Por André Dick
Há alguns filmes em que você tem certeza de que o diretor se sente mais inteligente do que seu espectador, e não exatamente considera que este é inteligente para entender completamente seu estilo ou o que ele está dizendo, apesar de querer empregá-lo a cada sequência. Amor & amizade, de Whit Stillman, baseado num conto de Jane Austen, é um desses exemplos. Trata-se, sem dúvida, de uma adaptação com elementos modernos, embora mais discreta, por exemplo, do que aquela que Baz Luhrmann fez para O grande Gatsby ou que Denis Villeneuve fez para o romance de Saramago em O homem duplicado, e mais bem-humorada do que as anteriores feitas de obras dessa autora, a exemplo de Razão e sensibilidade, Orgulho e preconceito e Emma. Tudo porque Stillman, que fez nos anos 90 Metropolitan, Barcelona e Os últimos embalos da disco, e mais recentemente, em 2011, Descobrindo o amor (com a Frances Ha, Greta Gerwig), é uma espécie de versão mais esporádica de Woody Allen.
Não se entenda, de qualquer modo, que não haja muito interesse nele: Amor & amizade é, grande parte do tempo, instigante e atrevido. A narrativa se passa na década de 1790, quando Lady Susan Vernon (Kate Beckinsale), uma mulher que acabou de ficar viúva, tenta arranjar um casamento não apenas para si, como também para sua filha, Frederica (Morfydd Clark). Ela parte para Churchill, até a casa de campo de seu cunhado, Charles Vernon (Justin Edwards), casado com Catherine Vernon (nascida DeCourcy). Catherine e seu irmão Reginald (Xavier Samuel) entendem do que Lady Susan é capaz de fazer para atingir seus objetivos: ela lembra a Marquesa de Merteuil de Ligações perigosas, de Choderlos de Laclos.
Logo Reginald está se dobrando a seus encantos, para preocupação de Sir Reginald DeCourcy (James Fleet) e Lady DeCourcy (Jemma Redgrave), seus pais. Frederica está em um internato que a Lady Susan não tem dinheiro para manter, e certo dia ela escapa dele, indo para Churchill, seguida pelo Sir James Martin (Tom Bennett), um homem rico e atrapalhado, que deseja se casar com ela.
Já em Londres, Lady Susan flerta com Lord Manwaring (Lochlann O’Mearáin), casado com Miss Maria (Sophie Radermacher), que entra em desespero constante, sendo amparada por mordomos (e eles aparecem continuamente ao longo da metragem). Possuindo como confidente uma jovem dos Estados Unidos, Alicia Johnson (Chloë Sevigny), casada com Mr. Johnson (Stephen Fry), Lady Susan vai enganando um a um, a fim de que se cumpra o plano que concebeu desde o início: que sua filha e ela possam ter uma vida economicamente tranquila.
Stillman, com a ajuda notável da fotografia de Richard Van Oosterhout, do design de produção de Anna Rackard e figurinos de Eimer Ni Mhaoldomhnaigh elaboradíssimos, transforma Amor & amizade numa espécie de comédia de época sem tons muito altos. Ou seja, o espectador sabe que todos estão se divertindo, mas acompanha esse movimento um tanto a distância, não apenas pelo aspecto teatral de época da obra, como pela necessidade de Stillman em deixar claro que se trata de um filme bastante inteligente e raro.
Muitas vezes isso não funciona, e o ritmo se quebra, em longos diálogos, bem escritos, no entanto um pouco sem emoção. Sabe-se que há toda uma busca de status social por trás dessa narrativa e que os personagens precisam se adaptar a ela (e se imagina um Hugh Grant dos anos 90 neste filme), e com isso se ausentam também uma emoção direta e menos entregue por diálogos expositivos e gestos teatrais. As reviravoltas que acontecem não ganham talvez o peso necessário para que sejam vistas como tais, e o espectador precisa procurar detalhadamente as nuances de cada personagem para que possa entender suas ações.
É obrigatório se dizer que Beckinsale está memorável em seu papel, assim como os coadjuvantes, com destaque óbvio para Bennett, estão muito bem, dando-se ainda créditos a Xavier Samuel, outro bom ator saído da série Crepúsculo, com sua contenção clássica. Especificamente, Beckinsale e Sevigny trabalharam juntas já em Os últimos embalos da disco e mostram novamente uma química em cena. Acredito que Stillman assistiu a Amour fou, que se parece com um filme de Wes Anderson de época, e apanhou a mesma impostação para os diálogos com uma leveza cômica mais óbvia. Ele, contudo, não tem a agilidade de Jessica Hausner, a diretora daquele, para equilibrar o drama e a comédia.
Em Stillman, tudo soa como se fosse uma espécie de comercial de época, inclusive os apresentando um a um, como tenta fazer Anderson de forma orgânica em algumas de suas peças, com o nome abaixo deles, ou quando reproduz as palavras de cartas e poemas lidos na tela. Trata-se de um caminho já seguido por Luhrmann no seu belo O grande Gatsby, com seu acréscimo épico no sentido de produção. Tais elementos pouco se repetem, ou seja, parecem inseridos para dar um ar de modernidade ao clássico texto de Austen, bem adaptado por Stillman, no sentido de obter uma certa qualidade que o torna mais próximo. Isso não impede que os personagens às vezes façam gracejos inconvenientes e não tenham uma ligação exata com os papéis que interpretam, parecendo haver um constante deslocamento que Stillman não resolve em termos formais, embora o visual sempre se mantenha impressionante.
Amor & amizade se mantém como um filme de época distinto, com grandes atuações e ainda assim frio. Interessante, mas talvez inferior ao que quisesse apresentar. Um grande mérito, já que fala de economia e status, é a produção, muito rica, ter custado apenas 3 milhões e já ter arrecadado quase 19. Um sucesso em se tratando de uma obra quase de arthouse.
Love & friendship, EUA/FRA/HOL/IRL, 2016 Diretor: Whit Stillman Elenco: Kate Beckinsale, Chloë Sevigny, Morfydd Clark, Xavier Samuel, Emma Greenwell, Tom Bennett, Justin Edwards, Jenn Murray, Stephen Fry Roteiro: Whit Stillman Fotografia: Richard Van Oosterhout Trilha Sonora: Benjamin Esdraffo Duração: 92 min. Distribuidora: Califórnia Filmes Estúdio: Amazon Studios / Blinder Films / Chic Films / Revolver Amsterdam / Westerly Films