Azul é a cor mais quente (2013)

Por André Dick

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Baseado numa graphic novel assinada por Julie Maroh, Azul é a cor mais quente foi o filme vencedor deste ano em Cannes, ganhando, em seguida, uma promoção que o transforma num dos lançamentos do ano, como aconteceu em anos anteriores com os vencedores A árvore da vida e Amor. Ao contrário dessas obras, o filme do franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, que esteve à frente do difícil O segredo do grão, também por seu material de origem, que trata da aproximação e o amor entre duas mulheres, tem um apelo mais pop, sobretudo por trazer duas atrizes de grande talento, Léa Seydoux (de Meia-noite em Paris) e Adèle Exarchopoulos. Em 2005, quando foi lançado o excelente O segredo de Brokeback Mountain, foi possível ver meses de polêmica. Com Azul é a cor mais quente (tradução melhor do que o título original), acontece quase o mesmo. Desde o lançamento em Cannes, fazendo a temática prevalecer sobre a história, até recentemente, na chegada do filme ao mercado, quando o diretor revelou que se arrependia do resultado e Seydoux reclamou dos métodos empregados por ele nas filmagens, percebe-se que há mais do que cinema aqui: Azul é a cor mais quente é um grande acontecimento cultural, que pretende servir não apenas como cinema, mas como debate sobre a relação entre duas mulheres. O interessante é ver se, além da abordagem polêmica, a história teria algo de realmente diferente.
Kechiche pretende mostrar a relação entre Adèle (Exarchopoulos), uma estudante, e Emma (Seydoux), que estuda Belas Artes, ao longo de vários anos, e em primeiro lugar há o estilo dele. Como em O segredo do grão, utiliza-se a técnica de colocar os atores em close, procurando emprestar aos personagens que interpretam uma proximidade e outra dimensão; lá, esta técnica atrapalhava, pois Kechiche se excedia no movimento ininterrupto dos personagens, enquanto em Azul é a cor mais quente adquire outra dimensão. Isto fica claro durante toda a narrativa, quando conhecemos as personagens, e o diretor tenta se concentrar no rosto de cada uma, explorando todos os detalhes, inclusive a cor do cabelo azul de Emma e de outros objetos e situações em cena. Mas não apenas nesse sentido. Kechiche consegue trabalhar com elementos tão bem mesclados por Laurent Cantet em Entre os muros da escola e por Gus Van Sant em Elefante e Paranoid Park. Há, no colégio de Adèle, um clima de adolescência e diálogos que vão desde o comprometimento com o que se espera – Adèle gostar de um jovem mais velho, Thomas (Jérémie Laheurte) – até os preconceitos que podem surgir quando a personagem precisa lidar com o fato de que foi com o amigo Valentin (Sandor Funtek) para um lugar que as colegas condenam. Os diálogos de Kechiche seguem num ritmo e agilidade do cotidiano, acompanhados por uma música multiétnica e um poder de persuasão das ruas, sem nunca soarem forçados, assim como a troca de influências musicais, filosóficas e artísticas de Emma e Adèle não parece direcionada ao fato de tornar o filme mais complexo.

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É interessante como Adèle, de certo modo, é o oposto de Emma no que se refere à recepção do mundo como uma fonte artística: para a personagem central, a experiência cotidiana vem antes da arte, e não o contrário. Emma prepara esboços, mas nunca conseguirá definir o rosto de Adèle; é como se, a partir daí, não pudesse entendê-la, assim como as suas escolhas, independente do que se refere a uma relação homossexual. Emma ainda tem uma idealização romântica, de Adèle ser sua musa, mas esta (e interpretá-la como alguém supostamente inferior intelectualmente é própria do romantismo) quer as sensações que o cotidiano pode oferecer, longe de uma figura idealizada e da ideia de arte como um posto superior das relações humanas. Pode-se caminhar por museus e tentar analisar pinturas, mas são o banco da praça e as folhas de um outono já perdido que se fixam na memória da personagem central. A escrita talentosa de Adèle se reproduz num diário – e diários são considerados corriqueiros demais, assim como contar histórias para crianças. Desse modo, o filme não trata exatamente de orientação sexual ou o conflito que emerge dela, e sim da solidão do indivíduo que tenta se encontrar, mesmo que seja em meio a uma multidão ou fingindo estar em grupo, e toda a sensação de sentir o primeiro amor, optando por seu caminho próprio, independente de gêneros.
À medida que a trama vai criando outros caminhos, Kechiche retoma um olhar sobre a aceitação ou não das famílias em relação às duas, assim como coloca o que parece ser a verdadeira razão do filme: Adèle é uma jovem deslocada, e o fato de não ser o que esperam dela não se baseia exatamente no pressuposto de sua relação com Emma – e toda a decisão que pode surgir da sociedade e do choque com o que ela espera do indivíduo não passa de uma abstração quando a personagem figura isolada em quartos ou quando caminha em meio a pistas de dança sem que consiga encontrar alguém para conversar. Nesta progressão, o filme vai se intensificando até as cenas de sexo polêmicas, que servem quase como uma analogia com hábitos culinários, como Greenaway fez em O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante, levando em conta que aqui elas são mais explícitas. Kechiche mostra as cenas como a atração entre as personagens, sendo que elas são extremamente bem feitas, e colocam as atrizes num tour de force notável. Essas cenas acabam sendo criadas com o objetivo de haver uma intensidade em que não se perca de vista a proximidade das personagens, e o ritmo causado por tudo ao redor. E, para se obter o distanciamento desse relacionamento, e o sentimento de perda, é preciso haver o momento de impulso.

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Seydoux tem uma atuação notável, mas é Adèle Exarchopoulos que realmente tem uma atuação extraordinária. Ela consegue mesclar o sentimento de abandono quando precisa tomar suas escolhas e a necessidade de precisar da amada mais do que talvez pudesse, além da sensação permanente de estar sem um rumo definido e sem um apoio familiar. É fácil entender por que Kechiche a selecionou para interpretar Adèle e é visível como ele se aproveita do talento da atriz para tentar aplacar o cansaço que poderia haver em relação às idas e vindas da trama, bastante circulares, no entanto. Inclusive, os capítulos 1 e 2, do título francês, não estão completamente claros, com uma sutileza na edição do filme que faz o tempo transcorrer sem que o espectador perceba com clareza que os personagens estão ficando mais velhos, ou apenas por mudanças no cabelo, sem a presença excessiva de amigos e familiares para delimitar uma certa solidão nas escolhas.
A questão é se o roteiro poderia tratar de um tema polêmico e, a princípio, dentro dos limites de perdas e descobertas. Cada diálogo tem uma duração mais longa para exatamente criar uma tensão para a próxima cena e, basicamente, Azul é a cor mais quente explora essa relação, mas obtendo as nuances necessárias a partir de uma história que poderia ser considerada até previsível. Isso já era visível em O segredo do grão: Kechiche é um diretor bastante talentoso em organizar cenas com uma naturalidade que parece despertar o realismo de Eric Rohmer. Se naquele, ele não conseguia sintetizá-las, em Azul é a cor mais quente mesmo o que parece excessivo torna a história mais interessante. E Kechiche, além disso, consegue extrair significado de determinadas imagens: em determinado momento, a personagem está na água, solitária, como se estivesse nascendo individualmente, ao contrário de outra em que parece descobrir o vínculo emocional com o corpo da amada. A belíssima fotografia de Sofian El Fani distribui um espelho de reflexos que parece tentar iluminar um período de sombras da vida de Adèle, prestes realmente a se encontrar. E Kechiche não poupa o espectador: Azul é a cor mais quente, com seus personagens apresentados com intensidade, torna-se, a cada movimento, tão singelo quanto cortante. Se o diretor agiu corretamente ou não com suas atrizes, trazendo uma discussão dos bastidores para a cena pública, não saberia definir. O que se sente é que ele tornou as duas atrizes em seus personagens, e isso poucos diretores fariam com o mesmo talento. Por isso, Azul é a cor mais quente tem a qualidade de uma obra-prima.

La vie d’Adèle – Chapitres 1 e 2/Blue is the warmest color, França/Bélgica/Espanha, 2013 Diretor: Abdellatif Kechiche Elenco: Adèle Exarchopoulos, Léa Seydoux, Alma Jodorowsky, Aurélien Recoing, Benjamin Siksou, Catherine Salée, Fanny Maurin, Jérémie Laheurte, Salim Kechiouche, Sandor Funtek Roteiro: Abdellatif Kechiche Fotografia: Sofian El Fani Produção: Genevieve Lemal Duração: 179 min. Distribuidora: Imovision Estúdio: Quat’sous Films / Wild Bunch

Cotação 5 estrelas