Adoráveis mulheres (2019)

Por André Dick

Depois de uma estreia exitosa com Lady Bird – A hora de voar, indicado aos Oscars de melhor filme e direção, Greta Gerwig se tornou uma das promissoras cineastas da atualidade. Talvez seu nome tenha sido o mais comentado, entre as diretoras de cinema, desde Sofia Coppola. A origem, de certo modo, era muito parecida. Lady Bird se baseava nas características do cinema indie, o mesmo que Sofia ajudou a popularizar com As virgens suicidas e Encontros e desencontros: personagens descompromissados, uma história simples, uma maneira de filmar sem grandes adornos e muita agilidade narrativa. Isso aproximava o trabalho das duas de modo fundamental, e, além disso, havia a humanidade dos personagens.
Em seu segundo filme, Adoráveis mulheres, Gerwig toma como base o romance de Louisa May Alcott, já adaptado para o cinema antes (uma das versões é de 1994), que mostra uma jovem chamada Jo March (Saoirse Ronan). Ela é uma escritora em busca dos primeiros interessados a publicá-la, o que encontra na figura do Sr. Dashwood (Tracy Letts), em torno de 1868, em Nova York. Um pouco depois, ela entra em contato com o professor Friedrich Bhaer (Louis Garrel) Enquanto isso, sua irmã, Amy (Florence Pugh), vive em Paris com a tia March (Meryl Streep), e reencontra Laurie (Timothée Chalamet), um antigo amigo.

Gwrwig retrocede alguns anos antes para mostrar como Jo conheceu Laurie, tornando-se muito próximos, e como vivia com as irmãs Meg (Emma Watson), Amy (Pugh) e Beth (Eliza Scanlen), numa casa em Concord, Massachusetts. As irmãs são muito unidas, ao lado da mãe Marmee (Laura Dern). Seu pai (Bob Odenkirk) está, por sua vez, na Guerra Civil.
No prosseguimento de sua trajetória como diretora, Gerwig adota mais ou menos as mesmas escolhas de Sofia quando resolveu fazer Maria Antonieta e, recentemente, O estranho que nós amamos. Desde o início, é possível perceber uma tentativa de certa grandiosidade, ao mostrar Jo dançando com o Prof. Bhaer num baile, que remete a cenas de clássicos (especificamente O portal do paraíso, A época da inocência Gangues de Nova York) e, em seguida, um desfile suntuoso de figurinos deixando o filme visualmente muito atrativo para o espectador, em combinação com a ótima fotografia de Yorick Le Saux, alterando lugares escuros e iluminados de maneira amplamente eficaz.

Nesse sentido, Adoráveis mulheres se aproxima da suntuosidade de Maria Antonieta, por exemplo, e se afasta quase completamente dos elementos de cinema indie que caracterizam Lady Bird. Isso, por um lado, é elogiável, pois a diretora não quis se repetir, inclusive nos primeiros acordes da trilha sonora de Alexandre Desplat, evocando John Williams, com outra influência clara de Gerwig: A cor púrpura, de Steven Spielberg Se o filme de Spielberg mostrava de maneira excepcional a trajetória de mulheres afrodescendentes com uma trajetória de sofrimento, Gerwig revela uma aristocracia modesta em Adoráveis mulheres. As paisagens invernais, no entanto, aproximam muito os filmes, assim como os enquadramentos de Gerwig, a imponência das casas e um transporte para os anos 1860, enquanto o filme de Spielberg se passava no início do século XX. Embora os temas sejam diferentes, a imersão é a mesma. Gerwig faz lembrar de como eram os filmes históricos feitos para o Oscar, com talento.
No que se refere ao desenvolvimento das personagens, Gerwig conta com o apoio vital da melhor do elenco: Saoirse Ronan, seguida por Chalamet, seguindo seu bom momento desde Querido menino e Um dia de chuva em Nova York. Além  disso, Gerwig extrai de Emma Watson a melhor atuação da atriz desde As vantagens de ser invisível. Outra atriz que se destaca é Florence Pugh, uma revelação nos últimos anos, só não mais que Eliza Scanlen, mesmo com breve participação.

A relação de Laurie com Jo e Amy atravessas as épocas e Gerwig decidiu contar a história, com idas e vindas no tempo, com uma sucessão de acontecimentos dialogando por conta própria., sem uma unidade evidente. O filme está no seu melhor quando concentra seus personagens em cenários pequenos, dando uma dimensão de afeto a essas adoráveis mulheres, à luz de velas e iluminadas pelo sol atravessando a janela, assim como por meio de cenas em que fazem peças teatrais caseiras. Há uma conversa entre Marmee e Jo, elucidando o que habita a narrativa, e oportunizando a Laura Dern seu grande momento como atriz discreta (que era sobretudo nos anos 80 e 90).
Gerwig usava um humor discreto em Lady Bird e aqui emprega um certo classicismo, parecendo querer reproduzir os filmes talhados para o Oscar, lembrando em alguns momentos Brooklyn (com a mesma Saoitse Ronan). É uma característica que não se aproximou de Sofia nem mesmo no grandioso Maria Antonieta, cuja narrativa ainda trazia elementos dos filmes indie da diretora. Na maioria das vezes, Gerwig consegue empregar bem esse tom ao contrário de muitos pares.

Do mesmo modo que Lady Bird, Jo é visivelmente o alter ego de Gerwig, e traz com isso, além de motivações artísticas muito interessantes, um certo discurso às vezes entregue um pouco de maneira expositiva. Ao contrário do que acontecia no seu filme de estreia, Gerwig parece ter dúvida se o espectador vai entender as motivações de Joe nas entrelinhas. No terceiro ato, ela faz quase uma ligação direta de sua trajetória como diretora com os percalços da personagem.
É nesse ponto que Adoráveis mulheres mostra a união  entre um cinema mostrado com absoluta beleza técnica, por um lado, e aquele que evolui em termos de história e elenco, por outro. E isso se dá de maneira efetiva, pois, de Saoise, passando por Chalamet, até Laura Dern e Meryl Streep, o que não falta a esta adaptação é um elenco. Talvez Gerwig pudesse ter mesclado seu estilo anterior a um novo sem perder as características básicas. Mas, mesmo ao fazer de Adoráveis mulheres uma procura pelo Oscar, ela mantém um tom otimista e afetuoso, no qual o ser humano aprende tanto fora quanto dentro da obra que ele compõe para sua vida de maneira sensível.

Little women, EUA, 2019 Diretora:  Greta Gerwig Elenco: Saoirse Ronan, Emma Watson, Florence Pugh, Eliza Scanlen, Laura Dern, Timothée Chalamet, Meryl Streep, Tracy Letts, Bob Odenkirk, James Norton, Louis Garrel, Chris Cooper Roteiro: Greta Gerwig Fotografia: Yorick Le Saux Trilha Sonora: Alexandre Desplat Produção: Amy Pascal, Denise Di Novi, Robin Swicord Duração: 135 min. Estúdio: Columbia Pictures, Regency Enterprises, Pascal Pictures, Di Novi Pictures Distribuidora: Sony Pictures Releasing

Midsommar – O mal não espera a noite (2019)

Por André Dick

No ano passado, tivemos uma estreia marcante do diretor Ari Aster à frente do filme de terror Hereditário. Com um padrão autoral e um modo de filmar com características singulares, fazendo de maquetes a própria estrutura da casa mostrada na história, Aster agora regressa com seu segundo projeto, Midsomar – O mal não espera a noite, distribuído pela mesma A24, de filmes independentes.
A jovem Dani Ardor (Florence Pugh) recebe uma notícia perturbadora relacionada à irmã e aos seus pais e pede a ajuda de seu namorado, Christian Hughes (Jack Reynor), estudante de antropologia. Este, no entanto, com o apoio de seus amigos Josh (William Jackson Harper), Mark (Will Poulter) e Pelle (Vilhelm Blomgren), parece querer distância dela. Segundo os amigos, ela é psicologicamente instável. O amigo sueco, Pelle, convida a todos para ir à sua comunidade de origem na Suécia, durante o solstício de verão. É um lugar adequado para Christian fazer uma pesquisa para seu trabalho acadêmico.

O mais interessante é como Aster mostra, antes da chegada, o carro levando os amigos e a câmera se inverte na estrada: é a entrada num universo à parte. É o que parece a princípio. Com o uso de um psicotrópico, Dani tem a sensação primeiro de uma vegetação crescer em seu pé e depois de que pessoas da comunidade, os Hårga, estarem rindo dela, até se trancar numa cabana e daí sair correndo floresta afora. Aster corta a sequência e já mostra o grupo chegando ao núcleo de habitações da comunidade. A partir daí, será tudo realidade ou a imaginação da personagem central?
Esta comunidade afastada é filmada por Aster com toques de um surrealismo remetendo à parte da filmografia de Alejandro Jodorowsky, principalmente A montanha sagrada (há realmente um urso trancado numa jaula?). Todos na comunidade vestem branco (com bordados floridos) e as mulheres, guirlandas, e brincam pelo espaço, dançam ou ficam estendidos em gramados, numa espécie de paraíso afastado da barbárie. Mas também participam de cerimônias estranhas, não raramente sob efeito de alguma bebida feita com poções indefinidas – e estão interessados mesmo em observar algum tipo de sacrifício que possa justificar sua existência. Lá o grupo de norte-americanos também conhece um casal, Connie (Ellora Torchia) e Simon (Archie Madekwe), levado pelo irmão de Pelle, Ingemar (Hampus Hallberg).

Como em Hereditário, Aster não está muito preocupado em esclarecer para o espectador se o que está assistindo é real ou fruto de uma alucinação – aqui literalmente. Essa comunidade tem galpões com histórias contadas por meio de desenhos, assim como tapeçarias adiantando pontos da trama e um senso de humor peculiar – em determinado momento, uma integrante da comunidade pergunta ao grupo se deseja assistir a Austin Powers. Aster, obviamente, não está interessado em provocar sustos ou simplesmente amedrontar. Por meio de um design de produção fabuloso de Henrik Svensson e efeitos sonoros que lembram as obras de David Lynch, ele faz uma espécie de análise sobre a culpa da personagem principal em relação à família e à comunidade como sua possível substituta.
Como os amigos de Christian não gostam dela, com exceção de Pelle (ironicamente, o nome do personagem da peça de Bille August vencedor do Oscar de filme estrangeiro pela Suécia em 1989), que sofreu um abalo na vida parecida com o dela, Dani se sente sempre deslocada – e esse deslocamento a faz pensar que nenhum deles pode substituir sua vontade de estar estruturada por uma ideia de união familiar e a busca do indivíduo é pelo entendimento alheio de sua dor, mesmo que a “ajuda” possa vir de lugares terrivelmente estranhos e de comportamentos indefiníveis. Para isso, Pugh consegue superar sua ótima atuação de Lady Macbeth e se mostra uma das melhores atrizes da nova geração, com um misto de insegurança, desconfiança e aversão ao que acontece a seu redor, principalmente nas atitudes do namorado. Aster utiliza as imagens mais como metáforas de uma trama do que propriamente para contar uma narrativa. As roupas floridas das mulheres da comunidade, assim como a carruagem que leva Dani, enfeitada por flores, são complementares.

Os diálogos quase não importam e as ações dos personagens são quase sempre previsíveis: o filme contado por Aster, como em Hereditário, não está nos diálogos e sim nas imagens. E é nelas que, como em sua estreia, Midsommar adquire um impacto imprevisto. Pode haver em alguns momentos o predomínio da estética sobre o conteúdo, mas é uma estética elaborada em minúcias. Iniciando numa paisagem invernal e soturna, a obra se transfere para o dia tão iluminado que parece brilhar, no entanto ele não parece ser o mais propício para os rumos da narrativa. A própria maneira como o diretor colhe pontos de O homem de palha, por exemplo, é justificada pelo contexto, sem nunca, no entanto, parecer uma diluição. O seu desinteresse em mostrar os integrantes da comunidade é justamente para causar um impacto nos momentos necessários. A claridade da fotografia de Pawel Pogorzelski, o mesmo de Hereditário, se justifica em todos os seus pontos e ajuda a contar a história de maneira decisiva. E é por meio dela que Midsommar adquire outro estágio no ato final, quando os personagens vão se dispersando para, na verdade, concentrar o relato num só olhar. É uma sucessão de sequências raramente permitidas em Hollywood e que fazem o gênero de terror adentrar no campo indefinido da arte mais subjetiva possível.

Midsommar, EUA, 2019 Diretor: Ari Aster Elenco: Florence Pugh, Jack Reynor, William Jackson Harper, Vilhelm Blomgren, Will Poulter Roteiro: Ari Aster Fotografia: Pawel Pogorzelski Trilha Sonora: Bobby Krlic Produção: Lars Knudsen e Patrik Andersson Duração: 147 min. Estúdio: Square Peg, B-Reel Films Distribuidora: A24 (Estados Unidos) e Nordisk Film (Suécia)

Legítimo rei (2018)

Por André Dick

Depois do sucesso crítico de A qualquer custo, indicado ao Oscar principal, o diretor escocês David Mackenzie volta à cena, desta vez com um filme histórico baseado na constituição de sua terra natal. É de se esperar uma obra que respeita os dados históricos, sem verter em demasiada liberdade, e é isso realmente o que acontece. Legítimo rei conta a trajetória de Robert the Bruce (Chris Pine), o homem que liderou os escoceses contra os ingleses na Primeira Guerra da Independência do seu país.
Se no início o seu pai entra em acordo com a Inglaterra por meio de um casamento arranjado de Robert com Elizabeth de Burgh (Florence Pugh), depois de tratativa com Edward I (Stephen Dillane), em frente ao castelo sitiado de Stirling, em 1304 d.C., logo Mackenzie mostra esse personagem em permanente rebelião contra o sistema.

Depois de dois anos, vendo o efeito da administração dos ingleses sobre o povo escocês, e após a morte de William Wallace (personagem representado por Mel Gibson em Coração valente), ele começa seu embate com John Comyn (Callan Mulvey) e se manifesta exatamente novamente aquele personagem que Pine interpretou em A qualquer custo: a família, aqui, precisa ser mantida e respeitada em nome de um ideal maior (nesse sentido, explica-se o título original, de um “rei fora da lei”). Este ideal pode colocar em perigo a sua filha e a própria esposa, mas confere a Bruce um papel histórico. A união a princípio desconfortável com Elizabeth logo é superada, e a mulher representa aqui um sentimento de desafio às leis e às regras, bem esclarecido pela atuação dedicada de Pugh, que no ano passado se revelou em Lady Macbeth. Ela oferece a Robert o sentimento de união familiar que parece lhe faltar com a ausência especialmente de um ente querido. Tanto é que uma das sequências mais impressionantes do filme mostra a preocupação de fuga da amada, em meio a labaredas de fogo. E os papéis de combate se estabelecem. Contra ele estão Edward, o Príncipe de Gales (Billy Howle), além de Aymer de Valence (Sam Spruell), e a seu lado lutam Angus Macdonald (Tony Curran) e James Douglas, numa atuação histriônica de Aaron Taylor-Johnson. Conhecido por ser um dos irmãos com superpoderes de Vingadores – A era de Ultron e por um papel excêntrico em Animais noturnos, Taylor-Johnson quase não possui diálogos, porém sua presença é destacada.

Antes que tudo se dirija à grandiosa Batalha de Loudon Hill, Mackenzie mostra Bruce como um homem errático, graças à boa atuação de Pine, mesmo que não lhe sejam dadas as devidas matizes e nuances psicológicas para que seja visto como alguém complexo. No entanto, Pine, por sua despretensão, alcança exatamente a configuração de um indivíduo falho e muitas vezes ingênuo diante dos percalços a serem superados. Seu estilo de atuação bastante conhecido desde que encarnou o capitão Kirk em Star Trek se baseia em poucos movimentos e tonalidades, entretanto se revela consistente na busca de diálogo com seus inimigos e na liderança de seu exército.
A direção, baseada num figurino e desenho de produção dedicados, deposita nas cenas de ação e batalhas seu maior atrativo, ao contrário, por exemplo, de uma linha mais poética medieval, a exemplo do que víamos no clássico Excalibur. É muito mais realista do que o Rei Arthur de Guy Ritchie, seguindo mais a linha de Cruzada, de Ridley Scott, com alguns toques da versão de Robin Hood desse diretor e do seu clássico Gladiador (na apresentação das figuras paternas), sem nunca deixar de apostar na sua linha de frente: roteiro e atuações calibradas. Além disso, a fotografia de Barry Ackroyd, habitual colaborador de Paul Greengrass e Kathryn Bigelow, insere o espectador no escopo da batalha, captando de maneira inegavelmente competente o desespero no rosto dos homens com a vida por um triz. Por vezes, Mackenzie renova a brutalidade da Idade Média com imagens de tirar o fôlego, compostas com certo enquadramento funcional e um jogo de luzes por vezes pictórico, aliado às cores de cada figurino belíssimo.

Lançado no Festival Internacional de Cinema de Toronto, Legítimo rei talvez seja a peça, até agora, mais ousada, em termos de produção, da Netflix. Resta saber se sua parte inicial, um pouco titubeante, numa apresentação apressada de determinados personagens e pouco desenvolvimento, se deve ao corte feito pelo diretor na metragem: foram dispensados 23 minutos de trama. Há, sem dúvida, cortes abruptos, passagens que não se esclarecem com a devida ênfase e pouca necessidade de levar os personagens a um termo em comum, parecendo mais dispersos. Se a sequência inicial sem cortes durante oito minutos pode lembrar um De Palma ou, mais recentemente, o estilo de Iñárritu, principalmente o de Birdman e O regresso, em seguida tudo, diante disso, parece, em termos técnicos, mais comportado. Mackenzie, de qualquer maneira, não desiste; sua narrativa segue num crescendo. E, nisso, o espectador não deve se enganar: mesmo que o desenvolvimento dos personagens não seja o forte de Legítimo rei, está aqui um filme com a intensidade de um épico tão em falta no cinema contemporâneo.

Outlaw king, EUA/ING, 2018 Diretor: David Mackenzie Elenco: Chris Pine, Aaron Taylor-Johnson, Florence Pugh, Billy Howle, Tony Curran, Callan Mulvey, Stephen Dillane Roteiro: David Mackenzie, Bathsheba Doran, James MacInnes, Mark Bomback, David Harrower Fotografia: Barry Ackroyd Trilha Sonora: Tony Doogan, Lucie Treacher Produção: David Mackenzie, Gillian Berrie, Richard Brown Steve Golin Duração: 121 min. Estúdio: Sigma Films, Anonymous Content Distribuidora: Netflix