Rei Arthur – A lenda da espada (2017)

Por André Dick

O primeiro contato mais exitoso com o cinema de Guy Ritchie se deu em Snatch – Porcos e diamantes, uma espécie de miscelânea de gêneros ligados ao mundo da máfia, com todos os maneirismos possíveis de sentido pop e violência influenciada visivelmente por Tarantino. Ritchie parecia um bom cineasta, mas ainda tateando, em busca de uma personalidade. Não foi o que ele conseguiu em projetos como Destino insólito (com sua ex-mulher, Madonna), mas por incrível que pareça são os elementos que já apareciam em Snatch que fizeram funcionar tão bem Sherlock Holmes e agora, em menor escala, Rei Arthur – A lenda da espada. Estão aqui os elementos que já se encontravam naquele filme: uma espécie de necessidade de destacar os movimentos de câmera, lembrando às vezes um videoclipe, o visual carregado e o elenco fazendo soar o máximo uma espontaneidade teatralizada. Nesta adaptação da lenda do Rei Arthur, Ritchie consegue encontrar tanto sua personalidade quanto mostrar que mesmo naquele filme em que ainda se mostrava incipiente já mostrava uma determinada originalidade extraída de várias influências.

Ritchie tem, desde o início, uma influência clara de O senhor dos anéis, mostrando o logotipo da Warner como um anel forjado em ouro. Com roteiro dele em parceria com Joby Harold e Lion Wigram, Rei Arthur mostra inicialmente o Rei Uther Pendragon (Eric Bana) salvando Camelot de Mordred (Rob Knighton), capaz de lembrar qualquer figura maligna da série de Peter Jackson e que pretende instituir o domínio dos magos sobre a humanidade. Na mesma noite, em meio a uma manada de elefantes, Uther é traído pelo irmão Vortigern (Jude Law), que pretende matar o seu sobrinho. No entanto, este escapa em uma barca e é criado por prostitutas. Quando o jovem Arthur cresce (e vira Charlie Hunnam), ele tem amigos como Wet Stick (Kingsley Ben-Adir), Back Lack (Neil Maskell) e o chinês George (Tom Wu). Eles investem contra vikings que maltratam prostitutas para, então, descobrirem que eles eram convidados de Vortigern. Integram-se ainda em sua equipe Bedivere (Djimon Hounsou), o arqueiro Bill (Aidan Gillen), antigos companheiros de seu pai, além de Mage (Astrid Berges-Frisbey), que possui poderes especiais. Claro que Arthur só descobre realmente quem é e o que precisa fazer quando chega às suas mãos a espada Excalibur – depois de ouvir impropérios de um dos que tentavam extraí-la da rocha (feito por David Beckham, o ex-jogador de futebol).

O filme de Ritchie não tem objetivo de respeitar algum molde clássico, como todos os projetos do cineasta: é um espetáculo em movimento quase de videoclipe, com uma montagem por vezes confusa, com idas e vindas no tempo e cortes para evitar excessivo material expositivo – uma das qualidades do diretor. Não possui, por exemplo, a atmosfera séria de Excalibur, de John Boorman, uma das referências do gênero: Rei Arthur está mais interessado em compor uma diversão descompromissada, com muitas cenas de luta e um ritmo trepidante, dialogando com o Robin Hood de Kevin Costner e Morgan Freeman, dos anos 90, e lembrando Chumbo grosso, de Edgar Wright na maneira como edita as cenas.
A fotografia de John Mathieson (de Peter Pan, Logan e Gladiador) estabelece, com a ajuda do design de produção, a época medieval com rara perspicácia, trazendo um ar de fantasia que remete tanto ao já mencionado O senhor dos anéis quanto a Harry Potter (as duas partes de As relíquias da morte) e ao oitentista Krull, principalmente em suas cenas passadas na floresta. Ritchie tem interesse claro em recuperar uma espécie de filme que mescla história e fantasia com imagens perturbadoras daquilo que habita os porões do castelo de Camelot.

Charlie Hunnam não tem uma grande atuação como Arthur (ele se mostrava melhor, por exemplo, em Círculo de fogo), mas Jude Law contrabalança a falta que faz um herói mais convincente, ao transmitir uma sensação de tragédia familiar no seu pacto com forças maléficas. Nas cenas de luta, Hunnam é mais ativo, concedendo certo realismo à sua procura pelo combate. Eric Bana também se sai bem, um ator quase ausente no cinema atual depois de mostrar talento em várias obras, como Hulk, Munique e Troia (em que Rei Arthur também vai buscar certa influência). E Astrid Berges-Frisbey é especialmente misteriosa, como convém a seu personagem, Marve.
O elenco não chega a ter muitas cenas em conjunto, fazendo-se mais presente na aceleração de diálogos sobre possíveis batalhas a serem travadas. É visível uma influência de Cruzada na imposição de alguns cenários palacianos, e com a agilidade insuspeita para uma história sobre esse período há um estranhamento e originalidade, além de Ritchie localizar Arthur como uma espécie de personagem saído da peça Os miseráveis, com um passado não esclarecido, mas sempre disposto a fazer o bem para aquelas que o criaram, e que é salvo como se fosse o próximo escolhido. Depois, ele se impõe como um lutador e a agilidade que tem nas ruas faz lembrar um gângster jovem saído de algum filme de Scorsese. Ritchie utiliza algumas belas analogias, como o momento em que Arthur tira Excalibur da pedra em que está incrustada e o sangue sai das velas do castelo de Camelot, ou o símbolo da cobra, que se torna o antídoto para um determinado momento.

Também podemos ver além quando Ritchie mostra estátuas na floresta em diálogo com as ossadas dos elefantes e quando Arthur precisa mergulhar num lago, como se ele precisasse descobrir a verdade, a mesma que se esconde em meio a criaturas no subterrâneo do palácio de Camelot. Nesse sentido, visualmente, talvez seja a peça mais rica da filmografia do diretor, sempre propenso a tratar mais de forma objetiva o que está mostrando – e aqui, na realidade, não é diferente, no entanto com esses acréscimos. E, como é de praxe em sua filmografia, Ritchie não está muito interessado no desenvolvimento de relação entre os personagens, mas isso não prejudica o andamento de sua narrativa. Projetado para ser uma franquia de seis (!) capítulos, Rei Arthur custou 175 milhões e arrecadou 135, tornando-se num dos fracassos comerciais do ano. Não aparenta que teria fôlego para tantos filmes – e parece ter se tornado uma mania adiantar número de obras de uma possível série sem uma sequer ter sido lançada –, por outro lado o que se apresenta nele vale a pena ser assistido.

King Arthur: Legend of the sword, EUA, 2017 Diretor: Guy Ritchie Elenco: Charlie Hunnam, Àstrid Bergès-Frisbey, Djimon Hounsou, Aidan Gillen, Jude Law, Eric Bana, Mikael Persbrandt, Lorraine Bruce, Hermione Corfield, Annabelle Wallis, Kingsley Ben-Adir, Neil Maskell, Millie Brady, David Beckham Roteiro: Guy Ritchie, Joby Harold, Lionel Wigram Fotografia: John Mathieson Trilha Sonora: Daniel Pemberton Produção: Akiva Goldsman, Guy Ritchie, Joby Harold, Lionel Wigram, Richard Suckle, Steve Clark-Hall, Tory Tunnell Duração: 126 min. Distribuidora: Warner Bros Estúdio: Safehouse Pictures / Village Roadshow Pictures / Warner Bros. / Weed Road Pictures / Wigram Productions

 

Z – A cidade perdida (2016)

Por André Dick

Em seu filme anterior, Era uma vez em Nova York, James Gray parecia deixar de lado a agilidade dramática que havia apresentado em Amantes, talvez seu melhor filme. Mesmo com ótimas atuações de Joaquin Phoenix e Marion Cotillard, a narrativa tinha muitos problemas. No entanto, algumas qualidades suas se mantinham: o cuidado com a reconstituição de época era uma delas. Talvez Gray seja o último cineasta norte-americano a querer recuperar certo cinema de época, inspirado sobretudo em Michael Cimino, de O portal do paraíso. Ele possui uma grande nostalgia em mostrar salões de dança e barcos em portos históricos, sendo recepcionados por milhares de pessoas.
Em Z – A cidade perdida , ele traz Percy Fawcett (Charlie Hunnam), casado com Nina (Sienna Miller), um oficial britânico que é escolhido pela Royal Geographical Society, por meio das figuras de Sir George Goldie (Ian McDiarmid) e Sir John Scott Keltie (Clive Francis), para ajudar na delimitação de terras entre Bolívia e Brasil, prestes a entrar em guerra por causa disso. Estamos em 1906. Ele recebe como companheiro de viagem Henry Costin (Robert Pattinson), que tem conhecimento da Amazônia, e Arthur Manley (Edward Ashley). Em embarcações no rio Amazonas, lembra-se imediatamente de Aguirre, mas Gray não quer emular Herzog: seu interesse é justamente mostrar a solidão desses exploradores, mesmo em sua ausência de relações, não exatamente a loucura provocada pela floresta e pelo distanciamento de tudo.

Na missão, Fawcett é informado por um dos guias de que existe uma cidade perdida com ouro na selva. Ele não leva em consideração a história, mas encontra numa peregrinação restos de cerâmica na mata, o que o leva a acreditar que haveria uma cultura mais evoluída do que imagina. Gray contrapõe esse seu interesse à ameaça que sofre ao longo da peregrinação, principalmente quando há uma chuva de flechas disparadas por tribos (e o realismo das cenas as engrandece).
Fawcett volta à Inglaterra, onde sua esposa deu à luz ao segundo filho. Na Biblioteca do Colégio da Trindade, sua esposa encontra um texto de um conquistador que fala da cidade perdida na selva – seria a mesma já relatada a ele? Ele também discursa sobre a possibilidade de realmente haver uma cultura forte no meio da selva, sendo ridicularizado. Ele volta ao Brasil para tentar encontrar essa cidade, sendo acompanhado novamente por Costin e desta vez por James Murray (Angus Macfadyen). Desta vez, ele está interessado em estabelecer um contato mais estreito com as tribos indígenas da Amazônia, mesmo sabendo do risco que corre nesse embate entre diferentes culturas.

Não há nenhuma tentativa de se vincular a Terrence Malick, de O novo mundo, por exemplo, e sim a um cinema de época mais clássico, padronizado, embora no bom sentido. Gray não está interessado em cenas de ação ou mesmo no misterioso da floresta amazônica e sim com o dilema do personagem, em estar junto à família ou perto daquilo que o move como aventureiro e explorador. O mais instigante nesse personagem é como ele necessita dos companheiros para cumprir sua tarefa de exploração, sem nunca se sentir acima. Gray o mostra como um indivíduo mesmo inseguro, apesar da tenacidade em percorrer determinado rumo contrário ao ritual da sociedade da época. Neste ponto, ele lembra bastante Lincoln, de Spielberg, uma clara referência na reconstituição de determinados cenários, assim como as luzes e figurinos nos salões remetem a Barry Lindon e Mistérios de Lisboa. Também é bastante evidente, na maneira com que Gray usa o horizonte, uma influência do subestimado No coração do mar, de Ron Howard, que trata também do instinto de sobrevivência numa situação complicada: quando os personagens, na mata, ficam sem alimento e precisam caçar animais.

Gray faz dessa história simples não uma homenagem também a Fitzcarraldo, e sim um filme de época realmente convincente, com belas atuações de Hunnam, Pattinson (no seu melhor momento desde Cosmópolis e The Rover) e Sienna Miller (que esteve este ano também no ótimo A lei da noite). Embora nenhum personagem seja realmente desenvolvido, deixando algumas questões subentendidas, todos eles se sentem verdadeiros. Hunnam, especialmente, mostra talento já explorado este ano, embora não tanto, em Rei Arthur. Baseado em livro de David Gann, Z – A cidade perdida possui uma bela fotografia do sempre competente Darius Khondji, conseguindo conciliar as cores de Londres com a da selva amazônica de modo irremediavelmente concentrado. Com uma história contada de forma devagar, procurando mais nuances do que conflitos dramáticos ressaltados, é uma obra realmente interessante na trajetória de Gray. Pode-se apontar semelhanças também com o recente O abraço da serpente, mas Gray é substancialmente mais certeiro ao escolher a maneira de retratar esses exploradores. A narrativa flui também melhor, sem uma necessidade de agradar e ser artístico demais, explorando com cuidado as nuances.

The lost city of Z, EUA, 2016 Diretor: James Gray Elenco: Charlie Hunnam, Robert Pattinson, Sienna Miller, Tom Holland, Edward Ashley, Angus Macfadyen, Ian McDiarmid, Clive Francis, Pedro Coello Roteiro: James Gray Fotografia: Darius Khondji Trilha Sonora: Christopher Spelman Duração: 111 min. Distribuidora: Imagem Filmes Estúdio: MadRiver Pictures / MICA Entertainment / Paramount Pictures / Plan B Entertainment

A colina escarlate (2015)

Por André Dick

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O diretor mexicano Guillermo del Toro tem como uma de suas características a imaginação ligada a diferentes gêneros associados ao fantástico. Depois de O labirinto do fauno, na verdade uma fantasia com elementos reais, enfocando a Guerra Civil Espanhola, com uma violência incomum nesse gênero, ele parece, no entanto, ter sido associado ao gênero do terror e do suspense. Se há um filme dele com elementos fortes desses gêneros é Cronos, ainda dos anos 90, e um pouco de Mutação, primeira obra que filmou em Hollywood. Esta decepção original nos Estados Unidos o levou de volta para o México, para filmar sua maior realização, A espinha do diabo. Neste filme, certamente o elemento mais assustador está em seu título, pois, na verdade, trata-se de um drama com elementos de suspense focando um orfanato também durante a Guerra Civil Espanhola. Em seguida, com seu díptico Hellboy, ele conseguiu associar seu clima fantasioso a uma história de super-herói incomum, e ainda ajudou no roteiro da trilogia O hobbit (que inicialmente também dirigiria). E mesmo em Círculo de fogo, quando ele teria fugido, segundo parte da crítica, às suas origens, ele sempre esteve de acordo com elas.
Por isso, quando se analisa que Del Toro novamente foge a muitos de seus elementos em A colina escarlate, talvez possa se colocar em desconfiança o fato de que ele quer ser um artista do terror quando, na verdade, quando se aproveitou desse gênero, sempre o mesclou com outros. A colina escarlate, portanto, vem da imaginação de um dos cineastas mais originais já vindos do México.

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O interessante é como Del Toro consegue utilizar determinados cenários assustadores para, na verdade, falar dos temas que não aparecem na superfície. Em A colina escarlate, ele mostra uma jovem, Edith Cushing, que perdeu a mãe muito cedo e deseja ser escritora. Morando com o pai, Carter (Jim Beaver, excelente), ela é cortejada por Alan McMichael (Charlie Hunnam, adequado), um médico, até que chegam à sua cidade Thomas (Tom Hiddleston) e Lucille Sharpe (Jessica Chastain). Thomas pretende que invistam num projeto ao qual se dedica há anos – e vem da Europa aos Estados Unidos a fim de escapar da falência. O pai de Edith fica desconfiado quando ele passa a ter intenções de um relacionamento com ela e coloca um detetive, Holly (Burn Gorman), para investigá-lo. A relação de Thomas com a irmã é baseada em algum mistério ligado ao passado, e, quando Lucille deve ir morar com ambos na mansão Allerdale Hall, no alto de uma colina, tudo parece ficar mais nebuloso.
A composição de Del Toro para A colina escarlate não é menos notável do que o cuidado que tinha com a fotografia em A espinha do diabo e com os efeitos especiais esplendorosos de Círculo de fogo. Esta mansão tem por baixo uma barro vermelho que os Sharpe pretendem vender – e tanto pode remeter à ameaça do lugar quanto à pena da escrita e à lacradura de cartas. O filme, nesse sentido, é sobre uma escritora que não tem nenhuma vivência exatamente real para tratar de seu romance de fantasmas, quando ainda não entende exatamente o que são as pessoas que a cercam. Quando ela se depara com uma mansão em que até mesmo o transporte da água até a banheira desperta certo pânico, ou cujas portas podem ranger a noite inteira, e ainda há um vento que pode amedrontar a noita toda, Edith parece que não depende tanto da literatura pois já está inserida nela. Por isso, talvez não seja desperdício dizer que a narrativa remete a clássicos como O morro dos ventos uivantes e a autores como Lovecraft, escritor que certamente inspirou Del Toro na transição de gêneros, e Mary Shelley, de determinada literatura gótica.

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Este roteiro muito mais sugestivo do que colocado em palavras foi assinado em parceria de Del Toro com Matthew Robbins, já colaboradores em MutaçãoNão tenha medo no escuro, e de um dos próximos projetos do cineasta mexicano, Pinóquio. Robbins ganhou o prêmio de melhor roteiro em Cannes com Louca escapada, o primeiro filme oficial de Spielberg (uma vez que Encurralado foi feito para a TV), além de ter participação não creditada nos escritos de Contatos imediatos do terceiro grau, E.T., e ter dirigido dois cults na década de 80, O dragão e o feiticeiro e O milagre veio do espaço. Possivelmente seja de Robbins – é característica desses projetos – a fluência do roteiro de A colina escarlate e sua capacidade de, por meio de um desenho de produção gigantesco de Thomas E. Sanders (Drácula de Bram Stoker) e que insere o espectador no cenário retratado, além da fotografia elaboradíssima de Dan Laustsen (que havia trabalhado com o diretor em Mutação), também desenhar uma camada psicológica para os personagens.
Desde o início, com Lucille Sharpe interessada em casulos de mariposas, é possível entender que A colina escarlate, também pela personagem central ser jovem, está nessa mansão para que conheça a maturidade para a qual apenas a literatura não poderia transportar. É interessante, nesse sentido, como a sugestão de uma aproximação com Thomas depende sempre de alguma fantasia com alguém que pode ser o escolhido. O próprio figurino e o cabelo da personagem passam a sugerir uma determinada inocência e dependência, quando no início do filme ela se mostra independente, inclusive da aproximação de Alan. A personagem de Lucille representa certamente a ameaça que representa a iminência do relacionamento – e em determinado momento ela estende um livro que Edith nega.

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O vemelho de sangue depois da tosse pode não ser exatamente a tuberculose que levava os poetas românticos – e sim a maldade humana. Ou seja, a personagem de Edith, por causa da atuação de Mia Wasikowska – uma atriz que encadeou alguns grandes trabalhos, em O duplo, Mapas para as estrelas e Madame Bovary, depois do início hesitante em Alice no país das maravilhas –, tem uma transformação interessante ao longo da história. E a partir de determinado momento ela parece ter o mesmo dilema da personagem Jane Eyre, curiosamente também interpretada por Wasikowska numa adaptação recente.
O que se destaca, porém, é a maneira como Del Toro dispõe o lugar, com os quartos na parte de cima, a cozinha no térreo e folhas e neve que não param de adentrar nesse lugar, como se ele não pudesse segurar a natureza, assim como cada um dos personagens não pudesse esconder as suas diferentes faces. E, finalmente, há o porão enigmático, onde Edith tentará descobrir o mistério que cerca a mansão e se reproduz nos irmãos Sharpe. Esses ambientes são preenchidos principalmente pela figura de Lucille, numa atuação excepcional de Jessica Chastain, mesmo depois de um início indefinido em razão do sotaque acentuado, e Tom Hiddleston e seu talento habitual se equilibra entre as duas performances femininas com naturalidade. Afinal, o filme é sobre o embate entre duas mulheres: uma que sobrevive de um certo passado que pode ser glorioso, ligado a esta mansão, a outra uma mulher que procura a independência e a literatura como forma de subsistir em meio a um mundo em que os homens se reúnem ao redor da mesa para decidir sobre as novas invenções que devem ganhar espaço. Para Del Toro, a maioria dos homens são fantasmas que tentam sobreviver de uma tradição, e a mudança pode ser exatemente a convivência com os outros. Ele aponta isso com a culpa ligada a um passado em que a perda é, por um lado, da natureza e, por outro, pela loucura. Quando o cineasta trabalha com imagens como se fossem símbolos – Edith caminhando pela casa escura com um candelabro atrás da infância que parece ter perdido ameaçada por fantasmas, o barro vermelho querendo sair à superfície, o fantasma como uma ameaça ao longe –, A colina escarlate chega ao que mais imaginava: é resultado de um diretor que entende substancialmente da fantasia e de temores humanos que podem existir nela.

Crimson Peak, EUA, 2015 Diretor: Guillermo del Toro Elenco: Mia Wasikowska, Jessica Chastain, Tom Hiddleston, Charlie Hunnam, Jim Beaver, Burn Gorman, Leslie Hope, Doug Jones, Jonathan Hyde, Bruce Gray, Emily Coutts Roteiro: Guillermo del Toro, Matthew Robbins Fotografia: Dan Laustsen Trilha Sonora: Fernando Velázquez Produção: Callum Greene, Guillermo del Toro, Jon Jashni, Thomas Tull Duração: 119 min. Distribuidora: Universal Pictures Estúdio: Legendary Pictures

Cotação 4 estrelas e meia

 

Círculo de fogo (2013)

Por André Dick

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Desde o início da sua trajetória, o cineasta mexicano Guillermo del Toro sempre teve um culto em torno de sua obra. Se este era grande com O labirinto do fauno, uma das fantasias mais perturbadoras e incômodas já feitas, não necessariamente equivalente a uma qualidade percebida a cada crítica, cresceu ainda mais com os dois Hellboy, em ritmo de HQs. Depois de ser substituído por Peter Jackson na direção de O hobbit, Del Toro resolveu se dedicar a este projeto grandioso, Círculo de fogo (daqui em diante, possíveis spoilers).
Aguardado como um dos grandes blockbusters deste ano, o filme já inicia em plena ação, mostrando que, das profundezas do Oceano Pacífico, através de uma brecha assustadora, surgem os Kaijus, monstros imensos que destroem tudo à sua volta. Para combatê-los, os militares criam os Jaegers, robôs gigantes (de países diferentes), cada um deles conduzidos por dois seres humanos, conectados pela mente, a fim de impulsionar seus movimentos. A parte inicial mostra exatamente esses pilotos, os irmãos Raleigh (Charlie Hunnam) e Yanci Beckett (Diego Klattenhoff), supervisionados por Stacker Pentecost (Idris Elba). Um dos irmãos irá conhecer Mako Mori (Rinko Kikuchi), protegida de Stacker.

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Depois de algumas aulas de luta com influência oriental, a questão é se estariam ambos preparados para enfrentar o fato de que há poucos Jaegers para enfrentar a profusão de Kaijus. Esses são investigados pelo Dr. Newton Geiszler (Charlie Day), com a parceria científica de Gottlieb (Burn Gorman), arranjando alternativas em meio ao mercado de Hong Kong, em busca de Hannibal Chau (Ron Perlman, o Hellboy) – e nesta ligação há alguns bons momentos de humor, por causa principalmente de Charlie Day, que foge completamente à atmosfera do filme. Também há Chuck Hansen (Robert Kazinsky), filho de Herc (Max Martini), que implica com o personagem central.
Todos os elementos básicos estão concentrados nesta narrativa, e Círculo de fogo não escapa muito à premissa do duelo entre a humanidade e monstros que lembram tubarões ou baleias prontos a criar um transtorno inevitável para o oceano. Em meio à apresentação dos personagens, vemos uma atmosfera chuvosa, como em Godzilla (embora o filme se mostre muito mais espetacular e denso do que aquele de Emmerich, que tinha os efeitos especiais como qualidade central), além de lembrar Cloverfield (produzido por Abrams e também de pouco impacto em relação a este) e, um pouco menos, Tropas estelares (a ficção cult de Paul Verhoeven), mas, acima de tudo, com referências a quadrinhos, séries e filmes japoneses.
Del Toro é, sobretudo, um artesão que consegue focar os sentimentos dos personagens – o personagem de Raleigh (também em razão da boa atuação, embora subestimada, de Hunnam) consegue se mostrar humano na tentativa de se conectar com outra pessoa à frente de um Jaeger. Sua relação com Mori se dá inicialmente na desconfiança, mas é na descoberta de um trauma em comum é que faz com que as mentes possam se complementar para o embate final contra os monstros que podem colocar a Terra diante do apocalipse final. A maneira como esses pares adentram nos robôs para tentar guiá-los mostra toda a concepção que cerca Del Toro: cada passo e movimento representa uma grandiosidade da máquina (pode-se dizer que este filme vale para o universo dos robôs o que Jurassic Park representou para os dinossauros nos anos 90). A preparação para o cargo de piloto dessas máquinas se dá com lutas orientais, em meio a quartos, corredores e elevadores frios, como os robôs, mas com os vínculos familiares expostos.

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Mako Mori não deixa de ser uma espécie de Sonmi-451 de Cloud Atlas (inclusive, Kikuchi, de Babel, se assemelha muito à Doona Bae), sendo preparada para o combate. Por trás dos embates de Círculo de fogo, há uma quantidade de referências bíblicas: o que se teme é o Apocalipse e no futuro os irmãos dividem uma máquina, e a morte de um também é parte da morte de outro, ao contrário de um Caim e Abel; o mar é sempre tempestuosamente bíblico; anda-se dentro de um monstro como Jonas dentro da baleia; mistura-se água às lavas como uma espécie de encontro entre elementos; e, afinal, quem lidera o combate aos Kaijus é um homem de sobrenome Pentecost (ligando-o a Pentecostes).
Del Toro busca, em suas histórias, não raramente a metáfora, como em O labirinto do fauno era a imaginação da personagem central, para escapar a uma realidade áspera. No entanto, em meio a um universo robótico, ele não hesita em mostrar também as mais variadas formas de organismo que podem ameaçar a natureza, mesmo aquela feita com o material de última tecnologia.
Ainda que Del Toro não consiga fazer com que os diálogos sejam desafiadores, em se tratando da simbologia, de efeitos especiais e design, Círculo de fogo é não menos do que espetacular. Neste ano, o segundo Star Trek foi fabuloso, mas parece que Círculo de fogo é uma espécie de configuração tanto da melhor fantasia provocada por robôs e monstros gigantes quanto do pior pesadelo, pois as cenas de batalha se dão quase sempre na escuridão ou embaixo de chuva, além de remeter, mais de uma vez, à série O senhor dos anéis e, segundo dados referentes das filmagens, às pinturas de Goya e Hokusai: os robôs e os monstros possuem uma dimensão assustadora, assim como os cenários em que travam os combates não lembram maquetes ou mero CGI.

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A fotografia de Guilherme Navarro consegue atingir uma categoria essencial para os movimentos das criaturas do filme: especificamente, os interiores onde os robôs ficam em plataformas são iluminados com apuro. Del Toro demonstra sensibilidade para verter este universo de robôs e monstros para uma superprodução e consegue criar algumas cenas notáveis ao longo de sua metragem, mas com destaque especial para a primeira hora, de incessante continuidade em todos os seus elementos – a montagem de John Gilroy e Peter Amundson nunca se encontra vacilante –, talvez prejudicado pelo ato final, mais previsível.
É por isso que, ao conduzir Círculo de fogo para o espaço da fantasia mais extraordinária, Del Toro passa a se inserir entre os nomes contemporâneos que melhor lidam com este material sem reduzi-lo a um trabalho com computadores. Como Peter Jackson e Abrams, o cineasta mexicano mostra, aqui, que os anos para solucionar Círculo de fogo valeram a pena. Seu filme consegue equivaler a pretensão visual com tudo aquilo que cerca a mitologia de robôs e monstros, expandindo, como raras obras, um universo que, mais do que fantástico, proporciona uma sensibilidade imaginária ampla. Não é pouco.

Pacific rim, EUA, 2013 Diretor: Guillermo del Toro Elenco: Charlie Hunnam, Diego Klattenhoff, Idris Elba, Rinko Kikuchi, Robert Kazinsky, Max Martini, Charlie Day, Burn Gorman, Ron Perlman Produção: Jon Jashni, Mary Parent, Thomas Tull Roteiro: Travis Beacham Fotografia: Guillermo Navarro Trilha Sonora: Ramin Djawadi Duração: 131 min. Distribuidora: Warner Bros Estúdio: Legendary Pictures

Cotação 4 estrelas