Batman (2022)

Por André Dick

Depois de Batman vs Superman e Liga da Justiça, ambos de Zack Snyder, um dos filmes que continuariam o universo estendido da DC seria The Batman, dirigido e atuado por Ben Affleck. No entanto, o ator teve problemas pessoais e a recepção crítica em geral aos projetos de Snyder acabou por afastá-lo da DC, embora tenha havido outras explicações. Para substituí-lo, a Warner apostou em Matt Reeves, que havia feito o segundo e terceiro filmes da franquia Planeta dos macacos.
Sem pertencer ao universo compartilhado da DC, Batman é um filme capaz de entregar uma nova visão narrativa sobre o personagem. Desde o início, mostrando uma narração do próprio super-herói e um clima de investigação, cerca de dois anos depois de ele aparecer como justiceiro, Reeves tenta trabalhar o personagem sob um ângulo distinto, em situações mais parecidas com as de um filme de suspense ou policial, com fotografia excepcional de Greig Fraser, de Rogue One e Duna, e grande atmosfera em geral. O Batman de Reeves, com sua faceta de detetive e seus diários, lembra muito o Rorschach de Watchmen – O filme, também de Snyder, movendo-se lentamente numa Gotham City sempre dominada pela criminalidade e sujeira nas ruas. Reeves emprega nela uma atmosfera noir, ao mesmo tempo com certa invasão da tecnologia – elementos que funcionam em conjunto sem soar forçado.

Em nenhum momento ele emprega aquela Gotham City mais clara de Nolan, principalmente em O cavaleiro das trevas, com suas sequências de assaltos a bancos em plena luz do dia, mas vai buscar inspiração na história em quadrinhos O longo dia as bruxas. O fato de o homem-morcego buscar o Charada (Paul Dano), que vem causando problemas na cidade, traz um roteiro com várias homenagens a Seven – uma vez ou outra incômoda, pois menos orgânica – e mesmo a Hammett, de Wim Wenders, dos anos 80. Essa caçada, que começa já sob uma chuva pesada, envolvendo o prefeito Don Mitchell Jr. (Rupert Penry-Jones), o leva a outros personagens, como Carmine Falcone (John Turturro), Pinguim (Colin Farrell), Gil Colson (Peter Sarsgaard), mas, principalmente, a Selina Kyle (Zoë Kravitz). As ações de Batman são mais próximas do Comissário Gordon (Jeffrey Wright), atuando quase como um detetive, coletando pistas de maneira atenta numa Gotham em que policiais e políticos estão envolvidos em grande corrupção.
Robert Pattinson é, sem dúvida, o ator que encarna Batman por mais tempo num filme, outro traço original de Reeves, fazendo a persona de Bruce Wayne quase desaparecer por trás da máscara. Affleck é o Batman mais parecido com as HQs, Pattinson o que melhor atua com o olhar. Em momentos como Wayne, ele não funciona como poderia (e em Cosmópolis fazia uma espécie de milionário perturbado com talento e até bom humor), também um pouco prejudicado pela maquiagem que remete a Lisbeth de Millennium – Os homens que não amavam as mulheres, o que desvia um pouco o foco do personagem. De qualquer modo, sua interação (breve, é verdade) com Alfred funciona, com boa atuação de Andy Serkis, que se mostra aqui melhor do que em outros momentos, extremamente concentrado, sobretudo numa sequência na qual está numa situação delicada.

Batman tem uma trilha sonora impactante de Michael Giacchino, embora a melodia principal lembre o tema do Darth Vader de Star Wars, e o design de produção remete a algumas obras de David Fincher, não apenas Seven e Millennium, mas Zodíaco, Clube da luta e Garota exemplar em especial (numa cena em que Batman encontra um grupo de desabrigados e junkies numa construção abandonada). Se fizesse parte do universo compartilhado da DC, Batman, de Matt Reeves, estaria ao lado das obras de Snyder, no qual vai buscar referências visuais por todos os lados. Tem traços do Coringa de Todd Phillips também, sobretudo no uso de efeitos sonoros no metrô. E, claro, de Nolan, sobretudo no tratamento visual de determinados trechos, como aqueles passados na delegacia e no Asilo Arkham. Ademais, pode-se dizer que numa batida de Batman em um clube noturno tem muito o clima do RoboCop de Paul Verhoeven, assim como a maneira que ele observa uma festa por meio de Selina Kyle.
Do mesmo modo, há elementos de terror que Reeves trabalhou em sua versão de Deixe-me entrar, com sua riqueza visual. Existe uma tentativa de tornar o super-herói mais presente de modo realista nos cenários, já a partir do início, quando se encontra com Gordon e policiais na cena de um crime a ser investigado, e nos equipamentos que ele usa, como uma moto e um carro que parecem resultado de um trabalho apurado na caverna onde se esconde com certo estilo underground. Em igual sintonia, as lutas soam verdadeiras. A maneira como Reeves filma sua entrada em cena remete a alguém humano com os demais presentes. A sua direção é segura, recuperando alguns traços de Nolan igualmente nos movimentos de câmera, mas com uma elegância que remete principalmente a Ridley Scott e um de seus alunos no cinema contemporâneo, Denis Villeneuve. O uso que faz de cores, como o céu alaranjado ou o vermelho de uma tocha que Batman acende em determinado momento, acompanhado do design de abajures em vários cenários, é notável. Os cenários chuvosos antecipam um clima fúnebre, que revela o estado deste Bruce Wayne mais introspectivo. Há, com isso, uma sequência numa catedral que remete à série O poderoso chefão em todos os detalhes, principalmente de iluminação, e a descoberta de Bruce de um detalhe familiar o leva a pensar se estaria sempre vivendo numa família de aparências, temática própria da trilogia de Coppola. Falcone e Pinguim intensificam uma atmosfera de obra sobre a máfia.

O que mais surpreende em Batman, no entanto, é como Reeves fez um longa de quase três horas de duração com poucas cenas de ação, uma característica já de sua obra-prima Planeta dos macacos – A guerra, o que não tira o entusiasmo do espectador em acompanhar uma linha de investigação elaborada e funcional, apesar de alguns dos diálogos escritos pelo diretor com Peter Craig tragam pouco desenvolvimento em alguns trechos, como num determinado encontro entre Wayne e Alfred, cuja psicologia não consegue ser a mais adequada, prendendo-se a conceitos como o de “medo”, já explorado devidamente por Nolan em sua trilogia. Em determinadas cenas com concentração em diálogos, parece mais um filme de Paul Thomas Anderson, nos moldes de um O mestre, do que um filme de super-heróis, com certo impacto nos closes. Não por acaso, Reeves inclui Dano, que estava em Sangue negro, para jogar contra Batman, indo na linha totalmente contrária daquela adotada por Jim Carrey para o Charada em Batman eternamente. Os encontros de Batman e Selina possuem também uma disposição interessante de argumentos, fazendo uma aproximação entre os personagens que era bem trabalhada nas versões de Burton e Nolan, mas encontra aqui um elemento de sensibilidade e se liga à infância de ambos os personagens talvez mais instigante. E é difícil saber quem atua melhor no filme, todos em ótimo momento, e Farrell irreconhecível debaixo da maquiagem.
Se cada filme do Batman conta um pouco do seu tempo, o de Matt Reeves vai na linha de um personagem que busca investigar linhas que levem à verdade de um caso sem ultrapassar limites e com uma base melancólica que dialoga muito com a melodia pesarosa de “Something in the way”, a canção do Nirvana usada para abrir parte importante da narrativa, sem nenhum traço de humor que se via em versões anteriores, como as de Michael Keaton e Christian Bale, e mesmo na de Ben Affleck. Pattinson encarna muito bem um indivíduo que busca encontrar sua personalidade, mesclando certa loucura de O farol com um afastamento da realidade notado em Cosmópolis, assim como Kravitz. Há uma tentativa de mostrá-lo como um justiceiro que não foge à lei e como uma espécie de esperança para Gotham de modo mais enfático. É preciso, com isso, viver respeitando a memória dos mortos. Ao mesmo tempo, seu apego ao passado, pelo que aconteceu com seus pais, dialoga de forma eficiente com a vida de Selina, o que cresce com a atuação dedicada de Kravitz. A fotografia de Fraser captura este momento do personagem em toda a sua relevância. E Reeves consegue, mesmo apanhando várias referências de outros cineastas, elevar seu filme a uma obra de fato com marca própria.

The Batman, EUA, 2022 Direção: Matt Reeves Elenco: Robert Pattinson, Zoë Kravitz, Paul Dano, Jeffrey Wright, John Turturro, Peter Sarsgaard, Andy Serkis, Colin Farrell Roteiro: Matt Reeves e Peter Craig Fotografia: Greig Fraser Trilha Sonora: Michael Giacchino Produção: Dylan Clark e Matt Reeves Duração: 176 min. Estúdio: DC Films, 6th & Idaho, Dylan Clark Productions Distribuidora: Warner Bros. Pictures

Transformers – O último cavaleiro (2017)

Por André Dick

A franquia Transformers já trouxe milhões a seus produtores e ao diretor Michael Bay e, apesar de perder fôlego, ainda traz boa resposta do público. Em poucas semanas de exibição, Transformers – O último cavaleiro já chegou a 517 milhões. Desde seu primeiro filme, nunca cheguei a ficar entusiasmado com os experimentos de Bay: visualmente confusos, narrativamente precários, mesmo com um visual belíssimo, principalmente o quarto, A era da extinção. Na sua origem, a grande diversão era o personagem de Shia LaBeouf e a produção de Spielberg, sempre cuidadosa na parte técnica, e ver o personagem principal correndo para todos os lados pelo menos serviu para que muitos soubessem quem são os The Strokes. Nas seguintes (O lado oculto da lua e A vingança dos derrotados), sempre nos moldes de Bay, as lutas se intensificavam, com uma porção notável de destruição, sem, por outro lado, um avanço na costura dos personagens e da mitologia dos robôs. No quarto, havia uma espécie de melhora com a troca do protagonista: Wahlberg se encaixou bem como Cade Yeager, um fazendeiro que transforma sucata em robôs, tendo de ajudar Optimus Prime contra figuras governamentais e proteger a filha, mesmo em disputa com o namorado dela, do mesmo modo que cenas de ação na China de grande competência, mais do que nos anteriores.

A história do quinto filme da série inicia em 484 d.C., mostrando o mago que acompanha o Rei Arthur (Liam Garrigan), Merlin (Stanley Tucci, já presente no anterior como Joshua Joyce, em outra participação muito boa), tendo conhecimento de uma civilização tecnologicamente avançada – pode-se adivinhar qual é. Trata-se de uma sequência interessante, remetendo também a um fragmento inicial de Prometheus, quando os cientistas buscam outras civilizações no espaço sideral.
Na Terra contemporânea, os Transformers são considerados ilegais e Optimus Prime (voz de Peter Cullen) saiu do Planeta à procura do seu criador. Um grupo de crianças, liderado por Izabella (Isabela Moner), sobrevivente da Batalha de Chicago, é salvo de uma cena de guerra por Bumblebee e Cade Yeager (Mark Wahlberg), que surgiu em A era da extinção, depois de passarem por um estádio destruído, imagem que remete diretamente a Batman – O cavaleiro das trevas ressurge. Quando Yeager leva Izabelle para um ferro-velho onde lida com alguns conhecidos, Bay movimenta a trama para uma espécie de semiapocalipse.

No espaço, Optimus Prime descobre que o mundo dos Transformers, Cybertron, se dirige à Terra, sendo que está sob o controle de Quintessa (voz de Gemma Chen). Por sua vez, um membro do TRF e ex-aliado dos Aubots, William Lennox (Josh Duhamel), negocia um acordo com Megatron (voz de Frank Welker), liberando vários Decepticons, que podem ajudar a recuperar um talismã que caiu nas mãos de Yeager. Na escapada deste, ele é abordado por Cogman, enviado por Sir Edmund Burton (o ótimo Anthony Hopkins), para que vá à Inglaterra, onde fica conhecendo a ligação que tem com os cavaleiros da Távola Redonda, assim como Viviane Wembly (Laura Haddock), professora de Oxford.
Com um humor insuspeito nos demais filmes, Transformers – O último cavaleiro mostra que 13 horas – Os soldados secretos de Benghazi não foi fruto do momento. Mesmo Sem dor, sem ganho, no qual Bay iniciou sua parceria com Wahlberg, já havia sinais de que o diretor conseguia desenvolver um bom humor interessante. Embora mantenha maneirismos inconvenientes, como a quantidade de destruição notável (e Bay é mestre nisso desde Armageddon e Pearl Harbour), este é o melhor filme da franquia, conciliando boas atuações, principalmente de Wahlberg, Haddock e Hopkins, com efeitos visuais extraordinários e uma fotografia belíssima de Jonathan Sela, quase artística, num blockbuster feito para faturar milhões.

Bay concilia imagens em interiores com externas reais ou em CGI de maneira que o espectador ingressa num universo mesclando caos e beleza plástica. Não havia até o quarto uma preocupação maior em estabelecer vínculos com a ideia de família e ela se acentua aqui. Os diálogos que estabelecem conexão com a história do rei Arthur são verdadeiramente interessantes, fazendo um apanhado mitológico interessante por meio da figura de Sir Burton – e se imagina, pela sequência inicial, o que Bay faria num filme de Idade Média em termos de ação e visual. Também há belas referências a O segredo do abismo, de James Cameron, em algumas sequências passadas no fundo do mar, com uma destreza técnica muito boa, e a Aliens – O resgate, com Yeager e Viviane em túneis segurando tochas, mais ao final. Este é um típico filme de ação pesada e fantasia, mas com certo sentimento não encontrado nos outros. Sim, há a mensagem robotizada em todos os sentidos de Optimus Prime, parecendo por vezes um anúncio de Budweiser, mas aqui ressoa algo a mais, mesmo porque ele voltou a seu planeta e deseja que a Terra não seja destruída. Para Peter Travers, é o filme “mais tóxico” do verão norte-americano; eu diria que é realmente um dos momentos de fúria em ação mais bem feitos e divertidos do ano.

Transformers – The last knight, EUA, 2017 Diretor: Michael Bay Elenco: Mark Wahlberg, Anthony Hopkins, Peter Cullen, John Goodman, Frank Welker, Laura Haddock, Josh Duhamel, Isabela Moner, Jerrod Carmichael, John Turturro, Liam Garrigan, Stanley Tucci, Erik Aadahl Roteiro: Art Marcum, Matt Holloway, Ken Nolan Fotografia: Jonathan Sela Trilha Sonora: Steve Jablonsky Produção: Matthew Cohan, Tom DeSanto, Lorenzo di Bonaventura, Don Murphy Duração: 149 min. Distribuidora: Paramount Pictures Estúdio: Paramount Pictures

 

O siciliano (1987)

Por André Dick

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A lamentável morte de Michael Cimino, aos 77 anos, no dia 2 de julho me lembrou o quanto eu admirava os filmes dele e sua maneira de fazer cinema. De O franco-atirador, passando por O portal do paraíso e O ano do dragão, até Na trilha do sol, são todos bem construídos e interpretados. Não havia visto, porém, O siciliano, mais uma obra dele que rendeu polêmica antes de seu lançamento, pois Cimino gostaria de lançar a versão sua de 150 minutos, e a Fox optou por uma mais sintética, de 115 minutos. Desentendimentos vieram à tona, e a questão foi levada à via judicial. Assisti à versão em Blu-ray do filme, lançada em março deste ano, com 146 minutos, ou seja, mais próxima da visão de Cimino. Este é um cineasta infelizmente rotulado como aquele que passou do Oscar de melhor filme e diretor a uma obra que decretou a falência da United Artists, e quase nunca analisado pelo que de fato fez, e O siciliano prova que é preciso realmente conhecer seu legado.
Baseado em romance de Mario Puzo, o mesmo de O poderoso chefão, o roteiro de Steve Shagan e Gore Vidal (não creditado), mostra a trajetória de Salvatore Giuliano (Cristopher Lambert, que pouco tempo antes fizera Greystoke e Highlander), nos anos 40, que se transforma numa referência da Sicília. Nascido em Montelepre, oeste de Palermo, uma cidade muito pobre, ele rouba dos ricos para dar aos mais necessitados, como uma espécie de Robin Hood.

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Ele já começa em alta velocidade, em Crotone, mostrando ele e seu parceiro e primo Gaspare “Aspanu” Pisciotta (John Turturro) carregando um caixão com milho para levar aos famintos camponeses, mas barrados por dois policiais. Na fuga, eles chegam ao pátio de uma duquesa local, Camilla (Barbara Sukowa), onde roubam dois cavalos para escaparem. Ferido, Giuliano se esconde num mosteiro, aos cuidados do abade Manfredi (Tom Signorelli), amigo de Aspanu. Acontece que o local é já dominado por um chefe mafioso, Don Masino Croce (Joss Ackland). Na região de Montelepre, também há o príncipe Borsa (Terence Stamp) e um interesse amoroso de Giuliano, Giovanna Ferra (Giulia Boschi), irmã de Silvio (Stanko Molnar). Suas ações passam a ser vistas com repreensão por Don Masino, do tipo que pretende obter um diploma de médico para o sobrinho sem que ele estude.
De qualquer modo, ele parece admirar Giuliano, mesmo que este se conserve escondido com seu numeroso grupo no alto das montanhas Cammaratta e faz lembrar que ninguém consegue ter domínio sobre ele: nem a máfia, nem os donos de terras nem a Igreja. Para libertar os prisioneiros do lugar, dos quais se destacam Passatempa (Andreas Katsulas) e Terranova (Derrick Branche), Giuliano enfrenta Silvestro Canio (Michael Wincott) e, aos poucos, ele precisa confrontar algumas pessoas que o traem, como o barbeiro Frisella (Trevor Ray). E sempre protegido pelo padrinho Hector Adonis (Richard Bauer), professor de literatura na Universidade de Palermo. Por sua vez, cada vez mais descontente com Giuliano, Don Masino se junta ao ministro da Justiça da Itália, Franco Trezza (Ray McAnally).

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O siciliano trabalha com alguns temas comuns na filmografia de Michael Cimino, sobre a disputa de terras, com uma discussão política e ideológica por trás, a exemplo do clássico O portal do paraíso, e a temeridade dos homens por meio da violência. Aqui, especialmente, essa temeridade se junta a uma crítica em relação à Igreja, como Coppola faria alguns anos depois em O poderoso chefão III, assim como enxerga em Giuliano uma espécie de messias totalitário, sem leis e sem discurso claro, para o povo oprimido, utilizando a violência quando bem entende. Os personagens de Cimino sempre estão em guerra, não tendo certeza sobre seus objetivos. Se dois de seus filmes remetiam diretamente ao Vietnã (O franco-atirador e Horas de desespero), este se sente mais próximo de uma análise sobre a sociedade dos anos 40 e 50 feita nos anos 70 das mais diversas formas – e que Cimino traduz para uma linguagem mais contemporânea, usando muitos cortes de montagem e não deixando exatamente clara a trama, recaptando certa simbologia (e não por acaso em plena Guerra do Afeganistão dos anos 80 há tantas referências ao comunismo). Por exemplo, Cimino retrata um acontecimento importante do 1º de maio, quando surge um grupo de pessoas nas cidades de Piani dei Greci e San Giuseppe Jato, até chegarem a uma planície chamada Portella della Ginestra. É um momento típico da filmografia de Cimino, remetendo à batalha final de O portal do paraíso.

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Lamenta-se que o roteiro hesita no momento de mesclar tais referências com os diálogos e mesmo algumas situações se sintam deslocadas. Também as figuras femininas não são trabalhadas da maneira mais interessante, colocando Giuliano em algumas situações ambíguas e não tão bem exploradas, como aquela em que encontra a duquesa Camilla, rendendo uma sequência involuntária de humor. E, mesmo nesta versão estendida, O siciliano se sente com lacunas em determinados pontos. Há elementos de grandeza, mas elas não são às vezes aproveitadas como poderiam.
Entretanto, a belíssima fotografia de Alex Thomson (Excalibur, Labirinto) capta bem a Sicília reimaginada por Cimino, assim como a trilha de David Mansfield, seu habitual colaborador, se equilibra entre a calmaria e a tensão. Fala-se que Lambert não está bem no papel (seu nome foi uma aposta pessoa do diretor), e ele nunca foi realmente um ator expressivo, mas ao mesmo tempo isso lhe proporciona a uma certa humanidade (principalmente quando se esconde entre os padres para retomar seus planos na comunidade). O siciliano tem qualidades que o afastam de qualquer consideração de que seria um desastre, pelo menos em sua versão estendida; pelo contrário, é um cinema apaixonado por imagens e tem outras atuações muito boas, como as de Bosch, Ackland, Turturro e Stamp. Cimino mais uma vez apresenta uma tentativa de dialogar com Coppola (com quem competia), e deve-se esclarecer que o romance original de Puzo trazia também os Corleone em certos pontos da história, apesar de, definitivamente, não atingir o patamar de O poderoso chefão. Ainda assim, é fascinante como Cimino consegue captar o clima dos anos 40 e 50 com uma produção menos suntuosa, baseado apenas em impressões com o trabalho de fotografia de Thomson e no desenho de produção cuidadoso de Wolf Kroger. O siciliano, como toda a filmografia de Cimino, merece uma reavaliação. É um cinema autoral cada vez mais raro.

The sicilian, EUA, 1987 Diretor: Michael Cimino Elenco: Christopher Lambert, Terence Stamp, Joss Ackland, John Turturro, Richard Bauer, Giulia Boschi, Andreas Katsulas, Derrick Branche, Michael Wincott, Trevor Ray, Ray McAnally Roteiro: Steve Shagan e Gore Vidal Fotografia: Alex Thomson Trilha Sonora: David Mansfield Produção: Joann Carelli, Michael Cimino, Bruce McNall, Sidney Beckerman Duração: 115 min. (original); 146 min. (estendida) Distribuidora: 20th Century Fox

Cotação 4 estrelas

 

Êxodo: deuses e reis (2014)

Por André Dick

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Desde Gladiador, Ridley Scott tem tentado repetir o sucesso com filmes relacionados à história da humanidade. Se no filme com Russell Crowe ele conseguia mesclar uma visão da Roma Antiga com o cinema de entretenimento de Hollywood, recebendo por ele o Oscar de melhor filme, no recente Êxodo: deuses e reis Scott tenta enfileirar as características já exibidas em Cruzada e Robin Hood. Do primeiro, há as cenas com visual magnífico incrustadas em algum ponto entre a Espanha e o Oriente Médio, e o segundo possuía a história mais densa sobre o ladrão da Floresta de Sherwood, embora não com a qualidade correspondente. Nos últimos anos, pelo menos desde o ótimo Falcão negro em perigo, Scott tem tentado produzir filmes com bastante desenvoltura e pouco espaçamento entre um e outro. Bastante criticado, Prometheus prometia trazer o cineasta a seus melhores anos, os que se situam entre Os duelistas e A lenda.
Scott nunca teve entre seus méritos o trabalho com o roteiro. Sua estreia em Os duelistas tem um visual magnífico, característico de sua obra, mas uma dificuldade de estabelecer conexões entre os personagens. O mesmo acontece em outras obras importantes suas, mas em Êxodo, pela preocupação em fazer o relato bíblico estabelecer uma ligação direta com o cinema de aventuras de Hollywood, parece que Scott não está preocupado exatamente com a história: surpreende que haja entre os roteiristas o talentoso Steven Zaillian (Tempo de despertar, A lista de Schindler e O homem que mudou o jogo). Talvez com preocupação de desagradar ao público mais religioso, Scott procura tornar seu filme muito mais propenso a não se envolver com nenhum dos lados retratados. Ou seja, Êxodo: deuses e reis lida com a narrativa bíblica de modo a não se incomodar ou ser incomodado – e, se há algumas liberdades maiores no que se refere ao Antigo Testamento, parece não ser exatamente a vontade de Scott em desafiar as versões oficiais, mas apenas para acomodar sua história a um amplo estado cinematográfico.

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É um filme ao mesmo tempo arrebatador – pela quantidade de belas imagens e um senso de design primoroso – e, pelos lapsos da história, com uma sucessão de diálogos não tão interessantes, problemático, na sua estrutura. A história inicia com uma batalha em que Moisés (Christian Bale) e Ramsés II (Joel Edgerton) terão, cada qual, um desfecho que interessa às profecias. O faraó Seti (John Turturro), pai de Ramsés II, confia mais em Moisés, no entanto o que acontece a partir daí é uma espécie de reprodução da história de Gladiador baseada nos relatos bíblicos. Moisés é enviado para Phitom, a fim de ter uma reunião com Hegep (Ben Mendelsohn), à frente dos escravos hebreus. A figura de Nun (Ben Kingsley) surge para tentar avisar Moisés sobre a profecia que o cerca, mas não consegue ser ouvido. Moisés se torna um exilado e, sem seguir nenhum preceito religioso, é procurado por Malak (Isaac Andrews), que configura a presença de Deus na história. Moisés acaba conhecendo seu amor, Zipporah (María Valverde), e recebe o chamado para defender os hebreus dos egípcios numa batalha que poderá ser épica. No entanto, são quase 130 minutos até a batalha, e Scott, além da tentativa de ser fiel ao relato bíblico, com ligeiras adaptações – e deve-se dizer que Aronofsky, em Noé, conseguia trabalhar melhor a passagem bíblica do dilúvio, com menos informações de que Scott dispõe em Êxodo – precisa fazer um filme de entretenimento.
Particularmente eficaz a atuação do elenco. Scott sempre foi um especialista em extrair boas interpretações, e Bale consegue demonstrar seu talento como em outras obras. Edgerton não tem exatamente uma sequência de diálogos, nem parece o mais adequado para o papel, mas tem certa presença de cena. E Mendelsohn é mais uma vez um vilão interessante, embora não traga exatamente nada de novo.  O restante do elenco, como o excelente Kingsley e Weaver, como a rainha Tuya, mãe de Ramsés II, aparecem desperdiçados e não ficam claras quais as intenções de Scott com os personagens suplementares. O que interessa a Scott, muito mais, é tornar a narrativa de Êxodo num conjunto de imagens espetaculares – e principalmente aquelas que lidam com Moisés em contato com as mensagens divinas, a primeira logo depois de subir uma montanha com as ovelhas, em que Scott o lança numa espécie de sono tenebroso, e a fotografia de Dariusz Wolski se encarrega de colocar Bale numa situação claustrofóbica.

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O que incomoda por vezes em Êxodo é o quanto não parece haver a conexão necessária entre alguns personagens, não apenas por causa do roteiro com lacunas, mas em razão da própria direção de Scott. Não saberia se uma versão estendida do filme – e há uma para Cruzada, do qual vi apenas o corte feito para os cinemas, irregular, considerada melhor – ajudaria a eliminar o incômodo da montagem ou das passagens mal esclarecidas. O filme, no entanto, tem alguns méritos bastante claros, além do design fundamentalmente interessante: quando são mostradas as dez pragas do Egito, Scott lida com um cinema não apenas calibrado em termos de efeitos especiais – todos, sem exceção, espetaculares –, mas impactante o suficiente para atrair a atenção do espectador. Do mesmo modo, quando Scott mostra inicialmente os personagens ou quando retrata os diálogos de Moisés com Malak, além daqueles em que revela os conflitos de Ramsés com sua cúpula política, há também bons momentos.
Scott parece reencontrar sua linha como artesão do cinema capaz de retratar cenários espetaculares, como aqueles que encontramos em suas ficções científicas (Blade Runner e Prometheus) ou em suas fantasias (A lenda). No entanto, em muitos momentos, ele opta por uma montagem que joga a narrativa para vários lados ao mesmo tempo. É uma maneira de contar que prefere muitas vezes os cortes e a ação, bastante evidentes quando se inicia a caçada aos hebreus, do que a contemplação. Nas cenas com as pragas que abatem o Egito, Scott consegue produzir sensações de espanto – como aquela que envolve os crocodilos – e coloca em prática seu talento para a reprodução de cenários históricos, como havia em 1492 – A conquista do paraíso, por exemplo, ou mesmo Cruzada, com fundo religioso. Mesmo A lenda era uma espécie de transposição para um universo fantástico do relato bíblico sobre Adão e Eva.

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Em determinados momentos, personagens desaparecem e reaparecem (a exemplo de Nun, Tuya e Josué, feito por Aaron Paul) sem motivação especial ou explicada, e as perseguições aos hebreus se sucedem com bastante barulho, numa certa desordem, mas Bale oferece ênfase à figura de Moisés quando é escolhido seu caminho, tentando reatar as pontas do roteiro proporcionado por oito mãos a Scott. E com Moisés há certamente as sequências que valem a pena, como todas em que encontra a figura de Deus em Malak, ou quando precisa enfrentar a própria humanidade para saber se deve escolher seu caminho longe da comunidade em que está estabelecido como pastor.
Se falta a síntese e a complexidade de embate que havia em Gladiador, além de personagens que não saiam de cena sem dizer exatamente a que vieram, Êxodo pelo menos se arrisca. O interessante é que possui problemas que um cineasta como Scott saberia resolver, mas aqui ele não parece estar à vontade para isso, possivelmente preocupado em descontentar correntes religiosas ou mesmo por problemas particulares (a perda de Tony, seu irmão, a quem o filme é emocionalmente dedicado). Ainda assim, Êxodo é o retrato de um cineasta que se propõe a fazer algo espetacular para ser visto – e a cena que evoca o Mar Vermelho é portentosa – e mostra uma preocupação de estabelecer eixos temporais dentro de seu cinema, desde a ficção científica, passando pelo mundo de fábulas, até retratos contemporâneos de qualidade, como Thelma & Louise, Falcão negro em perigo e Rede de mentiras. Só parece lhe faltar, em algumas obras, como as que tentam reproduzir Gladiador, o lado mais dramático que possa se encaixar com as imagens espetaculares ou a direção de arte.

Exodus: gods and kings, EUA/ESP/Reino Unido, 2014 Diretor: Ridley Scott Elenco: Christian Bale, Joel Edgerton, Aaron Paul, Sigourney Weaver, Ben Kingsley, Indira Varma, María Valverde, John Turturro, Golshifteh Farahani, Ben Mendelsohn Roteiro: Adam Cooper, Jeffrey Caine, Bill Collage, Steven Zaillian Fotografia: Dariusz Wolski Trilha Sonora: Alberto Iglesias Produção: Adam Somner, Mark Huffam, Michael Schaefer, Peter Chernin, Ridley Scott Duração: 149 min. Distribuidora: Fox Film do Brasil Estúdio: Babieka / Chernin Entertainment / Scott Free Productions

Barton Fink – Delírios de Hollywood (1991)

Por André Dick

Barton Fink.John Turturro.Filme

Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, além de premiado nas categorias de ator (John Turturro) e diretor (Joel Coen, quando Ethan ainda assinava apenas como roteirista), Barton Fink é talvez o filme mais ousado dos realizadores de Arizona nunca mais e Fargo. Numa época em que ainda eram praticamente esquecidos pelo Oscar, cujo prêmio principal ganharam com Onde os fracos não têm vez, os Coen também revelam uma transgressão acima de suas obras recentes.
Barton Fink (Turturro) é um escritor de teatro que começa a se destacar por volta de 1941, e vai para Hollywood (daqui em diante, possíveis spoilers). Instalado no Hotel Earle, vazio e perturbador (muito parecido com o Overlook, de O iluminado), em que os sapatos são colocados à porta do quarto, à espera de serem engraxados pelo atendente, Chet (Steve Buscemi), ele recebe ordens do número um do estúdio, Jack Lipnick (Michael Lerner) para criar um roteiro sobre um certo lutador de boxe, com todos os clichês que o gênero propõe. Enquanto fica sentado à frente da sua máquina antiga, Barton tenta alcançar sua imaginação, mas é impedido pelo barulho do vizinho, Charlie Meadows (John Goodman), e um papel de parede que insiste em ficar descascando. Barton é uma espécie de Joseph C. Gillis, de Crepúsculo dos deuses, com talento, mas também em busca da aceitação de Hollywood.

Barton Fink.Irmãos Coen 4

Barton Fink.Irmãos Coen

Quando liga para a recepção a fim de pedir que o vizinho não faça mais ruídos que podem tirar sua concentração, Meadows aparece à porta. Ambos conversam e Barton deseja mostrar que está acima do novo amigo, um vendedor de seguros que vê como uma representação do povo incapaz de compreender seu teatro revolucionário: “Minhas histórias não interessam a alguém como você”. O olhar de Charlie, não percebido por Barton, repreende a afirmação. Repreende mais: o filme exatamente coloca Barton e Meadows em quartos vizinhos para que possam entender o quanto são parecidos. As moscas traduzem o calor do local, assim como o corredor, a falta de inspiração, e impressiona como os Coen conseguem extrair da direção de arte de Dennis Gassner (indicada ao Oscar), apoiada na fotografia de Roger Deadkins, uma espécie de complemento à sua visão sobre a Hollywood dos anos 40, reconstituída primorosamente em seus papéis de parede, estúdios agradáveis, salões de dança animados ou melancólicos, rajadas de luz sobre a grama verde e uma estrada que contorna o parque se direcionando para o nada.
Diante da pressão, Barton procura inspiração em filmes com astros musculosos e que tratavam das lutas de boxe. Ainda precisa lidar com o supervisor de produção do filme, Ben Geisler (Tony Shalhoub), que recita frases enigmáticas, e com o braço direito de Lipnik, Lou Breeze (Jon Polito).
Numa sequência, ao estilo diferente dos Coen, Barton assiste a uma luta e seu olhar, fixo na tela, traz a desilusão de um sistema que não permite a imaginação do autor, obrigando-se a se render ao comercial. Barton ainda tenta respirar uma visão social, do proletariado, ou seja, não sabe o que esperam dele. Mais ainda complexa é sua maneira de se livrar do fato de que o diretor do estúdio quer uma história antecipa, à beira da piscina. Obviamente, Barton não a tem, e nem por isso ele deixa de prestar loas à sua condição de artista, colocando-se até mesmo contra seu subordinado fiel, Breeze. A única via de escape de Barton, no quarto abafado e com mosquitos, é o retrato de uma menina na parede, olhando para o mar, como se pertencesse a um cenário de Edward Hopper. Para o quadro, o filme se dirige toda vez que Barton Fink sente que o quarto é um lugar abafado demais para sua criatividade.

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Barton Fink.Irmãos Coen 6

Em meio à sua trajetória, ele encontra um dramaturgo conhecido, WP Mayhew (John Mahoney), que admira, e pede conselhos para conseguir colocar no papel suas ideias. O dramaturgo passou pelo mesmo que ele, é um bêbado, que mija em árvores, enquanto sua secretária, Audrey Taylor (Judy Davies), escreve seus roteiros. É por ela que Barton cria interesse.
Assim, os Coen focalizam a solidão de Barton em Los Angeles, apenas interrompida por Charlie e pela visão feminina de Audrey. Isso não o impede de ser procurado por uma dupla de detetives antissemita, em plena época de surgimento de Hitler. São esses dois policiais que, numa hora determinada, precisaram enfrentar a revanche do Hotel. Barton e Meadows são dois dos personagens mais consistentes e complexos da trajetória dos Coen porque representam, nesse sentido, a história que se passa por trás dele: o poder de Hollywood, em seu início; a proximidade da Guerra e toda a loucura que ela traz junto; o ser humano inconfiável (como indicar sua visita a parentes?). John Goodman havia atuado em Arizona nunca mais, como o bandido que escapava da prisão para raptar o bebê de Nathan (Nicolas Cage), e empreende uma atuação notável, enquanto Turturro, logo depois de Faça a coisa certa, entrega outro desempenho magnífico. E os Coen oferecem, em seu quarto filme, logo depois de Gosto de sangue, Arizona nunca mais e Ajuste final, o que eles acabaram comprovando mais adiante em filmes como O homem que não estava lá, Onde os fracos não têm vez, Fargo, O grande Lebowski e Bravura indômita: uma paixão incondicional pelo cinema e pelas formas que se movimentam nele, indo do humor ao policial noir, do suspense ao drama, da sátira a costumes a uma crítica corrosiva do sistema, seja qual for ele.

Barton Fink, EUA, 1991 Diretor: Joel Coen, Ethan Coen Elenco: John Turturro, John Goodman, John Mahoney, Judy Davis, Jon Polito, Michael Lerner, Tony Shalhoub Produção: Ethan Coen, Bill Durkin, Jim Pedas, Ted Pedas Roteiro: Joel Coen, Ethan Coen Fotografia: Roger Deakins Trilha Sonora: Carter Burwell Duração: 116 min. Distribuidora: Não definida

Cotação 4 estrelas e meia

Vencedor.Palma de Ouro no Festival de Cannes