Retrato de uma jovem em chamas (2019)

Por André Dick

A diretora francesa Céline Sciamma surgiu com um filme muito delicado chamado Lírios-d’água, sobre uma menina que se apaixona por outra em aulas de nado sincronizado. Em seguida, ela fez Tomboy, sobre uma garota que gosta de se vestir como menino e não consegue se adequar à sociedade, e Girlhood, um olhar sobre uma gangue feminina, sua obra anterior a este Retrato de uma jovem em chamas.
Pode-se dizer que Sciamma tem como sua musa exatamente a atriz Adèle Haenel, com quem foi casada, e atua à frente de seu novo filme. Ela interpreta Héloïse, uma jovem que mora numa ilha da Bretanha, França, com sua mãe uma condessa italiana (Valeria Golino), por volta de 1770, evita ser registrada numa pintura para selar um acordo de casamento com um homem da nobreza de Milão, depois de sair de um convento. O casamento era para ter sido de sua irmã, não tivesse ela falecido.

Para a tarefa de pintá-la, é convocada Marianne (Noémie Merlant), que chega à ilha como alguém que fará companhia a Héloïse. Elas passam a andar todos os dias, à beira do mar, sem a retratada desconfiar do que está acontecendo. No mesmo lugar, há Sophie (Luàna Bajrami), uma criada que cuida da casa e da alimentação.
Pode-se dizer que Retrato de uma jovem em chamas é um dos mais belos filmes feitos sobre o ato da pintura. Não apenas ele mostra a aproximação entre a pessoa retratada e quem a pinta, como mostra que os traços e o jeito com que um ser humano se revela numa obra artística diz muito dele – mais do que se imagina. Céline Sciamma vai compondo a aproximação das duas com esse viés. Sophie não pode pintar Héloïse como é de praxe e precisa observá-la (seu rosto, suas mãos, sua pele) para que, depois de voltar à casa, possa fazer seu retrato escondida. É uma história simples, mas que conta não apenas a aproximação de duas pessoas com caminhos diferentes que podem ser muito semelhantes, caracterizando, ao mesmo tempo, o espaço de onde cada uma delas vem, como relata a própria essência de uma obra de arte – e se imagina o quanto a mímesis aristotélica poderia ser explicada a partir desses traços do filme.

Sciamma utiliza o cenário da ilha e da casa com uma profundidade poucas vezes vista, inserindo as personagens numa atmosfera de solidão, abandono e, ao mesmo tempo, de reencontro e de vontade de descobrir o mundo e mesmo a maternidade – numa das sequências-chave da trama. A fotografia de Claire Mathon estabelece uma comunicação não apenas entre essas figuras, como também do público com o lugar onde se passa a narrativa. Há elementos claros do cinema de Raúl Raiz (Mistérios de Lisboa) e Manoel de Oliveira (O estranho caso de Angélica, em algumas imagens que parecem fantasmagóricas), mas onde o filme se sai melhor é justamente na análise que faz de um período do século XVIII com uma aura de mistério indecifrável, mesmo quando as personagens se expõem. O figurino de Dorothée Guiraud é outro grande destaque, como se representasse os diferentes estados de espíritos de cada uma, principalmente quando Héloïse é píntada de verde, e Sophie precisa se imaginar no lugar dela, colocando também o mesmo vestido.
Os diálogos são mínimos, mas Haenel e Merlant atuam tão bem que fazem lembrar outro filme sobre a paixão entre mulheres, Azul é a cor mais quente. Se no filme de Kechiche as mulheres ainda sofrem dificuldades para assumir um relacionamento, no de Sciamma, pela visão de época, há ainda mais angústia e sentimento de impossibilidade.

Do mesmo modo, a família se constituía por meio de casamentos arranjados, sob uma tradição aristocrática. No entanto, como no restante de sua obra, principalmente Lírios-d’água, Sciamma se movimenta mais sob alguns signos, como o do próprio fogo (há uma lareira dentro da casa onde estão essas mulheres e em frente à qual às vezes se aquecem, depois há uma fogueira montada na praia) e o do mar, como complementos: a repressão e o desejo. Também há um diálogo decisivo sobre o mito de Orfeu e Eurídice, que dialoga com a própria essência dessa narrativa: olhar ou não olhar para a figura amada, enfrentar ou não o possível castigo? É possível resistir a ele? Retrato de uma jovem em chamas igualmente simboliza o ressurgimento da atriz Haenel, que aparecia um pouco deslocada em A garota desconhecida, dos irmãos s Dardénmne, e 120 batimentos por minuto. Aqui ela revela novamente o talento em Lírios-d’água, com o auxílio vital de Merlant.. Quando a narrativa se encaminha para um final emotivo e contido, Retrato de uma jovem em chamas se torna uma obra-prima.

Portrait de la jeune fille en feu, FRA, 2019 Diretora: Céline Sciamma Elenco: Noémie Merlant, Adèle Haenel, Valeria Golino, Luàna Bajrami Roteiro: Céline Sciamma Fotografia: Claire Mathon Trilha Sonora: Jean-Baptiste de Laubier e Arthur Simonini Produção: Véronique Cayla e Bénédicte Couvreur Duração: 120 min. Estúdio: Lilies Films Distribuidora: Pyramide Films