Nascido para matar (1987)

Por André Dick

Este texto contém spoilers

Em 1986, foi premiado pelo Oscar um filme marcante sobre a Guerra do Vietnã, Platoon, com direção de Oliver Stone e ótimos atores (destaques para Tom Berenger e Willem Dafoe). Pouco fica a dever para Apocalypse now, de Coppola. Stone serviu de fato na guerra (ele faz uma ponta no filme) e seu retrato é bastante realista, sem discursos patrióticos ou cenas piegas. Há sequências fortes, como a dos soldados colocando fogo numa vila, sob o olhar de um jovem, Chris (Charlie Scheen), que se alista para ir ao Vietnã, pois seu avô e seu pai também serviram na guerra. No front, depara-se com um comandante bom, Elias (Dafoe), em que encontra a figura de sua infância, e um paranoico (Berenger, com maquiagem pesada), além da presença de amigos (como aquele feito por Forest Whitaker. Depois de Platoon, gostando-se ou não da visão de Stone, seria difícil tratar novamente da guerra sob um enfoque original.

A forma com que Kubrick conduz a história e a falta de emoção talvez, sob certo ponto de vista, poderiam prejudicar Nascido para matar, justamente depois de Platoon (lançado apenas um ano antes). Mas, o que é impressionante, não o diminui em relação à obra de Stone e a Apocalypse now – um filme de ruptura. Quanto às imagens, por exemplo, o diretor de 2001 e Laranja mecânica continua especial. Ele adapta, em parceria com Michael Herr, um conto de Gustav Haford para mostrar, em sua primeira parte, um pelotão de fuzileiros sendo treinado por um sargento sádico, Hartman (R. Lee Ermey), tendo um dos jovens como algoz para seu trato mais do que rígido. Trata-se de um soldado, Leonard “Pyle” Lawrence (Vincent D’Onofrio), que sempre fica para trás nos exercícios e costuma fazer várias ações de guerra de modo equivocado, tornando-se odiado pelos colegas (há uma cena noturna de vingança coletiva).
No entanto, como se vivesse uma espécie de reação inconsciente, ele passa a demonstrar competência com armas e se torna um atirador ágil. Ao mesmo tempo, isso vai despertando a loucura, como se estivesse no hotel abandonado de Jack Torrance, em O iluminado. Esta primeira parte do filme tem uma carga de tensão muito grande, mesmo com as várias músicas de corrida entoadas por Hartman e sua implicância com Pyle ser tão exagerada que parece até às vezes caricata, e encerra-se de forma trágica, depois de Hartman distribuir as funções para cada um e gritar com Joker(Matthew Modine (um ator bastante frio, o que prejudica a empatia do espectador),: “Você é um assassino, não um escritor”, quando ele é destacado para trabalhar na área jornalística da guerra. Kubrick, no entanto, neste treinamento, quer mostrar, como em outros filmes seus – a começar pelo principal, 2001 –, a solidão do ser humano, sobretudo quando diante de situações adversas e num lugar desconhecido e árido. Além disso, as atuações de Ermey (única indicação do filme ao Oscar, como atriz coadjuvante) e D’Onofrio são extraordinárias.
Na segunda parte, integrantes do pelotão treinado por ele, tendo à frente o personagem Joker, que fazia parte da tropa de Hartman e de Pyle e agora está no front da batalha do Vietnã, trabalhando como jornalista no periódico Stars and Stripes, ao lado do fotógrafo Rafterman (Kevyn Major Howard). No entanto, ele é chamado para o campo de batalha, onde poderá reencontrar seu amigo Cowboy (Arliss Howard).

Tendo no capacete o dizer “Born to kill” e um símbolo da paz grudado no colete, ele é advertido a responder se ele leva a sério aquilo. Ele diz se tratar do retrato da dualidade humana, de acordo com as teorias junguianas. Ele também é obrigado a conviver finalmente com a loucura que chegou a Pyle antes do ingresso na guerra e passa a integrar a tropa a partir de determinado momento coordenada pelo amigo Cowboy, na qual há o provocador Animal Mother (Adam Baldwin), que chega a uma cidade em ruínas, onde os soldados estão sendo mortos por um atirador isolado.
Apesar da falta de ação no entreato do filme – em que se mistura uma narração jornalística, com pelo menos uma sequência que lembra M.A.S.H., de Robert Altman, mostrando o absurdo da guerra –, a meia hora final possui certo suspense, que o torna brilhante – com uma feroz ironia na canção lembrada pelos soldados sobre as ruínas vietnamitas. Além de cenas de impacto (como a invasão de um homem-bomba em determinado momento, ou um soldado norte-americano que mata vietnamitas a esmo em um helicóptero e ainda quer matéria da revista). Síntese de um diretor que realiza imagens emocionantes e opta muitas vezes, pela falta de diálogos – o que ajudaria num filme de guerra como este. Pauline Kael falou que o espectador não fica estupefato com a visão de Kubrick sobre a guerra,  mas com o vazio dessa visão, e ela tem razão nesse sentido em alguns momentos (embora no mesmo ano ela elogiasse Esperança e glória, interessante, destituído de ritmo). Parece não haver, a princípio, uma clara ponte de ligação entre a primeira e a segunda partes. No entanto existe. Hartman, no início, debocha de seus novos soldados, com referências depreciativas à figura da mulher e a atiradora que encurrala a tropa de Cowboy e mata dezenas de soldados norte-americanos não deixa de ser uma resposta, para Kubrick, à linguagem de Hartman e, posteriormente, dos soldados.

Do mesmo modo, Joker é obrigado, como no momento em que Pyle toma a atitude no fim da primeira parte, a encarar a morte de frente, em outra situação, e ouvir uma pergunta que não conseguiu fazer quando ameaçado por aquele que o via como amigo. A direção de arte é outro elemento que ao mesmo tempo aproxima e afasta as duas partes. Se a primeira parte tem ambientes simétricos, como o local em que ficam os soldados, com as camas armadas paralelamente, e os lençóis devem ser alinhados perfeitamente, a dispersão e o caos sobrepujam qualquer outra coisa. Também não parece deliberado que Kubrick coloque a única cena em que os personagens estão reunidos, demonstrando alguma emoção, mesmo que seja de raiva, ao final, diante da atiradora vietnamita. O que eles aprendem no quartel é justamente esquecerem qualquer emoção – no entanto, a morte impede que isso aconteça.
Kubrick é um hábil artesão e ele não dispõe as peças dessa forma sem um motivo considerável. Seus personagens são arquétipos de uma guerra enlouquecedora, e o vazio que se abate sobre eles é a representação mais contundente da falta de escape daquele universo, no qual podem para sempre se perder.

Full metal jacket, EUA, 1987 Diretor: Stanley Kubrick Elenco: Matthew Modine, Adam Baldwin, Vincent D’Onofrio, R. Lee Ermey, Dorian Harewood, Arliss Howard, Kevyn Major Howard, Ed O’Ross, John Terry, Kieron Kecchinis, Kirk Taylor, Jon Stafford, Ian Tyler, Papillon Soo, Bruce Boa Roteiro: Gustav Hasford, Michael Herr, Stanley Kubrik Fotografia: Douglas Milsome Trilha Sonora: Vivian Kubrik Produção: Jan Harlan, Michael Herr Duração: 117 min. Estúdio: Natant e Harrier Films Distribuidora: Warner Bros.