Central do Brasil (1998)

Por André Dick

Um dos grande feitos dos anos 90 do cinema brasileiro foi ter ganho o Festival de Berlim com Central do Brasil, de Walter Salles Jr., cineasta de raro talento, como já havia demonstrado em A grande arte (1991), seu primeiro e interessante trabalho, e Terra estrangeira (1995), com fotografia em preto e branco, ao lado da codiretora Daniela Thomas.
Esses dois primeiros filmes indicavam que os elementos da cinematografia de Walter Salles amadureciam e o resultou foi Central do Brasil  (1998) que possui um tom documental, inspirado em parte no cinema de Nelson Pereira dos Santos, elemento acentuado pela crítica. Não chegando ao limite de violência de Pixote, de Hector Babenco, um filme brasileiro igualmente extraordinário, com contornos trágicos, Central do Brasil tem um roteiro propositadamente simples, assinado por João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein, mas universal. Isso talvez explique não apenas o Urso de Ouro em Berlim, como também o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro e a indicação ao Oscar nessa mesma categoria.

Tendo à frente Fernanda Montenegro, escolhida como a melhor atriz em Berlim, e Vinícius de Oliveira, garoto de 11 anos selecionado por Walter no aeroporto Santos Dumont, onde trabalhava  engraxando sapatos, Central do Brasil tem elementos caros a nosso cinema, vindo de uma tradição reafirmada por Cacá Diegues em Bye Bye Brazil, e por Glauber Rocha em O dragão da maldade contra o santo guerreiro.
A ligação entre Dora (Fernanda Montenegro, indicada ao Oscar, que foi injustamente para Gwyneth Paltrow, de Shakespeare apaixonado), uma escrevedora de cartas na Central do Brasil, e o menino Josué (Vinícius de Oliveira), que tem um problema incontornável com a mãe Ana (Sôia Lira)  e quer conhecer o pai, é, no fundo, a descoberta de dois órfãos, tanto de pais quanto da pátria, sobre a realidade que os cerca. Amiga de Irene (Marília Pêra, excelente), Dora, a princípio, fica em dúvida sobre o que deve fazer; quando descobre, resolve descobrir junto o que a trouxe até ali também. Não à toa o filme de Salles é quase um filme de estrada, como Paris, Texas, de Wim Wenders, ou Bagdad Café, de Percy Adlon.

É nesse tipo de filme, afinal, que os personagens vão crescendo na medida em que viajam para longe de seus lares, encontrando a alma perdida em algum ponto de referência na estrada que os aguarda. No caso de Central do Brasil é a estrada brasileira, com alguns tipos inconfundíveis. O exemplo mais bem acabado é o do caminhoneiro (Othon Bastos, muito eficiente), que dá carona a Dora e Josué quando ambos já não tem como comer e viajar para onde querem.
Fugindo do exílio solitário imposto pela vida, atrás de descobertas, Dora e Josué descobrem não só a si mesmos, no fim da jornada, mas também o país, habitado por pessoas sempre em trânsito – elemento de destaque ainda quando a história transcorre na Central do Brasil, quando o movimento da multidão se dirigindo aos trens não arranca Dora e Josué da solidão onde estão exilados –, estradas desertas, povoados escondidos, procissões de fé, famílias desintegradas. País em parte conhecido – fotografado com raro talento por Walter Carvalho – e, ao mesmo tempo, afastado, desconhecido. Esse traço ecoa o cinema de Glauber Rocha principalmente, no seu interesse em filmar lugares despovoados, longos trechos de estrada apontados para o nada. E Salles visualiza isso de modo humano, não apenas estético.

Com trilha musical comovente de Jaques Morelenbaum, Central do Brasil se desenrola num cenário de feiras, reuniões espirituais, agrupamentos, por meio, é claro, da amizade entre a escrevedora de cartas e o garoto. Na época de seu lançamento, o filme de Salles foi uma espécie de coroamento para uma indústria que vinha com uma lista diversificada de filmes, a exemplo de Os matadores, A ostra e o vento e Guerra de Canudos, entre outros. Seu enfoque principal, contudo, é o de figuras solitárias, com as quais Salles trabalha em A grande arte (como a do fotógrafo vivido por Peter Coyote, cujas relações femininas vão desaparecendo no decorrer da história), Terra estrangeira (os brasileiros que, no exterior, buscam espaço), além de – num escopo  mais abrangente na filmografia do diretor –, a mãe recém-separada feita por Jennifer Connelly em Água negra, o menino que sonha em ser jogador de futebol em Linha de passe e a amizade entre Jack Kerouac e Sal Cassidy de Na estrada. O olhar de Josué, numa grande atuação de Oliveira, ao final de Central do Brasil, certamente é um olhar para um país sempre em autodescoberta. É genuíno e de forte impacto.

Central do Brasil, BRA/FRA, 1998 Diretor: Walter Salles Elenco: Fernanda Montenegro, Marília Pêra, Vinícius de Oliveira, Othon Bastos, Otávio Augusto, Matheus Nachtergaele, Sôia Lira Roteiro: Marcos Bernstein, João Emanuel Carneiro Fotografia: Walter Carvalho Trilha Sonora: Jacques Morelembaum, Antonio Pinto Produção: Martine de Clermont-Tonnerre, Arthur Cohn, Robert Redford, Walter Salles Duração: 113 min. Estúdio: VideoFilmes Distribuidora: Europa Filmes/Sony Pictures Classics