A garota desconhecida (2016)

Por André Dick

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Os personagens dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne sempre aparecem em situações delicadas: em Rosetta,  uma jovem busca trabalho para sustentar a mãe; em A criança, um jovem, em troca de dinheiro, prefere se desfazer do filho recém-nascido, e em O garoto da bicicleta o menino Cyril se mostra sempre deslocado e precisa pedir para que possa participar de uma determinada convivência que poderia ser mesmo rotineira para alguns. Esses temas se proliferam, com algumas modulações, em outros filmes da dupla, como O silêncio de Lorna e O filho, além de Dois dias, uma noite, no qual uma mulher ficava desesperada ao saber que perderia o emprego. Os irmãos costumam lançar seus filmes no Festival de Cannes, onde duas vezes já receberam a Palma de Ouro principal: por Rosetta e O filho. É a partir do Festival que suas obras passam a ganhar uma grande propaganda, sobretudo no meio que mais frequentam: o cinema arthouse.

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Talvez eles nunca tenham sido recebidos com tanta desconfiança no Festival quanto com A garota desconhecida. Eles mostram a figura de Jenny (Adèle Haenel, casada com a cineasta Céline Sciamma, de Tomboy e Lírios-d’água), uma clínica geral que trabalha com Julien (Olivier Bonnaud) e lhe pede para controlar melhor suas emoções quando não consegue agir ao ver um menino tendo uma convulsão no consultório. É interessante como Jenny é uma personagem tipicamente dos Dardenne: ela parece guardar mais mistérios do que subentende em seu olhar. O espectador se pergunta o que ela sente por Julien, à medida que parece tê-lo como uma referência de si mesma.
Jenny se sente culpada depois que acontece a morte de uma jovem para quem não abriu a porta de seu lugar de trabalho numa determinada noite. Passa, assim, a investigar o caso, passando, inclusive, à frente da polícia, cujo inspetor é Ben Mahmoud (Hamidou Ben). Sua principal pista é um de seus pacientes, Bryan (Louka Minnella), filho dos Smet (Jérémie Renier e Christelle Cornil), mas ela também mostra a fotografia da vítima para Julien e amigos médicos que podem tê-la atendido em algum momento, à medida que se tratava de uma imigrante. O fato de sequer saber o nome da vítima a perturba dia e noite a partir daí, e os Dardenne alternam o drama com um filme tipicamente investigativo, em que os encaminhamentos são tomados de acordo com o que se consegue com pouquíssimas informações. Não por acaso, os personagens estão visivelmente nervosos, parecendo não aceitar a condição em que se encontram, e são raros os filmes como este em que um personagem ligado à medicina parece realmente estar tratando de seus pacientes.

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O filme anterior dos Dardenne, Dois dias, uma noite, tinha em Marion Cotillard uma referência de atuação. Em A garota desconhecida, Adèle Haenel talvez se mostre a figura mais desprovida de carisma da trajetória dos irmãos e talvez resida aí a falta de engate em alguns momentos de um drama que se tenta se passar por uma narrativa de investigação. Ela possui um realismo inexpressivo, parecendo quase à parte da cena em alguns momentos (para alguns, no entanto, pode ser o elemento mais atrativo de sua atuação), lembrando algumas nuances de Adèle Exarchopoulos, de Azul é a cor mais quente, sem a mesma intensidade.
Os elementos dos diretores estão todos lá: narrativa realista, diálogos próximos do cotidiano, temas interessantes, abordagem que lembra Eric Rohmer. Mas talvez a metragem excessiva para uma história que poderia ser contada de maneira mais rápida prejudique razoavelmente o resultado. A personagem da médica lembra um pouco as figuras femininas de Rosetta e O silêncio de Lorna, com uma certa solidão em meio a um ambiente no qual se sente bem, mas nem tanto, porém falta um pouco mais de carisma na ação que ela empreende. Os Dardenne são muito focados em extrair boas atuações e aqui eles captam apenas o diálogo de forma realista, não os movimentos, mais mecânicos. Não se pode dizer, por outro lado, que a interpretação de Haenel não seja focada, assim como Bonnaud é sensível no tratamento de seu personagem com um passado que o leva a refletir sobre a própria profissão. O personagem dele certamente é o mais enigmático de A garota desconhecida: ele é uma espécie de reflexo do que Jenny gostaria de ser em sua vida.

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Mesmo com problemas em seu desenvolvimento, de algum modo a maneira como A garota desconhecida lida com temas que dizem respeito à mudança no posicionamento de uma personagem mostra que os Dardenne continuam utilizando o talento para os enquadramentos de forma segura. E há alguns momentos tocantes, como aquele em que Jenny é homenageada por um de seus pacientes, ou angustiantes, quando ela está atrás de novas pistas num terreno de construção e fica quase sem saída, sendo que os Dardenne contextualizam toda a cena como se ela estivesse realmente presa àquela situação na qual se inseriu. Se no início ela parece pouco disposta a ouvir ou compartilhar sentimentos, parece que o mote do filme é descobrir que este é o caminho para a autodescoberta. Daí a oferecer a mão para uma senhora descer alguns degraus até o consultório é de uma humanidade que apenas os Dardenne conseguem captar com facilidade.

La fille inconnue, BEL, 2016 Diretores: Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne Elenco: Adèle Haenel, Ben Hamidou, Christelle Cornil, Fabrizio Rongione, Jérémie Renier, Laurent Caron, Louka Minnella, Nadège Ouedraogo, Olivier Bonnaud, Olivier Gourmet, Pierre Sumkay, Yves Larec Roteiro: Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne Fotografia: Alain Marcoen Produção: Denis Freyd, Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne Duração: 113 min. Distribuidora: Califórnia Filmes Estúdio: Archipel 35 / Les Films du Fleuve / Savage Film

 

Dois dias, uma noite (2014)

Por André Dick

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Os personagens dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne sempre aparecem em situações delicadas: em Rosetta,  uma jovem busca trabalho para sustentar a mãe; em A criança, um jovem, em troca de dinheiro, prefere se desfazer do filho recém-nascido, e em O garoto da bicicleta o menino Cyril se mostra sempre deslocado e precisa pedir para que possa participar de uma determinada convivência que poderia ser mesmo rotineira para alguns. Esses temas se proliferam, com algumas modulações, em outros filmes da dupla, como O silêncio de Lorna, uma das grandes peças de interpretação da década passada, e O filho.
Os personagens de Cyril e o de Rosetta de certo modo se refletem bastante naquele que Marion Cotillard interpreta em Dois dias, uma noite, novamente em grande momento como atriz, num tom semelhante àquele que adota em Era uma vez em Nova York. No entanto, Cotillard encontra aqui diretores e um roteiro mais interessantes, em uma espécie de narrativa na qual os Dardenne são especialistas. Ela é Sandra, que se encontra num momento especialmente delicado: moradora de Seraing, cidade industrial de Liège, na Bélgica, à medida que está afastada do trabalho, onde lida com painéis solares sob o comando de Jean-Marc (Olivier Gourmet), se mantém em casa, solitária, em seu quarto, tentando encontrar uma alternativa. Seja ao telefone ou no contato com os filhos, ela está visivelmente desesperada. Quando decide, de fato, ir à procura de uma solução, precisa falar com colegas de trabalho para recuperar seu emprego – e falar no sentido de buscar o encontro com a humanidade e a generosidade. Isso se torna, em certo ponto, imprevisto e até mesmo emocionante, como se um fato a princípio do cotidiano tivesse um impacto maior na vida de todos, mesmo que às vezes de forma implícita. É deste modo que Rosetta e O filho receberam a Palma de Ouro em Cannes, mesmo festival em que estreou Dois dias, uma noite.

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Nessa procura para que seus antigos colegas possam ouvi-la e pensar sobre um bônus que devem ou não receber para que ela consiga obter seu espaço de volta – e a justificativa que oferece, em relação ao tratamento dado para sua saída, nunca fica claro –, os diretores revelam seu estilo. Num momento, aqui, o ser humano mostra um lado mais amigável; logo em seguida, ele se volta apenas para si mesmo, porém os Dardenne não fazem nenhum tipo de julgamento, pois todos fazem parte do mesmo panorama, e este, como o filme retrata, de uma Europa atingida pela crise, pelas relações complicadas de direitos de trabalho, é conturbado. Alguns terão receio, outros irão partir para o enfrentamento; e terão aqueles dedicados sempre a ficar à margem da questão alheia. Os Dardenne registram tudo como se a personagem partisse para um confronto não apenas contra as suas limitações, e sim contra o que não será interrompido, independente do resultado. Sandra é uma espécie de símbolo, mas nunca deixa de atrair simpatia e afeto e, apesar do tom de voz baixo dado à personagem, Cotillard consegue encontrar fugas do roteiro para encontrar sua humanidade.
Novamente os Dardenne escolhem cores para caracterizar os personagens – como o vermelho da jaqueta do personagem central de O garoto da bicicleta. Aqui é o rosa da blusa que a personagem de Cotillard utiliza em boa parte do filme, combinando com a cor verde de vários ambientes ou objetos. Fabrizio Rongione, como seu marido Manu, tem uma grande atuação, como é requisito entre os coadjuvantes dos Dardenne, imprimindo um bom complemento à presença de Cotillard. Todas as cenas em que ambos aparecem são caracterizadas por tons diferentes, como aquela em que conversam num banco de praça, mas sobretudo numa sequência mais ao final, decisiva para o filme, demonstrando aqui uma conciliação entre pessoas diferentes.

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Com sua propriedade em abordar temas humanos, principalmente aqueles que envolvem um personagem diante de uma linha tênue entre o encontro e o afastamento, ao lado de alguma pressão financeira, como é o caso de Sandra, os filmes da dupla podem ser vistos, em determinados momentos, até mesmo como presos a algum ideal. No entanto, o roteiro não oferece a ideia de que o sistema denigre o ser humano, e sim aponta a possibilidade de que ele encontre um novo ânimo diante da sociedade e dos problemas que ela traz quando leva ao limite da condição existencial. Para os Dardenne, só pode haver um encontro entre duas pessoas por por uma decisão pessoal; não por acaso, seus personagens são quase sempre solitários, e o sentido que eles têm dessa união é sempre resultado de um afeto intransferível a qualquer outro. Se o cotidiano, em sua obra, não funciona como deveria ser, não deixa de ser também a justificativa para que os personagens prossigam, sem um tom de conciliação que inexiste quando cada qual se depara, obrigatoriamente, com seu rumo, que pode ser decidido por um diálogo ou um ombro. A sensibilidade, aqui, é sempre mostrar como o ser humano pode ser forte quando compartilha com o outro seus problemas, mas sem constituir um rótulo: temas sensíveis não pertencem a nenhuma corrente. Mesmo porque os personagens de Jean-Pierre e Luc Dardenne não conseguem delinear uma liberdade, apesar de, por exemplo, em O garoto da bicicleta, essa ser representada pela ideia de família.
Não deixa de haver uma certa manipulação em alguns olhares, mas a questão é que, no movimento em que o espectador é inserido, é difícil dizer que o filme não retrata de maneira fiel os acontecimentos mais próximos do cotidiano. No entanto, a dupla de diretores não adota um realismo teatral, ou seja, seus personagens parecem estar numa condição de silêncio real, e não se tornam falantes apenas para que transcorra a história. Há silêncios incômodos e amargurados e a personagem não passa por situações exatamente agradáveis. Talvez a melhor sequência esteja ligada à da personagem Anne (Christelle Cornil), que Sandra procura evidentemente para relatar sua questão e coloca a vida da amiga mais próxima de uma mudança, mesmo que a dela – Sandra – continue imprevisível. Tudo isso seria talvez ineficaz não fosse a presença de Cotillard, certamente a melhor atriz indicado ao Oscar deste ano, numa presença que lembra muito aquela de Ferrugem e osso, seu maior papel antes deste filme (apesar de ter recebido muitos elogios por Piaf, no qual também está bem). Ela mostra uma presença física e psicológica resistente e sólida durante toda a narrativa. E, para os Dardenne, contra a presença opressiva da situação humana, a saída pode ser a escolha de um rock no rádio do carro. Momentos que parecem efêmeros e dispensáveis são o que tornam, como parece sempre acontecer na obra dos irmãos belgas, Dois dias, uma noite em uma obra de grande sensibilidade.

Deux jours, une noit, BEL/FRA, 2014 Diretores: Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne Elenco: Marion Cotillard, Fabrizio Rongione, Pili Estacada, Simon Caudry, Catherine Salée, Baptiste Sornin, Alain Eloy, Myriem Akheddiou, Fabienne Sciascia, Timur Magomedgadzhiev, Hicham Slaoui, Olivier Gourmet Fotografia: Alain Marcoen Produção: Denis Freyd, Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne Duração: 95 min. Distribuidora: Imovision Estúdio: Les Films du Fleuve

Cotação 5 estrelas