Batman (2022)

Por André Dick

Depois de Batman vs Superman e Liga da Justiça, ambos de Zack Snyder, um dos filmes que continuariam o universo estendido da DC seria The Batman, dirigido e atuado por Ben Affleck. No entanto, o ator teve problemas pessoais e a recepção crítica em geral aos projetos de Snyder acabou por afastá-lo da DC, embora tenha havido outras explicações. Para substituí-lo, a Warner apostou em Matt Reeves, que havia feito o segundo e terceiro filmes da franquia Planeta dos macacos.
Sem pertencer ao universo compartilhado da DC, Batman é um filme capaz de entregar uma nova visão narrativa sobre o personagem. Desde o início, mostrando uma narração do próprio super-herói e um clima de investigação, cerca de dois anos depois de ele aparecer como justiceiro, Reeves tenta trabalhar o personagem sob um ângulo distinto, em situações mais parecidas com as de um filme de suspense ou policial, com fotografia excepcional de Greig Fraser, de Rogue One e Duna, e grande atmosfera em geral. O Batman de Reeves, com sua faceta de detetive e seus diários, lembra muito o Rorschach de Watchmen – O filme, também de Snyder, movendo-se lentamente numa Gotham City sempre dominada pela criminalidade e sujeira nas ruas. Reeves emprega nela uma atmosfera noir, ao mesmo tempo com certa invasão da tecnologia – elementos que funcionam em conjunto sem soar forçado.

Em nenhum momento ele emprega aquela Gotham City mais clara de Nolan, principalmente em O cavaleiro das trevas, com suas sequências de assaltos a bancos em plena luz do dia, mas vai buscar inspiração na história em quadrinhos O longo dia as bruxas. O fato de o homem-morcego buscar o Charada (Paul Dano), que vem causando problemas na cidade, traz um roteiro com várias homenagens a Seven – uma vez ou outra incômoda, pois menos orgânica – e mesmo a Hammett, de Wim Wenders, dos anos 80. Essa caçada, que começa já sob uma chuva pesada, envolvendo o prefeito Don Mitchell Jr. (Rupert Penry-Jones), o leva a outros personagens, como Carmine Falcone (John Turturro), Pinguim (Colin Farrell), Gil Colson (Peter Sarsgaard), mas, principalmente, a Selina Kyle (Zoë Kravitz). As ações de Batman são mais próximas do Comissário Gordon (Jeffrey Wright), atuando quase como um detetive, coletando pistas de maneira atenta numa Gotham em que policiais e políticos estão envolvidos em grande corrupção.
Robert Pattinson é, sem dúvida, o ator que encarna Batman por mais tempo num filme, outro traço original de Reeves, fazendo a persona de Bruce Wayne quase desaparecer por trás da máscara. Affleck é o Batman mais parecido com as HQs, Pattinson o que melhor atua com o olhar. Em momentos como Wayne, ele não funciona como poderia (e em Cosmópolis fazia uma espécie de milionário perturbado com talento e até bom humor), também um pouco prejudicado pela maquiagem que remete a Lisbeth de Millennium – Os homens que não amavam as mulheres, o que desvia um pouco o foco do personagem. De qualquer modo, sua interação (breve, é verdade) com Alfred funciona, com boa atuação de Andy Serkis, que se mostra aqui melhor do que em outros momentos, extremamente concentrado, sobretudo numa sequência na qual está numa situação delicada.

Batman tem uma trilha sonora impactante de Michael Giacchino, embora a melodia principal lembre o tema do Darth Vader de Star Wars, e o design de produção remete a algumas obras de David Fincher, não apenas Seven e Millennium, mas Zodíaco, Clube da luta e Garota exemplar em especial (numa cena em que Batman encontra um grupo de desabrigados e junkies numa construção abandonada). Se fizesse parte do universo compartilhado da DC, Batman, de Matt Reeves, estaria ao lado das obras de Snyder, no qual vai buscar referências visuais por todos os lados. Tem traços do Coringa de Todd Phillips também, sobretudo no uso de efeitos sonoros no metrô. E, claro, de Nolan, sobretudo no tratamento visual de determinados trechos, como aqueles passados na delegacia e no Asilo Arkham. Ademais, pode-se dizer que numa batida de Batman em um clube noturno tem muito o clima do RoboCop de Paul Verhoeven, assim como a maneira que ele observa uma festa por meio de Selina Kyle.
Do mesmo modo, há elementos de terror que Reeves trabalhou em sua versão de Deixe-me entrar, com sua riqueza visual. Existe uma tentativa de tornar o super-herói mais presente de modo realista nos cenários, já a partir do início, quando se encontra com Gordon e policiais na cena de um crime a ser investigado, e nos equipamentos que ele usa, como uma moto e um carro que parecem resultado de um trabalho apurado na caverna onde se esconde com certo estilo underground. Em igual sintonia, as lutas soam verdadeiras. A maneira como Reeves filma sua entrada em cena remete a alguém humano com os demais presentes. A sua direção é segura, recuperando alguns traços de Nolan igualmente nos movimentos de câmera, mas com uma elegância que remete principalmente a Ridley Scott e um de seus alunos no cinema contemporâneo, Denis Villeneuve. O uso que faz de cores, como o céu alaranjado ou o vermelho de uma tocha que Batman acende em determinado momento, acompanhado do design de abajures em vários cenários, é notável. Os cenários chuvosos antecipam um clima fúnebre, que revela o estado deste Bruce Wayne mais introspectivo. Há, com isso, uma sequência numa catedral que remete à série O poderoso chefão em todos os detalhes, principalmente de iluminação, e a descoberta de Bruce de um detalhe familiar o leva a pensar se estaria sempre vivendo numa família de aparências, temática própria da trilogia de Coppola. Falcone e Pinguim intensificam uma atmosfera de obra sobre a máfia.

O que mais surpreende em Batman, no entanto, é como Reeves fez um longa de quase três horas de duração com poucas cenas de ação, uma característica já de sua obra-prima Planeta dos macacos – A guerra, o que não tira o entusiasmo do espectador em acompanhar uma linha de investigação elaborada e funcional, apesar de alguns dos diálogos escritos pelo diretor com Peter Craig tragam pouco desenvolvimento em alguns trechos, como num determinado encontro entre Wayne e Alfred, cuja psicologia não consegue ser a mais adequada, prendendo-se a conceitos como o de “medo”, já explorado devidamente por Nolan em sua trilogia. Em determinadas cenas com concentração em diálogos, parece mais um filme de Paul Thomas Anderson, nos moldes de um O mestre, do que um filme de super-heróis, com certo impacto nos closes. Não por acaso, Reeves inclui Dano, que estava em Sangue negro, para jogar contra Batman, indo na linha totalmente contrária daquela adotada por Jim Carrey para o Charada em Batman eternamente. Os encontros de Batman e Selina possuem também uma disposição interessante de argumentos, fazendo uma aproximação entre os personagens que era bem trabalhada nas versões de Burton e Nolan, mas encontra aqui um elemento de sensibilidade e se liga à infância de ambos os personagens talvez mais instigante. E é difícil saber quem atua melhor no filme, todos em ótimo momento, e Farrell irreconhecível debaixo da maquiagem.
Se cada filme do Batman conta um pouco do seu tempo, o de Matt Reeves vai na linha de um personagem que busca investigar linhas que levem à verdade de um caso sem ultrapassar limites e com uma base melancólica que dialoga muito com a melodia pesarosa de “Something in the way”, a canção do Nirvana usada para abrir parte importante da narrativa, sem nenhum traço de humor que se via em versões anteriores, como as de Michael Keaton e Christian Bale, e mesmo na de Ben Affleck. Pattinson encarna muito bem um indivíduo que busca encontrar sua personalidade, mesclando certa loucura de O farol com um afastamento da realidade notado em Cosmópolis, assim como Kravitz. Há uma tentativa de mostrá-lo como um justiceiro que não foge à lei e como uma espécie de esperança para Gotham de modo mais enfático. É preciso, com isso, viver respeitando a memória dos mortos. Ao mesmo tempo, seu apego ao passado, pelo que aconteceu com seus pais, dialoga de forma eficiente com a vida de Selina, o que cresce com a atuação dedicada de Kravitz. A fotografia de Fraser captura este momento do personagem em toda a sua relevância. E Reeves consegue, mesmo apanhando várias referências de outros cineastas, elevar seu filme a uma obra de fato com marca própria.

The Batman, EUA, 2022 Direção: Matt Reeves Elenco: Robert Pattinson, Zoë Kravitz, Paul Dano, Jeffrey Wright, John Turturro, Peter Sarsgaard, Andy Serkis, Colin Farrell Roteiro: Matt Reeves e Peter Craig Fotografia: Greig Fraser Trilha Sonora: Michael Giacchino Produção: Dylan Clark e Matt Reeves Duração: 176 min. Estúdio: DC Films, 6th & Idaho, Dylan Clark Productions Distribuidora: Warner Bros. Pictures

Jackie (2016)

Por André Dick

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Depois de receber o Oscar de melhor atriz por Cisne negro, Natalie Portman poucas vezes teve seu talento novamente aproveitado, e se destacou, nos últimos anos, especialmente nos poucos minutos de tela em Cavaleiro de copas, de Malick, como uma das namoradas do roteirista de Hollywood Rick, feito por Christian Bale. É uma participação quase sem falas, baseada em gestos, e que Portman converte numa das melhores de sua carreira, que inclui ainda peças como O profissional, dos anos 90, as prequelas de Star Wars, Closer, V de Vingança e os dois filmes da série Thor. Uma grande atriz não precisa percorrer a calçada da fama e estar presente em tweets todos os anos como Meryl Streep: é em papéis específicos que ela consegue brilhar como poucas outras em toda a sua carreira. Neste filme do chileno Pablo Larraín, ela interpreta Jacqueline Kennedy, esposa de JFK quando aconteceu o assassinato mais tempestuoso dos Estados Unidos na década de 60, que repercute até hoje.
Basicamente, é o relato de Jackie ao jornalista Theodore H. White (Billy Crudup), quando ela lembra dos acontecimentos que marcaram o dia fatídico com seu marido e presidente (feito por Caspar Phillipson) e o que transcorreu depois, com a posse de Lyndon Johnson (John Carroll Lynch), ao lado da esposa Lady Bird (Beth Grant), a ligação com Bobby (Peter Sarsgaard), irmão do presidente, e sua amizade com a secretária social Nancy Tuckerman (Greta Gerwig) e Bill Walton (Richard E. Grant). Todas essas ligações vão se desenhando de maneira interessante pelas lentes de Larraín, captando uma atmosfera de desespero e consternação diante do ocorrido.

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Para uma obra que parece um relato histórico, Jackie possui uma profundidade no drama, graças à maneira como Portman se apresenta longe e à frente das câmeras. Ela concede uma grandeza trágica a essa primeira dama, e suas conversas com Bobby e a secretária social se transformam em referências para entendê-la, assim como quando conversa com um padre (John Hurt, excelente, em um dos seus últimos papéis). Tudo isso poderia resultar em apenas um dos tantos relatos históricos cansativos que assistimos na televisão, em que se eliminam as falhas da figura evocada para tecer um panorama perfeito.
Larraín é um diretor de talento, como já havia mostrado na sua análise sobre a disputa política em No, e já havia trabalhado no gênero de cinebiografia com Neruda, um dos favoritos ao Oscar de filme estrangeiro antes de anunciarem os pré-finalistas, contudo mais exatamente no primeiro não exibia o domínio narrativo que possui aqui. Jackie é uma obra belíssima, no sentido tanto das atuações, principalmente de Portman, capaz de rivalizar com a atuação de Huppert, quanto na parte técnica. A trilha sonora de Mica Levi (que antes apresentara um trabalho excêntrico em Sob a pele) e a fotografia de Stéphane Fontaine (de Elle) ajudam a dar uma sustentação notável, assim como o design de produção da Casa Branca: cada elemento está ali para agir em conjunto com o restante.

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Além de Larraín extrair grandes atuações de todo o elenco, o que mais chama atenção, contudo, é a maneira como o cineasta transmite as sensações de cada personagem. Há um sentido de solidão diante do inesperado, uma angústia que não consegue se desprender do corpo e puxa o enfrentamento de toda uma existência. Jackie, depois do acontecimento, vê toda sua vida se transformar em horas, e o que lhe resta é tentar projetar imediatamente o que pode acontecer a seguir. O roteiro de Noah Oppenheim (o mesmo, surpreendentemente, de Maze Runner) é eficaz na maneira como liga passado e presente (o da entrevista) e como deixa algumas lacunas para o espectador preencher, sobretudo quando Jacqueline precisa preparar o enterro do marido. O político, que existia por exemplo em JFK, de Oliver Stone, acaba sendo diluído em meio a comportamentos de bastidores que oscilam entre o drama implacável e a simples necessidade de esquecer o que aconteceu.
Larraín transforma cenas aparentemente simples, como a chegada dos Kennedy ao Texas, numa aula de ligar cinema e história, sempre aproximando a câmera das reações de Jackie e dando oportunidade a Portman de entregar nuances que não seriam vistas de outra maneira. Outro bom momento, nesse sentido, é quando ela conversa com o motorista do carro que transporta o caixão de JFK e presencia o silêncio abalado de Bobby, uma figura que empunha determinado poder capaz de fazer Lyndon Johnson se curvar em sua cadeira e cujos negócios, como lembra Jackie, não são plenamente estabelecidos. O belo figurino que ela veste é como se fosse um contraponto à sua angústia, mais exatamente quando ela chega ao quarto da Casa Branca depois do assassinato e visualiza as manchas de sangue nele. Há uma primeira dama que aparece em frente às câmeras, forçando uma fala perfeita, quase robótica, e outra justificadamente abalada, nos bastidores.

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Mas atenta, principalmente, a alguns momentos-chave, por exemplo quando Jackie se limpa em frente a um espelho depois do atentado e quando testemunha a passagem de poder, como se estivesse, num prazo curto de tempo, saindo da história para ingressar no temido esquecimento. Muitas vezes, ela compara o que está acontecendo a ele com o que aconteceu a Abraham Lincoln, e há uma ligação disso com o momento em que ela e JFK recebem uma equipe de TV na Casa Branca para mostrar a reforma que foi realizada nela, em razão de Jackie, quando se criou um quarto e a conservação de peças históricos desse presidente referencial para a extinção da escravatura, como já vimos em Lincoln. Há breves entraves nessa sequência em relação ao restante da narrativa, assim como é mostrada a entrevista com o jornalista, que poderiam servir apenas como introdução.
No entanto, em relação a alguma tentativa de tornar as imagens de JFK e Jackie em irretocáveis, nada mais falso: a coragem aqui se mostra em revelar como o centro do poder desaba diante de uma tragédia incontornável para uma população e uma conversa gentil com os filhos se mostra o resquício de uma liberdade ainda a ser guardada. Larraín aprimora isso com a fotografia de Fontaine, que parece misturar os trabalhos de Malick, Noé e, sobretudo, Reygadas (principalmente nos tons das cores, a exemplo daquele momento em que Jacqueline corre atrás de seus filhos). O clima chuvoso de Washington, com suas árvores e gramados, com o clima fúnebre, também ajuda a transmitir, por outro lado, a angústia enfocada: todos esses elementos tornam Jackie num filme de raríssimo impacto.

Jackie, CHI/EUA/FRA, 2016 Diretor: Pablo Larraín Elenco: Natalie Portman, Billy Crudup, Peter Sarsgaard, Greta Gerwig, John Hurt, John Carroll Lynch, Beth Grant, Caspar Phillipson Roteiro: Noah Oppenheim Fotografia: Stéphane Fontaine Trilha Sonora: Mica Levi Produção: Ari Handel, Darren Aronofsky, Juan de Dios Larraín, Mickey Liddell, Pascal Caucheteux, Scott Franklin Duração: 100 min. Distribuidora: Diamond Filmes Estúdio: Jackie Productions / Jackie Productions (II)

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Blue Jasmine (2013)

Por André Dick

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Depois de seus filmes demarcando um roteiro pela Europa, a exemplo de Vicky Cristina Barcelona e Para Roma com amor, Woody Allen regressa aos Estados Unidos com Blue Jasmine, que vem sendo recebido quase como Meia-noite em Paris, sobre a descoberta de Gil Pender do passado da Cidade Luz – pelo menos, estreou bem na temporada de premiações que antecedem o Globo de Ouro e o Oscar. Ainda comparado a suas produções dos anos 80 de Allen, Blue Jasmine começa por ser um equilíbrio entre duas vertentes do diretor: aquela mais dramática e uma mais cômica. Ele poucas vezes conseguiu mesclar essas vertentes com a perícia demonstrada em Hannah e suas irmãs e Maridos e esposas – não teve êxito em filmes como Memórias –, mas se esforça para obter o mesmo resultado em Blue Jasmine, por meio de um roteiro bastante superior ao que apresentou em Para Roma com amor, um filme divertido, mas de certo modo com um ar de acabado às pressas.
Tendo à frente do elenco, como a personagem principal, a atriz Cate Blanchett, Allen mostra mais uma vez ser um diretor de atores e atrizes. Poucos atores conseguem repetir sem a mão de Allen o mesmo vigor dramático. Cate Blanchett não é uma exceção. Apesar de ter realizado vários filmes desde Elisabeth, em que chamou a atenção pela primeira vez, Blanchett consegue, aqui, obter o desempenho de sua carreira até agora (embora não o melhor do ano). Ela consegue delinear, desde o início, uma personagem situada entre o ego e os problemas que surgiram depois que seu marido, Hal (Alec Baldwin), foi preso por problemas de desvios de dinheiro, relacionados a empresas. Desempregada e sem rumo, ela procura a irmã, Ginger (Sally Hawkins), com quem nunca teve um bom relacionamento. Ambas foram adotadas, e Jasmine vem a San Francisco para tentar se recuperar emocionalmente do baque que foi a perda de toda a riqueza em que vivia. Apontando os erros da irmã em matéria de relacionamento – Ginger namora Chili (Bobby Cannavale), que tenta empurrar um amigo seu a Jasmine –, ela não consegue se contentar com o novo ambiente, porque sempre considera que merece mais. A fim de ter uma formação, ela pensa novamente em estudar, desta vez como design de interiores. No entanto, precisa trabalhar, e o emprego que surge é com um dentista (Michael Sthulbarg). Esta é a primeira etapa da tentativa de Jasmine solucionar sua vida, e o espectador, ao mesmo tempo em que compartilha da atual situação da personagem, a conhece em sua vida anterior, rodeada de reuniões e a high society.

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Allen nunca desistiu de satirizar a alta sociedade, e em Blue Jasmine não é diferente. Para ele, mais do que uma pessoa perturbada emocionalmente, Jasmine se revela a síntese de uma mulher que busca no homem apenas uma realização material. No entanto, ele consegue desfocar essa situação de maneira inteligente. Em certos momentos, imaginamos que Jasmine quer apenas uma sustentação emocional por meio dessa riqueza buscada, quando, na verdade, ela pode ser menos do que um centro vazio ao redor do qual vagam os outros personagens. Sua irmã, Ginger, é uma espécie de complemento. Indefinida entre seguir com sua vida ou agradar à opinião de Jasmine, ela acaba se situando sempre deslocada. Por mais que essas personagens pareçam, à primeira vista, agradáveis – uma com manias estranhas, que acabam até divertindo, e a outra tentando remediá-las com alguma ajuda –, como no recente Frances Ha, Woody Allen prefere a amargura de suas caracterizações. Mesmo os homens que ele coloca no caminho dessas duas irmãs são completamente desprovidos de imaginação: eles apenas repetem convenções do que se espera. Há aquele que está convencido de ser genial, Hal (mais um personagem do tipo na carreira de Baldwin); aquele que deseja uma vida perfeita e com passos para uma ampla publicidade de imagem (Peter Sarsgaard); aquele que diz estar à espera da mulher perfeita (Louis C.K.); e, finalmente, o mais romântico e menosprezado pelo jeito de se vestir, Chili. Como as mulheres, aqui, Allen desenha os homens como estereótipos. Na maior parte do tempo, entretanto, ele consegue elaborar diálogos ligeiros o suficiente para que todos pareçam estar interagindo e, sem a presença do próprio Allen no elenco, nenhum chama atenção em demasia. Mas, quando finalmente percebemos que a agilidade narrativa, exemplar, não se reproduzirá numa elaboração de personagens, o filme acaba se desencontrando.

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É estranho como, ao longo de Blue Jasmine, as impressões sobre os personagens vão mudando: em certos momentos, a personagem parece requisitar uma compreensão, mas em outros parece que, para o espectador, ela poderia e deveria enfrentar o que Allen prepara em seu caminho. Talvez daí venha o principal desequilíbrio, ou qualidade, do filme de Allen: sua personagem central pode ser ouvida, mas não se deve dar, afinal, muito espaço para que isso aconteça, pois o que se terá é uma repetição de suas escolhas anteriores. Para isso, Blanchett tem um papel realmente decisivo, pois ela consegue transitar da insegurança, passando pela depressão e insegurança, até a raiva contida contra o que lhe fizeram passar. Estranhamente, no entanto, Allen não parece ter empatia por ela – ela não é, com certeza, o alter ego de Allen, como o foi Gil Pender, ou o dramaturgo de Tiros na Broadway – e talvez por isso o filme, principalmente em seu ato final, seja o que menos lembre um filme do diretor. Para Allen, esta figura feminina é uma espécie de exemplo da autopunição, e nem sempre esta visão segue o seu olhar ao longo da narrativa (daqui em diante, spoilers). Allen parece desapontar seu lado menos amargo quando escolhe o desfecho do filme. É como se a personagem não pudesse mais dar as respostas que ele obtinha, de certo modo, com outros personagens, ou realmente devesse ficar num presente irrecuperável, a fim de escolher outro caminho.
O que se sente, no entanto, é que o terceiro ato realmente não representa o filme como um todo, e nesse sentido Blue Jasmine acaba parecendo uma obra inacabada, embora Cate Blanchett ainda esteja lá. Não se trata exatamente da escolha do diretor, mas porque, ao longo do filme, Allen usa uma série de elementos para que o espectador consiga identificar as mudanças de comportamento e tom de Jasmine em relação às pessoas, dependendo de sua situação. Quando finalmente o espectador parece entendê-la, assim como sua manipulação, ele pede para que entendamos que tudo aquilo que foi visto na verdade só teve uma responsável, reduzindo-a novamente a uma pessoa desequilibrada, sem que se elabore o que veio antes de sua vida com Hal e depois para que se chegasse naquele ponto, sendo o comportamento dela apenas falho ou não suficientemente tratado. Nesse sentido, sua situação destoa do tom ameno, embora amargo, de todo o filme, tornando-se um estudo de caso frustrante. Allen parece não querer dar espaço a um tema pesado, tentando apegar-se ao desespero da personagem e à sua autodestruição para, enfim, reduzir todos os personagens a um ponto de interrogação e conscientes de uma vida que o diretor considera medíocre. Para ele, Jasmine é uma fonte de destruição e não se deve ouvi-la nem ampará-la. A atuação de Cate Blanchett nos diz o contrário do que entrega o diretor: embora ela queira falar, ele não permite. E o Allen com tom moralista, que torna os personagens apenas em símbolos do que gostaria de transmitir – aquele de Crimes e pecados, Memórias e Match Point – é, sem dúvida, o menos atrativo, extraindo toda a energia que poderia haver na estrutura do belo roteiro de Blue Jasmine.

Blue Jasmine, EUA, 2013 Diretor: Woody Allen Elenco: Cate Blanchett, Alec Baldwin, Sally Hawkins,Bobby Cannavale, Louis C.K., Richard Conti, Michael Stuhlbarg, Peter Sarsgaard, Tammy Blanchard, Vanessa Ross Roteiro: Woody Allen Fotografia: Javier Aguirresarobe  Produção: Edward Walson, Letty Aronson, Stephen Tenenbaum Duração: 98 min. Distribuidora: Imagem Filmes Estúdio: Perdido Productions

Cotação 3 estrelas