Por André Dick
Capone, de Josh Trank, lançado em VOD, foi recebido com muita aversão pela crítica em geral, e o diretor, especialmente, foi lembrado por seu envolvimento polêmico na direção de Quarteto fantástico, cuja versão própria, segundo ele, acabou se perdendo.
O filme oferece um retrato do último ano de vida do mafioso, interpretado por Tom Hardy, que vem num crescente em sua carreira, desde A origem e Batman – O cavaleiro das trevas ressurge, passando por O regresso, até Venom. Se neste último ele fazia quase um personagem cômico, no novo filme ele se mostra disposto a uma variedade de caminhos.
A trama retrata muito bem os anos 50, quando traz Capone em sua decadência física. Ele é casado com uma jovem esposa, Mae (Linda Cardellini), e tem um filho, Junior (Noel Fisher), com os quais vive em sua mansão na Flórida, visitado às vezes por um médico, Karlock (Kyle MacLachlan), e vigiado por uma equipe do FBI, liderada por Crawford (Jack Lowden) e que deseja trancafiá-lo por crimes não provados, além de estar em busca de uma quantia considerável de dinheiro. Seria ela apenas resultado apenas da inconsciência manifesta de Capone? Ocasionalmente ele recebe telefonemas de outro filho, Tony (Mason Guccione), e também visitas do antigo amigo Johnny (Matt Dillon).
Situado entre a realidade e as alucinações de Capone, quase oníricas, nos moldes de David Lynch (o diretor de fotografia Peter Deming é o mesmo de Estrada perdida, Cidade dos sonhos e Twin Peaks – O retorno), com muita violência, Capone também traz a influência da filmografia de Paul Thomas Anderson (a atmosfera remete por vezes a O mestre), fazendo valer o fato de ser um filme independente. Também ecoa um pouco A lei da noite, de Ben Affleck, e Ajuste final, dos irmãos Coen. É um cinema que merece ser valorizado, assim como contribui seu elenco coadjuvante para o resultado final, mesmo sem ganhar destaque como o protagonista.
A resposta do público e da crítica não chega a ser surpreendente. Talvez em razão de seu fracasso à frente de Quarteto fantástico, Capone é visto como uma tentativa de ele ingressar num exercício intelectual. Em parte, pode ser verdade, mas se isso é prejudicial no cinema atual fica a questão. O roteiro de Trank não está interessado exatamente em desenvolver personagens (como os de Dillon ou MacLachlan) e sim em inserir o espectador no universo do mafioso sendo levado ao limite de sua existência, na qual tudo parece sem sentido. Hardy, para isso, possui uma atuação introvertida e, ao mesmo tempo, explosiva. Se De Niro fazia o personagem em Os intocáveis ainda no auge do mafioso, na época da Lei Seca, este Capone está mais tentando entender os fantasmas que o cercam – e uma festa no porão de uma casa parece misturar alucinações de Twin Peaks e O iluminado. E, ´para um filme sobre a máfia, ele é menos influenciado pelos clássicos de Coppola e de Scorsese do que por um certo experimentalismo, com sua tentativa de buscar uma metalinguagem sem se esvaziar nos próprios objetivos. A edição, do próprio Trank, se encarrega de encadear as sequências de modo que não percamos de vista esta mescla entre realidade e sonho.
A presença de Hardy, por vezes comedida, por vezes cômica no seu excesso trágico, pode lembrar daquela de Al Pacino de Scarface, criticada à época de seu lançamento. É uma performance disposta ao risco, e nisso se mostra eficaz. Ele confere uma tristeza e vulnerabilidade ao personagem, assim como o joga num contexto propício ao desentendimento. Há outros detalhes: em determinado momento o médico aconselha que Capone segure um pedaço de cenoura como se fosse seu charuto – e isso remete à figura do coelho de Alice no país das maravilhas – e o roupão que o mafioso usa tem a cor da jaqueta de Jack Torrance em O iluminado.
Trank já se mostrava um cineasta preocupado em estabelecer um clima melancólico em Quarteto fantástico, o que o levou certamente a seu fracasso, e não é diferente em Capone: a ruína do personagem, investigado ainda por ter sumido com milhões de dólares, mesmo ao lado da mulher e com a presença da família, é impactante e toma especial atenção mais ao final, com uma sequência que remete aos filmes dos anos 30 com especial ironia. Para completar, os valores de produção (design de produção, fotografia, figurino, por exemplo) são ótimos, remetendo a Barton Fink, segundo Trank em entrevistas uma das obras que o inspiraram, com um trabalho notável de Deming na iluminação das cenas, ligando o estado psicológico de Capone à mansão onde está. Por meio dessas sequências, Trank leva o mafioso de pesadelos durante a noite a um céu iluminado, não o tirando, porém, da mesma situação. Não há um menosprezo pelas interpretações que o espectador pode extrair da narrativa, em nenhum ponto expositiva ou excessiva. É uma pena que Capone talvez não ganhe nunca o reconhecimento que poderia; quem, no entanto, se interessar pela proposta pode apreciá-lo bastante. É um dos melhores filmes deste ano, com grande impacto.
Capone, EUA, 2020 Diretor: Josh Trank Elenco: Tom Hardy, Linda Cardellini, Jack Lowden, Noel Fisher, Kyle MacLachlan, Matt Dillon, Al Sapienza, Jack Lowden Roteiro: Josh Trank Fotografia: Peter Deming Trilha Sonora: El-P Produção: Russell Ackerman, Lawrence Bender, Aaron L. Gilbert, John Schoenfelder Duração: 104 min. Estúdio: Addictive Pictures, Bron Studios, Lawrence Bender Productions, Redbox Entertainment, Endeavor Content Distribuidora: Vertical Entertainment