Capone (2020)

Por André Dick

Capone, de Josh Trank, lançado em VOD, foi recebido com muita aversão pela crítica em geral,  e o diretor, especialmente, foi lembrado por seu envolvimento polêmico na direção de Quarteto fantástico, cuja versão própria, segundo ele, acabou se perdendo.
O filme oferece um retrato do último ano de vida do mafioso, interpretado por Tom Hardy, que vem num crescente em sua carreira, desde A origem e Batman – O cavaleiro das trevas ressurge, passando por O regresso, até Venom. Se neste último ele fazia quase um personagem cômico, no novo filme ele se mostra disposto a uma variedade de caminhos.

A trama retrata muito bem os anos 50, quando traz Capone em sua decadência física. Ele é casado com uma jovem esposa, Mae (Linda Cardellini), e tem um filho, Junior (Noel Fisher), com os quais vive em sua mansão na Flórida, visitado às vezes por um médico, Karlock (Kyle MacLachlan), e vigiado por uma equipe do FBI, liderada por Crawford (Jack Lowden) e que deseja trancafiá-lo por crimes não provados, além de estar em busca de uma quantia considerável de dinheiro. Seria ela apenas resultado apenas da inconsciência manifesta de Capone?  Ocasionalmente ele recebe telefonemas de outro filho, Tony (Mason Guccione), e também visitas do antigo amigo Johnny (Matt Dillon).
Situado entre a realidade e as alucinações de Capone, quase oníricas, nos moldes de David Lynch (o diretor de fotografia Peter Deming é o mesmo de Estrada perdida, Cidade dos sonhos e Twin Peaks – O retorno), com muita violência, Capone também traz a influência da filmografia de Paul Thomas Anderson (a atmosfera remete por vezes a O mestre), fazendo valer o fato de ser um filme independente. Também ecoa um pouco A lei da noite, de Ben Affleck, e Ajuste final, dos irmãos Coen. É um cinema que merece ser valorizado, assim como contribui seu elenco coadjuvante para o resultado final, mesmo sem ganhar destaque como o protagonista.

A resposta do público e da crítica não chega a ser surpreendente. Talvez em razão de seu fracasso à frente de Quarteto fantástico, Capone é visto como uma tentativa de ele ingressar num exercício intelectual. Em parte, pode ser verdade, mas se isso é prejudicial no cinema atual fica a questão. O roteiro de Trank não está interessado exatamente em desenvolver personagens (como os de Dillon ou MacLachlan) e sim em inserir o espectador no universo do mafioso sendo levado ao limite de sua existência, na qual tudo parece sem sentido. Hardy, para isso, possui uma atuação introvertida e, ao mesmo tempo, explosiva. Se De Niro fazia o personagem em Os intocáveis ainda no auge do mafioso, na época da Lei Seca, este Capone está mais tentando entender os fantasmas que o cercam – e uma festa no porão de uma casa parece misturar alucinações de Twin Peaks e O iluminado. E, ´para um filme sobre a máfia, ele é menos influenciado pelos clássicos de Coppola e de Scorsese do que por um certo experimentalismo, com sua tentativa de buscar uma metalinguagem sem se esvaziar nos próprios objetivos. A edição, do próprio Trank, se encarrega de encadear as sequências de modo que não percamos de vista esta mescla entre realidade e sonho.
A presença de Hardy, por vezes comedida, por vezes cômica no seu excesso trágico, pode lembrar daquela de Al Pacino de Scarface, criticada à época de seu lançamento. É uma performance disposta ao risco, e nisso se mostra eficaz. Ele confere uma tristeza e vulnerabilidade ao personagem, assim como o joga num contexto propício ao desentendimento. Há outros detalhes: em determinado momento o médico aconselha que Capone segure um pedaço de cenoura como se fosse seu charuto – e isso remete à figura do coelho de Alice no país das maravilhas – e o roupão que o mafioso usa tem a cor da jaqueta de Jack Torrance em O iluminado.

Trank já se mostrava um cineasta preocupado em estabelecer um clima melancólico em Quarteto fantástico, o que o levou certamente a seu fracasso, e não é diferente em Capone: a ruína do personagem, investigado ainda por ter sumido com milhões de dólares, mesmo ao lado da mulher e com a presença da família, é impactante e toma especial atenção mais ao final, com uma sequência que remete aos filmes dos anos 30 com especial ironia. Para completar, os valores de produção (design de produção, fotografia, figurino, por exemplo) são ótimos, remetendo a Barton Fink, segundo Trank em entrevistas uma das obras que o inspiraram, com um trabalho notável de Deming na iluminação das cenas, ligando o estado psicológico de Capone à mansão onde está. Por meio dessas sequências, Trank leva o mafioso de pesadelos durante a noite a um céu iluminado, não o tirando, porém, da mesma situação. Não há um menosprezo pelas interpretações que o espectador pode extrair da narrativa, em nenhum ponto expositiva ou excessiva. É uma pena que Capone talvez não ganhe nunca o reconhecimento que poderia; quem, no entanto, se interessar pela proposta pode apreciá-lo bastante. É um dos melhores filmes deste ano, com grande impacto.

Capone, EUA, 2020 Diretor: Josh Trank Elenco: Tom Hardy, Linda Cardellini, Jack Lowden, Noel Fisher, Kyle MacLachlan, Matt Dillon, Al Sapienza, Jack Lowden Roteiro: Josh Trank Fotografia: Peter Deming Trilha Sonora: El-P Produção: Russell Ackerman, Lawrence Bender, Aaron L. Gilbert, John Schoenfelder Duração: 104 min. Estúdio: Addictive Pictures, Bron Studios, Lawrence Bender Productions, Redbox Entertainment, Endeavor Content Distribuidora: Vertical Entertainment

Venom (2018)

Por André Dick

A corrente de filmes de super-heróis rendeu algumas das maiores bilheterias do ano, incluindo as duas principais. Se Venom segue o filão de adaptações de histórias em quadrinhos, desta vez mostrando um supervilão, pode-se lembrar que ele já apareceu em Homem-Aranha 3, o fechamento contestado da trilogia de Sam Raimi, vivido então por Topher Grace. O personagem regressa neste filme sob direção de Ruben Fleischer, que se tornou conhecido por seu cult de comédia Zumbilândia e depois teve uma má recepção com Caça aos gângsters, com um visual elaborado, tanto na direção de arte de época quanto no figurino, além do elenco que inclui Ryan Gosling e Emma Stone. Dessas duas obras, Venom recupera a parte técnica bem elaborada e um cuidado na maneira com que se desenham os personagens num ritmo vertiginoso, sem dar muita importância a explicações psicológicas ou algo do gênero.

A obra de Fleischer teve problemas em suas filmagens, muitos cortes na edição final (fala-se em 40 minutos) e um trabalho de marketing no mínimo duvidoso. Mostra como o jornalista Eddie Brock (Tom Hardy), sob a liderança do editor Jack (Ron Cephas Jones), entra em contato com a corporação Life Foundation, que investiga resquícios de vida num cometa, tendo à frente o CEO Carlton Drake (Riz Ahmed). Ele descobre haver essas pesquisas secretas num documento em posse da sua noiva, Anne Weying (Michelle Williams). Eddie se desentende com Carlton numa visita à empresa, tentando trazer a verdade à tona. Depois de algum tempo, Drake continua fazendo testes com humanos utilizando a forma de vida que caiu com o cometa, uma espécie de parasita. Diante disso, Brock é procurado por Dora Skirth (Jenny Slate), que trabalha para Drake. A partir daí, ele se envolve numa rede de acontecimentos que podem levá-lo a um momento extremamente delicado em sua vida, entre idas a um minimercado constantemente assaltado e incômodos com o vizinho afeiçoado a ligar o rock no último volume diante de seu apartamento, além de uma ida altamente nonsense a um restaurante, a fim de comer de forma desajeitada frutos do mar num aquário.

Fleischer sabe utilizar com maestria a fotografia excepcional de Matthew Libatique, habitual colaborador de Darren Aronofsky e aqui utiliza cores e neons que remetem tanto a seu trabalho em Cisne negro. Também mostra sua agilidade já mostrada nos dois primeiros Homem de ferro. Se as tomadas de efeitos visuais com a criatura que se apossa de Brock lembram as do filme Vida, um terror sobre um hospedeiro alienígena que torna caótica uma estação espacial, o humor da história, que cria um fio tênue entre os personagens, é o que mais sustenta tudo, mesmo a tentativa de dramaticidade. Para isso, a atuação de Hardy é exitosa. Um grande ator já revelado em O regresso, ele tinha bons momentos como o vilão Bane de Batman – O cavaleiro das trevas ressurge e mal aparecia em Mad Max, no entanto é aqui que com uma veia humorística muito bem dosada que ele se sobressai. Além disso, ele tem química com Williams, uma atriz que pouco aparece em blockbusters e naturalmente bem aproveitada pelo roteiro, nos momentos mais efetivos. A inclusão do seu novo namorado, Dr. Dan Lewis (Reid Scott), que tenta ajudar Brock em sua forma de Venom, é também um acerto do roteiro, fazendo o personagem central nunca se sentir antipático, mesmo sendo de fato um supervilão, assim como deposita em Ahmed, ator muito competente, revelado em O abutre, uma boa vilania.

Sustentado por um roteiro de Scott Rosenberg e Jeff Pinker, reescrito por Kelly Marcel, Venom possui uma ambientação que consegue mesclar a atmosfera urbana de uma grande cidade, no caso a mesma San Francisco de Homem-Formiga, e uma fantasia com efeitos visuais no mínimo competentes. As sequências de ação, principalmente aquelas em que o personagem se envolve em lutas, são bastante eficazes, mas nenhuma supera uma na qual ele está de moto – e sua habilidade elástica se mostra muito parecida com a sequência de moto de As aventuras de Tintim, com uma câmera panorâmica para mostrar o salto do personagem. Claro que, depois dessa produção, fica difícil colocá-lo como um vilão do Homem-Aranha em alguma aventura posterior do universo da Marvel – seja da Fox ou da Disney –, graças à intervenção de Hardy, porém é possível dizer que se trata de uma obra despretensiosa que consegue atingir seu feito de maneira interessante. Assim como sem sua grande realização cult Zumbilândia, Fleischer sabe como mesclar ação e uma montagem agilíssima, além de alguns momentos realmente tensos, entregando ao espectador parte de suas expectativas. Desse modo, Venom nunca se sente aborrecido ou em queda, entrelaçando boas situações e um núcleo bem dosado de humor.

Venom, EUA, 2018 Diretor: Ruben Fleischer Elenco: Tom Hardy, Michelle Williams, Riz Ahmed, Scott Haze, Reid Scott, Jenny Slate, Ron Cephas Jones Roteiro: Jeff Pinkner, Scott Rosenberg, Kelly Marcel Fotografia: Matthew Libatique Trilha Sonora: Ludwig Göransson Produção: Avi Arad, Matt Tolmach, Amy Pascal Duração: 112 min. Estúdio: Columbia Pictures, Marvel Entertainment, Tencent Pictures, Arad Productions, Matt Tolmach Productions, Pascal Pictures Distribuidora: Sony Pictures Releasing

Dunkirk (2017)

Por André Dick

O cineasta britânico Christopher Nolan iniciou sua carreira com o curioso thriller Following e em seguida fez Amnésia, no qual a memória fragmentada atingia o personagem central e antecipava, de certo modo, Insônia, policial com Al Pacino em busca de um assassino no Alaska, abalado por não conseguir dormir em razão da claridade permanente. Se Batman begins significou o início de uma das maiores trilogias da história do cinema, O grande truque e A origem confirmaram Nolan como uma voz capaz de mesclar técnica, visão, ousadia e riscos com a montagem de um filme. Apesar de sempre se apontar uma certa exposição em seus roteiros, sua filmografia parecia prepará-lo para a obra-prima de ficção científica que é Interestelar. Para suceder uma obra desse porte, Nolan recorreu ao gênero de guerra, trazendo para as telas a batalha de Dunkirk. A história inicia em 1940, na Segunda Guerra Mundial, com a explicação de que a França está sendo invadida pela Alemanha e milhares de soldados ficam à espera do que pode acontecer em seguida na cidade litorânea de Dunkirk.

Logo Nolan foca em Tommy (Fionn Whitehead, muito bem), jovem soldado da Inglaterra, que consegue chegar, depois alguns contratempos, à praia onde estão soldados de seu país e outros aliados (franceses, belgas e canadenses). Ele fica amigo de Gibson (Aneurin Barnard), que está enterrando um amigo seu. Ameaçados por aviões da Alemanha, os homens estão desesperados na praia. Aos dois novos amigos, se junta mais tarde Alex (Harry Styles). Alheios a esse cenário, o Comandante Bolton (Kenneth Branagh) e o Coronel Winnant (James D’Arcy) avaliam a situação, e isso significa exatamente não ter ideia ou certeza a respeito do que pode afetar esses milhares de homens sob seu comando. Por alguns instantes, principalmente no número de figurantes, Dunkirk parece remeter a Patton, dos anos 70, mas o propósito de Nolan não é obviamente fazer uma sátira de guerra. Estamos, sim, diante de uma homenagem dele a um fato histórico.
Ao mesmo tempo, vários barcos são requisitados pela Royal Navy para ajudar no salvamento. Num deles, o Moonstone, está o Sr. Dawson (Mark Rylance), junto com seu filho, Peter (Tom Glynn-Carney), e o jovem George (Barry Keoghan). No caminho para Dunkirk, eles se deparam com o soldado Shivering (Cillian Murphy, um dos atores favoritos do diretor).

Finalmente, acompanhamos também os pilotos de aviões Spitfire Farrier (Tom Hardy) e Collins (Jack Lowden), que sobrevoam Dunkirk para tentar proteger as tropas. Os três núcleos (em terra, em água e ar) se passam em tempos diferentes, requisitando do espectador uma certa atenção para desenhar o panorama geral.
O diretor de fotografia Hoyte van Hoytema, que já havia trabalhado com Nolan em Interestelar, empresta seu talento para a captura de imagens verdadeiramente realistas, fazendo algumas vezes o filme se parecer com um documentário – e se faz notável um diálogo com o clássico de guerra Overlord, dos anos 70, um dos preferidos de Nolan. Além disso, a paleta de cores escolhidas realça o figurino dos personagens e a areia da praia (inspirada em O mestre, de Paul Thomas Anderson). Por sua vez, a trilha de Hans Zimmer empresta o aspecto grandioso à narrativa. Difícil esquecer, por exemplo, os jovens carregando um ferido em determinado momento à frente de tropas enfileiradas ou o Moonstone passando ao lado de um grande navio: é como se o mínimo, o pequeno, fosse realmente o que representa a bravura de quem adentra uma guerra.

A grande questão é que Nolan, desta vez autor solitário do roteiro, parece ter desejado substituir a exposição verbal de seus filmes – muito interessante em Interestelar, por exemplo – pela superexposição de imagens. Destaca-se como nenhum personagem é trabalhado, com exceção talvez para Sr. Dawson, na melhor atuação de Rylance em sua carreira como ator de cinema. Os soldados estão sempre à mercê de uma ameaça para terem sua presença desenvolvida. Nesse sentido, os diálogos não importam, e sim o que pode acontecer quando um avião se aproxima ou quando há tiros na água, e pode-se dizer que é um dos filmes que melhor utilizam efeitos sonoros (de gritos humanos também) dos últimos tempos. Isso fornece uma tensão incontornável, porém até certo ponto, pois, não se sabendo quem são esses personagens exatamente, não há o devido envolvimento. Não se trata, por exemplo, da técnica usada por Terrence Malick, de desprover os personagens de diálogos: Malick compensa por sugestões visuais. Essa não é uma característica de Nolan: sua área de domínio é o cinema de impacto, e este normalmente em seu caso vem acompanhado por longas linhas de diálogos. É o que o caracteriza como diretor autoral. Isso se ausenta de maneira pontual em Dunkirk. Ele está mais interessado na imagem como documento do que como espaço para a inter-relação.

Mesmo na angústia e na tentativa de sobrevivência, o resultado soa um tanto frio por faltar exatamente seu toque clássico. Sintetizar personagens por meio de imagens não é necessariamente uma qualidade. Este pode ser o caso de Dunkirk, um filme moldado para ser grande e se ressente justamente de personagens e atuações capazes de provocar uma satisfação maior como cinema. Além disso, Nolan parece acentuar um problema já existente em A origem, um filme substancialmente melhor em cada palmo do que Dunkirk: a montagem é excessivamente confusa, jogando com três cenários e tempos em paralelo, sem haver sugestões suficientes para indicar qual é a próxima ameaça. Lee Smith tem um trabalho árduo aqui, pois a montagem é assessorada pela emoção dos personagens, que faltam a cada momento em que o espectador espera uma nova costura para as imagens sendo apresentadas. Quando há um encaixe mais claro para o espectador dessas ações fora de ordem, o filme cresce.
Essa emoção havia, por exemplo, no subestimado e muito mais clássico e padronizado Invencível, no qual os combates aéreos pelas lentas de Roger Deakins adquiriam um ímpeto realista e, ao mesmo tempo, cinematográfico. Ou mesmo no recente Até o último homem, de Mel Gibson, que, com todo seu maniqueísmo, criava uma perturbação por meio de sua figura principal em meio ao conflito de guerra. Para não falar de clássicos, a exemplo de Platoon, Nascido para matar, Apocalypse now, O franco-atirador, Além da linha vermelha O resgate do Soldado Ryan, todos com uma visão humana e histórica sobre a guerra, visualmente impressionantes e com desenvolvimento de personagens. Por outro lado, parece ser exatamente na sutileza que Nolan entrega uma visão diferenciada da guerra. Ao não dar tanta voz a esses personagens, ele universaliza as situações de perigo.


Nesse sentido, o personagem de Murphy, Shivering, se apresenta como aquele que, transtornado pela guerra, passa a agir de modo irracional. Também por meio dessa figura, Dunkirk é um filme de sobrevivência, como vem sendo divulgado, e a cada peça dele leva a um direcionamento maior rumo à emoção, mesmo que esta se sinta por vezes vazia. É uma obra simétrica, mas falta a ela a perturbação da guerra sem exatamente o predomínio documental e sua recomendação de idade impede cenas fortes, que seriam adequadas no contexto, sendo tudo excessivamente asséptico. Como uma visão conceitual e técnica da guerra, Dunkirk pode atingir em cheio; como fator do imponderável e da emoção, suas imagens soam um pouco remotas e mecânicas. Ele acaba tendo mais interesse quando cria paralelismos entre situações, como o dos jovens tentando colocar um barco em movimento e um piloto tentando sobreviver embaixo d’água. Também é interessante como Nolan coloca o heroísmo em escalas diferentes, por meio dos personagens da embarcação e dos homens nas praias de Dunkirk. No momento em que as ações em tempos diferentes se encontram e a trilha sonora de Zimmer se torna menos uma espécie de ruído e mais uma nostalgia de antigos filmes de guerra, é possível sentir na imagem de um piloto solitário o contraponto para a solidariedade humana.

Dunkirk, EUA/FRA/HOL/ING, 2017 Diretor: Christopher Nolan Elenco: Tom Hardy, Mark Rylance, Cillian Murphy, Kenneth Branagh, Fionn Whitehead, Aneurin Barnard, Harry Styles, James D’Arcy, Jack Lowden, Barry Keoghan Roteiro: Christopher Nolan Fotografia: Hoyte Van Hoytema Trilha Sonora: Hans Zimmer Duração: 106 min. Produção: Christopher Nolan, Emma Thomas Distribuidora: Warner Bros. Estúdio: Dombey Street Productions / Warner Bros.

 

O regresso (2015)

Por André Dick

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Logo depois de receber o Oscar por Birdman, Alejandro G. Iñárritu retoma sua filmografia com O regresso, baseado num livro de Michael Punke. É interessante como o diretor mexicano partiu de Amores brutos, uma espécie de releitura da violência de Tarantino, principalmente de Cães de aluguel e Pulp Fiction, com suas histórias cruzadas, para um messianismo de culpa em 21 gramas e um épico intimista em Babel. Logo em seguida, parece que Iñárritu buscou suas fontes originais e fez Biutiful, uma obra em que Javier Bardem tinha uma grande atuação, mas era prejudicada por certos problemas de narrativa, apesar da bela fotografia.
Em O regresso, Iñárritu resolve se voltar para a formação dos Estados Unidos, mostrando o contato do homem branco com os índios, e a maneira como isso se deu, de ambos os lados. Leonardo DiCaprio interpreta com grande eficácia o explorador e caçador de peles Hugh Glass, que em 1823, depois de uma fuga a indígenas, é atacado por um urso (esta é uma das cenas, sem exagero, mais impressionantes já feitas) e fica com o corpo completamente ferido. Sua equipe, tendo à frente Andrew Henry (Domhnall Gleeson), hesita em deixá-lo para trás. Henry ordena que dois de seus homens, John Fitzgerald (Tom Hardy) e Jim Bridger (Will Poulter), possam cuidar dele até que se busque ajuda. Além disso, Glass tem um filho de origem também indígena, meio Pawnee, Hawk (Forrest Goodluck). Em meio a isso, o líder da tribo Arikara, Cão Elk (Duane Howard), procura sua filha sequestrada, Powaqa (MelawNakehk’o). Este fio de narrativa é explorado até o limite por Iñárritu e o corroteirista Mark L. Smith. Já em Birdman, o diretor mexicano conseguia expandir uma ideia a princípio simples para um longa substancialmente potente.

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Claro que tudo poderia ser diferente se não fosse a fotografia de Emmanuel Lubezki, repetindo a parceria com o diretor que lhe deu o Oscar também da área em Birdman. Lubezki retoma aqui algumas projeções já vistas em O novo mundo, de outro parceiro seu, Malick, mas desta vez evocando um Oeste selvagem e gelado (as paisagens são do Canadá, da Argentina e dos Estados Unidos), com uma caçada imprevisível e contínua, evocando outros faroestes, como Quando os homens são homens, de Robert Altman, Dança com lobos, de Kevin Costner, e principalmente, pela grandiosidade das paisagens e pelo panorama dado a elas, O portal do paraíso, de Michael Cimino. Nem por isso, como é devido em época de premiações, ele deixa de ser visto como um filme visualmente belo com roteiro oco, além de pretensioso no sentido de que seu diretor o promove. Em termos cinematográficos, essa pretensão é necessária e atinge todos os pontos: O regresso se mostra como uma obra capaz de atrair o olhar como poucas. Num cinema moderno que pouco experimenta, o diretor de Birdman, com marketing ou não, ousa.
Impressiona, mais do que tudo, inclusive do que a atuação extremamente física e sofrida de DiCaprio, a maneira como o diretor transporta o espectador para os cenários, uma extensão da realidade. Lembro-me pessoalmente de ter visto, ainda jovem, levado pelo meu pai ao cinema, o filme A missão, e a tela grandiosa mostrando a escalada de Robert De Niro cachoeira acima arrastando uma longa carga como punição por ter matado um familiar. Não sei até que ponto aquelas cenas tinham efeitos especiais, mas tanto elas quanto os índios na mata de A missão eram próximos da realidade, e Iñárritu é o primeiro cineasta que recuperou essa sensação de filmar numa localidade, em lugares realmente perdidos ou afastados, onde o homem pouco pisou – existente nos últimos anos em raros filmes, como Essential killing, com Vincent Gallo.

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Isso é uma grande solução para o filme, pois ele possui uma atmosfera que ajuda a contar a histórias daqueles personagens e da vingança do personagem depois de suas cenas desesperadas de sobrevivência. Mesmo a maneira como o personagem de Glass, um colecionador de peles, precisa trocar a própria vida em busca de sobrevivência diz mais do filme do que muitas imagens de Lubezki: estamos diante de alguém que precisa trocar a própria vida e recomeçá-la do zero para se vingar. A carne humana sofre, no entanto é preciso da carne animal para mantê-la. Embora DiCaprio não se apresente aqui melhor do que já aparecia em filmes como Gilbert Grape, Django livre, O grande Gatsby e O lobo de Wall Street, é um tour de force notável principalmente do ponto de vista físico e durante toda a narrativa ele consegue tornar seu personagem plausível. Quando ele fica imóvel, o espectador consegue realmente sentir aquilo pelo qual o personagem passa, acentuado pelo cenário desolador e aparentemente infinito. Enquanto Glass se perde e não tem um ponto de referência claro, o espectador tem a mesma sensação.
Além disso, não apenas as cenas são violentas, como o diretor parece ter construído uma maneira de lançar o espectador em meio a ela (como nas cenas de tiros e flechas dos índios). Todos os movimentos de câmera de Lubezki apanham os personagens em movimento, como se eles estivessem próximos, uma qualidade que já era vislumbrada em Birdman. Tudo é amplificado pela atuação dos atores, desde DiCaprio, passando por Hardy (redimindo-se de sua passagem quase em branco por Mad Max), até Gleemson, que está em vários filmes neste ano (Star Wars, Ex Machina, Brooklyn), mas aqui tem seu momento mais contundente. E Will Pouter também tem uma presença muito boa, já constatada em outros momentos.

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Se às vezes a narrativa diminui de intensidade, Iñárritu mostra uma perícia insuspeita e um traço eclético, com um filme totalmente diferente, no seu tom e metragem, de Birdman e mesmo de seus projetos anteriores, como Babel e 21 gramas. Com um olhar muito poético, ele consegue transformar o sofrimento de um homem na natureza como se ele fosse parte dela, dependente para dormir e comer (significativa a passagem em que ele precisa evocar Han Solo em O império contra-ataca). É um filme essencialmente sobre sobreviver e poder refazer a trajetória pessoal e, nesse sentido, O regresso é poderoso mesmo quando não consegue aliar as ideias concretas com algumas mais abstratas. Há uma presença religiosa nessa tentativa de Glass confrontar seus próprios limites, e as imagens que remetem a sinos e pirâmides se intensificam em suas lembranças. Não apenas pela fotografia de Lubezki, como pelas imagens, há um interesse em dialogar com A árvore da vida. Iñárritu ecoa Malick, porém não o dilui nem exatamente o imita; ele transforma, aqui, a violência numa espécie de ponto de referência da cultura dos Estados Unidos, quando se dizimaram tribos em uma escala imensa. Essa violência tem um enorme contraste com a beleza das imagens do espectador. Como podem essas paisagens esconder tanta violência? Veja-se a pilha de ossos, remetendo a imagens do Holocausto, ou as cenas de avalanche da neve, que remetem a O grande búfalo branco, dos anos 70, com Charles Bronson, numa perspectiva mais épica. É visível também a presença, em alguns quadros, de Herzog, sobretudo aquele de Fitzcarraldo e O sobrevivente. A água se mostra como uma espécie de salvação, ao mesmo tempo que leva o ser humano a lugares ainda inabitados. Com ela, o fogo mostra não apenas o que pode iluminar florestas, com homens segurando tochas, ou esquentar à margem de um rio; também é aquilo que não sobrevive ao vento e ao gelo. Junto a isso, é um filme com um punhado de cenas executadas com perfeição e que cresce na lembrança, principalmente quando alterna os motivos existenciais que perduram na narrativa. Mesmo o final, habitualmente criticado, é de uma beleza notável: Iñárritu leva o espectador a uma espécie de retomada de um passado e a necessidade, ao mesmo tempo, de abandoná-lo e seguir adiante.

The revenant, EUA, 2015 Direção: Alejandro González Iñárritu Elenco: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Domhnall Gleeson, Will Poulter, Forrest Goodluck, Lukas Haas, Dave Burchill, Melaw Nakehk’o Roteiro: Alejandro González Iñárritu, Mark L. Smith Fotografia: Emmanuel Lubezki Trilha Sonora: Bryce Dessner, Carsten Nicolai, Ryûichi Sakamoto Produção: Alejandro González Iñárritu, Arnon Milchan, David Kanter, James W. Skotchdopole, Keith Redmon, Mary Parent, Steve Golin Duração: 156 min. Distribuidora: Fox Film Estúdio: Anonymous Content / New Regency Pictures / RatPac Entertainment

Cotação 5 estrelas

 

Mad Max: Estrada da fúria (2015)

Por André Dick

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Lançado no final dos anos 70, Mad Max marcou época tanto pela visão de George Miller sobre o futuro quanto pelo ritmo e ação que ele imprimiu à narrativa, além de lançar ao estrelato Mel Gibson. Nas continuações, em 1981 e 1985, a ação continuava presente, com grandes momentos, principalmente no segundo. Não é surpresa, então, que Mad Max: Estrada da Fúria surja como um novo referencial de obra de ação, capaz de surpreender mesmo boa parcela da crítica. Que os seus minutos iniciais lembrem um trailer prolongado, também não parece um problema: George Miller, de fato, com um visual elaborado, baseando-se na fotografia de Freddie Francis feita para Duna, de David Lynch, emprega novamente um ritmo contínuo.
A história inicia com Max (Tom Hardy) sendo preso pelos War Boys e levado para a Joe’s Citadel como um doador universal. Ele tenta escapar, mas é novamente preso. Enquanto isso, o líder do lugar, Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne), indica a seu povo que Imperator Furiosa (Charlize Theron), com o cabelo raspado como se fosse a Ripley de Alien 3, deve recolher uma carga de gasolina. Ela, no entanto, rapidamente muda a rota do que faria e se embrenha no deserto mais hostil, aonde ninguém costuma ir. Furiosa parece não apenas trair, como esconder o segredo: leva consigo algumas mulheres que parecem servir apenas para dar à luz a filhos, sobretudo Splendid Angharad (Rosie Huntington-Whitleley). No seu encalço, vem Nux (Nicholas Hoult, de início bastante forte), um dos War Boys, com Mad Max preso com correntes à frente do veículo (Hardy novamente escondido atrás de uma espécie de capacete). Os primeiro terço de Mad Max é simplesmente magistral, com uma perseguição extraordinária de Joe a Furiosa, e Max tendo de entrar em conflito com ela e Nux.

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Há, ao mesmo tempo, uma influência visível de Indiana Jones e o templo da perdição (no designer da caveira na montanha, das cavernas e na tribo batendo tambores), Branca de Neve e o caçador (a água sendo lançada como litros de leite ao povo no filme em que Theron era a bruxa má) e de Duna, principalmente no controle que o vilão deseja ter sobre os clãs e a água (e não mais a gasolina, como na série original). Mas há ainda dois terços de filme para que ele termine, e Miller que, além de Mad Max, fez o lamentavelmente esquecido As bruxas de Eastwick, o ótimo drama O óleo de Lorenzo e produziu o primeiro Babe e dirigiu o segundo, parece ter esquecido sua sensibilidade dramática.
Os três primeiros Mad Max tinham como sustentação a presença de Mel Gibson. Mas aqui Hardy, além de ser, como se aponta, apenas o coadjuvante, apesar de Miller querer torná-lo sofisticado, por meio de uma síntese inicial e visões atormentadas, é um ator realmente limitado (e não estaria exagerando que mesmo Channing Tatum parece ter evoluído em Foxcatcher). Fazer um filme de ação em que a personagem feminina é a principal é uma das grandes saídas de Miller, mas é curioso que o diretor considera que um filme deve carregar o nome de um personagem masculino (de uma série bastante conhecida criada por ele mesmo) porque acha que apenas assim atrairá o grande público. Se teve realmente esse objetivo, ele parece inaugurar, dentro da discussão feita sobre o filme, o que se chama de feminismo antifeminista, e cair neste plano de discussão é julgar que Miller faz algo aqui algo de real importância conceitual, quando nunca se afasta dos lugares-comuns a que a figura feminina foi conduzida em boa parte da história do cinema quando se depara com um conflito: a de que só pode ser salva e conduzida por ações de guerra e, aqui, acelerar no deserto, com o mesmo fetiche previsível de perseguição de carros e explosões que costuma ser ligado à comunidade masculina. Desse modo, apesar de ótima atriz, Theron é apagada por uma série de clichês, afastando-se daquela que é sua referência principal: a Ripley de Sigourney Weaver, uma personagem muito melhor delineada.

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Numa narrativa em que o melhor ator é Hoult (em seu primeiro grande papel no cinema depois de Um grande garoto, ainda criança), Mad Max tem um roteiro pedregoso como as rochas com as quais os carros do filme se deparam ao longo de uma perseguição sem fim no deserto. Ele não se sente coeso, e se no início o espectador não parece ter necessidade de conhecer detalhes sobre os personagens, quando Miller tenta interromper o fluxo de ação constante, no qual não apresenta suficientemente também os vilões, entrega apenas um material expositivo, com exceção de uma belíssima sequência noturna em que Miller tenta desencavar uma homenagem a O comboio do medo, de Friedkin.
As ações dos personagens acabam sendo muito vagas diante da grandiosidade que Miller entrega na parte técnica. Neste sentido, a ação não influi no plano emocional, pois não há aqui personagens com que se preocupar. Tudo é desenvolvido, nos 80 minutos finais, de maneira que parece um anticlímax – diante do início – estendido. Ou seja, Miller não conseguirá superar os momentos iniciais e, como também não possui uma história a entregar, Mad Max se sente incompleto. Há algumas one-liners sobre esperança, encaixadas por Miller na tentativa de fazer com que esses personagens não soem opacos, mas elas se sentem deslocadas quando não há uma estrutura.
O interessante é como os problemas de um filme como Mad Max são deixados de lado, ao contrário do que aconteceu com a terceira parte de O hobbit, considerado por alguns, injustamente, uma fantasia de RPG. Diante da narrativa apresentada por Miller, não há uma negativa sequer sobre sua história sem direcionamento, enquanto se diz que Jackson, no filme que fecha a sua trilogia, teria se entregue apenas a uma batalha. No entanto, Jackson, com sua fantasia menosprezada por alguns, é um designer na construção de personagens e não meramente um criador visualmente potente. O mesmo pode-se dizer de Cristopher Nolan, que, fazendo ou não blockbusters de ação, procura modular seus personagens.

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Mad Max 23

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Se Miller parece tornar o difícil em algo fácil de ser assistido, seus recursos se esgotam rapidamente, como filmar homens pendurados em varas pulando de um caminhão para outro, ou motos voando por cima de caminhões ou descendo encostas imensas, não exatamente como um recurso narrativo, mas como algo incrível, inclusive de ser feito: no momento em que se vê essas cenas, parece haver a ilusão de um filme extraordinário, pela dificuldade na filmagem – e, não se deve enganar, há muito CGI disfarçado aqui. Essas são características de filmes como O exterminador do futuro 2, de James Cameron, que marcou época nos anos 90 e, mesmo com toda sua grandiosidade, não consegue em nenhum momento superar o primeiro filme da série, com seu visual de futuro realizado com maquetes precárias. Desse modo, fazer uma ode elogiosa apenas à parte técnica de Mad Max é ignorar de maneira máxima o que sustenta o cinema. Nisso tudo, por outro lado, não se deve esquecer que este Mad Max tenha um trabalho primoroso no uso de cores, no qual o azul do céu contrasta com o laranja ou amarelo do deserto e as explosões em vermelho dialogam com o cabelo de uma das mulheres que fogem, assim como há rimas visuais entre o azul do dia e o da noite em razão da fotografia de John Seale (habitual colaborador de Miller, Peter Weir e Anthony Minghella, tendo ganho o Oscar por O paciente inglês).
É uma pena que Miller não construa tudo em acordo com algo que poderia expandir a mitologia de Furiosa e de Max: os personagens sentem-se como artifícios de uma mensagem em que mesmo Miller não parece acreditar. Em nenhum momento, há qualquer conflito existencial realmente autêntico e as figuras não se afastam de rótulos, bastante consideráveis há trinta anos atrás, quando o primeiro Mad Max saiu. Há, nela, uma busca apenas de contentar o grande público, e ocasionalmente influenciar nas bilheterias. E, ao não expor já no título, que Imperator Furiosa é a grande personagem Miller perde a oportunidade de fazer aquilo que imagina por meio das cenas de ação: inovar. Miller, na verdade, por mais que não pareça, nunca saiu de 1979. Isso é realmente se afastar totalmente de Mad Max original: uma série despretensiosa, divertida, mas ainda assim permanente. Neste sentido, se este Mad Max é o filme de ação do futuro, talvez o melhor seja apenas olhar pelo retrovisor.

Mad Max: fury road, AUS/EUA, 2015 Diretor: George Miller Elenco: Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult, Rosie Huntington-Whiteley, Zoë Kravitz, Riley Keough, Nathan Jones, Hugh Keays-Byrne Roteiro: Brendan McCarthy, George Miller, Nick Lathouris Fotografia: John Seale Trilha Sonora: Junkie XL Produção: Doug Mitchell, George Miller, P. J. Voeten Duração: 120 min. Distribuidora: Warner Bros. Estúdio: Kennedy Miller Productions / Village Roadshow Pictures

Cotação 2 estrelas e meia

 

A origem (2010)

Por André Dick

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O diretor Christopher Nolan, da nova franquia de Batman, costuma ser visto como um designer que arrisca mudanças no meio cinematográfico, desde Amnésia. Embora não aprecie especialmente Amnésia, é em A origem que fica claro como ele faz seus filmes: uma montagem vertiginosa, na qual ele imagina delinear os personagens, com muitos efeitos especiais de qualidade e um roteiro hermético. Ou seja, Nolan tem uma maneira de dirigir e montar um filme: as peças são demasiadamente montadas, para, enfim, se ter uma ideia do todo quase sempre apenas ao final, ou, às vezes, isso também não acontece. Não se pode esquecer seu filme Insônia, em que, a fim de lidar com a mesma temática do comportamento humano guiado por uma sensação de fadiga, a mesma de Amnésia, tínhamos Al Pacino com os olhos reticentes a cada cena, na caça de um psicopata. A caçada no gelo de Insônia é uma espécie de prenúncio para o que viria a se concretizar, com toda a força, em A origem – tendo seu estilo atenuado em filmes feitos para maiores plateias, como a trilogia Batman (de qualidade) e O grande truque, em que iniciava seu estilo de montagem que se reproduziria no segundo Batman e neste A origem.
Fala-se que Terrence Malik, mas é claro que estamos falando de realizadores diferentes: Malick vê uma saída na natureza, enquanto Nolan deseja imaginar a imaginação humana como um labirinto. Neste filme, ele pretende fazer o espectador entrar em vários estágios de um sonho. Sua concepção, porém, é mais voltada a dois filmes de Steven Spielberg dos anos 2000, Inteligência artificial e Minority Report. Este segundo, principalmente, possui um tom mais sombrio e pessimista. Baseado numa história de Philip K. Dick, tem sua localização no ano de 2054, em Washington, onde precogs, que se parecem com clones, ficam embaixo d’água e antecipam crimes que serão cometidos, adiantando os  culpados à polícia. Até que um crime tem uma origem desconhecida, podendo ser o chefe dos policiais (Tom Cruise), que passa a ser perseguido por outro (Colin Farrell).

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Tem pontos interessantes: a perseguição de pequenas aranhas-robôs, por exemplo, entrando em apartamentos a fim de verificar a identidade de cada um por meio do olhar; as fugas de Cruise em meio a naves; elementos policiais tradicionais em meio à trama. Mas definitivamente não parece que Spielberg está aqui em bom momento. Ele parece habitar um futuro de pesadelo (como em Inteligência artificial), e quer deixar claro que se trata de um mundo profundamente devastado em todos os sentidos. Isso faz com que não haja simpatia pelo personagem principal, prejudicando o interesse pela trama em si. Em A origem, de Nolan, este futurismo de Spielberg, baseado na literatura de K. Dick, se converte numa espécie de charada para os sonhos de Freud, mas a concepção parece ser a mesma: os personagens de Nolan lembram os clones que ficam embaixo da água de Minority Report reportando a um futuro, com a diferença de que invadem os sonhos alheios a fim de conseguir informações secretas. Nolan deseja focalizar exatamente uma espécie de memória dos sonhos, que pode existir para antecipar qualquer ação a ser realizada.
DiCaprio é Dom Cobb recebe a proposta de um cliente, Saito (Ken Watanabe), de entrar num sonho de Robert Fischer (Cillian Murphy), a fim de implantar uma ideia (“inception” do título original) que o levará a dividir a herança de seu pai, Maurice (Pete Postlethwaite). Esta equipe é formada por Arthur (Joseph Gordon-Levitt), Ariadne (Ellen Page), recomendada por Miles (Michael Caine), mentor de Cobb e pai-de-lei,  Eames (Tom Hardy), que assume a forma de outras pessoas em sonhos, e Yusuf (Dileep Rao), que formula as drogas para que se tenha acesso aos níveis diferentes de sonhos e ao subconsciente.

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Trata-se de uma narrativa engenhosa, criativa e com potencialidade, cercada por exposição maciça de efeitos especiais (excelentes), mas com um viés artístico – que pode ser tanto interessante para alguns, quanto bastante cansativo para outros – e um jogo com a psicologia do personagem central, Cobb, sem o devido interesse, pelo menos não aquele dado por Nolan a Bruce Wayne em Batman begins, o melhor episódio da franquia dirigida por ele. Durante os seus sonhos, Cobb costuma encontrar sua esposa já desaparecida, Mal (Marion Cotillard), e costuma visualizar, sobretudo numa praia idílica, seus dois filhos brincando – a mesma imagem que dá início ao filme. E Cobb, não por acaso, é o nome do assaltante do primeiro filme de Nolan, Following.
O que se destaca, depois de uma perseguição a Peter Browning (Tom Berenger), o padrinho de Fischer, também dominado por Eames, é uma longa sequência de uma van caindo num rio, enquanto entramos e saímos do estado onírico dos personagens; a invasão a uma fortaleza no gelo; Arthur num corredor com gravidade zero enfrentando inimigos (e por pouco ele não lembra David Bowman) e remissões ao que se chama de limbo, onde os personagens, mesmo dentro dos sonhos, podem estar feridos. Mas não esqueçamos: trata-se de um filme sobre os sonhos e, enigmáticos em Lynch, passam a ser aqui lições de arquitetura. Ou seja, vale mais o contexto do que a narrativa do filme em si. Nolan tem sempre uma concepção pré-determinada para sua trama, nunca deixando uma abertura adequada para que o espectador respire: é como aquela cidade, no início do filme, se desdobrando sobre a personagem de Ariadne (ou com os objetos se espatifando no ar, numa sequência esplendorosa). Além das óbvias influências desta fase dos anos 2000 de Spielberg, A origem remete, por meio de seu pião, aos enigmas de 2001.

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No entanto, Nolan não se baseia, como Kubrick, no conceito apenas como referência artística: ele deseja também adaptar seu simbolismo a uma espécie de metáfora pop. Esta faceta pop contrasta, em parte, com o peso expositivo do roteiro de sua própria autoria, sobretudo quando Cobb decide montar sua equipe e são dadas a ele inúmeras argumentações sobre a arquitetura simétrica do trabalho a ser realizado. Toda esta exposição, ao mesmo tempo em que expõe uma complexidade, um atrativo, extrai a energia de alguns diálogos e das situações; tudo parece excessivamente calculado, e os personagens se movem de maneira racional até o limite. Da metade para o final, quase não há emoções ressoando entre eles, apenas ideias conceituais de Nolan, algumas brilhantes (como a analogia entre a queda da van, da neve de uma montanha e a subida de um elevador).
Com a atuação ainda indefinida de DiCaprio, escondido por uma série de projeções, tanto do seu passado com sua esposa quanto com seu projeto saturado por sonhos, A origem não se desvencilha do fato de que possui uma montagem ao mesmo tempo vertiginosa e tortuosa em seu propósito de não deixar brechas para que o espectador considere de que não sairá satisfeito ou com enigmas dispersos, conduzindo-o ao entendimento de que a obra se torna justamente complexa por não deixar quase nada de modo claro. Montado como um grande puzzle de peças, de forma às vezes desordenada e mesmo confusa, assim como os edifícios que se desdobram ou aqueles atingidos por um oceano magnífico, com a trilha sonora competente de Hans Zimmer, a extraordinária fotografia de Wally Pfister (a descoberta maior de Nolan) e uma direção de arte não menos do que brilhante de Huy Hendrix Dyas, A origem se ressente exatamente de um certo onirismo capaz de dar mais sensibilidade aos personagens, que passam pelo roteiro como se fossem exatamente executivos da corporação Rekall. Assim como a eles não é permitido um sonho real, ao espectador não resta senão a possibilidade de acompanhá-los numa espécie de simetria encaixada e, senão previsível, pelo menos de fadiga onírica. Ainda assim, em meio às teorias e à exposição, Nolan consegue realizar uma obra instigante e cujo maior mérito é alcançar um terreno ainda pouco explorado da humanidade, com o auxílio de uma notável equipe técnica e algumas imagens realmente inesquecíveis.

Inception, EUA/Reino Unido, 2010 Direção: Christopher Nolan Elenco: Leonardo DiCaprio, Joseph Gordon-Levitt, Ellen Page, Tom Hardy, Ken Watanabe, Dileep Rao, Cillian Murphy, Tom Berenger, Marion Cotillard, Pete Postlethwaite, Michael Caine Roteiro: Christopher Nolan Fotografia: Wally Pfister Trilha Sonora: Hans Zimmer Produção: Christopher Nolan, Emma Thomas Duração: 148 min. Distribuidora: Warner Bros Estúdio: Legendary Pictures / Syncopy / Warner Bros

Cotação 3 estrelas e meia