Por André Dick
Os personagens dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne sempre aparecem em situações delicadas: em Rosetta, uma jovem busca trabalho para sustentar a mãe; em A criança, um jovem, em troca de dinheiro, prefere se desfazer do filho recém-nascido, e em O garoto da bicicleta o menino Cyril se mostra sempre deslocado e precisa pedir para que possa participar de uma determinada convivência que poderia ser mesmo rotineira para alguns. Esses temas se proliferam, com algumas modulações, em outros filmes da dupla, como O silêncio de Lorna, uma das grandes peças de interpretação da década passada, e O filho.
Os personagens de Cyril e o de Rosetta de certo modo se refletem bastante naquele que Marion Cotillard interpreta em Dois dias, uma noite, novamente em grande momento como atriz, num tom semelhante àquele que adota em Era uma vez em Nova York. No entanto, Cotillard encontra aqui diretores e um roteiro mais interessantes, em uma espécie de narrativa na qual os Dardenne são especialistas. Ela é Sandra, que se encontra num momento especialmente delicado: moradora de Seraing, cidade industrial de Liège, na Bélgica, à medida que está afastada do trabalho, onde lida com painéis solares sob o comando de Jean-Marc (Olivier Gourmet), se mantém em casa, solitária, em seu quarto, tentando encontrar uma alternativa. Seja ao telefone ou no contato com os filhos, ela está visivelmente desesperada. Quando decide, de fato, ir à procura de uma solução, precisa falar com colegas de trabalho para recuperar seu emprego – e falar no sentido de buscar o encontro com a humanidade e a generosidade. Isso se torna, em certo ponto, imprevisto e até mesmo emocionante, como se um fato a princípio do cotidiano tivesse um impacto maior na vida de todos, mesmo que às vezes de forma implícita. É deste modo que Rosetta e O filho receberam a Palma de Ouro em Cannes, mesmo festival em que estreou Dois dias, uma noite.
Nessa procura para que seus antigos colegas possam ouvi-la e pensar sobre um bônus que devem ou não receber para que ela consiga obter seu espaço de volta – e a justificativa que oferece, em relação ao tratamento dado para sua saída, nunca fica claro –, os diretores revelam seu estilo. Num momento, aqui, o ser humano mostra um lado mais amigável; logo em seguida, ele se volta apenas para si mesmo, porém os Dardenne não fazem nenhum tipo de julgamento, pois todos fazem parte do mesmo panorama, e este, como o filme retrata, de uma Europa atingida pela crise, pelas relações complicadas de direitos de trabalho, é conturbado. Alguns terão receio, outros irão partir para o enfrentamento; e terão aqueles dedicados sempre a ficar à margem da questão alheia. Os Dardenne registram tudo como se a personagem partisse para um confronto não apenas contra as suas limitações, e sim contra o que não será interrompido, independente do resultado. Sandra é uma espécie de símbolo, mas nunca deixa de atrair simpatia e afeto e, apesar do tom de voz baixo dado à personagem, Cotillard consegue encontrar fugas do roteiro para encontrar sua humanidade.
Novamente os Dardenne escolhem cores para caracterizar os personagens – como o vermelho da jaqueta do personagem central de O garoto da bicicleta. Aqui é o rosa da blusa que a personagem de Cotillard utiliza em boa parte do filme, combinando com a cor verde de vários ambientes ou objetos. Fabrizio Rongione, como seu marido Manu, tem uma grande atuação, como é requisito entre os coadjuvantes dos Dardenne, imprimindo um bom complemento à presença de Cotillard. Todas as cenas em que ambos aparecem são caracterizadas por tons diferentes, como aquela em que conversam num banco de praça, mas sobretudo numa sequência mais ao final, decisiva para o filme, demonstrando aqui uma conciliação entre pessoas diferentes.
Com sua propriedade em abordar temas humanos, principalmente aqueles que envolvem um personagem diante de uma linha tênue entre o encontro e o afastamento, ao lado de alguma pressão financeira, como é o caso de Sandra, os filmes da dupla podem ser vistos, em determinados momentos, até mesmo como presos a algum ideal. No entanto, o roteiro não oferece a ideia de que o sistema denigre o ser humano, e sim aponta a possibilidade de que ele encontre um novo ânimo diante da sociedade e dos problemas que ela traz quando leva ao limite da condição existencial. Para os Dardenne, só pode haver um encontro entre duas pessoas por por uma decisão pessoal; não por acaso, seus personagens são quase sempre solitários, e o sentido que eles têm dessa união é sempre resultado de um afeto intransferível a qualquer outro. Se o cotidiano, em sua obra, não funciona como deveria ser, não deixa de ser também a justificativa para que os personagens prossigam, sem um tom de conciliação que inexiste quando cada qual se depara, obrigatoriamente, com seu rumo, que pode ser decidido por um diálogo ou um ombro. A sensibilidade, aqui, é sempre mostrar como o ser humano pode ser forte quando compartilha com o outro seus problemas, mas sem constituir um rótulo: temas sensíveis não pertencem a nenhuma corrente. Mesmo porque os personagens de Jean-Pierre e Luc Dardenne não conseguem delinear uma liberdade, apesar de, por exemplo, em O garoto da bicicleta, essa ser representada pela ideia de família.
Não deixa de haver uma certa manipulação em alguns olhares, mas a questão é que, no movimento em que o espectador é inserido, é difícil dizer que o filme não retrata de maneira fiel os acontecimentos mais próximos do cotidiano. No entanto, a dupla de diretores não adota um realismo teatral, ou seja, seus personagens parecem estar numa condição de silêncio real, e não se tornam falantes apenas para que transcorra a história. Há silêncios incômodos e amargurados e a personagem não passa por situações exatamente agradáveis. Talvez a melhor sequência esteja ligada à da personagem Anne (Christelle Cornil), que Sandra procura evidentemente para relatar sua questão e coloca a vida da amiga mais próxima de uma mudança, mesmo que a dela – Sandra – continue imprevisível. Tudo isso seria talvez ineficaz não fosse a presença de Cotillard, certamente a melhor atriz indicado ao Oscar deste ano, numa presença que lembra muito aquela de Ferrugem e osso, seu maior papel antes deste filme (apesar de ter recebido muitos elogios por Piaf, no qual também está bem). Ela mostra uma presença física e psicológica resistente e sólida durante toda a narrativa. E, para os Dardenne, contra a presença opressiva da situação humana, a saída pode ser a escolha de um rock no rádio do carro. Momentos que parecem efêmeros e dispensáveis são o que tornam, como parece sempre acontecer na obra dos irmãos belgas, Dois dias, uma noite em uma obra de grande sensibilidade.
Deux jours, une noit, BEL/FRA, 2014 Diretores: Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne Elenco: Marion Cotillard, Fabrizio Rongione, Pili Estacada, Simon Caudry, Catherine Salée, Baptiste Sornin, Alain Eloy, Myriem Akheddiou, Fabienne Sciascia, Timur Magomedgadzhiev, Hicham Slaoui, Olivier Gourmet Fotografia: Alain Marcoen Produção: Denis Freyd, Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne Duração: 95 min. Distribuidora: Imovision Estúdio: Les Films du Fleuve