

Como artista que é, Joon-ho não utiliza o seu filme para pregar um discurso; pelo contrário, ele deixa o espectador subentender, por meio de suas imagens, o que bem quiser. Em igual escala, a atmosfera criada trata dos próprios personagens: quando cai uma chuva torrencial, a família Kim está deslocada e sem espaço, ao contrário da família Park. As paredes da casa também passam a simbolizar para um outro universo, mesmo que dentro do mesmo espaço. Nisso, os cheiros e as roupas trazem uma espécie de aproximação e afastamento entre iguais. A arquitetura moderna da casa, deixando tudo à mostra, esconde, de maneira paradoxal, os sentimentos e intenções de cada um dos integrantes dessas famílias. Não está em jogo cada um mostrar o que é de fato e sim aquilo que esconde.

Era uma vez em… Hollywood, pelo próprio título, já estabelece uma ligação direta com o cinema de Sergio Leone, principalmente com os excepcionais Era uma vez no Oeste e Era uma vez na América. No entanto, Tarantino, ao contrário de Leone, é um cineasta mais interessado no aspecto pop e na metalinguagem de sua narrativa. Era uma vez em… Hollywood é um filme em parte comportado para os padrões de Tarantino, com diálogos aparentemente deslocados, no entanto, como é de praxe, eles ressoam no conjunto e estabelecem uma unidade. Por outro lado, nessa espécie de retração, Tarantino parece expandir sua visão: as obras das quais ele trata de forma mesmo clara se sentem mais a serviço da composição dos personagens. Dalton, por exemplo, é uma figura introspectiva, feita na medida certa por DiCaprio, tendo como referência sua atuação em O lobo de Wall Street. Enquanto Martin Scorsese conseguiu extrair dele uma veia histriônica quase insuspeita, Tarantino a reaproveita sob um olhar mais saudoso – do cinema que homenageia.

O personagem principal tem uma narração breve, com poucas falas, mas que remetem a uma narrativa noir de detetive e mesmo os cenários vão simbolizando essa tentativa de evocar outra época, com elementos típicos: a chuva, a escuridão da estrada, uma moça caminhando na rua sendo seguida de perto com os faróis de um carro, isqueiros sendo acesos e homens de chapéu soprando fumaça de cigarro. Tudo parece uma grande representação do cinema clássico, no entanto sob uma ótica contemporânea, com extrema perspicácia. É mais ou menos o movimento feito por Chan-wook Park em A criada: utilizar imagens com um ambiente já gravado na memória cinematográfica do espectador sob um ponto de vista diferente. Nesse sentido, as imagens de Longa jornada noite adentro lidam com uma constante espécie de nostalgia.

Lançado no Festival de Cannes do ano passado, A árvore dos frutos selvagens é mais um grande filme (em todos os sentidos, com seus 188 minutos) de Nuri Bilge Ceylan. Se em 2014 ele recebeu a Palma de Ouro com Winter sleep, e já havia se mostrado um diretor e roteirista de talento único em outros projetos, como DistanteClimas e Era uma vez na Anatólia, Ceylan busca aqui reproduzir uma espécie de visão da juventude do mesmo tipo de universo já revelado em sua obra anterior. Interessante como Ceylan posiciona seu personagem central contra a sociedade em torno e parece não permitir acesso às suas ideias, ou simplesmente não possui interesse por elas. Sinan é claramente sem empatia, decepcionado com sua situação, mas é exatamente aí que Ceylan o torna diferenciado: pelo tom agridoce, delimitado pelo contato constante com a natureza e as estações. Sua aproximação do pai se dá por meio do conceito de que cada geração se dá por um sinal de mudança, simbolizada pela visita ao colégio. Há um diálogo extremamente humano, emocional, no qual vemos os personagens se revelarem à margem de um passado ainda capaz de visitá-los, no entanto sem deter a continuidade.