Má educação (2020)

Por André Dick

Em 2017, o diretor Cory Finley se destacou no cinema independente com Puro-sangue, um duo entre duas ótimas atrizes, Olivia Cooke e Anya Taylor-Joy, como figuras que pretendiam concretizar um plano capaz de assustador mesmo o espectador mais exigente. Em 2020, estreou no Festival de Tribeca Má educação – mesmo nome de um filme de Pedro Almodóvar, de 2004 –, que tem como espaço principal a Roslyn High School.
Baseado numa história real, com roteiro de Mike Makowsky a partir do livro “The Bad Superintendent”, de Robert Kolker, Finley utiliza seu mesmo talento para a composição de imagens de seu filme anterior, mas amplia o escopo ao introduzir uma série de personagens que acabam formando um grande panorama. Desde o início, ele acompanha Francis A. Tassone (Hugh Jackman), superintendente do Roslyn High School. Ele recebe em sua sala uma aluna, Rachel Bhargava (Geraldine Viswanathan), que trabalha para o jornal de estudantes, liderada por Nick Fleischman (Alex Wolff).

A menina se mostra despretensiosa e ouve um conselho dele: transformar sua matéria em algo mais instigante do que pretende. Esse início demonstra exatamente o que Má educação acaba se transformando: a princípio um retrato normal de um local onde circulam jovens alunos, mistura-se depois a uma visão sobre como o ensino interfere na vida deles, mesmo que de forma indireta e com detalhes financeiros.
Tassone é muito amigo de sua assistente Pamela Gluckin (Alisson Janney), que, no entanto, esconde um segredo. Tasssone e  Big Bob Spicer (Ray Romano) tentam a princípio abafar a questão, no entanto ela é incontornável para que a escola continue buscando uma boa pontuação e levando cada vez mais seus alunos a universidades de respeito. Com isso, Tasson busca uma saída para o problema com o auditor (Jeremy Shamos), enquanto Glummick tem problemas com o filho James D. McCarden (Jimmy Tatro), que deixa rastro de algo comprometedor. A aluna Bhargava passa a investigar o que está sendo investido e descobre uma passarela milionária, enquanto o prédio tem goteiras. Isso é uma ideia inicial da teia que alimenta uma série de comportamentos questionáveis.

Tassone se mostra um ex-professor dedicado ao ofício e preocupado, quando também reencontra um antigo aluno Kyle Contreras (Rafael Casal ) numa viagem a Las Vegas. A partir daí, Finley ingressa numa espécie de estudo de personagem. O roteiro de Mike Makowsky colabora para atingir o objetivo – tendo sido ele, inclusive, aluno da Roslyn High School quando aconteceu o que Má educação revela.
Para que este estudo se concretize, Hugh Jackman parece mostrar a grande atuação de sua carreira, um pouco além de outras, como aquela de Os miseráveis. Há uma série de modulações em seus gestos e tom de voz que captam cada objetivo do diretor a fim de que a narrativa se destine a pontos até então imprevistos. Jackman, em parceria com Janney e Romano, também, mostra como um ator pode se moldar a seu tempo, apresentando um talento às vezes insuspeito em outros papéis. Mais conhecido por ter interpretado Wolverine, Jackman atinge a maturidade de sua trajetória, não temendo se mostrar envelhecido e num papel polêmico.

Muitas vezes inspirado na filmografia de Alexander Payne, especialmente Eleição, no qual um professor tinha problemas exatamente com alunos candidatos a liderar seus colegas numa escola, Má educação mostra a ambição num universo visto como de respeito e dedicação ao ensino – e lida com os personagens e seus erros de maneira humana, sem impedir o espectador de acessar o sentimento deles, de os outros perceberem suas trapaças ou simplesmente a angústia provocada pela situação em que se envolveram. Esses professores se dedicam à escola, querem torná-la respeitada, tanto pelos alunos quanto pelo corpo de pais, no entanto isso a custo de uma ambiguidade manifesta nos diálogos de Mike Makowsky. Como lidar com figuras tão contraditórias é uma questão que permeia a narrativa, com uma indefinição entre tentativa de alcançar a felicidade ou apenas sentir um alívio diante da culpa pelos atos. Há uma sensibilidade latente no conjunto de cenas entre Jackman e Janney, por exemplo, quando suscitam uma amizade que pode ser emperrada por algo maior. Finley constrói alguns planos simetricamente, como fazia em Puro-sangue, mas sem tantos maneirismos, embora continue utilizando a trilha sonora para pontuar bem suas escolhas. Como um filme que poderia ficar restrito a um universo mais indie, Má educação atinge o público de maneira universal a partir do espaço de uma escola.

Bad education, EUA, 2020 Diretor: Cory Finley Elenco: Hugh Jackman, Allison Janney, Geraldine Viswanathan, Alex Wolff, Rafael Casal, Stephen Spinella, Annaleigh Ashford, Ray Romano Roteiro: Mike Makowsky Fotografia: Lyle Vincent Trilha Sonora: Michael Abels Produção: Fred Berger, Brian Kavanaugh-Jones, Julia Lebedev, Mike Makowsky, Oren Moverman, Eddie Vaisman Duração: 108 min. Estúdio: Automatik, Sight Unseen, Slater Hall Distribuidora: HBO Films

O escândalo (2019)

Por André Dick

Em 2017, as acusações de assédio de atrizes contra o produtor Harvey Weinstein acabaram tomando grande proporção, chegando também a outros nomes., alguns bastante conhecidos no círculo de Hollywood. O escândalo, de certo modo, ao mostrar as acusações contra Roger Ailes, o chefe da Fox News, em 2016, acaba dialogando com esse cenário, em que mulheres constituíram movimentos como %MeToo e Time’s Up.
O filme de Jay Roach, responsável antes por comédias como Entrando numa fria e por Trumbo, que deu uma indicação ao Oscar a Bryan Cranston, procura mostrar algumas jornalistas e apresentadoras desse canal, mais especificamente Megyn Kelly (Charlize Theron) e Gretchen Carlson (Nicole Kidman), que, sob as ordens de Roger, ingressavam na grade como figuras de destaque, a primeira principalmente e a segunda no programa Fox and Friends. Megyn, assessorada por Lily Balin (Liv Hewson) e Julia Clarke (Brigette Lundy-Paine) e casada com Doug (Mark Duplass), acaba tendo um sério contratempo depois de uma pergunta num debate ao então candidato Donald Trump.

O escândalo é uma amostra de fazer um certo cinema que se pretende de denúncia e consegue abranger uma atmosfera situada entre a vida pública e restrita aos bastidores. Ele se apoia tanto nas duas protagonistas quanto na figura da jovem Kayla Pospisil  (Margot Robbie),, não baseada exatamente numa personalidade real, que chega à emissora pretendendo, claro, conquistar seu espaço e se torna amiga de Jess Carr (Kate McKinnon). As discussões sobre posicionamentos ideológicos permeiam o roteiro bem escrito de Charles Randolph, apostando num estilo semelhante em A grande aposta, embora certamente entrecortado algumas vezes por alguns exageros expositivos. A figura de Roger, sustentada por Murdoch (Malcolm McDowell), dono da emissora, é muito bem desenhada por John Lithgow, numa interpretação excepcional, embaixo de uma maquiagem que o deixa quase irreconhecível – a maquiagem é um destaque também em Theron e Kidman, para deixá-las parecidas com as apresentadoras reais. Suas conversas com as âncoras são conflituosas, mostrando as manobras de uma emissora para conquistara audiência, até que o diretor Roach se direciona para o objetivo. E, quando ingressa em âmbito jurídico, num determinado momento, surge a advogada Susan Estrich,, em ótima atuação de Allison Janney, inserindo o filme num ambiente mais ousado.

De certo modo, O escândalo não chega a tomar uma posição como poderia se prever pela sua temática, não no sentido de reconhecer quem é a peça-chave para a denúncia, e sim para outros assuntos que correm à margem. Roach evita também entrar em algumas escolhas mais espinhosas, sem, no entanto, não deixar de explorar o drama dessas mulheres que sofreram assédio.
Charlize Theron é uma grande atriz e tem aqui seu melhor desempenho talvez desde Jovens adultos, um de seus filmes mais subestimados, fazendo uma apresentadora ao mesmo tempo fria e interessada no bem-estar dos familiares. Kidman também é excelente, tecendo uma dualidade entre certa segurança à frente das câmeras e uma necessidade de querer agradar, mas sem nunca conseguir se encaixar no que está acontecendo ao redor. E Robbie tem sua atuação mais dedicada desde O lobo de Wall Street, conseguindo se mostrar vulnerável e, ao mesmo tempo, ambiciosa. Ela tem a cena certamente mais difícil e que causa angústia no espectador, além de se apoiar bem, em alguns momentos, na atuação de Kate McKinnon, mais conhecida por ser humorista no Saturday Night Live e por sua participação no Caça-fantasmas, mais uma no elenco predominantemente feminino e de qualidade notável, alternando comédia e drama com a mesma competência.

O escândalo também se apresenta como um filme sobre a mulher num meio de comunicação e sua tentativa de conciliar a ambição corrente, a dedicação à família e seus valores pessoais e intransferíveis. O roteirista não chega a desenvolvera  ligação entre as três figuras proeminentes como poderia, deixando nas entrelinhas que elas sofreram assédio na mesma proporção, mas se mantêm a distância entre elas, não chegando a querer embarcar num movimento. É nesse ponto, talvez, que alguns considerem sua história mais atenuadora e menos motivador para o universo feminino, abdicando de maior aprofundamento, principalmente no terceiro ato.
Em termos de estilo, é editado de maneira ágil, como alguns filmes que se assemelham a ele, a exemplo de Vice, A grande aposta e As golpistas, todos com um selo de Adam McKay. Como Vice, especificamente, do ano passado, em determinados momentos acaba tratando seus temas de maneira superficial, porém nunca de maneira desinteressante. Isso é apoiado pelo brilhante design de produção e pelo figurino de Colleen Atwood (habitual colaboradora de Tim Burton), que transportam o espectador quase para dentro da emissora de televisão, com uma perspicácia também da fotografia de Barry Ackroyd (de obras como Guerra ao terror e Detroit), o que não é comum em boa parte das obras que tratam de jornalismo.

Bombshell, EUA, 2019 Diretor: Jay Roach Elenco: Charlize Theron, Nicole Kidman, Margot Robbie, John Lithgow, Kate McKinnon, Connie Britton, Malcolm McDowell, Allison Janney Roteiro: Charles Randolph Fotografia: Barry Ackroyd Trilha Sonora: Theodore Shapiro Produção: Aaron L. Glibert, Jay Roach, Robert Graf, Michelle Graham, Charles Randolph, Margaret Riley, Charlize Theron, AJ Dix, Beth Kono Duração: 108 min. Estúdio: Bron Creative, Annapurna Pictures, Denver + Delilah Productions, Lighthouse Management & Media, Creative Wealth Media Distribuidora: Lionsgate

Eu, Tonya (2017)

Por André Dick

“Eu, Martin Scorsese ou David O. Russell.”
Este é um filme de Craig Gillespie, o mesmo da refilmagem interessante de A hora do espanto, mas parece desses dois cineastas, levando em conta que O. Russell já homenageia, digamos assim, o estilo de Scorsese. Se o espectador está procurando por movimentos de câmera do início ao fim, com pessoas olhando pelos vidros de um carro ou na plateia de um evento esportivo, com o olhar atento ao que está acontecendo, Eu, Tonya é uma bela referência, embora seu foco não seja este.
O filme está concentrado na história de Tonya Harding (Mckenna Grace na infância e Margot Robbie na adolescência e vida adulta), que se tornou um grande nome da patinação artística nos Estados Unidos nos anos 90. A sua mãe, LaVona Fay Golden (Allison Janney), a tira da escola, nos anos 70, para tentar torná-la uma profissional, mas sempre com muita agressividade e muitos maços de cigarro. Esta história basicamente constitui a primeira parte do filme, que é narrado como se os personagens estivessem dentro de um programa de TV explorando suas imagens e condições.

Tonya acaba se casando com Jeff Gillooly (Sebastian Stan) com o objetivo de fugir desta pressão materna, mas cai em outra situação angustiante. Isso porque Gillooy, sempre acompanhado pelo amigo Shaw Eckhardt (Paul Walter Hauser), não é a figura mais atrativa para se ter uma conversa sobre um relacionamento ou mesmo para se tratar de maneira tranquila sobre a família. Gillespie emula bastante Os bons companheiros e Cassino para tratar desse relacionamento conturbado, enquanto a mãe de Tonya dá espaço a outra treinadora, Dody Teachman (Bojana Novakovic), para as Olimpíadas de Inverno de 1992. Baseada em fatos reais, a narrativa traz uma tentativa de boicote a uma das patinadoras rivais de Tonya, o que tomou grande repercussão nos Estados Unidos.
Se a obra inicia nos anos 70 e possui uma certa aura de Trapaça, inclusive na trilha sonora, assim como da série Vinyl, os travellings se multiplicam e acabam minando uma narrativa já não interessante como poderia, entretanto é quando a ação se transporta para os anos 90 que os eixos da história se dispersam e realmente não se encontram tão cedo, apenas mais ao final. Robbie é uma boa atriz em punhado de sequências, no entanto não lhe é oferecida a chance de brilhar, o que é estranho, já que ela é uma das produtoras.

Ela fez o filme visando à indicação ao Oscar, que conseguiu, já merecida por O lobo de Wall Street, no qual fazia a esposa casada com o personagem de DiCaprio (e em cujo estilo a obra de Gillespie também se baseia, principalmente quando insere os depoimentos), e se tornou uma estrela popular depois de interpretar Arlequina em Esquadrão suicida e a namorada do rei das selvas em A lenda de Tarzan, contudo deveria ter pedido menos espaço no roteiro ao personagem do marido violento, que se torna, em última instância, o principal. Há uma razão: os personagens não chegam a ser por um momento sequer agradáveis, parecendo todos oportunistas, enquanto Tonya se deixa levar pela violência alheia e não coloca freios nela. A personagem da mãe, além de unidimensional e evitando que Janney, normalmente uma ótima atriz, consiga extrair um punhado de sinceridade dela, se torna a representação de todos do filme: tanto Stan quanto Hauser estão difíceis de suportar em seus respectivos papéis. Essa é a diferença em relação a Scorsese: este, mesmo quando foca bandidos, consegue extrair deles algum elemento de humor, algum atenuante para criar um interesse por suas trajetórias. Em Eu, Tonya, Gillespie mostra apenas a miséria de comportamento humano, porém querendo ser também divertido, como Scorsese. Quem apreciar o enfoque de Gillespie terá mais chance de apreciar a história.

Em linhas gerais, Eu, Tonya trata de uma mulher que deixa sua vida ser governada, de certo modo, pela violência. Isso, por um lado, soa uma visão determinada sobre essa personagem, por outro o espectador se torna apenas testemunha de uma série de atitudes incompreensíveis. Por isso, ao se ver nesse filme uma espécie de libelo feminista, talvez esteja se escondendo o seu potencial fator: o de que ele atenua a violência contra a mulher, de que pelo menos Tonya teria nascido não para lutar por sua vida e sim para, literalmente, ser agredida, tanto física quanto psicologicamente. Seu grande confronto com a vida seria este, não exatamente sua tentativa de ser uma exímia patinadora. Pode ser uma ideia a ser revista; a impressão que fica, pessoalmente, é esta. Gillespie compõe uma cinebiografia que se pretende original, moderna, contudo parece uma repaginação de muitas coisas já vistas, e melhores. Com essa influência estilística e algumas vezes temática de Scorsese e O. Russell, Eu, Tonya imagina estar gravando uma espécie de vida em movimento acelerado, sem perceber, muitas vezes, que isso só torna sua narrativa mais atrasada, não apenas em termos de funcionalidade, como de ideias.

I, Tonya, EUA, 2017 Diretor: Craig Gillespie Elenco: Margot Robbie, Sebastian Stan, Allison Janney, Julianne Nicholson, Bobby Cannavale, Paul Walter Hauser, Bojana Novakovic Roteiro: Steven Rogers Fotografia: Nicolas Karakatsanis Trilha Sonora: Peter Nashel Produção: Tom Ackerley, Margot Robbie, Steven Rogers, Bryan Unkeless Duração: 119 min. Estúdio: LuckyChap Entertainment, Clubhouse Pictures, AI Film Distribuidora: Neon

O lar das crianças peculiares (2016)

Por André Dick

o-lar-das-criancas-peculiares-5Faz dois anos que Tim Burton tentou seguir um novo caminho em sua trajetória, com Grandes olhos, logo após o fracasso de crítica e público do subestimado Sombras da noite, um de seus melhores filmes. Eles eram antecedidos pelo grande sucesso de público Alice no país das maravilhas, um dos filmes estranhamente mais impessoais do diretor, mesmo com sua carga estilística. Agora, com O lar das crianças peculiares, baseado no romance de Ransom Riggs, ele tenta mesclar os dois caminhos: um de temática mais adulta e outro de fantasia proeminente, o que já víamos, por exemplo, no aparentemente infantil A fantástica fábrica de chocolate, com seu humor corrosivo. Depois de anos, de artista respeitado por seus atrevimentos Burton passou a ser visto sempre numa zona de conforto, quando na verdade expandiu seu estilo para outros campos – e podemos ver em Sombras da noite, principalmente, um desenho dos anos 1970 de Amargo pesadelo cercado de um inevitável bom humor.
Um adolescente, Jacob/Jake Portman (Asa Butterfield), acompanhado de sua supervisora Shelly (O-Lan Jones), encontra seu avô, Abrãao “Abe” Portman (Terence Stamp), numa situação difícil e, a partir de uma estranha aparição, lembra das histórias que ele contava sobre lutas contras monstros e um lar da senhora Peregrine para crianças peculiares, localizado na costa do País de Gales. Isso, claro, é uma espécie de primeiro passo para uma expansão do que Burton trabalhava em Peixe grande, com seu universo de histórias familiares.

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Jacob passa a consultar a psiquiatra Dr. Golan (Allison Janney), onde tem suas visões colocadas em dúvida, e determinado dia, quando chega a um aniversário surpresa, sua tia Susie (Jennifer Jarackas) lhe entrega o presente de aniversário do seu avô, com uma carta de Miss Peregrine a ele, de apenas dois anos antes.
Jacob e seu pai, Franklin (o subestimado Chris O’Dowd), vão para o País de Gales e alugam um quarto no hotel da ilha, que bem poderia servir como diálogo com os habitantes de O homem de palha. Lá, ele encontra a casa de Miss Peregrine em ruínas por causa de uma bomba lançada durante a Segunda Guerra Mundial. Ele viaja repentinamente no tempo e é acusado de ser um espião nazista, sendo salvo pelo grupo de Miss Alma LeFay Peregrine (Eva Green), que lhe explica que eles vivem sempre no dia 3 de setembro de 1943 e pode se transformar num pássaro (lembrando especificamente a feiticeira de Willow). Na casa havia vivido Victor Buntley (Louis Davinson), até ser morto por um Hollowgast, grupo liderado por Mr. Barron (Samuel L. Jackson). O interesse de Jacob passa a ser por Emma Bloom (Ella Purnell), que precisa usar sapatos de chumbo para não sair flutuando, enquanto conhece as crianças do lugar: Enoch O’Connor (Finlay MacMillan), Olive Abroholos Elephanta (Lauren McCrostie), Millard Nullings (Cameron King), Fiona Frauenfeld (Georgia Pemberton), Bronwyn Buntley (Pixie Davies), Horace Somusson (Hayden Keeler-Stone), Hugh Apiston (Milo Parker), Claire Densmore (Raffiella Chapman) e os gêmeos (Joseph e Thomas Odwell), cada um com suas peculiaridades (e estranhezas à la Burton), quase uma equipe do X-Men em plena Segunda Guerra Mundial, e não por acaso o roteiro adaptado é assinado por Jane Goldman, de X-Men: Primeira classe. São crianças de um mundo à margem, em que a Segunda Guerra Mundial não consegue tocar com sua violência, mesmo que insista com seu relógio do tempo inabalável.

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E são deslocadas como são a maior parte dos personagens de Burton, que de um curta-metragem dos anos 80 passou a um longa há alguns anos sobre um cão que lembra Frankenstein, em Frankenweenie. Essas figuras não atraem pela fantasia: elas são sumariamente estranhas e deslocadas no tempo e espaço pela própria condição. Na ilha, Jacob também tem contato com a Miss Esmeralda Alvocet (Judi Dench) e um ornitólogo (Rupert Everett).
Este universo à parte tem muitos elementos da filmografia de Burton (as esculturas no jardim de Edward mãos de tesoura, os esqueletos do videoclipe que dirigiu para o The Killers, inspirados, por sua vez, em Ray Harryhausen, as cenas aquáticas que lembram Sombras da noite, assim como as da mansão, a floresta noturna que evoca A lenda do cavaleiro sem cabeça, a direção de arte que remete por vezes a Os fantasmas se divertem), mas, de modo geral, tudo é levado num ritmo de episódio de No limite da realidade, quando, por exemplo, Jacob é confundido com um nazista, e com influências nítidas de Feitiço do tempo e de um grande filme de Del Toro sobre um orfanato perdido no deserto em meio à Guerra Espanhola (elementos que devem ter inspirado o romancista que deu origem ao filme, já que o livro é bastante recente, de 2011). Burton sabe, como tem conhecimento cinematográfico, que as referências do livro partem de uma boa parte da história do gênero de fantasia e consegue, como é costume em sua filmografia, não reduzi-la a elementos previsíveis.
Em termos de elenco, chama atenção como Burton extrai uma atuação mais madura de Green, muito exagerada em Sombras da noite, e principalmente de Butterfield, que mostrara talento em A invenção de Hugo Cabret para se perder em meio à ficção adolescente de Ender’s game. Ele consegue tomar esses dois atores no melhor que há neste filme, em que Samuel L. Jackson encarna um vilão exagerado.

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A utilização efetiva de elenco sempre foi um traço de Burton, mas ele vem melhorando ainda mais com a maturidade, ao mesmo tempo que aqui a direção de arte não parece tão destacada dos demais elementos, fazendo uma fusão mais natural com os personagens, comportamentos e figurinos. Há alguns problemas de narrativa, sobretudo quando se tenta explicar a presença dos monstros que ameaçam Miss Peregrine e Jacob, no entanto é justamente em elementos de singularidade que Burton tece sua trama de maneira atrativa. Isso porque ele é acompanhado novamente pelo diretor de fotografia Bruno Delbonnel (O fabuloso destino de Amélie Poulain), seu parceiro desde Sombras da noite, e o figurino de Colleen Atwood, exímios em sua facilidade de compor um universo verdadeiramente marcante. Nesse sentido, O lar das crianças peculiares conduz sua temática de maneira que costumamos ver na obra de Burton, apenas com o acréscimo de um lado soturno menos fantasioso, algo que ele tentou fazer em sua adaptação de Alice sem conseguir com a mesma eficiência. Embora o terceiro ato se pareça com muitas peças no estilo Disney e blockbusters, esta ainda é uma peça com sensibilidade rara.

Miss Peregrine’s home for peculiar children, EUA, 2016 Diretor: Tim Burton Elenco: Eva Green, Asa Butterfield, Samuel L. Jackson, Judi Dench, Rupert Everett, Allison Janney, Chris O’Dowd, Terence Stamp, Ella Purnell, Finlay MacMillan, Lauren McCrostie, Hayden Keeler-Stone, Georgia Pemberton, Milo Parker, Raffiella Chapman, Pixie Davies Roteiro: Jane Goldman Fotografia: Bruno Delbonnel Trilha Sonora: Danny Elfman Produção: Jenno Topping, Peter Chernin Duração: 127 min. Distribuidora: Fox Film Estúdio: Chernin Entertainment / Tim Burton Productions

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A espiã que sabia de menos (2015)

Por André Dick

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Poucas vezes há oportunidade de se deparar com uma comédia interessante nos últimos anos ou que não esteja restrita a um encontro de amigos filmado, com aspecto de terminado às pressas. Um gênero que teve nos anos 80 Jim Abrahams e os irmãos David e Jerry Zucker, com nomes como Apertem os cintos, o piloto assumiu, Top secret! e Corra que polícia vem aí, como um de seus grandes momentos. Nos anos 2000, há duas vertentes de humor no cinema norte-americano, e elas acabam se reunindo de certo modo em A espiã que sabia de menos: é uma sátira e, ao mesmo tempo, um estudo de um personagem com a autoestima abalada pelos acontecimentos. Se esta característica fundou praticamente a trajetória de Steve Carell no humor, não o é com muita diferença com Melissa McCarthy. Revelada sobretudo em Missão madrinha de casamento, pelo qual foi indicada ao Oscar de atriz coadjuvante, ela é uma ótima comediante, das melhores que surgiram na última década e infelizmente rotulada como humor apenas grosseiro.
Este ano Melissa já havia tido uma boa participação no sensível Um santo vizinho, ao lado de Bill Murray e Naomi Watts, destoando um pouco do humor que empregou em Missão madrinha e As bem-armadas – divertida comédia policial com Sandra Bullock, com sua sátira a Máquina mortífera. Em A espiã que sabia de menos, Melissa se reúne novamente com Paul Feig, que realizou esses dois filmes, e fez em parceria com Judd Apatow a saudosa série Freaks and geeks. Tendo como mote uma brincadeira com 007, uma espécie de Agente 86 feminino, tudo indicaria A espiã que sabia de menos como uma comédia memorável.

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A história é mero papel fino. Melissa faz Susan Cooper, que trabalha como auxiliar do agente Bradley Fine (um Jude Law tão deslocado quanto seus risos nervosos, totalmente afastado desse gênero). Em determinada missão, ele acaba sucumbindo a Rayna Boyanov (Rose Byrne) – e isso não chega a ser um spoiler, já que sabemos de antemão que ela se transformará naquela que poderá desvendar o mistério, desta vez com a ajuda da amiga Nancy B. Artingstall (Miranda Hart), depois de dividirem intrigas sobre Karen Walker (Morena Baccarin). Tudo é motivo para ela entrar em conflito com a superior, Elaine Crocker (Allisson Janney), e com um dos agentes, Rick Ford (Jason Statham), que não a aceita na missão, além de mote inicial para uma viagem por paisagens europeias, a começar pela França, onde Susan se hospedará num hotel que lembraria O fabuloso destino de Amélie Poulain não fossem os ratos. E é uma justificativa para a personagem colocar em xeque sua autoestima abalada, pois nunca de fato, apesar da formação, foi colocada em campo, permanecendo nos bastidores. Ela passa a ficar no encalço de Sergio De Luca (Bobby Cannavale), com a ajuda de Aldo (Peter Serafinowicz).
Melissa é uma atriz bastante eficiente, com um humor que se situa entre o ingênuo e o provocador, e se mostra novamente desse modo em A espiã que sabia de menos. No entanto, apesar das ótimas cenas de ação e algumas piadas engraçadas, este filme parece menos interessante do que As bem-armadas, também de Feig e com Melissa – muito em razão da ausência de Sandra Bullock, que consegue servir como escada para Melissa se destacar. É verdade que Jason Statham tem momentos tão bons quanto Melissa aqui, mas ambos são prejudicados por uma lamentavelmente caricata Rose Byrne, uma surpresa, por ser boa atriz, e um clima previsível de sátira a 007, o que já era claramente o problema de Agente 86.

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Melissa não consegue visivelmente improvisar em muitos momentos porque o roteiro está circunscrito sempre a esse clima de sátira, ao contrário de Missão madrinha de casamento, que conseguia, por meio de sua corrosão, mostrar o clima de organização de casamento, em meio a brigas e separações, com a presença de Kristen Wiig, uma atriz notável para o gênero e o roteiro também assinado por ela (não por acaso, indicado ao Oscar). E, ainda, sem espaço suficiente para improvisar em cima de um roteiro que não reconhece a importância de cada personagem, Melissa dispara, numa velocidade igual à cena em que precisa usar uma moto, uma série de palavrões, a fim de que a narrativa não pareça estagnada em determinado ponto; e esta, finalmente, é a derrocada da real comédia que se manifestava até a metade do filme, e que será recuperada apenas por causa de cenas de ação surpreendentemente bem filmadas e a parte final. E isso não acontece exatamente por causa dos coadjuvantes. Como De Luca, Bobby Cannavale não se sai bem. A parceira de Melissa, feita por Miranda Hart, também prejudica; é difícil lembrar de uma coadjuvante que não acrescenta realmente às cenas em que aparece, assim como Serafinowicz. E a muito boa atriz Janney é esquecida depois de um bom início.
Quem consegue gostar, no entanto, das atuações do elenco coadjuvante terá uma sensação de ter visto uma narrativa mais completa – para quem esperava mais, a impressão é de ter se visto uma comédia em parte diluída para um público mais amplo, com uma lamentável característica de humor caricato, quando Melissa, no início, revela o que poderia ser uma base humana. Aos poucos, quando se vê que o filme envereda pelo absurdo, cada vez maior, essa porção humana se perde, e a graça passa a se concentrar apenas em ações desgovernadas e comportamentos exagerados. No fim de tudo, ele funciona mais como ação do que como comédia.

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Como muitas obras do gênero, A espiã que sabia de menos tende a melhorar em uma revisão e se sente valorizada não apenas pela fotografia de Robert D. Yeoman, habitual colaborador de Wes Anderson, com suas locações em Paris, Roma e Budapeste, quanto pelo cuidado nas cenas em que o humor é um complemento para a ação (a sequência passada na cozinha de um restaurante, desse modo, é vital). É lamentável que a montagem não seja de William Kerr e Michael L. Sale, responsáveis pelos trabalhos de Superbad, Missão madrinha de casamento e We’re the Millers, melhores do que os montadores deste filme, que não conseguem calcular exatamente o tempo das gags. Diante de adjetivos como escalandosamente divertido, talvez A espiã que sabia de menos poderia ser mais efetivo. Melissa e Statham tentam – os coadjuvantes e o roteiro é que não acompanham.

Spy, EUA, 2015 Diretor: Paul Feig Elenco: Melissa McCarthy, Jason Statham, Jude Law, Miranda Hart, Rose Byrne, Allison Janney, 50 Cent, Peter Serafinowicz, Bobby Cannavale, Morena Baccarin Roteiro: Paul Feig Fotografia: Robert D. Yeoman Trilha Sonora: Theodore Shapiro Produção: Jenno Topping, Jessie Henderson, Paul Feig, Peter Chernin Duração: 120 min. Distribuidora: Fox Film / Twentieth Century Fox Film Corporation Estúdio: Feigco Entertainment

Cotação 3 estrelas