Gangues de Nova York (2002)

Por André Dick

O diretor Martin Scorsese havia saído de um experimento chamado Vivendo no limite, com Nicolas Cage como o motorista de uma ambulância, em diálogo com Taxi Driver, seu clássico dos anos 70, um pouco antes de ingressar num dos seus projetos mais ambiciosos, Gangues de Nova York. Nunca foi o desejo de Scorsese recontar a história dos Estados Unidos, preferindo mostrar o universo de gângsteres em obras como Os bons companheiros, Cassino e O irlandês, a desestrutura psicológica baseada no traço cômico em O rei da comédia e Depois de horas, assim como certo medo que se reflete em indivíduos, em peças como Cabo do medo. Desse modo, Gangues se torna um filme essencial para compreender outros meandros de sua filmografia, e uma influência direta para Lincoln, por exemplo, de Spielberg.
No início, acontece uma batalha no Five Points, Manhattan , em 1846, entre duas gangues: uma de William Cutting, ou Bill, o Açougueiro (Daniel Day-Lewis), e um grupo de imigrantes católicos irlandeses, os “Dead Rabbits”, liderados pelo “Padre” Vallon (Liam Neeson). Os homens estão armados de maneira bárbara, suscitando uma época sem nenhuma lei envolvida, apenas o instinto e a tentativa de impor a própria condição e origem. Não é spoiler, mas necessário dizer que Bill mata Vallon, declarando os adversários fora da lei.

O filho de Vallon é levado para um orfanato e ressurge depois de 16 anos usando o pseudônimo de Amsterdam (Leonardo DiCaprio). Primeiramente ele reencontra um antigo amigo, Johnny Sirocco (Henry Thomas, de E.T.), que passa a contar sobre a rotina dos núcleos que constituem a então cidade de Nova Tork, até levá-lo a Bill, aquele que o filho do Padre Vallon deseja matar para concretizar a vingança.
Amsterdam conhece nesse meio tempo a ladra Jenny Everdeane (Cameron Diaz), por quem Johnny é apaixonado. Amsterdam acaba aos poucos se tornando um dos melhores amigos de Bill. Em torno circula o político William M. Tweed (Jim Broadbent)., à frente do Tammany Hall, e Amsterdam também reencontra Walter “Monk” McGinn (Brendan Gleeson) e Walter “Monk” McGinn (John C. Reilly), que eram próximos do seu pai.
Scorsese constrói essa saga de maneira muito ágil, editando as cenas de forma abrupta com a colaboração vital de Thelma Schoonmaker. Desde o início, ele oferece um escopo em escala épica, procurando rapidamente a motivação dos personagens para que, ao longo da trama, sejam desenvolvidos. Não apenas Day-Lewis tem uma atuação excepcional como Bill, mas DiCaprio também consegue captar um personagem que age perturbado por uma consequência do passado.

O duelo entre os dois, tanto em atitudes quanto em atuações, abrange talvez o que Gangues de Nova York mais tem a oferecer, junto com seu contexto sobre os primórdios da cidade em que se passa a história. Tirando o porto no qual chegam os imigrantes principalmente da Irlanda, já encaminhados para lutar pela Confederação, Scorsese evita mostrar muitos cenários, concentrando-se mais nas ruas e interiores onde Bill fica com sua gangue. Diaz tem um papel de interesse romântico para Jenny Everdeane – e, numa época em que era uma das atrizes com maior salário de Hollywood, tem seu papel talvez mais exitoso da carreira, com o lapso de Scorsese em praticamente colocá-la em segundo plano no terceiro ato.
Até determinado ponto, sua presença é de muito destaque, sobretudo porque tem uma relação como amante com Bill e mais romântica com Amsterdam; sua figura faz a costura entre as diferenças desses dois e é entregue de maneira empenhada por Diaz, com sua mescla entre certa destreza e ingenuidade. Podia haver certa influência, pelo contexto de época, com a personagem de Winona Ryder em A época da inocência em outra abordagem, porém se mostra mais complexa do que aquela no próprio resultado alcançado por Scorsese, cuja narração em Gangues de Nova York é mais contida, dando mais expansão aos próprios personagens e suas reações.

Gangues de Nova York costuma ser comparado com O portal do paraíso, de Michael Cimino, e sem dúvida há cenários, detalhes de interiores, que os aproximam  fala-se que Scorsese o teria filmado antes não fosse o fracasso de bilheteria daquele. No entanto, a abordagem de Scorsese é mais comercial e direta, embora não menos interessante na essência, conduzindo os eixos de modo particularmente feliz. De maneira abrupta, o início lança tudo para um duelo que vai ser incorporado ao longo da trama e distribuído na tensão entre os demais personagens. Alguns ressurgem do passado para atormentar Amsterdam, outros seguem em sua penumbra. Há valores de amizade aqui, mas a Scorsese interessa mais uma concepção religiosa em atrito com a condução politica, que se dá de maneira ampla e irrestrita com a ajuda da trilha sonora impactante de Howard Shore e os efeitos sonoros. O roteiro de Jay Cocks, complementado por Kenneth Lonnergan – cineasta que faria bons trabalhos em tramas expansivas como Margaret e Manchester à beira-mar – e Steven Zaillian – responsável por trabalhos com grande número de personagens e ações, como O gângster e Êxodo, de Ridley Scott – exerce uma grande influência para o resultado, apostando na interconexão entre vários núcleos narrativos que vão se aproximando e se completando.
A figura de Bill traz à memória exatamente, no figurino, a de Lincoln e ele se cerca de homens como se fosse uma figura pública capaz de, ao contrário do presidente dos Estados Unidos fez, manter as pessoas divididas em gangues para uma tensão constante, e não parece por acaso que ele também fica atirando facas em imagens que encontra do político. Num passeio inicial que faz pelas ruas, com os fogos de artifício ao fundo, Bill evoca Max Cady de Cabo do medo. Scorsese, em termos de estilo, não explora tanto seus travellings, preferindo acompanhar seus personagens em quadros que evocam mais pinturas, também por causa da excelência do design de produção e dos figurinos. Sob determinado ponto de vista, é interessante como esse filme também revitaliza uma certa visão sobre a influência da religiosidade, que se manifestou antes principalmente em Kundun e se reproduziria anos mais tarde em Silêncio, também com a participação de Liam Neeson. Quando Bill chega a um determinado extremo, e Amsterdam precisa se refugiar na antiga igreja do pai, é um dos momentos mais sagazes do cinema deste século: é o diálogo entre o movimento histórico e a mudança captada por meio de certa violência misturada com uma tentativa apenas de sobreviver ao próprio tempo.

Gangs of New York, EUA, 2002 Diretor: Martin Scorsese Elenco: Leonardo DiCaprio, Daniel Day-Lewis, Cameron Diaz, Jim Broadbent, John C. Reilly, Henry Thomas, Brendan Gleeson Roteiro: Jay Cocks, Steven Zaillian, Kenneth Lonergan Fotografia: Michael Ballhaus Trilha Sonora: Howard Shore Duração: 167 min. Estúdio: Touchstone Pictures, Miramax Films,Alberto Grimaldi Productions, Initial Entertainment Group Distribuidora: Buena Vista Distribution

Além da linha vermelha (1998)

Por André Dick

Além da linha vermelha.Filme

Filme de Terrence Malick com fotografia perfeita de John Toll (responsável pelo design visual de Cloud Atlas) e elenco grandioso, Além da linha vermelha, baseado em obra de James Jones, é o retrato de um momento da Segunda Guerra Mundial, desta vez do avanço de uma tropa – Companhia C – à Batalha de Guadalcanal, em 1942, para atacar os japoneses, mas aqui sob o ponto de vista existencial, ou seja, o personagem principal, Witt (Jim Caviezel) está longe, mas não tira seu pensamento do éden da Melanésia. O interessante é como num filme de guerra Malick consegue fotografar mínimos detalhes da natureza com tanta atenção. Para ele, mais ainda do que em seus filmes iniciais, dos anos 1970, a natureza é uma metáfora da própria existência humana.
Se Malick fez um drama de guerra filosófico, retomando uma trajetória de direção interrompida vinte anos antes, com Dias de paraíso, no mesmo ano Steven Spielberg empregou a meia hora mais impactante de sua carreira no início de O resgate do soldado Ryan, que inicia com a chegada de tropas americanas à praia francesa de Omaha, defendida por alemães, com imagens espetaculares e realistas, em que Tom Hanks interpreta o líder do pelotão. Depois dessa carnificina, ele é incumbido, com alguns de seus homens, a encontrar o último filho sobrevivente da família Ryan, para que não se abata uma tragédia completa sobre ela.
Basicamente, o filme relata essa busca. Mas Spielberg, com seu habitual talento para o manejo das câmeras e a fotografia cuidada, transforma este num dos filmes de guerra mais impressionantes, graças, também, à interpretação de todo o elenco, a começar pela de Hanks, que constrói um coronel com problemas físicos na mão e quer esconder isso da tropa. Ao final, quando chegam a uma cidadezinha em ruínas, preparam uma ofensiva contra nazistas que estão para invadi-la. É aí que Spielberg melhor mostra seu talento, num verdadeiro tour de force de som e efeitos especiais.

Além da linha vermelha.Filme 4

Além da linha vermelha.Cena 4

O resgate do soldado Ryan constitui-se num filme de guerra com peso nostálgico e histórico (a cena inicial se completa na parte final), com uma certa dureza no que se refere à composição dos personagens – afinal, lida com um cenário de guerra –, mas que acaba preenchendo algumas lacunas com uma emoção calculada, rara em Spielberg, mais propenso a extravasar, o que ele faz com todos os tons permitidos a um diretor conhecido pelo olhar que tem sobre a ação. Diferente de Malick, que consegue, em Além da linha vermelha, por meio da guerra, retratar, de maneira mais densa e menos nebulosa, o que dela não faz parte. Os filmes, em sua abertura, se parecem, mas cada diretor toma suas escolhas diante das próprias características.
Malick é um cineasta que emprega os diálogos e os mínimos detalhes como o centro da ação. Desse modo, a preocupação do primeiro sargento Welsh (Sean Penn) em tirar Witt do Pacífico, da Melanésia, para reintegrá-lo no exército e guiá-lo para a ilha onde se dará o combate derradeiro, na Colina 210, peça-chave da artilharia japonesa, não passa de uma tentativa de convencer a si mesmo de que a guerra vale a pena (e certamente, ele sabe, não vale). O olhar do sargento interpretado por Hanks se direciona para a morte, e é dela que os personagens querem escapar em Além da linha vermelha, sem necessariamente conseguir.

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Além da linha vermelha.Malick.Cena 1

A percepção de Malick atravessa não apenas as paisagens, como o elenco, com uma série de astros em pontas (ficaram conhecidos os cortes que Malick impôs a atores consagrados naquele período, como Billy Bob Thornton). De maneira geral, a amplitude do cinema de Malick converge para um lugar filosófica, em que o amor e o vínculo entre as pessoas e seres humanos se desenham a distância ou em situações-limite. Embora haja sequências inteiras que remetem Além da linha vermelha a um gênero de guerra, parece que mais ainda Malick deseja uma filosofia das relações. O Tenente-Coronel Tall (Nick Nolte) fala com o general Quintard (John Travolta) – em momentos nos quais Anderson certamente se inspirou para compor O mestre –, mas a atenção de Malick está voltada para a paisagem. Do mesmo modo, Jack Bell (Ben Chaplin), está interessado mais em lembrar de sua mulher, Marty (Miranda Otto), num balanço e paisagens que seriam intensificadas em A árvore da vida e To the wonder. Temos ainda o capitão James Staros (Elias Koteas), o cabo Fife (Adrien Brody), o soldado Jack Bell (Ben Chaplin), o capitão Charles Bosche (George Clooney), o capitão John Gaff (John Cusack), o sargento Keck (Woody Harrelson), o sargento Maynard Storm (John C. Reilly) e o sargento McCron (John Savage), entre outros.
Todos os personagens têm em algum momento ligação entre si, mas Malick está certamente mais interessado no retrato que faz de imagens idílicas, do capim alto em que os soldados rastejam para atingir a colina inimiga, o cenário paradisíaco, com crocodilos, galhos em rios, ilhas minúsculas perdidas no meio do mar e árvores altas, que, no entanto, reservam uma sequência de tiros incalculável. A morte está sempre à espreita, mas, para esses personagens, a morte não significa exatamente o afastamento da natureza idílica? Para Malick, há uma presença divina em meio a um cenário caótico de guerra, e quando os homens precisam se deparar com algum corpo entregue ao verde das colinas tentam desviar seu olhar para o vento e os pássaros, ou para as lembranças, sempre ligadas a algum elemento da natureza: os raios de sol e as cortinas esvoaçantes de uma pintura de Andrew Wyeth. Não se trata, para Malick, de estetizar a guerra, mas de mostrar a solidão dela e o adensamento de trilhas solitárias em meio às árvores de uma mata fechada.

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Além da linha vermelha.Cena 1Se Coppola colocou quilos de napalm para explodir em Apocalypse now e Kubrick transformou a guerra num centro repleto de soldados sob o comando de prometer o cumprimento da morte em nome da corporação, Malick contorna todos com o simples olhar de dentro da guerra e sua reflexão, caracterizada mais pelo olhar estupefato do que pela certeza. A cada tomada de atitude em relação ao combate e cada acampamento montado, Malick está tratando da impermanência da humanidade e do modo como ela se adapta à loucura, mas apenas a controla por meio de lembranças, até que consiga aceitar, finalmente, que não passa de uma pequena ilha solitária na corrente e contra um horizonte não necessariamente aberto. O passado é tão presente quanto a invasão a Guadalcanal, pois é preciso uma justificativa, mesmo que mínima, para que se tenha chegado ali com vida. Malick não consegue retribuir esta justificativa para o espectador diante do peso dramático dos componentes que seleciona ao longo de sua obra, e não consegue se comprometer com o vazio que passa a existir depois da derrocada de um grupo de combatentes. Há um sentido forte de afastamento em Além da linha vermelha como havia sobretudo em Dias de paraíso, e é ele que consegue, ao mesmo tempo, aproximar os personagens de um Éden almejado.

In the red line, EUA, 1998 Diretor: Terrence Malick Elenco: Nick Nolte, Jim Caviezel, Sean Penn, Elias Koteas, Ben Chaplin, Dash Mihok, John Cusack, Adrien Brody, John C. Reilly, Woody Harrelson, Miranda Otto, Jared Leto, John Travolta, George Clooney, Nick Stahl, Thomas Jane, John Savage, Will Wallace, John Dee Smith, Kirk Acevedo, Penelope Allen, Kazuyoshi Sakai, Masayuki Shida, Hiroya Sugisaki, Kouji Suzuki, Tomohiro Tanji, Minoru Toyoshima, Terutake Tsuji, Jimmy Xihite, Yasuomi Yoshino, John Augwata Produção: Robert Michael Geisler, Grant Hill, John Roberdeau Roteiro: Terrence Malick Fotografia: John Toll Trilha Sonora: Hans Zimmer Duração: 170 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Fox 2000 Pictures / Phoenix Pictures / Geisler-Roberdeau

Cotação 5 estrelas