Tenet (2020)

Por André Dick

Conhecido por narrativas complexas e uma tentativa de lidar com o tempo de modo pouco habitual, o diretor Christopher Nolan anunciou Tenet pouco tempo depois de Dunkirk, seu flme sobre um acontecimento decisivo da Segunda Guerra Mundial que melhora cada vez mais em revisões. O filme não tinha exatamente seu estilo, difundido amplamente por A origem, principalmente, com seu encadeamento de diálogos quase intermináveis. Dunkirk parecia um experimento mais na linha da concisão, de fazer tudo ser comunicado com o mínimo esboço de personagens e mais focado em situações.
Tenet acabou sendo filmado com grande expectativa depois da primeira indicação de Nolan ao Oscar, mesmo depois da trilogia Batman e de Interestelar – ignorado pela Academia. E ganhou ainda mais destaque por causa de seu lançamento ter sido adiado várias vezes devido à pandemia. Nolan queria que seu filme simbolizasse a volta aos cinemas, o que Tenet acabou por desempenhar, ao lado de Os novos mutantes, este sem, evidentemente o mesmo destaque.

Se há algo que aproxima Tenet dos filmes anteriores é sua narrativa hermética. Tem parentesco com A origem em diversos pontos, numa espécie de mescla entre realidade, thriller e ficção científica. Desde Amnésia, Nolan tem procurado lidar com a sequência temporal com um objetivo claro de subvertê-la. Na trilogia Batman ele não chegou a apostar nisso, mesmo com êxito, mas continuou a selecionar o tempo como sua ferramenta em Interestelar, uma das ficções científicas mais interessantes já feitas, e Dunkirk, com sua ação passada em três tempos distintos, em termos de horas, não anos, no entanto que se conectam.
Tenet começa com uma equipe de homens invadindo um teatro em Kiev – em sequência que remete diretamente à trilogia Batman. É levado um homem da CIA (John David Washington), que passa a ser, ao que parece, o predestinado, chamado de Protagonista ao longo do filme, para um local isolado onde parece ser morto, para reaparecer num navio, tendo de cumprir ordens de uma ordem chamada Tenet. Ele descobre, por meio de Victor (Martin Donovan) e Laura (Clémence Poésy), sobre o tempo que pode retrocdeer, com uma sequência de tiros que revertem no tempo, e vai para Mumbai, onde encontra Neil (Robert Pattinson) e Priya Singh (Dimple Kapadia), uma trtaficante de armas e, finalmente, Kat (Elizabetyh Debicki), casada com um milionário russo, Andrei Sator (Kenneth Branagh), que está por trás de pesquisas sobre subversão do futuro e parece ter interesse especial pelo uso de plutônio. Como o Bane de O cavaleiro das trevas ressurge, Nolan pinta aqui seu receio diante da humanidade estar nas mãos de quem sempre pode apertar um botão com intenção maligna. Não é preciso entender todos os detalhes: este fio de trama abrange quase tudo a que o espectador tem acesso.

Nolan sempre utilizou seus personagens como motivações para colocar em prova as suas intuições particulares para um cinema capaz de dose técnica e emoção em larga escala. Ele conseguia isso em Interestelar aliado a um drama muito profundo do personagem central. Como em A origem, Tenet se mantém mais a distância, orientado por atuações contidas. Depois de Infiltrado na Klan, Washington tem uma boa atuação como o Protagonista, um papel difícil. É Robert Pattinson como seu colega que se destaca, fazendo o filme ficar mais intenso quando aparece, assim como Branagh assume um papel também aberto ao risco,  pela restrição de diálogos, um pouco caricatural; é sua melhor participação como ator desde pelo menos Sete dias com Marilyn, no início da década passada. Debicki faz uma mulher silenciada pelo marido com certa elegância. O elenco consegue usar o roteiro como aliado para suas performances, fazendo tudo exatamente crível, enquanto Nolan e sua equipe se empenham em apresentar algumas sequências fantásticas de perseguição, como aquelas do aeroporto e da autopista, incentivadas pelo uso de efeitos visuais excepcionais, como é de praxe em sua trajetória. As cenas que mostram o tempo retrocedendo são minuciosamente complexas, levando o espectador ao universo que lembra os melhores momentos do impacto inicial de um Matrix.
Fala-se sobre o quanto Nolan diz que gostaria de dirigir um filme de James Bond (não conseguindo, possivelmente, por querer ser mais autoral), e Tenet parece anunciar o que seria uma obra de espionagem sob um olhar com escapismo científico. Claro que há os diálogos expositivos, que haviam em Interestelar, escritos pelo diretor  e que particularmente não são empecilho para admirar o resultado, e que ressurgem depois do minimalista Dunkirk. Os personagens convivem com o espectador sempre movidos pelas teorias de Nolan, nunca abandonando esse espaço em prol de algo mais emocional. Trata-se de uma característica que o aproxima muito de A origem, porém este novo filme tem uma técnica narrativa aparentemente mais concisa e, dentro do seu hermetismo, mais divertido.

Nada chega a ser muito explicado, apesar dos diálogos visando isso, e há certas surpresas que dão a sensação de se lidar com uma novidade na maneira de apresentar os personagens, mesmo que às vezes a trilha sonora de Ludwig Göransson soe por vezes excessivamente tecnológica, não tendo o grau de variação daquelas de Hans Zimmer, e a fotografia de Hoyte van Hoytema nunca procure exatamente pontos de diversidade no uso de cores (o amarelo é predominante nos detalhes, como em O cavaleiro das trevas ressurge e Dunkirk), apresentando tudo como um futuro asséptico. Ainda assim, o design de produção e a fotografia em termos de movimentação funcionam de maneira inquestionável, sendo a obra de Nolan talvez mais bem resolvido na sua apresentação, sabendo compor as cenas, mesmo as mais confusas. Tenet é um experimento paradoxal: enquanto você tenta entendê-lo, parece que a diversão diminui. No entanto, é quando se deixa embarcar nessa mescla de sensações que o filme se torna fascinante. Há algo nele que soa, conforme suas próprias intenções, atemporal, e nisso reside sua maior importância numa época em que o tempo parece ter estagnado.

Tenet, EUA, 2020 Diretor:: Christopher Nolan Elenco: John David Washington, Robert Pattinson, Elizabeth Debicki, Dimple Kapadia, Michael Caine, Kenneth Branagh Roteiro: Christopher Nolan Fotografia: Hoyte van Hoytema Trilha Sonora:  Ludwig Göransson Produção: Emma Thomas e Christopher Nolan  Estúdio: Warner Bros. Pictures, Syncopy Distribuidora:  Warner Bros. Pictures

Dunkirk (2017)

Por André Dick

O cineasta britânico Christopher Nolan iniciou sua carreira com o curioso thriller Following e em seguida fez Amnésia, no qual a memória fragmentada atingia o personagem central e antecipava, de certo modo, Insônia, policial com Al Pacino em busca de um assassino no Alaska, abalado por não conseguir dormir em razão da claridade permanente. Se Batman begins significou o início de uma das maiores trilogias da história do cinema, O grande truque e A origem confirmaram Nolan como uma voz capaz de mesclar técnica, visão, ousadia e riscos com a montagem de um filme. Apesar de sempre se apontar uma certa exposição em seus roteiros, sua filmografia parecia prepará-lo para a obra-prima de ficção científica que é Interestelar. Para suceder uma obra desse porte, Nolan recorreu ao gênero de guerra, trazendo para as telas a batalha de Dunkirk. A história inicia em 1940, na Segunda Guerra Mundial, com a explicação de que a França está sendo invadida pela Alemanha e milhares de soldados ficam à espera do que pode acontecer em seguida na cidade litorânea de Dunkirk.

Logo Nolan foca em Tommy (Fionn Whitehead, muito bem), jovem soldado da Inglaterra, que consegue chegar, depois alguns contratempos, à praia onde estão soldados de seu país e outros aliados (franceses, belgas e canadenses). Ele fica amigo de Gibson (Aneurin Barnard), que está enterrando um amigo seu. Ameaçados por aviões da Alemanha, os homens estão desesperados na praia. Aos dois novos amigos, se junta mais tarde Alex (Harry Styles). Alheios a esse cenário, o Comandante Bolton (Kenneth Branagh) e o Coronel Winnant (James D’Arcy) avaliam a situação, e isso significa exatamente não ter ideia ou certeza a respeito do que pode afetar esses milhares de homens sob seu comando. Por alguns instantes, principalmente no número de figurantes, Dunkirk parece remeter a Patton, dos anos 70, mas o propósito de Nolan não é obviamente fazer uma sátira de guerra. Estamos, sim, diante de uma homenagem dele a um fato histórico.
Ao mesmo tempo, vários barcos são requisitados pela Royal Navy para ajudar no salvamento. Num deles, o Moonstone, está o Sr. Dawson (Mark Rylance), junto com seu filho, Peter (Tom Glynn-Carney), e o jovem George (Barry Keoghan). No caminho para Dunkirk, eles se deparam com o soldado Shivering (Cillian Murphy, um dos atores favoritos do diretor).

Finalmente, acompanhamos também os pilotos de aviões Spitfire Farrier (Tom Hardy) e Collins (Jack Lowden), que sobrevoam Dunkirk para tentar proteger as tropas. Os três núcleos (em terra, em água e ar) se passam em tempos diferentes, requisitando do espectador uma certa atenção para desenhar o panorama geral.
O diretor de fotografia Hoyte van Hoytema, que já havia trabalhado com Nolan em Interestelar, empresta seu talento para a captura de imagens verdadeiramente realistas, fazendo algumas vezes o filme se parecer com um documentário – e se faz notável um diálogo com o clássico de guerra Overlord, dos anos 70, um dos preferidos de Nolan. Além disso, a paleta de cores escolhidas realça o figurino dos personagens e a areia da praia (inspirada em O mestre, de Paul Thomas Anderson). Por sua vez, a trilha de Hans Zimmer empresta o aspecto grandioso à narrativa. Difícil esquecer, por exemplo, os jovens carregando um ferido em determinado momento à frente de tropas enfileiradas ou o Moonstone passando ao lado de um grande navio: é como se o mínimo, o pequeno, fosse realmente o que representa a bravura de quem adentra uma guerra.

A grande questão é que Nolan, desta vez autor solitário do roteiro, parece ter desejado substituir a exposição verbal de seus filmes – muito interessante em Interestelar, por exemplo – pela superexposição de imagens. Destaca-se como nenhum personagem é trabalhado, com exceção talvez para Sr. Dawson, na melhor atuação de Rylance em sua carreira como ator de cinema. Os soldados estão sempre à mercê de uma ameaça para terem sua presença desenvolvida. Nesse sentido, os diálogos não importam, e sim o que pode acontecer quando um avião se aproxima ou quando há tiros na água, e pode-se dizer que é um dos filmes que melhor utilizam efeitos sonoros (de gritos humanos também) dos últimos tempos. Isso fornece uma tensão incontornável, porém até certo ponto, pois, não se sabendo quem são esses personagens exatamente, não há o devido envolvimento. Não se trata, por exemplo, da técnica usada por Terrence Malick, de desprover os personagens de diálogos: Malick compensa por sugestões visuais. Essa não é uma característica de Nolan: sua área de domínio é o cinema de impacto, e este normalmente em seu caso vem acompanhado por longas linhas de diálogos. É o que o caracteriza como diretor autoral. Isso se ausenta de maneira pontual em Dunkirk. Ele está mais interessado na imagem como documento do que como espaço para a inter-relação.

Mesmo na angústia e na tentativa de sobrevivência, o resultado soa um tanto frio por faltar exatamente seu toque clássico. Sintetizar personagens por meio de imagens não é necessariamente uma qualidade. Este pode ser o caso de Dunkirk, um filme moldado para ser grande e se ressente justamente de personagens e atuações capazes de provocar uma satisfação maior como cinema. Além disso, Nolan parece acentuar um problema já existente em A origem, um filme substancialmente melhor em cada palmo do que Dunkirk: a montagem é excessivamente confusa, jogando com três cenários e tempos em paralelo, sem haver sugestões suficientes para indicar qual é a próxima ameaça. Lee Smith tem um trabalho árduo aqui, pois a montagem é assessorada pela emoção dos personagens, que faltam a cada momento em que o espectador espera uma nova costura para as imagens sendo apresentadas. Quando há um encaixe mais claro para o espectador dessas ações fora de ordem, o filme cresce.
Essa emoção havia, por exemplo, no subestimado e muito mais clássico e padronizado Invencível, no qual os combates aéreos pelas lentas de Roger Deakins adquiriam um ímpeto realista e, ao mesmo tempo, cinematográfico. Ou mesmo no recente Até o último homem, de Mel Gibson, que, com todo seu maniqueísmo, criava uma perturbação por meio de sua figura principal em meio ao conflito de guerra. Para não falar de clássicos, a exemplo de Platoon, Nascido para matar, Apocalypse now, O franco-atirador, Além da linha vermelha O resgate do Soldado Ryan, todos com uma visão humana e histórica sobre a guerra, visualmente impressionantes e com desenvolvimento de personagens. Por outro lado, parece ser exatamente na sutileza que Nolan entrega uma visão diferenciada da guerra. Ao não dar tanta voz a esses personagens, ele universaliza as situações de perigo.


Nesse sentido, o personagem de Murphy, Shivering, se apresenta como aquele que, transtornado pela guerra, passa a agir de modo irracional. Também por meio dessa figura, Dunkirk é um filme de sobrevivência, como vem sendo divulgado, e a cada peça dele leva a um direcionamento maior rumo à emoção, mesmo que esta se sinta por vezes vazia. É uma obra simétrica, mas falta a ela a perturbação da guerra sem exatamente o predomínio documental e sua recomendação de idade impede cenas fortes, que seriam adequadas no contexto, sendo tudo excessivamente asséptico. Como uma visão conceitual e técnica da guerra, Dunkirk pode atingir em cheio; como fator do imponderável e da emoção, suas imagens soam um pouco remotas e mecânicas. Ele acaba tendo mais interesse quando cria paralelismos entre situações, como o dos jovens tentando colocar um barco em movimento e um piloto tentando sobreviver embaixo d’água. Também é interessante como Nolan coloca o heroísmo em escalas diferentes, por meio dos personagens da embarcação e dos homens nas praias de Dunkirk. No momento em que as ações em tempos diferentes se encontram e a trilha sonora de Zimmer se torna menos uma espécie de ruído e mais uma nostalgia de antigos filmes de guerra, é possível sentir na imagem de um piloto solitário o contraponto para a solidariedade humana.

Dunkirk, EUA/FRA/HOL/ING, 2017 Diretor: Christopher Nolan Elenco: Tom Hardy, Mark Rylance, Cillian Murphy, Kenneth Branagh, Fionn Whitehead, Aneurin Barnard, Harry Styles, James D’Arcy, Jack Lowden, Barry Keoghan Roteiro: Christopher Nolan Fotografia: Hoyte Van Hoytema Trilha Sonora: Hans Zimmer Duração: 106 min. Produção: Christopher Nolan, Emma Thomas Distribuidora: Warner Bros. Estúdio: Dombey Street Productions / Warner Bros.