Dois dias, uma noite (2014)

Por André Dick

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Os personagens dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne sempre aparecem em situações delicadas: em Rosetta,  uma jovem busca trabalho para sustentar a mãe; em A criança, um jovem, em troca de dinheiro, prefere se desfazer do filho recém-nascido, e em O garoto da bicicleta o menino Cyril se mostra sempre deslocado e precisa pedir para que possa participar de uma determinada convivência que poderia ser mesmo rotineira para alguns. Esses temas se proliferam, com algumas modulações, em outros filmes da dupla, como O silêncio de Lorna, uma das grandes peças de interpretação da década passada, e O filho.
Os personagens de Cyril e o de Rosetta de certo modo se refletem bastante naquele que Marion Cotillard interpreta em Dois dias, uma noite, novamente em grande momento como atriz, num tom semelhante àquele que adota em Era uma vez em Nova York. No entanto, Cotillard encontra aqui diretores e um roteiro mais interessantes, em uma espécie de narrativa na qual os Dardenne são especialistas. Ela é Sandra, que se encontra num momento especialmente delicado: moradora de Seraing, cidade industrial de Liège, na Bélgica, à medida que está afastada do trabalho, onde lida com painéis solares sob o comando de Jean-Marc (Olivier Gourmet), se mantém em casa, solitária, em seu quarto, tentando encontrar uma alternativa. Seja ao telefone ou no contato com os filhos, ela está visivelmente desesperada. Quando decide, de fato, ir à procura de uma solução, precisa falar com colegas de trabalho para recuperar seu emprego – e falar no sentido de buscar o encontro com a humanidade e a generosidade. Isso se torna, em certo ponto, imprevisto e até mesmo emocionante, como se um fato a princípio do cotidiano tivesse um impacto maior na vida de todos, mesmo que às vezes de forma implícita. É deste modo que Rosetta e O filho receberam a Palma de Ouro em Cannes, mesmo festival em que estreou Dois dias, uma noite.

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Nessa procura para que seus antigos colegas possam ouvi-la e pensar sobre um bônus que devem ou não receber para que ela consiga obter seu espaço de volta – e a justificativa que oferece, em relação ao tratamento dado para sua saída, nunca fica claro –, os diretores revelam seu estilo. Num momento, aqui, o ser humano mostra um lado mais amigável; logo em seguida, ele se volta apenas para si mesmo, porém os Dardenne não fazem nenhum tipo de julgamento, pois todos fazem parte do mesmo panorama, e este, como o filme retrata, de uma Europa atingida pela crise, pelas relações complicadas de direitos de trabalho, é conturbado. Alguns terão receio, outros irão partir para o enfrentamento; e terão aqueles dedicados sempre a ficar à margem da questão alheia. Os Dardenne registram tudo como se a personagem partisse para um confronto não apenas contra as suas limitações, e sim contra o que não será interrompido, independente do resultado. Sandra é uma espécie de símbolo, mas nunca deixa de atrair simpatia e afeto e, apesar do tom de voz baixo dado à personagem, Cotillard consegue encontrar fugas do roteiro para encontrar sua humanidade.
Novamente os Dardenne escolhem cores para caracterizar os personagens – como o vermelho da jaqueta do personagem central de O garoto da bicicleta. Aqui é o rosa da blusa que a personagem de Cotillard utiliza em boa parte do filme, combinando com a cor verde de vários ambientes ou objetos. Fabrizio Rongione, como seu marido Manu, tem uma grande atuação, como é requisito entre os coadjuvantes dos Dardenne, imprimindo um bom complemento à presença de Cotillard. Todas as cenas em que ambos aparecem são caracterizadas por tons diferentes, como aquela em que conversam num banco de praça, mas sobretudo numa sequência mais ao final, decisiva para o filme, demonstrando aqui uma conciliação entre pessoas diferentes.

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Com sua propriedade em abordar temas humanos, principalmente aqueles que envolvem um personagem diante de uma linha tênue entre o encontro e o afastamento, ao lado de alguma pressão financeira, como é o caso de Sandra, os filmes da dupla podem ser vistos, em determinados momentos, até mesmo como presos a algum ideal. No entanto, o roteiro não oferece a ideia de que o sistema denigre o ser humano, e sim aponta a possibilidade de que ele encontre um novo ânimo diante da sociedade e dos problemas que ela traz quando leva ao limite da condição existencial. Para os Dardenne, só pode haver um encontro entre duas pessoas por por uma decisão pessoal; não por acaso, seus personagens são quase sempre solitários, e o sentido que eles têm dessa união é sempre resultado de um afeto intransferível a qualquer outro. Se o cotidiano, em sua obra, não funciona como deveria ser, não deixa de ser também a justificativa para que os personagens prossigam, sem um tom de conciliação que inexiste quando cada qual se depara, obrigatoriamente, com seu rumo, que pode ser decidido por um diálogo ou um ombro. A sensibilidade, aqui, é sempre mostrar como o ser humano pode ser forte quando compartilha com o outro seus problemas, mas sem constituir um rótulo: temas sensíveis não pertencem a nenhuma corrente. Mesmo porque os personagens de Jean-Pierre e Luc Dardenne não conseguem delinear uma liberdade, apesar de, por exemplo, em O garoto da bicicleta, essa ser representada pela ideia de família.
Não deixa de haver uma certa manipulação em alguns olhares, mas a questão é que, no movimento em que o espectador é inserido, é difícil dizer que o filme não retrata de maneira fiel os acontecimentos mais próximos do cotidiano. No entanto, a dupla de diretores não adota um realismo teatral, ou seja, seus personagens parecem estar numa condição de silêncio real, e não se tornam falantes apenas para que transcorra a história. Há silêncios incômodos e amargurados e a personagem não passa por situações exatamente agradáveis. Talvez a melhor sequência esteja ligada à da personagem Anne (Christelle Cornil), que Sandra procura evidentemente para relatar sua questão e coloca a vida da amiga mais próxima de uma mudança, mesmo que a dela – Sandra – continue imprevisível. Tudo isso seria talvez ineficaz não fosse a presença de Cotillard, certamente a melhor atriz indicado ao Oscar deste ano, numa presença que lembra muito aquela de Ferrugem e osso, seu maior papel antes deste filme (apesar de ter recebido muitos elogios por Piaf, no qual também está bem). Ela mostra uma presença física e psicológica resistente e sólida durante toda a narrativa. E, para os Dardenne, contra a presença opressiva da situação humana, a saída pode ser a escolha de um rock no rádio do carro. Momentos que parecem efêmeros e dispensáveis são o que tornam, como parece sempre acontecer na obra dos irmãos belgas, Dois dias, uma noite em uma obra de grande sensibilidade.

Deux jours, une noit, BEL/FRA, 2014 Diretores: Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne Elenco: Marion Cotillard, Fabrizio Rongione, Pili Estacada, Simon Caudry, Catherine Salée, Baptiste Sornin, Alain Eloy, Myriem Akheddiou, Fabienne Sciascia, Timur Magomedgadzhiev, Hicham Slaoui, Olivier Gourmet Fotografia: Alain Marcoen Produção: Denis Freyd, Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne Duração: 95 min. Distribuidora: Imovision Estúdio: Les Films du Fleuve

Cotação 5 estrelas

Azul é a cor mais quente (2013)

Por André Dick

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Baseado numa graphic novel assinada por Julie Maroh, Azul é a cor mais quente foi o filme vencedor deste ano em Cannes, ganhando, em seguida, uma promoção que o transforma num dos lançamentos do ano, como aconteceu em anos anteriores com os vencedores A árvore da vida e Amor. Ao contrário dessas obras, o filme do franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, que esteve à frente do difícil O segredo do grão, também por seu material de origem, que trata da aproximação e o amor entre duas mulheres, tem um apelo mais pop, sobretudo por trazer duas atrizes de grande talento, Léa Seydoux (de Meia-noite em Paris) e Adèle Exarchopoulos. Em 2005, quando foi lançado o excelente O segredo de Brokeback Mountain, foi possível ver meses de polêmica. Com Azul é a cor mais quente (tradução melhor do que o título original), acontece quase o mesmo. Desde o lançamento em Cannes, fazendo a temática prevalecer sobre a história, até recentemente, na chegada do filme ao mercado, quando o diretor revelou que se arrependia do resultado e Seydoux reclamou dos métodos empregados por ele nas filmagens, percebe-se que há mais do que cinema aqui: Azul é a cor mais quente é um grande acontecimento cultural, que pretende servir não apenas como cinema, mas como debate sobre a relação entre duas mulheres. O interessante é ver se, além da abordagem polêmica, a história teria algo de realmente diferente.
Kechiche pretende mostrar a relação entre Adèle (Exarchopoulos), uma estudante, e Emma (Seydoux), que estuda Belas Artes, ao longo de vários anos, e em primeiro lugar há o estilo dele. Como em O segredo do grão, utiliza-se a técnica de colocar os atores em close, procurando emprestar aos personagens que interpretam uma proximidade e outra dimensão; lá, esta técnica atrapalhava, pois Kechiche se excedia no movimento ininterrupto dos personagens, enquanto em Azul é a cor mais quente adquire outra dimensão. Isto fica claro durante toda a narrativa, quando conhecemos as personagens, e o diretor tenta se concentrar no rosto de cada uma, explorando todos os detalhes, inclusive a cor do cabelo azul de Emma e de outros objetos e situações em cena. Mas não apenas nesse sentido. Kechiche consegue trabalhar com elementos tão bem mesclados por Laurent Cantet em Entre os muros da escola e por Gus Van Sant em Elefante e Paranoid Park. Há, no colégio de Adèle, um clima de adolescência e diálogos que vão desde o comprometimento com o que se espera – Adèle gostar de um jovem mais velho, Thomas (Jérémie Laheurte) – até os preconceitos que podem surgir quando a personagem precisa lidar com o fato de que foi com o amigo Valentin (Sandor Funtek) para um lugar que as colegas condenam. Os diálogos de Kechiche seguem num ritmo e agilidade do cotidiano, acompanhados por uma música multiétnica e um poder de persuasão das ruas, sem nunca soarem forçados, assim como a troca de influências musicais, filosóficas e artísticas de Emma e Adèle não parece direcionada ao fato de tornar o filme mais complexo.

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É interessante como Adèle, de certo modo, é o oposto de Emma no que se refere à recepção do mundo como uma fonte artística: para a personagem central, a experiência cotidiana vem antes da arte, e não o contrário. Emma prepara esboços, mas nunca conseguirá definir o rosto de Adèle; é como se, a partir daí, não pudesse entendê-la, assim como as suas escolhas, independente do que se refere a uma relação homossexual. Emma ainda tem uma idealização romântica, de Adèle ser sua musa, mas esta (e interpretá-la como alguém supostamente inferior intelectualmente é própria do romantismo) quer as sensações que o cotidiano pode oferecer, longe de uma figura idealizada e da ideia de arte como um posto superior das relações humanas. Pode-se caminhar por museus e tentar analisar pinturas, mas são o banco da praça e as folhas de um outono já perdido que se fixam na memória da personagem central. A escrita talentosa de Adèle se reproduz num diário – e diários são considerados corriqueiros demais, assim como contar histórias para crianças. Desse modo, o filme não trata exatamente de orientação sexual ou o conflito que emerge dela, e sim da solidão do indivíduo que tenta se encontrar, mesmo que seja em meio a uma multidão ou fingindo estar em grupo, e toda a sensação de sentir o primeiro amor, optando por seu caminho próprio, independente de gêneros.
À medida que a trama vai criando outros caminhos, Kechiche retoma um olhar sobre a aceitação ou não das famílias em relação às duas, assim como coloca o que parece ser a verdadeira razão do filme: Adèle é uma jovem deslocada, e o fato de não ser o que esperam dela não se baseia exatamente no pressuposto de sua relação com Emma – e toda a decisão que pode surgir da sociedade e do choque com o que ela espera do indivíduo não passa de uma abstração quando a personagem figura isolada em quartos ou quando caminha em meio a pistas de dança sem que consiga encontrar alguém para conversar. Nesta progressão, o filme vai se intensificando até as cenas de sexo polêmicas, que servem quase como uma analogia com hábitos culinários, como Greenaway fez em O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante, levando em conta que aqui elas são mais explícitas. Kechiche mostra as cenas como a atração entre as personagens, sendo que elas são extremamente bem feitas, e colocam as atrizes num tour de force notável. Essas cenas acabam sendo criadas com o objetivo de haver uma intensidade em que não se perca de vista a proximidade das personagens, e o ritmo causado por tudo ao redor. E, para se obter o distanciamento desse relacionamento, e o sentimento de perda, é preciso haver o momento de impulso.

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Seydoux tem uma atuação notável, mas é Adèle Exarchopoulos que realmente tem uma atuação extraordinária. Ela consegue mesclar o sentimento de abandono quando precisa tomar suas escolhas e a necessidade de precisar da amada mais do que talvez pudesse, além da sensação permanente de estar sem um rumo definido e sem um apoio familiar. É fácil entender por que Kechiche a selecionou para interpretar Adèle e é visível como ele se aproveita do talento da atriz para tentar aplacar o cansaço que poderia haver em relação às idas e vindas da trama, bastante circulares, no entanto. Inclusive, os capítulos 1 e 2, do título francês, não estão completamente claros, com uma sutileza na edição do filme que faz o tempo transcorrer sem que o espectador perceba com clareza que os personagens estão ficando mais velhos, ou apenas por mudanças no cabelo, sem a presença excessiva de amigos e familiares para delimitar uma certa solidão nas escolhas.
A questão é se o roteiro poderia tratar de um tema polêmico e, a princípio, dentro dos limites de perdas e descobertas. Cada diálogo tem uma duração mais longa para exatamente criar uma tensão para a próxima cena e, basicamente, Azul é a cor mais quente explora essa relação, mas obtendo as nuances necessárias a partir de uma história que poderia ser considerada até previsível. Isso já era visível em O segredo do grão: Kechiche é um diretor bastante talentoso em organizar cenas com uma naturalidade que parece despertar o realismo de Eric Rohmer. Se naquele, ele não conseguia sintetizá-las, em Azul é a cor mais quente mesmo o que parece excessivo torna a história mais interessante. E Kechiche, além disso, consegue extrair significado de determinadas imagens: em determinado momento, a personagem está na água, solitária, como se estivesse nascendo individualmente, ao contrário de outra em que parece descobrir o vínculo emocional com o corpo da amada. A belíssima fotografia de Sofian El Fani distribui um espelho de reflexos que parece tentar iluminar um período de sombras da vida de Adèle, prestes realmente a se encontrar. E Kechiche não poupa o espectador: Azul é a cor mais quente, com seus personagens apresentados com intensidade, torna-se, a cada movimento, tão singelo quanto cortante. Se o diretor agiu corretamente ou não com suas atrizes, trazendo uma discussão dos bastidores para a cena pública, não saberia definir. O que se sente é que ele tornou as duas atrizes em seus personagens, e isso poucos diretores fariam com o mesmo talento. Por isso, Azul é a cor mais quente tem a qualidade de uma obra-prima.

La vie d’Adèle – Chapitres 1 e 2/Blue is the warmest color, França/Bélgica/Espanha, 2013 Diretor: Abdellatif Kechiche Elenco: Adèle Exarchopoulos, Léa Seydoux, Alma Jodorowsky, Aurélien Recoing, Benjamin Siksou, Catherine Salée, Fanny Maurin, Jérémie Laheurte, Salim Kechiouche, Sandor Funtek Roteiro: Abdellatif Kechiche Fotografia: Sofian El Fani Produção: Genevieve Lemal Duração: 179 min. Distribuidora: Imovision Estúdio: Quat’sous Films / Wild Bunch

Cotação 5 estrelas