Batman (2022)

Por André Dick

Depois de Batman vs Superman e Liga da Justiça, ambos de Zack Snyder, um dos filmes que continuariam o universo estendido da DC seria The Batman, dirigido e atuado por Ben Affleck. No entanto, o ator teve problemas pessoais e a recepção crítica em geral aos projetos de Snyder acabou por afastá-lo da DC, embora tenha havido outras explicações. Para substituí-lo, a Warner apostou em Matt Reeves, que havia feito o segundo e terceiro filmes da franquia Planeta dos macacos.
Sem pertencer ao universo compartilhado da DC, Batman é um filme capaz de entregar uma nova visão narrativa sobre o personagem. Desde o início, mostrando uma narração do próprio super-herói e um clima de investigação, cerca de dois anos depois de ele aparecer como justiceiro, Reeves tenta trabalhar o personagem sob um ângulo distinto, em situações mais parecidas com as de um filme de suspense ou policial, com fotografia excepcional de Greig Fraser, de Rogue One e Duna, e grande atmosfera em geral. O Batman de Reeves, com sua faceta de detetive e seus diários, lembra muito o Rorschach de Watchmen – O filme, também de Snyder, movendo-se lentamente numa Gotham City sempre dominada pela criminalidade e sujeira nas ruas. Reeves emprega nela uma atmosfera noir, ao mesmo tempo com certa invasão da tecnologia – elementos que funcionam em conjunto sem soar forçado.

Em nenhum momento ele emprega aquela Gotham City mais clara de Nolan, principalmente em O cavaleiro das trevas, com suas sequências de assaltos a bancos em plena luz do dia, mas vai buscar inspiração na história em quadrinhos O longo dia as bruxas. O fato de o homem-morcego buscar o Charada (Paul Dano), que vem causando problemas na cidade, traz um roteiro com várias homenagens a Seven – uma vez ou outra incômoda, pois menos orgânica – e mesmo a Hammett, de Wim Wenders, dos anos 80. Essa caçada, que começa já sob uma chuva pesada, envolvendo o prefeito Don Mitchell Jr. (Rupert Penry-Jones), o leva a outros personagens, como Carmine Falcone (John Turturro), Pinguim (Colin Farrell), Gil Colson (Peter Sarsgaard), mas, principalmente, a Selina Kyle (Zoë Kravitz). As ações de Batman são mais próximas do Comissário Gordon (Jeffrey Wright), atuando quase como um detetive, coletando pistas de maneira atenta numa Gotham em que policiais e políticos estão envolvidos em grande corrupção.
Robert Pattinson é, sem dúvida, o ator que encarna Batman por mais tempo num filme, outro traço original de Reeves, fazendo a persona de Bruce Wayne quase desaparecer por trás da máscara. Affleck é o Batman mais parecido com as HQs, Pattinson o que melhor atua com o olhar. Em momentos como Wayne, ele não funciona como poderia (e em Cosmópolis fazia uma espécie de milionário perturbado com talento e até bom humor), também um pouco prejudicado pela maquiagem que remete a Lisbeth de Millennium – Os homens que não amavam as mulheres, o que desvia um pouco o foco do personagem. De qualquer modo, sua interação (breve, é verdade) com Alfred funciona, com boa atuação de Andy Serkis, que se mostra aqui melhor do que em outros momentos, extremamente concentrado, sobretudo numa sequência na qual está numa situação delicada.

Batman tem uma trilha sonora impactante de Michael Giacchino, embora a melodia principal lembre o tema do Darth Vader de Star Wars, e o design de produção remete a algumas obras de David Fincher, não apenas Seven e Millennium, mas Zodíaco, Clube da luta e Garota exemplar em especial (numa cena em que Batman encontra um grupo de desabrigados e junkies numa construção abandonada). Se fizesse parte do universo compartilhado da DC, Batman, de Matt Reeves, estaria ao lado das obras de Snyder, no qual vai buscar referências visuais por todos os lados. Tem traços do Coringa de Todd Phillips também, sobretudo no uso de efeitos sonoros no metrô. E, claro, de Nolan, sobretudo no tratamento visual de determinados trechos, como aqueles passados na delegacia e no Asilo Arkham. Ademais, pode-se dizer que numa batida de Batman em um clube noturno tem muito o clima do RoboCop de Paul Verhoeven, assim como a maneira que ele observa uma festa por meio de Selina Kyle.
Do mesmo modo, há elementos de terror que Reeves trabalhou em sua versão de Deixe-me entrar, com sua riqueza visual. Existe uma tentativa de tornar o super-herói mais presente de modo realista nos cenários, já a partir do início, quando se encontra com Gordon e policiais na cena de um crime a ser investigado, e nos equipamentos que ele usa, como uma moto e um carro que parecem resultado de um trabalho apurado na caverna onde se esconde com certo estilo underground. Em igual sintonia, as lutas soam verdadeiras. A maneira como Reeves filma sua entrada em cena remete a alguém humano com os demais presentes. A sua direção é segura, recuperando alguns traços de Nolan igualmente nos movimentos de câmera, mas com uma elegância que remete principalmente a Ridley Scott e um de seus alunos no cinema contemporâneo, Denis Villeneuve. O uso que faz de cores, como o céu alaranjado ou o vermelho de uma tocha que Batman acende em determinado momento, acompanhado do design de abajures em vários cenários, é notável. Os cenários chuvosos antecipam um clima fúnebre, que revela o estado deste Bruce Wayne mais introspectivo. Há, com isso, uma sequência numa catedral que remete à série O poderoso chefão em todos os detalhes, principalmente de iluminação, e a descoberta de Bruce de um detalhe familiar o leva a pensar se estaria sempre vivendo numa família de aparências, temática própria da trilogia de Coppola. Falcone e Pinguim intensificam uma atmosfera de obra sobre a máfia.

O que mais surpreende em Batman, no entanto, é como Reeves fez um longa de quase três horas de duração com poucas cenas de ação, uma característica já de sua obra-prima Planeta dos macacos – A guerra, o que não tira o entusiasmo do espectador em acompanhar uma linha de investigação elaborada e funcional, apesar de alguns dos diálogos escritos pelo diretor com Peter Craig tragam pouco desenvolvimento em alguns trechos, como num determinado encontro entre Wayne e Alfred, cuja psicologia não consegue ser a mais adequada, prendendo-se a conceitos como o de “medo”, já explorado devidamente por Nolan em sua trilogia. Em determinadas cenas com concentração em diálogos, parece mais um filme de Paul Thomas Anderson, nos moldes de um O mestre, do que um filme de super-heróis, com certo impacto nos closes. Não por acaso, Reeves inclui Dano, que estava em Sangue negro, para jogar contra Batman, indo na linha totalmente contrária daquela adotada por Jim Carrey para o Charada em Batman eternamente. Os encontros de Batman e Selina possuem também uma disposição interessante de argumentos, fazendo uma aproximação entre os personagens que era bem trabalhada nas versões de Burton e Nolan, mas encontra aqui um elemento de sensibilidade e se liga à infância de ambos os personagens talvez mais instigante. E é difícil saber quem atua melhor no filme, todos em ótimo momento, e Farrell irreconhecível debaixo da maquiagem.
Se cada filme do Batman conta um pouco do seu tempo, o de Matt Reeves vai na linha de um personagem que busca investigar linhas que levem à verdade de um caso sem ultrapassar limites e com uma base melancólica que dialoga muito com a melodia pesarosa de “Something in the way”, a canção do Nirvana usada para abrir parte importante da narrativa, sem nenhum traço de humor que se via em versões anteriores, como as de Michael Keaton e Christian Bale, e mesmo na de Ben Affleck. Pattinson encarna muito bem um indivíduo que busca encontrar sua personalidade, mesclando certa loucura de O farol com um afastamento da realidade notado em Cosmópolis, assim como Kravitz. Há uma tentativa de mostrá-lo como um justiceiro que não foge à lei e como uma espécie de esperança para Gotham de modo mais enfático. É preciso, com isso, viver respeitando a memória dos mortos. Ao mesmo tempo, seu apego ao passado, pelo que aconteceu com seus pais, dialoga de forma eficiente com a vida de Selina, o que cresce com a atuação dedicada de Kravitz. A fotografia de Fraser captura este momento do personagem em toda a sua relevância. E Reeves consegue, mesmo apanhando várias referências de outros cineastas, elevar seu filme a uma obra de fato com marca própria.

The Batman, EUA, 2022 Direção: Matt Reeves Elenco: Robert Pattinson, Zoë Kravitz, Paul Dano, Jeffrey Wright, John Turturro, Peter Sarsgaard, Andy Serkis, Colin Farrell Roteiro: Matt Reeves e Peter Craig Fotografia: Greig Fraser Trilha Sonora: Michael Giacchino Produção: Dylan Clark e Matt Reeves Duração: 176 min. Estúdio: DC Films, 6th & Idaho, Dylan Clark Productions Distribuidora: Warner Bros. Pictures

Animais fantásticos – Os crimes de Grindelwald (2018)

Por André Dick

Depois de dirigir os quatro últimos filmes da série Harry Potter, David Yates estabeleceu uma parceria com a autora J. K. Rowling. Em 2016, ambos se reuniram novamente em Animais fantásticos e onde habitam, baseado num roteiro dela, a partir de um livro nos moldes de um bestiário. Nele, tínhamos a volta a um universo que se convencionou chamar de mágico e aqui parece traçar paralelos com a realidade de modo mais abrangente. Animais fantásticos e onde habitam era o primeiro filme de uma anunciada franquia composta por cinco obras, que encontra sua segunda parte em Animais fantásticos – Os crimes de Grindelwald.
O sequência se passa em 1927 e inicia mostrando o bruxo Gellert Grindelwald (Johnny Depp) sendo levado de Nova York para França, prisioneiro da MACUSA (Congresso Mágico dos Estados Unidos), a fim de ser julgado, porém no caminho é libertado por um de seus seguidores. Na Inglaterra, o magizoologista Newt Scamander (Eddie Redmayne) solicita ao Ministério Britânico da Magia o direito novamente de viajar, depois da confusão que ocasionou em sua visita a Nova York no primeiro filme. Nesse local, ele encontra o irmão Theseus (Callum Turner), que está noivo de Leta Lestrange (Zoë Kravitz), uma antiga conhecida de Newt da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, fazendo de ambos os personagens acréscimos bem-vindos, restando saber se a referência à mitologia grega no nome do irmão de Newt ajudará a explicar suas motivações.

Há notícias vindas de Paris de que Credence Barebone (Ezra Miller) está vivo, e sua presença é desejada por Grindelwald, já que ele seria o único que pode enfrentar o Professor Albus Dumbledore (Jude Law) de Hogwarts, de quem Newt foi aluno e o qual reencontra em meio à névoa londrina. Quando Newt chega à sua casa, ele encontra o casal de amigos Queenie Goldstein (Alison Sudol) e Jacob Kowalski (Dan Fogler), este sob feitiço da companheira, acentuando o humor já demonstrado na primeira parte. Ambos vieram à Europa junto com Tina (Katherine Waterston), irmã de Queenie, que está atrás de Credence em Paris, encontrando-o num show no Circus Arcanus, em que o jovem vilão é apaixonado por Nagini (Claudia Kim), uma mulher que se transforma numa cobra gigante. Tina se depara com Yusuf Kama (William Nadylam), interessado em buscar as origens do jovem. Em meio a tudo, Newt cuida dos animais fantásticos, embora sua maleta não revele, como no primeiro, tantas surpresas.

Do mesmo modo que em Animais fantásticos e onde habitam, o roteiro de J.K. Rowling é ágil, principalmente ao apresentar os personagens de maneira a despertar simpatia. Redmayne faz outra vez uma boa composição, entre o tímido e o corajoso, como Newt, expandindo ainda mais sua personalidade em sua amizade com Dumbledore. Trata-se de um personagem menos desenvolvido do que Harry Potter, porém interessante em seu comedimento e nas nuances (uma aproximação dele com Credence ao alimentar uma pequena ave é um acerto do roteiro).
Enquanto Waterston, filmada como uma atriz dos anos 20 e 30, é subaproveitada, Fogler tem um tempo de humor notável, que combina com o de Sudol, fazendo esses personagens sempre atrativos, embora não presentes como deveriam, e Law se mostra surpreendentemente discreto. Ezra Miller não tem oportunidades como no primeiro de mostrar seu talento (o roteiro não colabora), contudo tem boa presença, sempre assustadora, de acordo com Credence. Com uma trilha sonora brilhante de James Newton Howard, um figurino irretocável de Colleen Atwood (o primeiro venceu o Oscar da categoria) e fotografia novamente impecável de Phillipe Rousselot, além dos efeitos visuais de qualidade, o novo Animais fantásticos é tudo o que se esperava: um grande blockbuster. Há um uso extremamente competente de cenários londrinos e parisienses, mesmo em estúdio, captando uma atmosfera de época com rara perspicácia.

A continuidade como roteirista de Rowling se mostra altamente competente ao dosar passagens de um lirismo natural – o flashback de Newt e Leta em Hogwarts que remete imediatamente à série Harry Potter – e de uma fábula com fundo histórico – quando se evoca o futuro da humanidade num determinado momento-chave. Como no original, não há o excesso de subtramas da série Harry Potter, que muitas vezes leva o espectador a perder o fio da meada e Rowling trabalha com referências oportunas à invasão alemã em Paris durante a Segunda Guerra, deslizando entre a Torre Eiffel e o submundo da magia, quando no primeiro havia referências ao 11 de setembro, representadas antes de tudo por uma águia, que remete, na narrativa, também ao Arizona, ao velho oeste utópico da cultura norte-americana, e aqui reaparece em forma de estátua numa das sequências derradeiras. Da Paris à Áustria, Grindelwald é um Adolf Hitler no meio dos bruxos. Yates desenha uma batalha fantástica no Cemitério Pere Lachaise, de Paris, em que as cruzes se manifestam contra a maldade. Visto como um vilão fora das telas, Depp domina o personagem de maneira inquestionável, substituindo Colin Farrell à altura.

Não há muita emoção no reencontro entre Newt e Tina, principalmente quando adentram o Ministério da Magia, sendo descobertos por Leta e Theseus, tendo de se esconder num maquinário gigante, mas Yates tem uma noção equilibrada de filme que precisa se situar entre a ação, o humor e a fantasia – e o faz em doses animadoras na maior parte do tempo. Impressiona seu ritmo de composição de cada ambiente, fazendo com que os personagens pareçam imersos num universo verdadeiramente à parte. Desde o início, quando há a libertação de Grindelwald nos céus soturnos e chuvosos de Nova York, em meio a uma sequência de relâmpagos, remetendo à saga cibernética das Wachowski, e dragões desenhados em meio às gotas de chuva, passando por uma criatura marítima gigante, até o momento em que, nas ruas de Paris, Newt parece domar uma criatura que parece saída de As sete faces do Dr. Lao, dos anos 60 (assim como quando surge o Circus Arcanus), Animais fantásticos possui uma vibração fantástica, capaz de dialogar com o primeiro e anuncia o que virá. Mesmo quando os diálogos não fluem do melhor modo, é mais uma conquista de Yates e Rowling, uma fantasia capaz de aliar nostalgia e expectativa por novas aventuras desses personagens.

Fantastic beasts – The crimes of Grindelwald, EUA/ING, 2018 Diretor: David Yates Elenco: Eddie Redmayne, Katherine Waterston, Dan Fogler, Alison Sudol, Ezra Miller, Zoë Kravitz, Callum Turner, Carmen Ejogo, Claudia Kim, William Nadylam, Kevin Guthrie, Jude Law, Johnny Depp Roteiro: J. K. Rowling Fotografia: Philippe Rousselot Trilha Sonora: James Newton Howard Produção: David Heyman, J. K. Rowling, Steve Kloves, Lionel Wigram Duração: 134 min. Estúdio: Warner Bros. Pictures, Heyday Films Distribuidora: Warner Bros. Pictures

Animais fantásticos e onde habitam (2016)

Por André Dick

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Depois de dirigir os quatro últimos filmes da série Harry Potter, David Yates estabeleceu uma parceria com a autora J.K. Rowling. Agora, baseando-se no roteiro dela, a partir de um livro nos moldes de um bestiário que ela também escreveu, temos a volta a um universo que se convencionou chamar de mágico e aqui parece traçar paralelos com a realidade de modo mais abrangente. Animais fantásticos e onde habitam é o primeiro filme de uma anunciada franquia composta por cinco obras.
Em 1926, o magiozoologista Newt Scamander (Eddie Redmayne) chega de viagem a Nova York. Este início poderia lembrar Era uma vez em Nova York, na chegada da personagem de Marion Cotillard a uma América prometida, e o cuidado visual não fica distante: tudo no filme é apresentado com uma riqueza de detalhes. Durante um discurso de Mary Lou Barebone (Samantha Morton), um dos animais que ele traz em sua mala escapa; é o Niffler, que tem atração por objetos reluzentes. Newt acaba se deparando com Jacob Kowalski (Dan Fogler), um “no-maj”, um trouxa (ou seja, os não magos), que deseja ter uma padaria, e leva os doces que faz para obter um negócio no banco. Ambos acabam trocando de mala. A investigadora Tina Goldstein (Katherine Waterston) leva Newt para MACUSA (Congresso Mágico dos Estados Unidos), mas a presidente Seraphina Picquery (Carmen Ejogo) e Percival Graves (Colin Farrell) não lhe dão a devida importância.

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No entanto, várias criaturas escapam da mala, agora sob alçada de Kowalsi, atraindo Tina e Newt. Juntos, eles conhecem a irmã de Tina, Queenie (Alison Sudol, agradável). Já Mary Lou Barebone dirige um orfanato, onde ela ensina as crianças a acreditar em bruxos, entre as quais Credence Barebone (Ezra Miller, excepcional), sempre sob proteção secreta de um dos integrantes do MACUSA.
O roteiro de J.K. Rowling é ágil, principalmente em sua primeira meia hora quando apresenta os personagens de maneira a despertar simpatia. Redmayne faz uma boa composição, entre o tímido e o corajoso, como Newt, conseguindo se desvencilhar não apenas da atuação marcante de A teoria de tudo como dos trejeitos um pouco forçados de A garota dinamarquesa e, principalmente, do vilão que apresentava em O destino de Júpiter, mas é Waterston, filmada como uma atriz dos anos 20 e 30, que se destaca com sua sensibilidade vista antes em Vício inerente. Por sua vez, o coadjuvante Fogler tem um tempo de humor notável, que combina com o de Sudol, fazendo esses personagens a princípio atrativos. Com uma fotografia primorosa de Phillipe Rousselot, uma trilha sonora brilhante de James Newton Howard (sem açucarar demais as notas e evocando a trilha de John Williams de Harry Potter, assim como de Alexandre Desplat) e um figurino irretocável, Animais fantásticos e onde habitam é uma das melhores surpresas entre os blockbusters deste ano.

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É o chamado filme que tem uma finalidade comercial bem clara e ainda assim consegue ter coração. Como um não fã exatamente da série Harry Potter, apesar de reconhecer as qualidades dela, especialmente dos três últimos capítulos, esta obra, que se passa setenta anos da saga do menino com poderes supremos, sugere temas envolvendo a magia sob um ponto de vista talvez mais soturno. Há menções, claro, a Hogwarts, mas o filme se sente outro universo, ou seja, o espectador não tem nenhuma obrigação de conhecer a outra franquia para poder entendê-lo. Além disso, ele evita ser o que parecia ser anunciado: uma espécie de Jumanji dos anos 20, com animais soltos por Nova York. Ele toca mais aquele ponto em que uma figura ameaçadora que pode estar causando estragos na cidade se volta contra figuras políticas, representadas pelo senador Henry Shaw (Josh Cowdery), filho de Henry (Jon Voight).
O filme trata de uma cidade não apenas ameaçada por criaturas e sim a ser reconstruída, e pode-se destacar a beleza das imagens que dialogam com King Kong, de Peter Jackson, principalmente em seus instantes de uma enorme criatura (não daremos spoilers) que corre pelo gelo atrás de Kowalski. As cenas de ação têm um vigor interessante, já empregado por Yates nos episódios que dirigiu da série Harry Potter, mesclando a elas um tom assustador.

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Existe uma certa desenvoltura na construção dessa narrativa, passada quase completamente à noite, com a sua figura mítica da águia, conhecida em diversas fábulas. A estreia como roteirista de Rowling se mostra altamente competente ao dosar passagens de um lirismo natural – a entrada no universo dos animais fantásticos – e de quase pesadelo – quando Scamander e Tina são colocados em ameaça. Não há o excesso de subtramas da série Harry Potter, que muitas vezes leva o espectador a perder o fio da meada e Rowling trabalha com referências oportunas à Nova York transformada depois de 11 de setembro, representadas antes de tudo por essa águia, que remete, na narrativa, também ao Arizona, ao velho oeste utópico da cultura norte-americana. Há um trânsito fluente entre o drama e o humor, na figura do padeiro, por exemplo, graças à atuação de Fogler, e uma atmosfera agradável que remete ao cinema clássico, principalmente quando os personagens visitam uma taverna. Newt não aprecia exatamente os seres humanos – tampouco as figuras importantes do filme parecem gostar – e as criaturas que carrega parecem ser ameaçadoras não apenas para a cidade, mas para quem vive no universo mágico. Por outro lado, são dele os gestos de generosidade ao longo da trama e a compreensão que ele lança sobre as ameaças a Nova York são a de quem exatamente entende o que acontece em seus subterrâneos mesmo que não aparente ou finja estar distraído.

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Neste ano, Yates já havia lançado A lenda de Tarzan, que trazia a ligação do homem com a natureza: aqui, ele mostra a ligação do homem com a natureza por meio de um universo mágico e extraordinário, e a visita que fazemos ao artefato que Newt carrega é impactante na resolução dos efeitos visuais – e, com CGI ou não, são magníficos. Esse artefato (a mala) contém não apenas criaturas fantásticas, como poderia também abrigar a cidade – e no momento-chave do final ela adquire uma imponência ainda maior. Se Harry Potter teve pelo menos dois capítulos iniciais como uma espécie de teste para o elenco, este filme começa a todo ritmo, tanto com o quarteto quanto com vilões ameaçadores. Ao mesmo tempo, por seu tom agridoce, Animais fantásticos se sente igualmente também como um grande universo ainda a ser explorado com esses personagens: ele realmente envolve o espectador a ponto de nos deixar com saudade deles depois que a sessão termina.

Fantastic beasts and where to find them, EUA/ING, 2016 Direção: David Yates Elenco: Eddie Redmayne, Katherine Waterston, Dan Fogler, Alison Sudol, Ezra Miller, Colin Farrell, Zoë Kravitz, Ron Perlman, Samantha Morton, Jon Voight, Carmen Ejogo Roteiro: J.K. Rowling Fotografia: Philippe Rousselot Trilha Sonora: James Newton Howard Produção: David Heyman, J.K. Rowling, Lionel Wigram, Neil Blair, Steve Kloves Duração: 133 min. Distribuidora: Warner Bros. Estúdio: Warner Bros.

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Mad Max: Estrada da fúria (2015)

Por André Dick

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Lançado no final dos anos 70, Mad Max marcou época tanto pela visão de George Miller sobre o futuro quanto pelo ritmo e ação que ele imprimiu à narrativa, além de lançar ao estrelato Mel Gibson. Nas continuações, em 1981 e 1985, a ação continuava presente, com grandes momentos, principalmente no segundo. Não é surpresa, então, que Mad Max: Estrada da Fúria surja como um novo referencial de obra de ação, capaz de surpreender mesmo boa parcela da crítica. Que os seus minutos iniciais lembrem um trailer prolongado, também não parece um problema: George Miller, de fato, com um visual elaborado, baseando-se na fotografia de Freddie Francis feita para Duna, de David Lynch, emprega novamente um ritmo contínuo.
A história inicia com Max (Tom Hardy) sendo preso pelos War Boys e levado para a Joe’s Citadel como um doador universal. Ele tenta escapar, mas é novamente preso. Enquanto isso, o líder do lugar, Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne), indica a seu povo que Imperator Furiosa (Charlize Theron), com o cabelo raspado como se fosse a Ripley de Alien 3, deve recolher uma carga de gasolina. Ela, no entanto, rapidamente muda a rota do que faria e se embrenha no deserto mais hostil, aonde ninguém costuma ir. Furiosa parece não apenas trair, como esconder o segredo: leva consigo algumas mulheres que parecem servir apenas para dar à luz a filhos, sobretudo Splendid Angharad (Rosie Huntington-Whitleley). No seu encalço, vem Nux (Nicholas Hoult, de início bastante forte), um dos War Boys, com Mad Max preso com correntes à frente do veículo (Hardy novamente escondido atrás de uma espécie de capacete). Os primeiro terço de Mad Max é simplesmente magistral, com uma perseguição extraordinária de Joe a Furiosa, e Max tendo de entrar em conflito com ela e Nux.

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Há, ao mesmo tempo, uma influência visível de Indiana Jones e o templo da perdição (no designer da caveira na montanha, das cavernas e na tribo batendo tambores), Branca de Neve e o caçador (a água sendo lançada como litros de leite ao povo no filme em que Theron era a bruxa má) e de Duna, principalmente no controle que o vilão deseja ter sobre os clãs e a água (e não mais a gasolina, como na série original). Mas há ainda dois terços de filme para que ele termine, e Miller que, além de Mad Max, fez o lamentavelmente esquecido As bruxas de Eastwick, o ótimo drama O óleo de Lorenzo e produziu o primeiro Babe e dirigiu o segundo, parece ter esquecido sua sensibilidade dramática.
Os três primeiros Mad Max tinham como sustentação a presença de Mel Gibson. Mas aqui Hardy, além de ser, como se aponta, apenas o coadjuvante, apesar de Miller querer torná-lo sofisticado, por meio de uma síntese inicial e visões atormentadas, é um ator realmente limitado (e não estaria exagerando que mesmo Channing Tatum parece ter evoluído em Foxcatcher). Fazer um filme de ação em que a personagem feminina é a principal é uma das grandes saídas de Miller, mas é curioso que o diretor considera que um filme deve carregar o nome de um personagem masculino (de uma série bastante conhecida criada por ele mesmo) porque acha que apenas assim atrairá o grande público. Se teve realmente esse objetivo, ele parece inaugurar, dentro da discussão feita sobre o filme, o que se chama de feminismo antifeminista, e cair neste plano de discussão é julgar que Miller faz algo aqui algo de real importância conceitual, quando nunca se afasta dos lugares-comuns a que a figura feminina foi conduzida em boa parte da história do cinema quando se depara com um conflito: a de que só pode ser salva e conduzida por ações de guerra e, aqui, acelerar no deserto, com o mesmo fetiche previsível de perseguição de carros e explosões que costuma ser ligado à comunidade masculina. Desse modo, apesar de ótima atriz, Theron é apagada por uma série de clichês, afastando-se daquela que é sua referência principal: a Ripley de Sigourney Weaver, uma personagem muito melhor delineada.

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Numa narrativa em que o melhor ator é Hoult (em seu primeiro grande papel no cinema depois de Um grande garoto, ainda criança), Mad Max tem um roteiro pedregoso como as rochas com as quais os carros do filme se deparam ao longo de uma perseguição sem fim no deserto. Ele não se sente coeso, e se no início o espectador não parece ter necessidade de conhecer detalhes sobre os personagens, quando Miller tenta interromper o fluxo de ação constante, no qual não apresenta suficientemente também os vilões, entrega apenas um material expositivo, com exceção de uma belíssima sequência noturna em que Miller tenta desencavar uma homenagem a O comboio do medo, de Friedkin.
As ações dos personagens acabam sendo muito vagas diante da grandiosidade que Miller entrega na parte técnica. Neste sentido, a ação não influi no plano emocional, pois não há aqui personagens com que se preocupar. Tudo é desenvolvido, nos 80 minutos finais, de maneira que parece um anticlímax – diante do início – estendido. Ou seja, Miller não conseguirá superar os momentos iniciais e, como também não possui uma história a entregar, Mad Max se sente incompleto. Há algumas one-liners sobre esperança, encaixadas por Miller na tentativa de fazer com que esses personagens não soem opacos, mas elas se sentem deslocadas quando não há uma estrutura.
O interessante é como os problemas de um filme como Mad Max são deixados de lado, ao contrário do que aconteceu com a terceira parte de O hobbit, considerado por alguns, injustamente, uma fantasia de RPG. Diante da narrativa apresentada por Miller, não há uma negativa sequer sobre sua história sem direcionamento, enquanto se diz que Jackson, no filme que fecha a sua trilogia, teria se entregue apenas a uma batalha. No entanto, Jackson, com sua fantasia menosprezada por alguns, é um designer na construção de personagens e não meramente um criador visualmente potente. O mesmo pode-se dizer de Cristopher Nolan, que, fazendo ou não blockbusters de ação, procura modular seus personagens.

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Se Miller parece tornar o difícil em algo fácil de ser assistido, seus recursos se esgotam rapidamente, como filmar homens pendurados em varas pulando de um caminhão para outro, ou motos voando por cima de caminhões ou descendo encostas imensas, não exatamente como um recurso narrativo, mas como algo incrível, inclusive de ser feito: no momento em que se vê essas cenas, parece haver a ilusão de um filme extraordinário, pela dificuldade na filmagem – e, não se deve enganar, há muito CGI disfarçado aqui. Essas são características de filmes como O exterminador do futuro 2, de James Cameron, que marcou época nos anos 90 e, mesmo com toda sua grandiosidade, não consegue em nenhum momento superar o primeiro filme da série, com seu visual de futuro realizado com maquetes precárias. Desse modo, fazer uma ode elogiosa apenas à parte técnica de Mad Max é ignorar de maneira máxima o que sustenta o cinema. Nisso tudo, por outro lado, não se deve esquecer que este Mad Max tenha um trabalho primoroso no uso de cores, no qual o azul do céu contrasta com o laranja ou amarelo do deserto e as explosões em vermelho dialogam com o cabelo de uma das mulheres que fogem, assim como há rimas visuais entre o azul do dia e o da noite em razão da fotografia de John Seale (habitual colaborador de Miller, Peter Weir e Anthony Minghella, tendo ganho o Oscar por O paciente inglês).
É uma pena que Miller não construa tudo em acordo com algo que poderia expandir a mitologia de Furiosa e de Max: os personagens sentem-se como artifícios de uma mensagem em que mesmo Miller não parece acreditar. Em nenhum momento, há qualquer conflito existencial realmente autêntico e as figuras não se afastam de rótulos, bastante consideráveis há trinta anos atrás, quando o primeiro Mad Max saiu. Há, nela, uma busca apenas de contentar o grande público, e ocasionalmente influenciar nas bilheterias. E, ao não expor já no título, que Imperator Furiosa é a grande personagem Miller perde a oportunidade de fazer aquilo que imagina por meio das cenas de ação: inovar. Miller, na verdade, por mais que não pareça, nunca saiu de 1979. Isso é realmente se afastar totalmente de Mad Max original: uma série despretensiosa, divertida, mas ainda assim permanente. Neste sentido, se este Mad Max é o filme de ação do futuro, talvez o melhor seja apenas olhar pelo retrovisor.

Mad Max: fury road, AUS/EUA, 2015 Diretor: George Miller Elenco: Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult, Rosie Huntington-Whiteley, Zoë Kravitz, Riley Keough, Nathan Jones, Hugh Keays-Byrne Roteiro: Brendan McCarthy, George Miller, Nick Lathouris Fotografia: John Seale Trilha Sonora: Junkie XL Produção: Doug Mitchell, George Miller, P. J. Voeten Duração: 120 min. Distribuidora: Warner Bros. Estúdio: Kennedy Miller Productions / Village Roadshow Pictures

Cotação 2 estrelas e meia

 

Depois da terra (2013)

Por André Dick

Depois da terra

Depois do sucesso de O sexto sentido, e indicações ao Oscar principal e de direção, o cineasta M. Night Shyamalan teve ainda uma boa recepção, inclusive nas bilheterias, com Corpo fechado e Sinais. A partir de A vila, os elogios começaram a ficar escassos, desaparecendo quase por completo depois de A dama na água (filme que ainda parece o pior de sua carreira) e, sobretudo, O último mestre do ar, uma tentativa de adaptação dos desenhos, com o apoio da Nickelodeon e um desinteresse visível do diretor, embora ainda apresente uma série de ligações com sua obra anterior, inclusive com Fim dos tempos, suspense que fascina em alguns momentos, com o domínio da natureza sobre a vontade do homem.
De qualquer modo, parece que suas referências, ainda hoje, são dois filmes: O sexto sentido e A vila. No primeiro, Bruce Willis interpreta um psiquiatra, que vai sempre à casa de um menino (Haley Joel Osmont, excepcional), filho de uma mãe dedicada (Toni Collette), para tentar descobrir o que o perturba. É apenas motivo para o diretor encadear uma sequência de imagens assustadoras, que remetem, muitas delas, a O iluminado, de Kubrick. O menino tem visões estranhas e o espectador as compartilha, ganhando o seu mesmo sofrimento que vemos enfrentar na escola, com Shyamalan dosando bem todos os elementos e as reviravoltas, e, sobretudo, dá destaque aos enquadramentos. Quando o menino se esconde numa barraca dentro da sala, sabemos que ele enfrentará algo desconhecido – e o que tememos se materializa em imagens perfeitamente montadas. Depois de Corpo fechado e Sinais, Shyamalan realizou A vila, novamente com a tentativa de fazer um final surpresa, ao qual ficou preso durante toda sua carreira (em Fim dos tempos, ele tentaria repetir). Trata-se de um suspense com grande elenco e um tom de fábula contínuo, mostrando pessoas que moram numa comunidade campestre e não podem sair, cercada por grandes cercas e vigias, pois monstros podem, a qualquer momento, atacá-la. Para solucionar um problema, uma jovem se disponibiliza a sair da vila para buscar remédios, embrenhando-se na floresta assustadora. William Hurt e Sigourney Weaver, como os mandantes desta vila, esforçam-se ao máximo para dar credibilidade aos diálogos, e temos aqui uma das melhores atuações de Bryce Dallas Howard e Joaquin Phoenix.

Depois da terra.Filme.Ficção

Depois da terra tem, por um lado, a relação paterna que vemos em O sexto sentido (Bruce Willis, como psiquiatra, substituindo a figura do pai) – e continuaria em Corpo fechado e Sinais – e o tom de fábula que vemos em A vila, com alguns elementos de suspense e mesmo sustos. Para Shyamalan, a família é sempre um ponto de referência: o personagem destinado a ser o Avatar de O último mestre do ar desiste, em determinado momento, dos ensinamentos porque não poderia constituir família, e em Fim dos tempos, um grupo de pessoas errantes, tentando fugir do mal que atinge a todos, vaga sem rumo, tentando, porém, manter um vínculo familiar. É esse conceito que Shyamalan deposita numa espécie de relação à distância, passada no planeta Nova Prime – para onde os humanos foram depois de a Terra se tornar inabitável, uma espécie de Marte de O vingador do futuro de Verhoeven com casas em forma de tendas – sem nenhuma presença de afeto, entre o General Cypher Raige (Will Smith) e Kitai (Jaden Smith), que não foi escolhido para ser um Ranger e recebe o consolo da mãe, Faia (Sophie Okonedo). Cypher não convive com sua família e age em tempo integral como se estivesse a serviço. Com receio de não conseguir atender à sua função, ele decide levar seu filho numa missão (daqui em diante, possíveis spoilers). No trajeto, entretanto, acontece um problema e a nave é obrigado a fazer um pouso forçado exatamente na Terra, onde, segundo Cypher, todos animais existem para destruir o homem. Dali em diante, Kitai terá de mostrar se realmente foi um acerto não ser escolhido como Ranger, colocando-se à prova do medo (que parece dialogar com as toxinas das plantas de Fim dos tempos).
Para uma superprodução, Depois da terra deixa a desejar, em alguns momentos, no designer de produção (das espaçonaves) e na conclusão de algumas tomadas que poderiam ser espetaculares. O seu acerto é justamente aquilo que causava desconforto em Oblivion, ficção científica com Tom Cruise. Se o filme de Kosinski era robótico como as atitudes dos personagens, e havia nele uma aspiração a sintetizar a ficção científica dos últimos 40 anos, com uma série de referências cansativas, não apenas conceituais, mas incorporando diretamente a narrativa, Depois da terra está longe de ser original, e podemos ver referências claras a Avatar e O senhor dos anéis. No entanto, tem sensibilidade para remeter a dois filmes referenciais do gênero dos anos 80: O retorno de Jedi (as locações lembram aquelas da Lua de Endor) e Duna (no figurino de sobrevivência de Kitai, praticamente idêntico ao que se usava no planeta Arrakis, do filme de Lynch). E, como esses dois filmes, Depois da terra é uma ficção científica, mas ao mesmo tempo tem características tribais, do início dos tempos.

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Depois da terra.Filme 2

Do mesmo modo, ao contrário de Oblivion, Depois da terra deseja, com sua irreguralidade, apresentar uma espécie de tom de fábula, e a ligação familiar existente nos outros filmes de Shyamalan não transparece apenas na evidente ligação entre Cypher e Kitai, mas em várias referências. Os animais que Kitai precisa enfrentar ao longo do filme estão sempre em grupo, e quando o personagem, em determinado momento, precisa se esconder, ele acaba caindo numa caverna com desenhos rupestres e uma serpente, que remete diretamente ao símbolo que, segundo o relato bíblico, provocou a Queda do Paraíso. Os personagens de Depois da terra já sofreram esta queda há muitos anos, e com ela também se foi a ligação provocada pelos relatos de livros (no caso Moby Dick, de Melville), sempre existindo, por meio dela, um afastamento sentimental entre os personagens. E Shyamalan, como em seus outros filmes, só evidencia uma possibilidade de haver essa aproximação, que é justamente a crença em alguma fábula e alguma história que possa salvar os personagens, seja dos mortos (em O sexto sentido), dos extraterrestres (em Sinais), da realidade do vilão (em Corpo fechado), do apocalipse final (em Fim dos tempos) e do animal que ronda uma piscina (em A dama na água). Para ele, não existe a continuidade, seja da vida ou da civilização, num escopo maior, sem essa dedicação dos personagens a um determinado imaginário. O duelo final de Kitai remete a essa capacidade tanto de retomada da fantasia quanto do enfrentamento da morte passada, de sua irmã Senshi (Zoë Kravitz), que pode ter transformado sua vida e oferece bons sustos. Esta ficção de Shyamalan se ajusta dentro de um moldes previsto, e se a sua proposta poderia ser melhor desenvolvida não é pelo fato de não trazer elementos interessantes.
Seria injusto classificar as atuações de Will e Jaden Smith como as piores da sua carreira. Smith praticamente repete os trejeitos que já mostrou com força em filmes mais dramáticos, atenuados quando envereda pelo humor da série Homens de preto, e Jaden não tira a dramaticidade das sequências de ação, mesmo que seja um ator visivelmente em formação e talvez não tão adequado ao papel. Shyamalan, por sua vez, consegue, aqui, obter uma clareza maior da montagem, que é tão complicada em seus filmes iniciais (sempre com algum comportamento abrupto demais ou desfecho confiando na aceitação imediata do espectador, como em Corpo fechado), entregando, a partir dos 40 minutos finais, um crescente que não se configura morno, com a fotografia excelente, especificamente nas cenas de voo, de Peter Suschitzky (habitual colaborador de David Cronenberg e de duas ficções cult dos anos 80, cujos cenários lembram alguns deste filme de Shyamalan, O império contra-ataca e Krull) e a trilha sonora sensível de James Newton Howard (da série O senhor dos anéis). Apesar de sua irregularidade, sobretudo na metade, e do epílogo desnecessário, espantosamente simplista,  Shyamalan entrega, em Depois da terra, uma ficção científica interessante e capaz de criar diálogos.

After earth, EUA, 2013 Direção: M. Night Shyamalan Elenco: Will Smith, Jaden Smith, Sophie Okonedo, Zoë Kravitz Produção: Caleeb Pinkett, James Lassiter, Will Smith Roteiro: Gary Whitta, Stephen Gaghan Fotografia: Peter Suschitzky Trilha Sonora: James Newton Howard Duração: 100 min. Distribuidora: Sony Pictures Estúdio: Blinding Edge Pictures / Gary Whitta

Cotação 3 estrelas